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A revista DEP Diplomacia, Estratégia e Política é um periódico trimestral,
editado em português, espanhol e inglês, sobre temas sul-americanos, publicado
no âmbito do Projeto Raúl Prebisch, com o apoio do Ministério das Relações
Exteriores (MRE/Funag Fundação Alexandre de Gusmão/Ipri Instituto de
Pesquisa de Relações Internacionais), da Construtora Norberto Odebrecht S. A.,
da Andrade Gutierrez S. A. e da Embraer Empresa Brasileira de Aeronáutica S. A.
Editor
Carlos Henrique Cardim
Endereço para correspondência:
Revista DEP
Caixa Postal 2431
Brasília, DF – Brasil
CEP 70842-970
revistadep@yahoo.com.br
www.funag.gov.br/dep
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
DEP: Diplomacia, Estratégia e Política/Projeto Raúl Prebisch no. 6 (abril/junho 2007) – .
Brasília : Projeto Raúl Prebisch, 2007.
Trimestral
Editada em português, espanhol e inglês.
ISSN 1808-0480
1. América do Sul. 2. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana,
Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela. I. Projeto Raúl Prebisch.
CDU 327(05)
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D E P
DIPLOMACIA ESTRAGIA POTICA
Número 6 Abril / Junho 2007
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15
35
49
61
76
91
Sumário
Realidade da Argentina e região
Cristina Fernández de Kirchner
Diplomacia para a vida
Pablo Solón
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
Guido Mantega
A integração regional: fator de desenvolvimento
sustentável
Emílio Odebrecht
Em busca do crescimento com eqüidade
Ricardo Ffrench-Davis
Colômbia: desaos até 2010
Álvaro Uribe Vélez
Um plano para o Equador
Rafael Correa Delgado
Identidade cultural e creolização
na Guiana
Prem Misir
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Milda Rivarola
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Aníbal Quijano
Combate ao narcotráco no Suriname
Subhaas Punwasi
Mercosul: projeto e perspectivas
Luis Alberto Lacalle de Herrera
Acerca da grandíssima importância de um partido
Hugo Chávez
Guayasamín por ele mesmo
97
109
132
180
193
202
229
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Realidade da
Argentina e região
*
Cristina Fernández de Kirchner*
P
ara mim não é apenas uma honra, mas também um momento muito
grato em termos humanos e políticos haver sido convidada pela FLACSO.
O senhor mencionou minha participação em numerosos foros e espaços
acadêmicos e institucionais. A maioria delas se deu em espaços do chamado
primeiro mundo, onde as categorias de pensamento muitas vezes não
conseguem decodicar a realidade de uma região tão complexa e tão castigada
como tem sido a América Latina.
poucos instantes, conversando com o diretor da FLACSO, ele se
queixava, sorrindo, que vários de seus professores emigraram para formar parte
do novo governo. Eu lhe disse que o se queixasse, que isso é muito bom.
É muito bom que a FLACSO proporcione pensamento crítico aos governos da
região, que durante tanto tempo receberam pensamentos alheios e muitas vezes
contrários aos interesses de seus países, produto de outras usinas intelectuais que
o respondem exatamente aos interesses da região. Assim, creio que em boa
hora estão soprando novos ventos na região latino-americana. E minha presença
aqui tem a ver com uma dupla abordagem que pretendo realizar esta tarde, aqui
* Conferência realizada na FLACSO-Quito, em 21 de março de 2007.
** Senadora da República Argentina.
kirchner@senado.gov.ar
Realidade da Argentina e região
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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em Quito, no Equador. Por um lado, a experiência argentina, o como uma
espécie de receita ou de modelo a ser seguido. Creio nas experiências próprias de
cada país, de cada sociedade, de cada governo, simplesmente porque a Argentina,
tal como o restante da América Latina, teve processos históricos semelhantes,
em termos de interrupções institucionais por governos de facto e ao mesmo
tempo, talvez mais que qualquer outra, junto com o Equador, experimentações
de construções intelectuais que o correspondiam precisamente aos interesses
do país e de seus povos. Por isso, com este breve esclarecimento, de que o
pretendemos converter-nos em professores e nem ditar cátedra, embora
estejamos em uma universidade, é que queremos trazer-lhes a experiência
argentina depois de quase quatro anos de governo do Presidente Kirchner.
Faltam poucos dias para que em meu país se registre, no próximo
sábado, 24 de março, outro aniversário, o do último golpe militar, semelhante
a tantos outros na região, e que teve efeitos devastadores em termos políticos,
econômicos e sociais. Para citar alguns números: no momento do golpe,
em 24 de março de 1976, os trabalhadores, a massa assalariada de meu país,
participava com pouco mais de 48 por cento do PIB. Quase o fty-fty que
o justicialismo sempre propugnou. Faltavam, am disso, muito poucos
meses para as eleições seguintes, ou seja, para que o povo voltasse a decidir.
Todos conhecem, não vou aprofundar-me sobre um processo que devastou
cultural, moral, econômica e socialmente o país, além da desaparição de 30 mil
argentinos, do encarceramento de outros, da tortura, do vexame no exílio, etc.
Um panorama e uma paisagem que não ocorreram unicamente na República
Argentina, mas que pode ser observado na história de toda a região.
Em seguida, durante a década de 80, sobreveio a abertura democrática.
Fundamentalmente, ela também se acentua a partir da queda do muro de Berlim,
que como sabem rompeu o processo de bipolaridade, e então a doutrina de
segurança nacional não era necessária na região. É preciso abordar de maneira
crítica o processo pelo qual se desenvolve e se desemboca na democracia
para entender que também os primeiros passos dessa democracia foram
talvez os de uma construção que teve a ver com concordar com o que chamo
governabilidade corporativa, sobre a qual me estenderei mais adiante.
Acordar com os diferentes setores do poder das sociedades a m de tornar
governável o país é uma verdadeira contradição do que signica a construção
democrática. A constrão democrática é fundamentalmente construção de
cidadania, participação cidadã. E também, essencialmente, representação dos
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
Cristina Fernández de Kirchner
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interesses das grandes maiorias nacionais por parte daqueles que ganharam
lugares ou espaços institucionais em processos eleitorais. Muitas vezes, na
democracia, esses processos não ocorreram, seja pela conversão ideológica
daqueles que chegavam ao governo em nome de idéias, projetos e princípios
e acabavam executando projetos, idéias e gestões diametralmente opostos aos
que haviam sustentado historicamente antes de aceder ao governo, seja por
debilidade, imperícia ou falta de capacidade de gestão. Em certo momento
começavam também a questionar a democracia na América Latina como fonte
ecaz para solucionar problemas e melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Há muita crise, muita instabilidade na região. Não vim aqui para contar
aos equatorianos o que signicou a instabilidade institucional, produto das
grandes crises econômicas e sociais.
O ano de 2001 impressiona em meu país, quando a Argentina praticamente
parecia desintegrar-se. Havia uma grave crise de representação, a sociedade
argentina havia apostado fortemente no governo da aliança que chegou em
nome de um programa de governo e o que executou foi exatamente uma
continuidade do que vinha acontecendo. Vemos, então, que as crises econômicas
e sociais recorrentes o fatores de ruptura institucional, de instabilidade
institucional e essencialmente de ausência de construção democrática.
Qual é o diagnóstico do Presidente Kirchner e do espaço político do
qual faz parte, e do qual obviamente faz parte quem lhes fala? Assumimos o
governo em 25 de maio de 2003. Antes de tudo, havia nos governos da região
uma profunda dissociação entre a legalidade institucional e a legitimidade
política e social. Que signica isso? Que os processos eleitorais eram ganhos em
nome de projetos, plataformas, representações políticas, e se fazia exatamente
o contrário. Chegou a haver um Presidente em meu país que disse que se
revelasse o que ia fazer, teria perdido as eleições.
Essa crise entre legalidade e legitimidade, que signica a ecácia e não
somente cumprir com o enunciado em uma plataforma eleitoral durante um
processo eleitoral, mas também, além disso, com o que foi enunciado e aplicado
para que tenha o resultado desejado. Porque, em última análise, política é resultado.
Podemos ter as melhores idéias, podemos ter os melhores projetos, mas se não
conduzirem de forma ecaz a resultados vericáveis e quantiveis na qualidade
de vida de nossos compatriotas, de nossos concidadãos, poderão atestar a
profunda honestidade intelectual de quem formulou e cumpriu esses passos,
mas não a eciência do governo e a construção da gestão democrática.
Realidade da Argentina e região
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Digo, portanto, que essa foi a primeira questão que decidimos, a de que
a legalidade e a legitimidade não poderiam estar dissociadas, e que por isso
a governabilidade não era uma governabilidade corporativa, de pactuar com
as corporações, e sim, fundamentalmente assumirmos os compromissos de
cidadania que a sociedade e os argentinos exigiam em matéria econômica, e
principalmente no papel do Estado porque, anal, nós que militamos em
política e concorremos em processos eleitorais democráticos, plurais e abertos,
estamos tomando a iniciativa política no Estado para levar adiante um projeto
e uma gestão. É isso o que está em jogo em um processo eleitoral. Um grupo
político, em nome de um sistema de idéias, em nome de uma representação que
deseja exercer, se apresenta aos cidadãos, submete seus planos, se submete à sua
consideração quanto a seus projetos políticos, sociais, em matéria de política
internacional, e em seguida executa esse projeto, esse sistema de idéias.
O sistema de idéias que nós apresentávamos era completamente oposto
ao que tomou conta de toda a região latino-americana durante a década de 90.
Esse foi o neoliberalismo, ou o que cou conhecido com o nome de Consenso
de Washington. Com base nisso, havia quatro ou cinco eixos, além de questões
comuns, particulares, como por exemplo o tema da impunidade em matéria
de violações de direitos humanos. Armava-se, por exemplo, que não se podia
castigar os que tinham causado a desaparição, tortura e vexames de 30 mil
argentinos e de mutíssimos mais que tiveram de exilar-se no interior ou no
exterior. Armava-se que não se podia fazer isso. E quando foi feito, passou-
se a dizer que agora, na verdade, podia-se fazê-lo porque havia passado a
fase dura. Era, então, mais cil fazê-lo. Fatos como os que nos comoveram
muito pouco tempo, quase seis meses, com a desaparição de uma das
testemunhas de acusação das principais causas e que colocam em um ponto de
inexão a política em matéria de direitos humanos como questão de Estado, o
pertencente a um setor político ou a uma idéia política. A necessidade de viver
e de não conviver com os que resultaram responsáveis por tais atrocidades.
Mas havia um sistema de idéias que nos dizia que a política de ajuste era
permanente, que não era possível dizer não às linhas propugnadas pelo Fundo
Monetário Internacional em matéria de negociação, de vida soberana, ou
em matéria de políticas internas. Que o consumo devia ser restringido, porque
além de tudo era inacionário. Era curioso, porque quem dizia isso eram as
usinas do capitalismo. Então, dizíamos a nós mesmos: que capitalismo é esse,
que não deseja consumidores? Porque se algo caracteriza o capitalismo como
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sistema de idéias diante do que havia, do que estava do outro lado da cortina,
que triunfou não somente por uma questão de poderio econômico, ou militar,
ou tecnológico, ou cientíco. Foi algo muito mais simples. Os que estavam do
outro lado queriam viver como os que estavam deste lado. Isso foi realmente o
que fez desmoronar, como sistema de idéias e como sistema de funcionamento,
o que o muro representava. Como lugar emblemático, espaço emblemático
do que signica outro sistema de idéias, outra forma de funcionamento. Não
obstante, as principais usinas nos diziam que era preciso viver com o ajuste
permanente, com a restrição do consumo interno, que quem se atrevesse a
afastar-se dessas políticas, em última análise, dos ditames do Fundo Monetário
Internacional, seria esmagado pelo raio de Júpiter, de algo parecido com Júpiter
ou alguém que pensa ser Júpiter.
s armávamos que era possível outro caminho. Sustentamos que outro
caminho é possível. Que era possível renegociar como se fez na República
Argentina, que renegociou sua dívida externa. Hoje estamos com todos os
pagamentos em dia, o que signica uma economia de 75 por cento. Explicamos
isso em todos os foros internacionais, em que nos diziam: lhe parece bem
isso, nos foros internacionais vinculados aos grandes centros nanceiros
internacionais? Isto, vejam, respondia eu: no mundo nanceiro, enquanto se
colocava dinheiro a 3 por cento anuais, na Argentina chegou-se a colocar a 15
ou 20 por cento anuais, uma autêntica jogatina nanceira. Qualquer pessoa
que coloque esse dinheiro no mundo nanceiro, a essa taxa de juros, conhece
o risco, porque o capitalismo é também risco. E portanto, devem assumir o
risco aqueles que participaram dessa verdadeira economia de cassino, ou de
batotananceira, como a denominamos, e como se denomina porque não há
outra forma de qualicar a participação nos resultados dessa política.
O tema da dolarização da economia, que num primeiro momento serviu
de instrumento anti-inacionário em uma economia e em uma sociedade com
forte cultura inacionária, converteu-se em um m em si mesmo, esvaziando
e praticamente destruindo a indústria nacional.
Outra das linhas defendidas no governo era a necessidade de voltar a criar
a indústria nacional, recriar a necessidade de um empresariado nacional. Não
em oposição ao investimento estrangeiro, em absoluto, e sim porque todos os
países, todas as economias, necessitam do desenvolvimento de uma burguesia
nacional que cumpra o papel reservado pelo capitalismo, que é o de reprodutora
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de bens e serviços. E, essencialmente, uma economia que também dê ênfase
ao tema da responsabilidade social. Com tudo isso, concebeu-se também na
gestão blica o novo papel do Estado, que o podia ser o ausente desejado
pelo neoliberalismo e nem tampouco o Estado empresário dos primeiros
albores do peronismo, mas sim o Estado regulador, articulador do mercado
e da sociedade, articulador do espaço público e privado, essencialmente sem
abandonar a representação dos interesses nacionais e das grandes maiorias.
Isso é, em última análise, o que propúnhamos iniciar naquele 25 de março
de 2003, quando um Presidente, Ernesto Kirchner, assumia o cargo com 22
por cento dos votos e 27 por cento de desemprego. Como eu dizia numa
recente viagem à França, um Presidente que tinha mais desempregados do
que votos. Uma dívida externa absolutamente asxiante, de uma vez e meia o
produto interno bruto, com níveis de pobreza e indigência de 57, 58 por cento,
aproximadamente. Uma indústria inexistente. Não tínhamos competitividade.
O câmbio de um por um tornava o país inviável em termos de produção, em
termos de agregar turismo: um país inviável.
Isso zemos naquele 25 de maio de 2003, quando pusemos em marcha
o que eu denomino de um sistema de idéias. Junto a isso, também, a necessária
renovação do que constitui outro ponto de inexão na política argentina, que
foi a renovação da Suprema Corte de Justiça da nação, onde pela primeira vez
na história de meu país, um Presidente renunciou à faculdade que lhe confere a
Constituição de propor unilateralmente, sem ser submetido à consideração de
ninguém, os membros da Corte Suprema, simplesmente um número de votos
exigidos no Senado, e introduziu um procedimento no qual os nomes propostos
são submetidos à consideração pública. São passíveis de impugnação, não
somente no âmbito do Poder Executivo, mas também em seguida se traslada
ao âmbito do Poder Legislativo, promovendo a designação de pessoas que
não apenas tinham ilibados antecedentes judiciais, acadêmicos e intelectuais,
mas que além disso nenhum deles era pessoalmente conhecido do Presidente
da República. A não ser um só, o Dr. Safaroni, a quem ele conhecia por haver
sido seu feroz crítico quando era Governador da província de Santa Cruz. Foi
essa a Corte construída no período iniciado naquele 25 de maio de 2003.
Foram muitos os que disseram que estávamos loucos. Loucos, para
usar um dos adjetivos mais suaves que nos haviam endereçado. Mas quando
depois de passar o tempo se percebeu que não se vericavam as críticas feitas
e os presságios ou premonições proferidos sobre qual seria o resultado das
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políticas e daquela gestão, e pelo contrário, chegava-se a resultados pontuais,
concretos, na direção exata para a qual haviam sido apresentados, seria preciso
haver de parte dos críticos a honestidade intelectual de reconhecer o equívoco.
Não diante do Presidente, de um Deputado, do partido ao qual pertenço, mas
simplesmente diante da própria cidadania, diante da qual cada um de nós é
responsável, qualquer que tenha sido o papel que nos conferiram as eleições.
Governistas ou opositores, temos um compromisso, não diante do governo,
não diante da mídia, e sim diante da cidadania, de honestidade intelectual.
Hoje, com quatro anos de governo e com aquele panorama quanto
à situação na gestão da vida externa, desemprego, níveis de pobreza e
indigência, aumento das exportações, atividade econômica crescente, atividade
industrial e uma presença crescente e cada vez mais importante em matéria
de exportação de produtos manufaturados, não unicamente commodities, mas
também indústria presente, o desemprego no último trimestre alcançou um
dígito, abandonando os dois dígitos que duraram quase uma década e meia,
e o INDET anunciava que a indigência também estava em um dígito. Pela
primeira vez em muito tempo em meu país, a República Argentina, a pobreza
se reduzia a 27/28 por cento, com uma modicação sem precedentes nos
salários mínimos dos trabalhadores também na última década e meia. Isso
sem falar da situação do sistema previdenciário argentino, com mais de 8 ou
9 aumentos ao setor inativo. Aumento que não ocorria desde o ano de 1990
ou 1991. O desemprego caiu no último trimestre, crescendo a exportação
e o boom do turismo na República Argentina, superamos inclusive a renda
dos cereais, com uma oferta turística absolutamente diversicada, um boom
imobiliário importantíssimo também no país, porque foi um dos instrumentos
que também participaram e que constituíram um eixo fundamental nessa
recriação da realidade argentina, e que sustentamos durante toda a campanha.
Um dos mitos do neoliberalismo era também o tema da infra-estrutura e das
obras públicas como grandes reativadoras da economia.
Recordo o que o Presidente Kirchner, quando era ainda candidato, sustentava
e repisava, porque essa é a palavra mais adequada. Repisava a importância que
vamos às obras públicas, à infra-estrutura como movimento que multiplica
o crescimento econômico. Assim entendemos, do ponto de vista dogmático e
teórico. Ele já o havia experimentado como Governador da proncia de Santa
Cruz, mas o resto havíamos copiado do New Deal, principalmente, quando tudo
desmoronou, depois da crise de 30 nos EUA. E foram precisamente Roosevelt
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através do New Deal e das obras públicas o que reativou fortemente a economia,
porque é um multiplicador no plano ecomico e no plano social. No ecomico,
como indústria-mãe. Não é preciso explicar tudo o que ela implica e tudo o
que se move em torno da construção, mas além disso ela proporciona a infra-
estrutura básica que é necessária à atividade econômica, para que o empresariado
possa desenvolver sua atividade por meio das ferrovias, vias de comunicação,
aeroportos. E a sociedade, através de hospitais, escolas, água potável, moradia;
tudo isso é um círculo virtuoso que além de tudo vai recriando a conança
do país em si mesmo, porque esse foi outro aspecto chave no diagstico que
zemos da situação argentina.
Legalidade, legitimidade, basta de impunidade, mas essencialmente
sabíamos que os processos que tínhamos vivido com tanta força de 1976
em diante haviam feito surgir duas questões essenciais em toda sociedade: a
conança nas próprias energias para progredir e a idéia de que não salvação
individual, e sim a da construção do projeto coletivo. Esforço próprio e
coletivo, mas também o esforço não podia continuar a ser feito pelas mesmas
pessoas que tinham sido castigadas durante mais de duas décadas. Os setores
de menores recursos, os que não podiam ter acesso aos mínimos serviços,
ou os que, acedendo aos serviços, não podiam pagar mais por eles. Por isso
fomos duramente criticados, porque diziam que dessa maneira espantávamos os
investidores em matéria tarifária por exemplo, que iriam abandonar o país.
Recordo ainda reuniões muito tempestuosas, as primeiras do período
de governo, em uma ou outra viagem ao exterior, em um ou outro país do
primeiro mundo com grandes investimentos em nosso país. Parecia que o
mundo desabava, que todos iriam embora. Hoje, são os mesmos que fazem
grandes planos de investimento e que além disso reconhecem estar ganhando
mais do que antes. Alguns, pela primeira vez em 5 anos, em 7 anos, remeteram
lucros às matrizes em seus países de origem. Porque, é claro, quando há mais
usuários, quando há mais consumidores, a economia cresce para todos.
O que acontecia era que na Argentina o setor de usuários e consumidores
se encolhia cada vez mais, e cada vez mais se afogava quem não podia afastar-
se disso, isto é, a classe média argentina. E foi a que essencialmente acabou
suportando, em grande medida, o peso especíco da crise, sem falar dos
setores que, vítimas do modelo produtivo, já nem sequer tinham a esperança
do amanhã, ou de que um governo viesse a mudar as coisas. Por isso, então,
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era necessário, em termos de economia, em termos de cultura, em termos de
credibilidade, perceber que o negócio sério de todo capitalista que se preze é
que haja cada vez mais usuários, que cada vez haja mais consumidores, que
cada vez seja maior o poder aquisitivo destes, a m de poder vender mais,
qualquer que fosse a sua produção: bens, serviços, etc. Isso custou muito a
ser entendido, mas penso que muita gente começou a entender. Por isso os
números do crescimento em matéria de investimento, por isso a Argentina
hoje é vista como uma oportunidade de negócios e por isso importa este
processo, essa experiência argentina. Reitero que não se trata de uma receita
enlatada; por convicção e por atitude não acreditamos em receitas enlatadas
sem embarcar neste processo latino-americano, era o que eu dizia alguns
instantes quando conversava com Bonilla e outros professores desta alta casa
de estudos FLACSO sobre os novos ventos que percorrem a região.
muito pouco tempo estive em Paris, reunida com os principais
dirigentes políticos, tanto governistas quanto oposicionistas no Parlamento,
no Poder Executivo, na oposição. E a pergunta recorrente era o que estava
acontecendo na América Latina depois que em numerosos processos eleitorais
surgem as guras de Kirchner, Bachelet, Evo Morales, o Presidente Chávez,
aqui no Equador o Presidente Correa. E eu respondia que pela primeira vez,
na América Latina, os governantes se parecem com os governados. Creio que é
um momento muito especial na América Latina, e creio que se deve aproveitar
esse momento histórico em que os governos têm essa particularidade; é
impossível querer interpretar um governante como Kirchner comparando-
o com qualquer outro, ou vice-versa. Não se pode comparar Correa com
Kirchner, Chávez com Bachelet, Bachelet com Evo Morales porque cada um
responde às realidades, idiossincrasias e história de seu próprio país. Isso que
para nós, latino-americanos, é de fácil compreensão, muitas vezes é difícil
explicar à luz das categorias européias de pensamento.
Mas eu creio sinceramente que estamos em um momento único na história
da Arica Latina, no qual a integração é um dever. É o grande desao para todos
os que temos responsabilidades institucionais. Com diferentes instrumentos.
Todos sabem, integramos o Mercosul junto com o Brasil, ao qual se integrou
também a Venezuela. Mas o importante é perceber que cada um de nossos
países, que cada uma de nossas economias, tem um grau de complementaridade
que deve ser aproveitado e aprofundado. Diante de um mundo que se debate
em políticas exteriores de confrontação ou de subordinação, propor um modelo
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Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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de integração mediante complementaridade ou solidariedade na América Latina
deve ser um ponto de inexão. Devemos apresentá-lo não somente como
posição teórica, em altas casas de estudos ou em espaços institucionais, e sim
em gestões pontuais e concretas, de ação de governo.
Não é casual a presença hoje, aqui no Equador, da missão de empresários
argentinos encabeçada pela Ministra da Economia, pelo Chanceler e pelo
Ministro do Planejamento. Nós, latino-americanos, nunca nos visitamos e nos
conhecemos tanto quanto estamos fazendo agora. Nunca conversamos tanto
sobre nossos problemas e como resolvê-los em comum. Nunca havíamos
falado de um Banco do Sul como instrumento para nanciar nossos próprios
projetos sem recorrer a fontes de nanciamento que logo levantam exigências
que pouco têm a ver com programas de crescimento e desenvolvimento
social. Por isso, compatriotas latino-americanos, creio que estamos em um
momento muito especial. Saibamos aproveitá-lo. Além isso, tal como armei
em numerosos espaços institucionais e acadêmicos, cuidemos do que muitas
vezes parece preocupar-nos tanto: a instabilidade da região. A principal causa
da instabilidade da região latino-americana tem sido a pobreza, a miséria.
Essa é a principal causa de instabilidade. E creio que todos aqueles que nos
dedicamos à construção de uma sociedade democrática estável, na qual cada
um de nossos concidadãos possa exercer seus direitos, temos de entender que
a representação de interesses que hoje fazemos a partir deste sistema de idéias
não é uma questão nem dogmática e nem ideológica. É simplesmente haver
vericado, na prática, que aquele outro sistema de idéias que nos propuseram
somente causou fome, miséria e dor, e teve um efeito devastador. É então a
hora de que este sistema de idéias que nos permite exibir resultados pontuais
e concretos, que têm impacto na qualidade de vida de nossos compatriotas,
tenha a oportunidade histórica que a América Latina merece.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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Diplomacia para a vida
Pablo Solón*
T
odos os sistemas se desenvolvem por meio de processos tendentes
a equilibrar o desequilíbrio existente entre seus componentes e o entorno,
alcançando um novo equilíbrio que gera novos desequilíbrios. A política
internacional o é alheia a essa lógica. Seu objetivo nal é progredir na superação
dos desequilíbrios que se apresentam em diferentes veis (econômicos, sociais,
ambientais, territoriais, culturais, etc.), obtendo novos equilíbrios instáveis que
por sua vez constituem a base de novos desequilíbrios, os quais precisam ser
equilibrados por meio de novos enfoques, instrumentos e políticas. Partindo
dessa visão, nada é mais prejudicial para a política internacional e em especial
para a diplomacia do que a inércia e a rotina em um mundo dinâmico e em
permanente mudança.
Hoje está claro que o objetivo das políticas internacionais não compreende
apenas o relacionamento entre Estados. É evidente que o que fazemos é
negociar e assinar convênios, tratados, políticas e ações entre Estados, porém as
implicações de tais acordos o muito além das relações interestatais. O conceito
de que na ão diplotica nada mais fo senão defender os interesses de minha
nação é reducionista e a-histórico. A defesa ou promoção de determinados
interesses nacionais particulares tem repercussões em áreas imprevistas, e o que
em primeira instância pode ser uma medida unicamente de caráter “técnico”
pode produzir enormes conseqüências no que se refere ao planeta.
* Embaixador. Ministério das Relações Exteriores, República da Bolívia.
Diplomacia para a vida
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Os planos de equilíbrios e desequilíbrios são múltiplos, entrelaçam-se,
superpõem-se e mudam ao longo do tempo. Neste trabalho, e somente por
razões expositivas, reetiremos sobre quatro deles: o planeta/mãe terra, a
economia, as relações entre Estados e a interação social.
A mãe terra
cerca de 20 ou 10 anos atrás, a vio dos povos ingenas era
considerada um fenômeno do passado, algo que devia ser preservado em
uma vitrine para ser estudado por especialistas. A atitude para com os povos
indígenas era em geral paternalista; uma atitude de comiseração e proteção
de lembranças de sua história. A apreciação de sua existência se fazia mais
através da dança, da sica, da indumentária e do mal denominado “folclore”,
porém muito pouco, ou quase nada, salvo em círculos acadêmicos muito
especializados, no plano de sua cultura e sua visão.
Mas após 500 anos, os povos indígenas chegaram de volta a uma situação
de poder, de governo em um país da América Latina, e o zeram não apenas
como expressão dos movimentos sociais e populares, e sim como indígenas
que armam sua própria concepção da vida, da natureza e do mundo.
Essa visão está reetida na carta enviada pelo Presidente Evo Morales
em 2 de outubro de 2006 a todos os seus pares da região (ver anexo I), por
ocasião da Segunda Reunião de Cúpula da Comunidade Sul-Americana de
Nações: “Nossa integração é e deve ser uma integração dos povos e para os
povos. O comércio, a integração energética, a infra-estrutura e o nanciamento
devem estar voltados para a solução dos problemas maiores da pobreza e da
destruição da natureza em nossa região. Não podemos reduzir a Comunidade
Sul-Americana a uma associação para fazer projetos de super-estradas ou
créditos que acabam por favorecer essencialmente os setores vinculados ao
mercado mundial. Nossa meta deve ser forjar uma verdadeira integração para ‘viver
bem’. Dizemos ‘viver bem’ porque não aspiramos a viver melhor do que os
demais. Não acreditamos na linha do progresso e desenvolvimento ilimitado
à custa do outro e da natureza. Temos de complementar-nos e não competir.
Devemos compartilhar e não aproveitarmo-nos do vizinho. ‘Viver bem’ é
pensar não somente em termos de renda per capita e sim de identidade cultural,
de comunidade, de harmonia entre nós mesmos e com nossa mãe terra.”
Pablo Solón
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Em nossa visão todos somos parte de uma unidade. Os seres humanos,
as plantas, os animais, os montes, os rios, o céu e o vento. Todos interagimos
uns com os outros. Todos nos relacionamos. Todos nos comunicamos. Às
vezes nos zangamos e reagimos. As pedras do caminho não são entes sem
vida; elas também têm uma história, uma função, um porvir. O ser humano é
mais um; mais um dos componentes da mãe terra. Não está acima da natureza
e nem tem a capacidade de moldá-la a seu gosto e semelhança. Se há alguém
acima de tudo, é a “mãe terra”, o sistema do qual somos parte e sem o qual
não podemos existir. É a pachamama”, a quem devemos respeito e tudo o que
fazemos deve ser para agradá-la, para manter o equilíbrio com ela. Por isso,
antes de retirar o minério das entranhas da terra ou de preparar o solo para
a semeadura, é preciso pedir-lhe licença e demonstrar-lhe respeito de alguma
forma, porque estamos alterando sua harmonia interna.
Em síntese, estamos diante de uma visão que: a) é totalizadora, considera
o sistema em sua totalidade, em sua integralidade; b) presume que todos os
elementos têm vida, reagem uns diante dos outros; e c) reconhece que o ser
humano é mais um entre eles.
Há poucas décadas atrás o progresso era medido quase exclusivamente
pela quantidade de metros quadrados de cimento e aço existentes em um país
ou em uma região. Exemplos de progresso eram, e em certa medida ainda
são, essas fotos clássicas de grandes cidades cheias de chaminés que atingem o
céu. Eram, e ainda são, épocas em que alguns homens se consideram capazes
de dominar a natureza, mover montanhas, mudar o curso dos rios, inventar
sementes; enm, criar a vida, etc. sem que nada aconteça. Sem que a mãe terra
reaja, sem que a natureza se altere e se defenda.
Por sorte, a questão da mudança de clima foi um golpe muito forte
e agora mais de cinco mil peritos de todo o mundo tangeram os sinos do
alerta. “Isto não pode continuar assim”. Cada vez mais a consciência de
que está sendo produzido um imenso desequilíbrio com a natureza. Mas por
que motivo produziu-se essa situação, e que devemos fazer para remediá-la?
Estamos longe de haver chegado a um consenso. Isso não é casual, porque o
diagnóstico implica responsabilidades e contém receitas que afetarão alguns
mais do que outros.
Em nossa visão esse problema não terá solução fundamental se não
mudarmos os padrões de consumo criados pela sociedade capitalista. Não
Diplomacia para a vida
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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haverá solução enquanto vivermos em um sistema que para sair das crises
cíclicas precisa incentivar e promover o consumo irresponsável. Em outras
palavras, devemos impor a lei do respeito à natureza, de preferência à lei do
mercado. A lei de vender mais, de produzir cada vez mais, sem levar em conta
que somente possuímos um planeta azul, está nos levando ao abismo. Estamos
rmemente convencidos de que o “livre mercado” chegou a certos limites nos
quais ele é incompatível com a existência da natureza.
O neoliberalismo pretende fazer negócios com a própria tragédia que
provoca. Supõe-se que para limitar o mal uso da água, é preciso que a água tenha
preço; para compensar a “contaminação” produzida pelas grandes indústrias
é preciso comprar certicados de captura de gás carbônico; para preservar
as pradarias é preciso fornecer subsídios... aos agricultores dos países ricos.
A receita do neoliberalismo se resume no conceito de que “para não destruir
o meio ambiente é preciso que ele tenha um preço, porque quando as coisas
custam dinheiro, são cuidadas.Mas que acontece com as pessoas que não
podem pagar o preço estabelecido para aceder a esse pedaço da natureza?
Em que medida essa solução é viável para toda a espécie humana? E isso nos
leva a uma pergunta ainda mais dolorosa: acreditam ser possível preservar um
enclave azul em um planeta devastado pela super-exploração de recursos?
A visão indígena não é a de voltar ao arado egípcio, como vulgarmente
nos dizem os profetas da modernidade. A ciência, a tecnologia, a indústria, o
mercado, são manejáveis no quadro de certos parâmetros e equilíbrios com
a natureza, assim como todos os elementos de um sistema. O problema é
que alguns deles deixaram de agir em função do bem comum e começaram a
transbordar em busca de maiores lucros. Tornaram-se então insaciáveis por
mercados, por consumidores, por energia, por recursos naturais.
Não solução fácil à vista. Enquanto se fala em tomar precauções, a
dinâmica do sistema capitalista impele em seguida os indicadores da China
a crescer a 8%. Se realmente todos (inclusive a China em sua totalidade)
crescêssemos a esse ritmo, qual seria o futuro do planeta?
Estamos no início de uma mudança na política internacional dos países
em torno do grande problema do equilíbrio com a natureza. Nós, por exemplo,
consideramos que deve haver uma mudança radical e profunda na OMC e nos
acordos de livre comércio, porque até agora a lógica tem sido a de subordinar
os componentes ambientais às regras comerciais. Além do Conselho de
Pablo Solón
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Segurança das Nações Unidas, a OMC é o único acordo multilateral que possui
um mecanismo de solução de controvérsias com capacidade de impor sanções
que são cumpridas. O correto deveria ser que convenções como a de Quioto
e outras no campo do meio ambiente tivessem maior hierarquia e capacidade
de regulamentação do que os acordos comerciais. Enquanto não avançarmos
seriamente nesse sentido não haverá nenhuma mudança de fundo em relação
aos temas da mudança de clima.
A economia
Os desequilíbrios com a natureza e na natureza estão intimamente
vinculados com os desequilíbrios na distribuição da riqueza. As 200
1
maiores
empresas do mundo controlam um quarto (26,3%) da produção mundial e
crescem em ritmo igual ao dobro do crescimento do PIB dos 29 países da
OCDE. A soma da produção dessas 200 empresas supera a dos 100 países
em desenvolvimento na parte inferior da escala.
Segundo a revista Forbes, 587 multimilionários possuem uma fortuna
igual ao dobro da riqueza de todo um país como a Espanha e que chega a
quase um quinto da economia norte-americana.
No outro extremo, 2,8 bilhões de pobres sobrevivem no planeta com
menos de dois lares por dia, segundo relatório da ONU em 2005. 840 milhões
de pessoas não têm acesso aos alimentos básicos e uma dia de 6 milhões de
crianças menores de cinco anos morrem mensalmente de inanição.
Segundo a CEPAL, temos na América Latina cerca de 220 milhões de
pobres (43,4% da população) dos quais 95 milhões são pobres indigentes
(18,8% da população).
Em termos de sustentabilidade ambiental e social é impossível pretender
encontrar um equilíbrio se não forem tomadas medidas para corrigir essa
situão. Para s, o futuro da humanidade depende da capacidade que
1
Algumas das maiores empresas transnacionais de caráter não nanceiro: Shell, General Motors, Ford,
Exxon, IBM, AT&T, Mitsubishi, Mitsui, Merck, Toyota, Philip Morris, General Electric, Unilever, Fiat,
British Petroleum, Mobil, Nestlé, Philips, Intel, DuPont, Standard, Bayer, Alcatel Alston, Volkswagen,
Matsushita, Basf, Siemens, Sony, Brown Bovery, Bat, Elf, Coca-Cola... entre as clássicas; Microsoft,
Cisco, Oracle, entre as novas. Entre os bancos: IBJ/DKB/Fuji, o Deutsche, BNP/Paribas, UBS,
Citigroup, Bank of America, Tokio/Mitsubishi...
Diplomacia para a vida
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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tiverem as nações para regular e assumir mecanismos que contribuam para
a redistribuição da riqueza. A iniciativa privada por si mesma o é má.
Mas quando chega a estes extremos se converte em um enorme fator de
desequilíbrio. não é importante o que seja bom para o planeta, para meu país
ou para os demais, e sim o que é bom para minha empresa, para meus interesses
particulares. Muito se fala da livre concorrência, mas o que estamos vivendo
é a concentração do poder econômico. Em outras palavras: uma competição
entre monopólios da qual a maioria da população está ausente, mas sofre seus
impactos. Uma concentração em tais níveis constitui um perigo não apenas
para o equilíbrio com a natureza, mas também para a subsistência de milhares
de pessoas e para o exercício real da democracia. Em m de contas, na hora
de aprovar este ou aquele convênio internacional, o mais importante são os
interesses desses setores de poder.
As conseqüências desse desequilíbrio se manifestam em diferentes veis.
Um deles, muito preocupante e contra o qual muito resistem os povos indígenas
é a homogeneização cultural. Na citada carta, diz Evo Morales: A maior riqueza
da humanidade é a diversidade cultural. A uniformização e mercantilização com
nalidade de lucro ou de domínio é um atentado contra a humanidade. No
plano da educação, da comunicação, da administração da justiça, do exercício
da democracia, do ordenamento territorial e da gestão dos recursos naturais
devemos preservar e promover essa diversidade cultural de nossos povos
indígenas, mestiços e todas as populações que migraram a nosso continente.
Da mesma forma, devemos respeitar e promover a diversidade econômica, que
compreende formas de propriedade privada, pública e social-coletiva.
Para as grandes empresas, deixamos de ser cidadãos e nos convertemos
em consumidores, em sujeitos que é preciso moldar de acordo com o mercado.
Nesse quadro criam-se necessidades, promovem-se modas, invadem-se os
espaços familiares com a publicidade, criam-se cções de vida com os reality
shows, criam-se padrões de consumo, utilizam-se crianças para promover novos
produtos, mercantilizam-se os espaços de lazer como o esporte e o teatro.
Quase não existem espaços públicos livres do marketing. Até os colégios
estão caindo nessa lógica e as grandes empresas transnacionais passaram de
patrocinadoras de eventos culturais a “criadoras” de cultura.
A resistência a esse alheamento cultural é extremamente difícil porque
ela se todos os dias e através de muitos instrumentos, e quando se perde
Pablo Solón
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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uma cultura, perde-se um pedaço irrecuperável da humanidade. Nesse quadro,
colocamos em plano tão importante quanto a preservação do meio ambiente,
a defesa e promoção da diversidade cultural em nossa política internacional.
A visão indígena não é uniformizadora; no texto citado acima, Evo Morales
não fala em exclusão da propriedade privada e sim de complementaridade entre
as formas de propriedade privada, pública e social-coletiva. Não se trata de
escolher entre uma e outra, e sim antes de tudo reconhecer que mais de duas
opções também existe a forma de propriedade social coletiva e em segundo
lugar buscar um equilíbrio entre as diferentes formas de propriedade.
As relações entre Estados
Mais de 50% do comércio mundial e mais de 75% do investimento
de capital no exterior es somente nos Estados Unidos, Japão e Uno
Européia. Um relario do Financial Times, de maio de 2002, arma que
48% das maiores companhias e bancos do mundo são dos Estados Unidos,
30% da União Européia e apenas 10% são japonesas. Em outras palavras, 90%
das transnacionais que dominam a economia são norte-americanas, européias
ou japonesas. A África e a América Latina são absolutamente marginais nesses
grupos de poder econômico.
Ninguém se admira de que em política internacional estão em jogo os
interesses dessas megacorporações, por meio das relações diplomáticas entre
os países. Em muitos casos os interesses “nacionais” ocultam ou encobrem
interesses de grupos de poder econômico e não necessidades ou reivindicações
dos cidadãos. E muitos dos conitos entre nações têm mais a ver com o embate
entre esses interesses do que com verdadeiros conitos entre nossos povos.
Quando o poder econômico dessas megacorporações começar a decair, mais
construtivas serão as relações entre nossos países. Para contribuir a esse processo
é fundamental ser transparente e estar consciente de que interesses cada um de
nós representa em uma mesa de negociações em nível internacional.
No século anterior passamos de um mundo bipolar a um mundo unipolar
em crise. Nenhuma dessas correlações de força têm sido saudáveis para o
mundo e para a humanidade. O sistema que se desenvolveu nas Nações Unidas
está muito longe de exprimir um verdadeiro equilíbrio entre as nações. Temos
uma situação na qual um punhado de países possuem o poder de denir e
Diplomacia para a vida
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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legalizar a intervenção militar direta. Um mundo mais equilibrado é impensável
sem o desenvolvimento de um mundo multipolar.
A soberania, entendida como direito de um país a denir seu destino, está
cada vez mais relativizada na atualidade. Para um país que representa 0,07% na
economia mundial, a capacidade de incidir sobre o mundo fazendo respeitar
seus direitos e sua visão é quase uma missão impossível. Nesse quadro, é
fundamental avançar para a constituição de blocos regionais que nos permitam
alcançar um mundo multipolar, um mundo mais equilibrado. Na carta dirigida
a seus pares sul-americanos, Evo Morales assinala: A Comunidade Sul-
Americana de Nações pode ser uma grande alavanca para defender e armar
nossa soberania em um mundo globalizado e unipolar. Individualmente, como
países isolados, alguns podem ser mais facilmente suscetíveis a pressões e
condicionamentos externos. Juntos, temos mais possibilidades de desenvolver
nossas próprias opções em diferentes cenários internacionais.
A visão indígena andina não é localista, talvez porque na história mais
longa sempre recorda que pertence a uma civilização maior, a qual transcendia
os cinco países em que foi esquartejado o território andino a m de preservar
os interesses de determinadas oligarquias locais e certos impérios da época.
A superação das fronteiras a m de avançar em direção à pátria grande, a
uma nação única, não é para os povos indígenas a expressão de uma intenção
expansionista, e sim da rme convicção de que é necessário recompor o tecido
territorial. Não se trata de voltar ao passado, mas de assumir que o futuro
somente é possível com a integração superadora.
A construção de blocos regionais como mecanismo de armação e
exercício da soberania deve estar acompanhada de um conjunto de políticas
que permitam superar as graves assimetrias existentes no interior dos processos
de integração. o unidade possível com grandes desigualdades entre países
e regiões em seu próprio interior. A idéia de um desenvolvimento com certos
enclaves em meio a um mar de pobreza não é sustentável social, econômica
e ambientalmente.
Assim como o tema do meio ambiente está sendo reconhecido no
discurso dos diplomatas, também o tema das assimetrias começa a ser muito
discutido nas relações internacionais. No entanto, ainda estamos em uma
fase embrionária de sua implementação efetiva. É compreensível, porém não
justicável que assim seja, porque um verdadeiro tratamento das assimetrias
Pablo Solón
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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implicaria um redirecionamento de parte dos recursos que antes beneciavam
regiões privilegiadas. Nesse panorama é necessário desenvolver mecanismos
inovadores que a partir de uma percentagem da renda comum aduaneira, de
impostos progressivos especícos em determinadas rubricas, da criação de
fundos estruturais expressivos, de mecanismos e normas preferenciais e não
recíprocas, se possa efetivamente superar a questão das assimetrias.
Nesse processo de integração e de resolução das assimetrias temos de
reconhecer nossa diversidade e avançar reconhecendo os tempos de cada
um. Por isso, Evo Morales assinala: “Tenho consciência de que as nações
da América do Sul têm ritmos e processos diferentes. Por isso proponho um
processo de integração de diferentes velocidades. Proponho traçarmos um plano de rota
ambicioso, porém exível, que permita a todos participarem, possibilitando
que cada país assumindo os compromissos que pode assumir e permitindo
que aqueles que desejem acelerar o passo o façam, em direção a um verdadeiro
bloco político, social e cultural. Assim se desenvolveram outros processos de
integração no mundo e o caminho mais adequado é avançar na adoção de
instrumentos de supranacionalidade, respeitando os tempos e a soberania
de cada país.
As interações sociais
No plano social, o maior desequilíbrio que vivemos é o esvaziamento
do conteúdo da democracia, ou talvez ela não se tenha enchido do conteúdo
das expectativas da população, quando foram conquistadas as liberdades
democráticas. O desmoronamento das ditaduras foi acompanhado por um
amplo processo de recuperação da democracia em nossos países, porém tal
como se deu em outras regiões a democracia acabou por converter-se em um
espaço retórico para a maioria da população, que sente que apenas participa
uma vez a cada 4 ou 5 anos, quando é preciso eleger autoridades. Em seguida,
as relações de força entre os diversos atores sociais muda de plano e quem
possui mais poder na economia possui mais poder no exercício do poder.
De todos os fatores analisados, esse é o mais determinante para nós,
seres humanos, porque sobre este podemos atuar diretamente, e somente se o
conseguirmos poderemos incidir sobre os outros planos dos equilíbrios entre
nações, setores econômicos e a natureza.
Diplomacia para a vida
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Nesse contexto, temos de ver as coisas com sinceridade e perguntarmo-
nos: quanto da diplomacia internacional responde aos interesses das nações,
suas populações e suas democracias, e quanto está condicionado ou dirigido
a promover os interesses de determinados setores do poder econômico? Não
estaremos entrando em uma fase na qual para salvar a vida do planeta será
preciso democratizar o exercício das relações internacionais?
Na Bolívia cunhamos uma frase que fala na “diplomacia dos povos”;
é um conceito amplo que abarca desde o fato de que nas relações internacionais
o país deve fazer prevalecer antes de tudo os interesses de nossos povos, até
o fato de que muitas vezes podemos avançar de maneira mais substancial
por meio da aproximação de nossos povos, que não sentem nem conhecem
fronteiras, e que através da ação de nossas Chancelarias estão em alguns casos
impregnados de conservadorismo.
Se escutássemos o que nos dizem os movimentos sociais, de mulheres, de
ingenas, muitos erros o seriam cometidos. Um exemplo: a “Via Camponesa”,
uma rede de organizações camponesas e indígenas do mundo, manifestou que
não devemos falar de “bio” combustíveis e sim de “agro” combustíveis. A vida
não deve ser equiparada à energia; o que é possível é que sob certos parâmetros,
uma porção da energia que consumimos venha de produtos agrícolas, porém
obviamente de acordo com certos limites, porque senão, a m de produzir a
energia de que se necessita iremos acabar com o meio ambiente, incrementar
o consumo de água, arrasar bosques e causar a erosão na terra.
Não se trata de excluir os setores empresariais das negociações comerciais
ou de outro tipo, mas de reconhecer que nós, nas Chancelarias, temos dívidas
com todos, e em particular com os que são menos ouvidos.
Por isso, Evo Morales diz: “Depois de muitos anos de termos sido timas
das políticas do mal denominado ‘desenvolvimento’, hoje nossos povos devem
ser os atores das soluções dos graves problemas de saúde, educão, emprego,
distribuão não eqüitativa dos recursos, discriminação, migração, exercio da
democracia, preservação do meio ambiente e respeito à diversidade cultural”.
Essa busca do equilíbrio na diversidade em todos os planos é o que na
Bolívia passamos a chamar “Diplomacia para a vida”.
Pablo Solón
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Anexo I – Proposta do Presidente Evo Morales*
Construamos com nossos povos uma verdadeira
comunidade sul-americana de nões para viver bem
La Paz, 2 de outubro de 2006
Irmãos Presidentes de Povos da América do Sul,
Em dezembro de 2004, em Cuzco, os Presidentes da América do Sul
assumiram o compromisso de “desenvolver um espaço sul-americano integrado
nos aspectos político, social, econômico, ambiental e de infra-estrutura”, e
armaram que “a integração sul-americana é e deve ser uma integração dos
povos”. Na declaração de Ayacucho destacaram que os princípios de liberdade,
igualdade, solidariedade, justiça social, tolerância, respeito ao meio ambiente o os
pilares fundamentais para que esta Comunidade alcance um desenvolvimento
econômico e social sustentável “que leve em conta as urgentes necessidades
dos mais pobres, assim como das exigências especiais das economias pequenas
e vulneráveis da América do Sul”.
Em setembro de 2005, durante a Primeira Reunião de Chefes de Estado
da Comunidade Sul-Americana de Nações, realizada no Brasil, foi aprovada
uma Agenda prioritária na qual estão incluídos, entre outros, os temas do
diálogo político, as assimetrias, a integração física, o meio ambiente, a integração energética,
os mecanismos nanceiros, a convergência econômico-comercial e a promoção da integração
social e a justiça social.
Em dezembro desse mesmo ano, em uma Reuno extraordiria
realizada em Montevidéu, foi formada a Comissão Estratégica de Reexão
sobre o Processo Sul-Americano de Integração, para elaborar “propostas
destinadas a impulsionar o processo sul-americano de integração, em todos
os seus aspectos (político, econômico, comercial, social, cultural, energético e
de infra-estrutura, entre outros).
Diplomacia para a vida
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Agora, na II Reunião de pula de Chefes de Estado, devemos aprofundar
esse processo de integração, a partir de cima e a partir de baixo. Com nossos
povos, com nossos movimentos sociais, com nossos empresários produtivos,
com nossos ministros, técnicos e representantes. Por isso, na próxima Cúpula
de Presidentes, a realizar-se em dezembro na Bolívia, estamos também dando
impulso a uma Cúpula Social para dialogar e construir de maneira comum
uma verdadeira integração com participação social de nossos povos. Depois
de muitos anos de termos sido vítimas das políticas do mal denominado
“desenvolvimento”, hoje nossos povos devem ser os atores das soluções dos
graves problemas de saúde, educação, emprego, distribuição não eqüitativa
dos recursos, discriminação, migração, exercício da democracia, preservação
do meio ambiente e respeito à diversidade cultural.
Estou convencido de que em nosso pximo encontro na Bolívia é preciso
passar das declarações aos fatos. Creio que devemos progredir em direção a um
tratado que faça da Comunidade Sul-Americana de nações um verdadeiro bloco sul-americano
em nível político, econômico, social e cultural. Estou seguro de que nossos povos estão
mais próximos do que nossas diplomacias. Creio, com todo o respeito, que nós,
Presidentes, devemos dar uma sacudidela em nossas Chancelarias para que se
libertem do pó da rotina e enfrentemos esse grande desao.
Tenho consciência de que as nações da América do Sul têm ritmos e
processos diferentes. Por isso proponho um processo de integração de diferentes
velocidades. Proponho traçarmos um plano de rota ambicioso, porém exível,
que permita a todos participarem, possibilitando que cada país vá assumindo os
compromissos que pode assumir e permitindo que aqueles que desejem acelerar
o passo o façam, em direção a um verdadeiro bloco político, social e cultural.
Assim se desenvolveram outros processos de integração no mundo e o caminho
mais adequado é avançar na adoção de instrumentos de supranacionalidade,
respeitando os tempos e a soberania de cada país.
Nossa integração é e deve ser uma integração dos povos e para os povos.
O comércio, a integrão energética, a infra-estrutura e o nanciamento
devem estar voltados para a solução dos problemas maiores da pobreza e da
destruição da natureza em nossa região. Não podemos reduzir a Comunidade
Sul-Americana a uma associação para fazer projetos de super-estradas ou
créditos que acabam por favorecer essencialmente os setores vinculados ao
mercado mundial. Nossa meta deve ser forjar uma verdadeira integração para “viver
bem”. Dizemos “viver bem” porque não aspiramos a viver melhor do que os
Pablo Solón
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demais. Não acreditamos na linha do progresso e desenvolvimento ilimitado
à custa do outro e da natureza. Temos de complementar-nos e não competir.
Devemos compartilhar e não aproveitarmo-nos do vizinho. “Viver bem” é
pensar não somente em termos de renda per capita e sim de identidade cultural,
de comunidade, de harmonia entre nós mesmos e com nossa mãe terra.
Para avançar por este caminho, proponho:
No plano social e cultural
1) Libertemos a América do Sul do analfabetismo, da desnutrição, do impaludismo
e outros agelos da extrema pobreza. Estabeleçamos metas claras e um
mecanismo de acompanhamento, apoio e cumprimento desses
objetivos que são o piso mínimo para começar a construir uma
integração a serviço do ser humano.
2) Construamos um sistema público e social sul-americano para garantir o acesso
de toda a população aos serviços de educação, saúde e água potável. Unindo
nossos recursos, capacidades e experiências, estaremos em melhores
condições para garantir esses direitos humanos fundamentais.
3) Mais emprego na América do Sul e menos migração. A coisa mais valiosa que
temos é nossa gente, e a estamos perdendo por falta de emprego em
nossos países. A exibilização trabalhista e a redução do tamanho
do Estado não trouxeram mais emprego, como prometeram
duas décadas. Os governos têm de intervir coordenadamente com
políticas públicas para gerar empregos sustentáveis e produtivos.
4) Mecanismos para reduzir a desigualdade e a injustiça social. Respeitando
a soberania de todos os países, temos de comprometermo-nos a
adotar medidas e projetos que reduzam o hiato entre ricos e pobres.
A riqueza tem e deve ser distribuída de maneira mais eqüitativa
na região. Para isso devemos aplicar diversos mecanismos de tipo
scal, regulatório e redistributivo.
5) Luta continental contra a corrupção e as máas. Um dos maiores males
enfrentados por nossas sociedades é a corrupção e o estabelecimento
de máas que vão perfurando o Estado e destruindo o tecido
social de nossas comunidades. Devemos criar um mecanismo de
transparência no plano sul-americano e uma Comissão de luta
contra a corrupção e a impunidade que, sem vulnerar a soberania
Diplomacia para a vida
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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jurisdicional das nações, faça o acompanhamento dos casos graves
de corrupção e enriquecimento ilícito.
6) Coordenação sul-americana com participação social para derrotar o narcotráco.
Desenvolvamos um sistema sul-americano com participação de
nossos Estados e nossas sociedades civis para apoiarmo-nos, articular
e desterrar o narcotráco de nossa região. A única forma de vencer
este câncer é com a participação de nossos povos e com a adoção
de medidas transparentes e coordenadas entre nossos países para
enfrentar a distribuição de drogas, a lavagem de dinheiro, o tco de
precursores, a fabricação e a produção de cultivos que são desviados
para esses ns. Esse sistema deve certicar o avanço em nossa luta
contra o narcotráco superando os exames e “recomendaçõesdos
que até agora fracassaram na luta contra as drogas.
7
) Defesa e impulso à diversidade cultural. A maior riqueza da humanidade
é sua diversidade cultural. A uniformização e mercantilização com
objetivo de lucro ou de domínio é um atentado contra a humanidade.
No plano da educação, da comunicação, da administração da justiça,
do exercício da democracia, do ordenamento territorial e da gestão
dos recursos naturais, devemos preservar e promover essa diversidade
cultural de nossos povos indígenas, mestiços e todas as populações
que migraram para nosso continente. Ao mesmo tempo devemos
respeitar e promover a diversidade econômica que compreende
formas de propriedade privada, pública e social-coletiva.
8) Despenalização da folha de coca e sua industrialização na América do Sul.
Assim como o combate ao alcoolismo o nos pode levar a penalizar
a cevada, tampouco a luta contra os estupefacientes deve conduzir-
nos a destruir o Amazonas em busca de plantas psicotrópicas, temos
de acabar com a perseguição à folha de coca que é um componente
essencial da cultura dos povos indígenas andinos, e promover sua
industrialização com nalidades benécas.
9) Avancemos em direção a uma cidadania sul-americana. Aceleremos as
medidas que facilitam a migração entre nossos países, garantindo
a plena vigência dos direitos humanos e trabalhistas e enfrentando
os tracantes de todo tipo, até conseguir o estabelecimento de uma
cidadania sul-americana.
Pablo Solón
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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No plano econômico
10) Complementaridade e não competição desleal entre nossas economias. Longe
de seguir o caminho da privatização, devemos apoiarmo-nos e
complementarmo-nos para desenvolver e potencializar nossas
empresas estatais. Juntos podemos forjar uma empresa rea
estatal sul-americana, um serviço público de telecomunicações,
uma rede estatal de eletricidade, uma indústria sul-americana de
medicamentos genéricos, um complexo mineiro-metalúrgico; em
síntese, um aparelho produtivo que seja capaz de satisfazer as
necessidades fundamentais de nossa população e fortalecer nossa
posição na economia mundial.
1
1) Comércio justo a serviço dos povos da América do Sul. No interior da
Comunidade Sul-americana deve ser privilegiado o corcio justo em
benefício de todos os setores e em particular das pequenas empresas, das
comunidades, dos arteos, das organizões econômicas camponesas
e das associações de produtores. Precisamos caminhar para uma
convergência entre o CAN e o Mercosul sob novos princípios
de solidariedade e complementaridade, que superem os preceitos
do liberalismo comercial que beneciaram fundamentalmente as
transnacionais e alguns setores exportadores.
12) Medidas efetivas para superar as assimetrias entre países. Na América do
Sul temos em um extremo países com um PIB por habitante de 4 a
7 mil dólares anuais e no outro extremo países que mal chegam aos
mil dólares por habitante. Para encarar este grave problema temos
de cumprir efetivamente todas as disposições aprovadas no CAN
e no Mercosul em favor dos países de menor desenvolvimento, e
assumir um conjunto de novas medidas que promovam processos
de industrialização nesses países, incentivem a exportação com
valor agregado e melhorem os termos de troca e os preços em
favor das menores economias.
13) Um Banco do Sul para a mudança. Se criarmos na Comunidade Sul-
Americana um Banco de Desenvolvimento baseado em 10% das
reservas internacionais dos países da América do Sul, estaríamos
partindo de um fundo de 16 bilhões de lares, que nos permitiria
efetivamente atender projetos de desenvolvimento produtivo e
integração segundo cririos de recuperão financeira e com
Diplomacia para a vida
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conteúdo social. Da mesma forma, esse Banco do Sul poderia
fortalecer-se com um mecanismo de garantia baseado no valor
atualizado das matérias primas que temos em nossos países. Nosso
“Banco do Sul” tem de superar os problemas de outros Bancos de
“fomentoque cobram taxas de juros comerciais, que nanciam
projetos essencialmente “rentáveis”, que condicionam o acesso ao
cdito a uma série de indicadores macroeconômicos ou à contratação
de determinadas empresas fornecedoras ou executoras.
14) Um fundo de compensação para a dívida social e as assimetrias. Devemos
assumir mecanismos inovadores de nanciamento, como a criação
de impostos sobre passagens aéreas, vendas de tabaco, comércio
de armas, transações nanceiras das grandes transnacionais que
operam na América do Sul a m de criar um fundo de compensação
que nos permita resolver os graves problemas da região.
15) Integração física para nossos povos e não apenas para exportar. Temos de
desenvolver a infra-estrutura viária, as hidrovias e corredores não
e apenas e nem tanto, para exportar mais ao mundo, mas sim e
sobretudo para comunicarmo-nos entre os povos da América
do Sul, respeitando o meio ambiente e reduzindo as assimetrias.
Neste quadro, devemos rever a Iniciativa de Integração Regional
Sul-Americana (IIRSA), para levar em conta as preocupações
das pessoas que desejam ver estradas em função de los de
desenvolvimento e não super-estradas por onde passam containers
para a exportação atravessando corredores de miséria e de aumento
do endividamento externo.
16) Integração energética entre consumidores e produtores da região. Formemos
uma Comissão Energética da América do Sul para:
g
arantir o abastecimento a cada um dos países privilegiando o
consumo dos recursos existentes na região;
a
ssegurar, por meio do nanciamento comum, o desenvolvimento
das infra-estruturas necessárias para que os recursos energéticos
dos países produtores cheguem a toda a América do Sul;
denir
preços justos que combinem os parâmetros de preços
internacionais com critérios solidários para a região da América
do Sul e de redistribuão em favor das economias menos
desenvolvidas;
Pablo Solón
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
31
certicar nossas reservas e deixar de depender das manipulações
das transnacionais, e
f
ortalecer a integração e complementaridade entre nossas
empresas estatais de gás e hidrocarbonetos.
No plano do meio ambiente e da natureza
17) Políticas públicas com participação social para preservar o meio ambiente.
Somos uma das regiões mais privilegiadas do mundo no que toca ao
meio ambiente, à água e à biodiversidade. Isso nos obriga a sermos
extremamente responsáveis com esses recursos naturais que não
podem ser tratados como mais uma mercadoria, esquecendo-nos
que deles depende a vida e a própria existência do planeta. Temos
a obrigação de conceber um manejo alternativo e sustentável
dos recursos naturais, recuperando as práticas harmoniosas de
convivência com a natureza de nossos povos indígenas e garantindo
a participação social das comunidades.
18) Junta Sul-Americana do Meio Ambiente para elaborar normas estritas
e impor sanções às grandes empresas que não respeitam essas regras. Os
interesses políticos, locais ou conjunturais não podem sobrepor-se
à necessidade de garantir o respeito à natureza e por isso proponho
a criação de uma instância supranacional que tenha capacidade para
ditar e fazer cumprir as normas ambientais.
19) Convenção Sul-Americana para o direito humano e o acesso de todos os
seres vivos à água. Como região favorecida com 27% da água doce
do mundo, temos de discutir e aprovar uma Convenção Sul-
Americana da Água que garanta o acesso de todos os seres vivos
a esse recurso vital. Devemos preservar a água, em seus diversos
usos, dos processos de privatização e da lógica mercantil imposta
pelos acordos comerciais. Estou convencido de que esse tratado
sul-americano da água será um passo decisivo em direção a uma
Convenção Mundial da Água.
20) Proteção de nossa biodiversidade. Não podemos permitir que se
patenteiem plantas, animais e matéria viva. Na Comunidade Sul-
Americana temos de aplicar um sistema de proteção que por um
lado evite a pirataria de nossa biodiversidade e por outro lado
Diplomacia para a vida
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
32
garanta o domínio de nossos países sobre esses recursos genéticos
e os conhecimentos coletivos tradicionais.
No plano político institucional
21) Aprofundemos nossas democracias com maior participação social. Somente
uma maior abertura, transparência e participação de nossos povos
na tomada de decisões pode garantir que nossa Comunidade Sul-
Americana de Nações avance e progrida pelo bom caminho.
22) Fortaleçamos nossa soberania e nossa voz comum. A Comunidade Sul-
Americana de nações pode ser uma grande alavanca para defender
e armar nossa soberania num mundo globalizado e unipolar.
Individualmente, como países isolados, alguns podem ser mais
facilmente suscetíveis a pressões e condicionamentos externos.
Juntos, temos mais possibilidades de desenvolver nossas próprias
opções em diferentes cenários internacionais.
23) Uma Comissão de Convergência Permanente para elaborar o tratado da CSN
e garantir a implementação dos acordos. Necessitamos de instituições
ágeis, transparentes, o burocráticas, com participação social e que
levem em conta as assimetrias existentes. Para avaar efetivamente
devemos criar uma Comissão de Convergência Permanente composta
por representantes dos 12 países para que, até a III Cúpula de
Chefes de Estado, elabore o projeto de tratado da Comunidade Sul-
Americana de Nações levando em conta as particularidades e ritmos
das diferentes nações. Igualmente, essa Comissão de Convergência
Permanente, por meio de grupos e comissões, deveria coordenar e
trabalhar conjuntamente com a CAN, o Mercosul, a ALADI, a OTCA
e diferentes iniciativas sub-regionais, para evitar duplicar esforços e
garantir a aplicação dos compromissos que assumirmos.
Esperando que esta carta fortaleça a reexão e a construção de propostas
para uma efetiva e positiva II Cúpula de Chefes de Estado da Comunidade
Sul-Americana de nações, despeço-me reiterando-lhes meu convite para nosso
encontro em 8 e 9 de dezembro em Cochabamba, Bolívia.
Atentamente,
Evo Morales Ayma
Presidente da República da Bolívia
Pablo Solón
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
33
Anexo II
Carta do Presidente Evo Morales aos Presidentes
da União Européia
La Paz, 30 de janeiro de 2007
Estimado senhor Primeiro Ministro,
No momento em que se conclui a fase prévia ao lançamento das
negociações entre a CAN e a UE, desejo expressar as premissas fundamentais
apresentadas pela Bolívia em repetidas oportunidades para que essas
negociações avancem com êxito e sejam frutíferas para todas as partes.
Primeiro, é necesrio que as negociações levem em conta a existência
de enormes diferenças de riqueza e desenvolvimento industrial entre os dois
blocos, assim como no interior da CAN. A Bolívia manifestou repetidas vezes
que é imprescindível levar em conta as mencionadas assimetrias e considerar um
tratamento especial e diferenciado para os países da CAN e especialmente para a
Bovia. Consideramos que o Acordo de Associação entre a CAN e a UE é uma
excelente oportunidade para construir uma relação comercial solidária entre os
dois blocos que dê um exemplo do que deve ser um verdadeiro tratamento especial
e diferenciado a uma das nações de menor desenvolvimento na rego andina.
Segundo, é fundamental levar em contra o processo de mudança e
revalorização do Estado que ocorre na região andina e particularmente na
Bovia, respeitando essas poticas no processo de negociação entre a CAN e a
Uno Européia. Depois de três décadas, a Bolívia conseguiu um duplo superávit
scal e comercial gras ao fato de haver recuperado a propriedade e o controle
sobre seus recursos hidrocarbuferos, exercendo maior capacidade reguladora,
cumprindo a palavra empenhada de nacionalizar sem expropriar, garantindo a
segurança judica das empresas que observam nossas normas. Esse fortalecimento
ecomico do Estado nos es permitindo um processo de distribuição da riqueza
que vem reduzindo os enormes hiatos de desigualdade e injustiça no interior
de nosso país. Da mesma forma, es reforçando as capacidades comunitárias
de nossa população, que anteriormente estavam sendo asxiadas pela lógica do
lucro e da competição. Por isso, no processo de “valorização conjunta” para o
Diplomacia para a vida
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
34
Acordo de Associação CAN-UE, a Bolívia reiterou várias vezes que descartava
a possibilidade de incluir na negocião temas que conduzissem à redução do
papel do Estado e dos serviços públicos, ou que impam políticas blicas em
temas ecomicos, sociais, ambientais ou culturais.
Terceiro, esperamos que o tema do meio ambiente tenha um tratamento
integral e verdadeiro. Geralmente a preocupação com o futuro de nosso
planeta costuma reduzir-se a ser um adorno dos acordos comerciais. Tomando
consciência da gravidade do tema ambiental e dos problemas vinculados,
queremos dar a este Acordo de Associação com a União Européia um caráter
prioritário para a proteção de nossas condições de vida. Essas considerações
são fundamentais para o “viver bem” proposto pelos povos indígenas a todos
os seres humanos e a elas devem subordinar-se as lógicas da produtividade e
do lucro. Em conseqüência, não podemos considerar a agricultura, os serviços
ambientais, a biodiversidade e os conhecimentos como simples mercadorias
de um acordo comercial.
Esperamos que dessas negociações surja uma aliança estratégica entre
a União Européia e a Comunidade Andina de Nações que não reproduza os
intercâmbios neocoloniais e que contribua para melhorar o desenvolvimento de
nossos povos em harmonia com a natureza, aproveitando a complementaridade
existente em nossas regiões no plano humano, ambiental e energético, mais
além dos meros intercâmbios comerciais baseados na lógica da competição.
Queremos promover um novo momento nas relações comerciais entre os
blocos. Queremos uma associação solidária e complementar que não esteja a
serviço da lógica de liberalização do mundo. Esperamos que haja compreensão
da realidade vivida por nosso país e pelos povos indígenas da região andina
e que isso se reita de maneira adequada nas diretrizes de negociação que a
União Européia venha a adotar.
Aproveito esta oportunidade para reiterar-lhes minhas mais sinceras
saudações,
Evo Morales Ayma
Presidente da República da Bolívia
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
35
Brasil 2007: pronto para
crescer novamente
Guido Mantega*
A
o longo do século XX, sobretudo a partir da cada de 1950, a
economia brasileira foi uma das que mais se expandiu em todo o mundo. Tal
como a China e a Índia hoje em dia, ou os chamados Tigres Asiáticos alguns
anos atrás, Brasil era literalmente sinônimo de crescimento.
Falava-se a certa altura até mesmo em “milagre brasileiro”. Com todo
o devido respeito à conhecida religiosa do nosso povo, não era disso que
se tratava. Vivíamos, isto sim, um período de crescimento forte, de grandes
investimentos em infra-estrutura, de intensa industrialização em diversos
setores, de urbanização acelerada, enm, de modernização.
Entre 1930 e o nal dos anos setenta, deixamos de ser uma economia
agcola, conhecida sobretudo como grande exportadora de café, e nos
transformamos em uma nação industrializada, em uma economia diversicada
e complexa. Muito embora a agricultura continue a ser uma de nossas
maiores forças, o país predominantemente rural deu lugar a uma sociedade
majoritariamente urbana.
Em pouco tempo, considerados os prazos usuais da história, o Brasil
elevou-se à condição de uma das maiores economias do mundo. Tal trajetória
* Ministro da Fazenda da República Federativa do Brasil.
secretarias[email protected].br
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
36
esta observação servirá sobretudo aos leitores mais jovens – seguiu, porém,
caminho distinto do que seria adotado, em tempos mais próximos, por outras
nações emergentes. Por decisão própria, mas também como resultado de
como então se estruturava a economia internacional, adotamos um modelo de
desenvolvimento no qual o Estado se aliou a investidores privados nacionais
e estrangeiros não para transformar o País em fábrica ou celeiro do mundo,
mas, prioritariamente, para atender às necessidades do nosso grande mercado
interno, e para expandir esse mercado.
O nosso modelo de desenvolvimento, que se convencionou chamar de
substituição de importações, era perfeitamente compatível com a globalização’
prevalecente em meados do século passado. Mais que compatível, aliás, aquele
modelo foi o principal motor do rápido aprofundamento da inserção do Brasil
na economia internacional, não pela via do comércio exterior, é claro, já que
o nosso crescimento se fazia principalmente em torno do eixo do mercado
interno, mas pelo caminho da atração de investimentos maciços que ajudaram
a transformar a nossa sociedade.
o havia, naquela época, diga-se, qualquer contradão entre investimento
estrangeiro e mecanismos de proteção aos mercados nacionais. Ao contrário,
barreiras ao comércio eram exigências das empresas que aqui implantavam liais
nos mais diversos setores – e o Brasil foi por muito tempo destino preferido
de investimento direto estrangeiro oriundo das economias mais avançadas.
Como se vê, as regras da internacionalização econômica eram outras.
Ao contrário do que muitos ainda sustentam, portanto, o Brasil nunca
foi uma economia fechada. Passamos de séculos nos quais a principal fonte
de riqueza era a exportação de produtos naturais, que se foram sucedendo
em ciclos, para uma industrialização em que as então denominadas empresas
multinacionais desempenharam papel essencial. Ressalto, por exemplo, o caso
da implantação da indústria automobilística, iniciada na década de 1950 e
ampliada nos anos noventa, vale dizer, com a chegada de numerosas empresas,
européias e asiáticas, até então ausentes do nosso mercado.
O Brasil, sobretudo por suas próprias dimenes territoriais e demográcas,
mas também por escolhas que fez no século passado muitas delas, insisto,
decorrentes do ordenamento econômico internacional que então vigia e dos
espaços disponíveis para o desenvolvimento de um país como o nosso – foi,
sim, uma economia relativamente introvertida; ou seja, portadora de uma
Guido Mantega
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
37
tendência natural a crescer sobre si mesma (embora, ao realizar essa vocação,
tenha contado com volumosos investimentos estrangeiros). Tal introversão
é um traço típico dos países continentais, a começar pelos próprios Estados
Unidos da América.
A esta altura do argumento, no entanto, o dado a reter é que a história
econômica do Brasil se caracterizou, ao longo de boa parte do século XX,
pelo crescimento e modernização acelerados.
Outro dado a considerar, de signo oposto, é que, a partir da década
de 1980, a economia brasileira passou a crescer com uma velocidade média
insuciente, e até mesmo, em alguns anos, a não crescer.
Esse fenômeno não se pode atribuir simplesmente ao esgotamento de
um modelo ou de um ciclo, mas, como tende a ocorrer na história, a múltiplos
elementos cujo efeito combinado foi um período, do qual apenas recentemente
começamos a emergir, em que a economia do Brasil deixou de se expandir
com a velocidade indispensável ao seu desenvolvimento.
Embora não se pretenda aqui tentar enumerar todos esses elementos,
podem-se arrolar alguns deles, a título de exemplo: os surtos inacionários
que, com maior ou menor intensidade, estiveram presentes em nosso cotidiano
desde pelo menos os anos sessenta; a falta de disciplina no manejo das contas
públicas originária de momento ainda mais distante; as duas ‘crises do petróleo
(1973 e 1979); as sucessivas expansões e contrações da liquidez nanceira
internacional e seu efeito, por vezes devastador, sobre as contas externas
do País; o impacto scal, na previdência social, por exemplo, decorrente
da reconstrução de nossa ordem político-social que se seguiu ao retorno à
democracia em 1985; as pressões derivadas de transformações de sentido
liberalizante da economia mundial que impuseram duros ajustes às empresas
brasileiras, principalmente no setor industrial.
Esses o apenas alguns dos fatores associados ao crescimento insuciente
da economia brasileira. Por uma questão de justiça histórica, cabe fazer duas
observações. Em primeiro lugar, vários problemas que convergiram a partir
dos anos setenta/oitenta/noventa para travar o crescimento brasileiro tiveram
origem em etapas mais remotas de nossa história embora objetivamente
discutível, tornou-se um lugar-comum, por exemplo, associar a origem da
inação no Brasil à construção de Brasília, inaugurada em 1960. Em segundo
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
38
lugar, muitas das condições que hoje abrem a perspectiva de um novo ciclo
de crescimento acelerado começaram a ser construídas há mais tempo. Data
de 1994, vale lembrar, o lançamento do Plano Real, início da superação de
décadas de instabilidade macroeconômica no Brasil. Do mesmo modo, foi em
1986, mais de vinte anos, que a criação da Secretaria do Tesoutro Nacional
marcou o começo do ordenamento das contas públicas em nosso país.
Assim, se estamos prontos – como efetivamente estamos – para iniciar
um novo ciclo de crescimento de nossa economia, portanto, isto se deve não
apenas aos esforços do atual governo, cujos resultados serão resumidos a
seguir, mas da contribuição de sucessivos governos, inclusive em vel estadual
e municipal, bem como, acima de tudo, do esforço e do talento de nossos
empresários e trabalhadores, os quais, cada um cumprindo seu papel, muito
vêm buscando equacionar esse que é o desao-chave do Brasil.
Os últimos quatro anos
Embora em ritmo menos intenso do que gostaríamos, a economia
brasileira vem crescendo de forma sustentada e sustentável de 2003 para cá.
Esse crescimento, que foi de 3,7% no ano passado, e de 3,4% na média de
2003 a 2006, haverá de acelerar-se de agora em diante, como apontam os
indicadores de 2007. Ele se apóia em três pilares fundamentais: estabilidade
de preços; responsabilidade scal e redução da vulnerabilidade externa.
Para um país que, em 1990, chegou a índices de inação da ordem de
70% ao mês, é notável que tenhamos tido, nos últimos anos, taxas decrescentes,
compatíveis com as metas de inação determinadas à autoridade monetária, as
quais, pela primeira vez em nossa história econômica recente, m convergindo
também com as expectativas do mercado.
Em resumo, a inação no Brasil é baixa, foi de 3,14% em 2006, está
sob controle, e os agentes econômicos têm conança na manutenção desse
ambiente. Isto é muito importante, pois, como se sabe, um dos efeitos
mais delerios da instabilidade macroeconômica é o comprometimento
da possibilidade de se planejar o futuro, de se tomarem decisões seguras de
investimento. Não dúvida, como se disse acima, de que a instabilidade
macroeconômica na qual o Brasil viveu por muito tempo foi uma das causas
centrais do crescimento insuciente no nal do século passado.
Guido Mantega
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
39
Os resultados das contas públicas são igualmente encorajadores e
contribuem para um ambiente favorável ao crescimento. A dívida líquida do
setor público, que chegou a 52% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2003,
reverteu uma tendência ascendente de sete anos e vem caindo de forma
signicativa. Em 2006, cou em 45% do PIB. Com a conança em que se
continuarão a cumprir, rigorosamente, as metas de superávit primário, tal
como tem ocorrido de modo invariável, a relação dívida pública/PIB deverá
manter-se em trajetória declinante.
O terceiro pilar do novo ciclo de crescimento é a redução da
vulnerabilidade externa da economia brasileira. Esse é um dado importante
em tempos prósperos e estáveis como os que vivemos hoje sobretudo
porque tende a reduzir os custos e a ampliar o acesso a recursos do exterior,
bem como a atrair mais investimentos –, mas que se torna crucial em dias
de tormenta. Não terá sido obra do acaso o fato de que o Brasil foi uma
das economias emergentes menos afetadas pelos episódios de turbulência
nanceira internacional ocorridos este ano e em 2006.
Desde 2003, o País mais do que dobrou o valor de suas exportações, que
passaram de US$ 73 bilhões em 2003 para US$ 137 bilhões em 2006. Embora
nossas importações venham crescendo em velocidade ainda maior, o Brasil tem
obtido elevados saldos comerciais, da ordem de US$ 46 bilhões no ano passado.
Graças a esse desempenho, bem como ao inuxo de investimentos estrangeiros,
contamos hoje com reservas cambiais superiores a US$ 100 bilhões.
Também em decorrência dos bons resultados em transações correntes,
a relação entre dívida externa e exportações, um indicador signicativo de
vulnerabilidade, é agora o menor em 35 anos. No mesmo sentido, a dívida
externa do Tesouro Nacional é hoje, pela primeira vez desde a adoção do
câmbio utuante em 1999, inferior às reservas internacionais líquidas – uma
medida essencial da solvência do Brasil.
Essa grande solidez da economia brasileira diante do resto do mundo
tem-se reetido na queda vertiginosa, de 2003 para cá, das taxas adicionais de
risco cobradas ao Brasil pelo mercado nanceiro internacional. Essas taxas,
que chegaram a cerca de 2.500 pontos-base na virada de 2002 para 2003,
encontram-se atualmente em patamar inferior aos 200 pontos-base. Ou seja,
esse sobrepreço (“spread”) nanceiro caiu de 25% para menos de 2% em
quatro anos.
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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O Brasil tem sido capaz, assim, de reduzir o risco de ser mais duramente
afetado por situações adversas no ambiente externo o pela via do fechamento
de sua economia, da menor presença nos uxos econômicos internacionais,
mas, ao contrário, por meio de um desempenho mais vigoroso e competitivo
tanto no comércio, como nos mercados nanceiros internacionais.
Em outras palavras, temos sabido aproveitar o bom momento vivido pela
economia mundial para aumentar a nossa capacidade de, no futuro, atravessar
períodos internacionais menos favoráveis que, infelizmente, haverão de vir e,
dessa forma, tornar mais sustentável o crescimento que estamos tratando de
acelerar.
As sociedades têm, entre outras, a obrigação de aprender com as lições
da história, sobretudo com aquelas aprendidas à custa de reveses, frutrações
e sofrimento. O Brasil aprendeu com as experiências adversas que viveu. No
âmbito interno, por exemplo, descobrimos como era equivocada a crença,
que coletivamente nutrimos ao longo de muitos anos, de que era possível
conter e controlar os efeitos nocivos do convívio com níveis elevados de
inação e com a falta de controle mais rigoroso das contas públicas. Na frente
externa, sofremos os efeitos da imprevidência com que, em dados momentos
de nossa história, remota e recente, buscamos e contratamos nanciamento
internacional para o nosso desenvolvimento.
Sim, o Brasil aprendeu essas lições. E as aprendeu como parte do processo
de amadurecimento de nossa vigorosa democracia. Aprendeu que, mesmo em
um país no qual as necessidades prementes ultrapassam em muito os recursos
disponíveis, a sociedade, e suas lideranças políticas, m de ser capazes de denir
prioridades e limites, de ordenar no tempo a realização de objetivos.
Recorrendo a uma imagem automobilística, aprendemos a não tentar
alcançar velocidades mais elevadas antes de contarmos com uma máquina
segura, sustentável, sucientemente lida para enfrentar os trechos mais
acidentados do caminho. No passado, a inversão dessa ordem lógica não
produziu bons resultados e pagamos um preço elevado por uma combinação
– ora concomitante, ora sucessiva – de imprudência e imperícia.
A potica econômica do governo do Presidente Luiz Inácio Lula
da Silva é a melhor prova de que, efetivamente, o Brasil não está disposto
a repetir erros pretéritos. Em seu primeiro mandato, de 2003 a 2006, o
Presidente Lula tratou, em primeiro lugar, de reforçar a solidez estrutural de
Guido Mantega
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
41
nossa economia, de eliminar ou reduzir suas maiores fragilidades, de acentuar
sua credibilidade interna e externa, tornando-a mais atraente a investidores
nacionais e estrangeiros.
Alcançou pleno êxito nesse esforço, porém, seguindo a ordem lógica
acima mencionada máquina antes, velocidade depois sem repetir outro
erro cometido no passado, erro fundado na noção de que, quanto à repartição
dos frutos do crescimento, era preciso aumentar o bolo para só depois, mais
tarde, tratar de compartilhá-lo.
Desaando essa idéia equivocada, e pela primeira vez em nossa história,
conseguimos superar o falso dilema que tanto espaço ocupou nos debates
econômicos. O dilema de escolher entre duas supostas alternativas: crescimento
ou distribuição? Na verdade, as duas faces indispensáveis da mesma moeda,
sobretudo em sociedades democráticas que optaram pela economia de livre
mercado.
Hoje, como observado acima, a economia cresce de modo consistente,
embora não ainda no ritmo forte de que o Brasil necessita, mas permite que
as parcelas mais pobres da população colham os frutos desse progresso e
em ritmo superior à taxa de crescimento do PIB. Em outras palavras, estamos
realmente distribuindo renda e diminuindo desigualdades.
A taxa de desemprego vem caindo de forma consistente; passou de 12,3%
em 2003 para 10% em 2006. Esse recuo não tem sido ainda mais expressivo,
e isso ocorreu principalmente em 2006, porque a velocidade com que a melhora
das perspectivas atraiu mais pessoas em busca de postos de trabalho superou
o ritmo do crescimento de novas vagas. Em 2006, por exemplo, o número de
vagas cresceu 2,3%, enquanto a população economicamente ativa aumentou
pouco mais de 2,4%. Mais importante ainda tem sido a formalização dos
empregos. De 2003 a 2006, foram criados mais de 4,6 milhões de empregos
formais, com reexos signicativos tanto sobre o equilíbrio nanceiro da
previdência social, quanto sobre a valorização pessoal do trabalhador e a
segurança proporcionada por sua incorporação aos benefícios da rede de
proteção social.
Ao crescimento do número de empregos, soma-se a elevação da renda
real, proporcionada pela queda das taxas de inação. A combinação de mais
emprego e renda gerou uma forte elevação da massa salarial real, que, desde
2005, se vem ampliando em ritmo superior aos 5% anuais.
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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O aumento da capacidade de consumo, que decorre do crescimento e da
estabilidade de preços, vem sendo reforçado pelo desencadeamento de uma
verdadeira revolução da área do crédito uma das que mais sofreu com os
efeitos corrosivos de décadas de inação elevada.
O chamado crédito consignado no qual os trabalhadores têm
descontadas de seus salários as prestações dos empréstimos que tomam é
apenas a face mais ostensiva dessa revolução, que o governo tem impulsionado
por meio de diversas reformas e providências.
Os números falam por si: o saldo total das operações de crédito do
sistema nanceiro subiu 20,7% em 2006, repetindo o mesmo ritmo de
crescimento nominal vericado desde 2004. Essa expansão tem sido ainda mais
expressiva quando se observa o saldo das operações de crédito para pessoas
físicas, o qual aumentou 24,8% em 2006 e mais do que dobrou, em termos
nominais, do nal de 2003 até agora.
Isto para o mencionar o desenvolvimento do mercado de capitais, onde
um número crescente de empresas lançam cada vez mais debêntures e ações.
O aumento da renda dos consumidores e o acesso mais fácil e mais barato
ao crédito geram, entre outros resultados, a expansão do comércio de varejo. Em
2006, as vendas de produtos no varejo cresceram 6,2%, destacando-se as vendas
de equipamentos de informática e de comunicação, que se elevaram 30%.
Esse aumento da demanda se reetiu em uma vigorosa expansão do
consumo das famílias, que cresceu 4,3% em 2006 e gerou, por conseguinte,
maior demanda por produtos da indústria e do setor de serviços, que ampliaram
seus investimentos.
A formação bruta de capital xo aumentou 8,7% em 2006 em relação
ao ano de 2005 e impulsionou a indústria de bens de capital, a construção
civil e, indiretamente, o emprego nesses setores, com efeito multiplicador
sobre o aumento da produção e da renda de toda a economia. Enquanto o
crescimento do PIB atingiu 3,7% no ano de 2006, em comparação com 2005,
no último trimestre do ano passado já se registrava uma alta de 4,8% em relação
ao mesmo trimestre de 2005 ou seja, se identicava uma aceleração do
crescimento.
Esse ciclo virtuoso, que combina estabilidade, crescimento e distribuição
de renda, tem-se beneciado de forma importante das políticas sociais do
Guido Mantega
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
43
governo, que elas, além de melhorarem a repartição da riqueza, têm ajudado
a aumentar o poder aquisitivo da população, impulsionando o consumo das
famílias, sobretudo nas regiões menos desenvolvidas.
Desde 2004, as transferências do governo federal às famílias têm crescido
a taxas superiores a 8% ao ano e beneciam dezenas de milhões de brasileiros
mais necessitados.
Como esta revista se destina também a leitores não brasileiros, parece
útil explicar o funcionamento e o impacto do maior e mais conhecido desses
programas de transferência de renda, o “Bolsa Família”.
Trata-se de um programa que benecia mais de 11 milhões de famílias
em todos os 5.562 municípios do Brasil. Famílias que vivem em situação de
pobreza ou de extrema pobreza recebem benefícios em dinheiro, que variam
de acordo com a renda mensal per capita dessas famílias, bem como do número
de crianças, gestantes e nutrizes. Em troca, como condição para permanecerem
no programa, as famílias assumem o compromisso de: manter na escola as
crianças e adolescentes de 6 a 15 anos de idade; levar regularmente as crianças
de até 7 anos para vacinação e exames médicos; cuidar da saúde pré-natal e
materna.
O fato é que, como parte desse novo ciclo de desenvolvimento, estamos
realizando o sonho maior de economistas e cidadãos brasileiros. Estamos
conseguindo incorporar efetivamente ao nosso mercado interno, como
consumidores efetivos, milhões de pessoas que antes estavam excluídas dos
benefícios do progresso econômico.
Essa é uma mudança que ainda se percebe tenuamente nas estatísticas,
mas que se faz sentir com clareza nas ruas de nossas cidades maiores e
menores; no comportamento de nossos consumidores, sobretudo os de renda
mais limitada; no cotidiano de nossas empresas, que se vão ajustando aos
novos desaos e oportunidades derivados dessa ‘revolução’ nos mais diversos
setores da economia.
Uma transformação, diga-se de passagem, que também se reete na
expressiva renovação política do País, no fortalecimento de nossa vigorosa e
dinâmica democracia.
Finalmente, em um país com mais de 180 milhões de habitantes, podemos
falar cada vez mais, com crescente amparo em dados reais, em consumo de
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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massa. Podemo-nos orgulhar de estar consolidando e ampliando uma economia
de mercado que, neste novo ciclo de crescimento, avança no sentido de integrar
o conjunto de nossa população à vida econômica nacional.
O imperativo de acelerar o crescimento
Crescer com equilíbrio, distribuir renda e reduzir desigualdades são
condições necessárias, mas não sucientes, para responder às legítimas
expectativas da maioria dos brasileiros, do conjunto de nossa sociedade. É
preciso fazê-lo com maior velocidade. Não nos podemos deixar reconfortar
pelo argumento da duração mais longa dos prazos da história. Ao contrário,
devemos pautar as nossas ações de acordo com o sentido de urgência que
decorre do tempo bem mais curto que às pessoas é dado a viver. Temos de
trabalhar para o futuro, mas também para o presente.
Daí a primeira iniciativa do Presidente Lula, ao inaugurar o segundo
mandato para o qual foi reeleito pela maioria dos brasileiros, ter sido o
lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento PAC. Em cerimônia
no dia 22 de janeiro deste ano, ele resumiu em algumas linhas o sentimento
que o inspira:
“No nosso primeiro governo, conseguimos implantar um modelo de
desenvolvimento rmado na estabilidade, no crescimento do emprego e do
salário, da diminuição da pobreza e na melhoria da distribuição de renda.
O desao agora é acelerar o crescimento da economia, com a manutenção
e ampliação destas e outras conquistas obtidas nos últimos anos. É hora, acima
de tudo, de romper barreiras e superar limites. (…)
Queremos continuar crescendo de maneira correta, porém, de forma mais
acelerada. Crescer de forma correta é crescer diminuindo as desigualdades
entre as pessoas e entre as regiões, é crescer distribuindo renda, conhecimento
e qualidade de vida.
Crescer de forma acelerada é arrancar as travas e colocar o País em
um ritmo mais compatível com sua capacidade e com sua força. Crescer de
forma correta é crescer com equilíbrio scal, com redução da dívida e da
vulnerabilidade externa. Crescer de forma acelerada é gerar mais emprego
e produzir mais riqueza. Crescer de forma correta é crescer sem inação e
Guido Mantega
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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sem controle de preços. Crescer de forma acelerada é estimular a indústria, o
campo e o setor de serviços em todas as suas escalas e congurações. Crescer
de forma correta é crescer mantendo e ampliando as liberdades civis e os
direitos democráticos. É implementar um nova cultura de produção e trabalho
que reforce os valores fundamentais da sociedade brasileira.
Entre os economistas, felizmente, não consensos. Se houvesse, a
prossão deixaria em pouco tempo de existir. Mas há, sim, diagnósticos
amplamente compartilhados. No que se refere ao Brasil, e em particular à
explicação de nosso crescimento insuciente nas últimas décadas, a maioria
tende a apontar a baixa taxa de investimento como uma das principais causas
do problema.
Esse diagnóstico não é novo. O enfrentamento mais direto da questão,
no entanto, foi sendo de certa forma postergado ao longo do tempo. Primeiro,
em função da prioridade que se deu à difícil busca e conquista da estabilidade
macroeconômica, com base no pressuposto de que, em um ambiente de
crônica inação elevada, não havia mesmo condições para investir. Depois, e
aqui sim variações de pensamento, como resultado da expectativa de que
os níveis de investimento se elevariam ‘naturalmente’ em resposta à melhora
dos quadros econômicos nacional e, também, internacional.
A profecia, como se sabe hoje, não se cumpriu. E, embora reconhecidamente
tampouco haja consenso quanto a esse ponto, tal fato parece indicar que, mais
do que apenas buscar melhorar as condições macro e microeconômicas e o
ambiente de negócios, requisitos essenciais mas não sucientes, parece ser
necessário também que o governo produza incentivos mais especícos, além
de apontar áreas prioritárias de investimento.
Essa é a idéia que orientou a elaboração do Programa de Aceleração do
Crescimento: a) é preciso crescer mais depressa; b) para tanto, é indispensável
elevar a taxa de investimento em nossa economia; c) nesse sentido, cabem
ao governo responsabilidades indelegáveis não apenas na consolidação e
melhora do ambiente econômico (macro e micro) e dos marcos regulatórios,
mas também como promotor, mobilizador e indutor de investimentos em
setores-chave da economia nacional.
As ações e metas do PAC estão, por conseguinte, organizadas na forma
de um amplo conjunto de investimentos em infra-estrutura e de medidas de
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
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incentivo e facilitação do investimento privado. O programa prevê, igualmente,
a melhora da qualidade do gasto público, mediante contenção do crescimento
das despesas correntes e aperfeiçoamento da gestão pública, tanto no
orçamento scal, como da previdência e seguridade social.
O PAC estabelece a realização, ao longo de quatro anos, de investimentos
em infra-estrutura da ordem de R$ 504 bilhões, nas areas de transporte,
energia, saneamento, habitação e recursos hídricos. Este valor se subdivide em
aproximadamente R$ 68 bilhões do orçamento do governo central e R$ 437
bilhões provenientes das empresas estatais federais e do setor privado.
Esse conjunto de investimentos contempla os seguintes setores: logística
rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias; energia geração e
transmissão de energia elétrica, petróleo e gás natural, combustíveis renováveis;
infra-estrutura social saneamento, habitação, transporte urbano, ampliação do
acesso à energia elétrica (programa “Luz para Todos”) e recursos hídricos.
O Programa de Aceleração do Crescimento inclui ainda entre seus
objetivos manter a expansão do crédito, em especial do crédito habitacional e
do crédito de longo prazo para investimento em infra-estrutura. Nesse sentido,
o PAC contempla medidas destinadas a elevar o nanciamento de longo prazo,
em condições mais favoráveis, principalmente por parte da Caixa Econômica
Federal e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
Também com o propósito de favorecer maior disponibilidade de recursos
para o desenvolvimento, o PAC traz medidas destinadas ao aperfeiçoamento
do ambiente de negócios e dos marcos regulatórios, por meio da agilização
e facilitação de investimentos em infra-estrutura. Tanto no que se refere à
regulação, como ao ambiente de negócios, que neste caso inclui regras de
defesa da concorrência, já tramitam no Congresso Nacional importantes
propostas de legislação encaminhadas pelo governo. Medidas de incentivo ao
desenvolvimento regional, dirigidas sobretudo às regiões Nordeste e Norte,
complementam essas mudanças. O PAC, vale observar, tem entre seus objetivos
não somente a reticação da desigualdade social, mas também de desequilíbrios
entre regiões.
O Programa contempla, igualmente, medidas de desoneração tributária,
bem como ações de modernização e dinamização da administração tributária. A
desoneração de tributos pretende estimular o investimento em contrução civil
e a aquisição de bens de capital, promover o desenvolvimento tecnológico dos
Guido Mantega
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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setores de semicondutores e televisão digital, e, ainda, incentivar a formalização
e crescimento das micro e pequenas empresas. As mudanças na administração
tributária, por sua vez, objetivam reduzir a burocracia, modernizar e racionalizar
a arrecadação de impostos.
Finalmente, as medidas scais que também integram o PAC pretendem
conter a expansão do gasto com pessoal do governo federal, para cujo
crescimento anual se estabelece um teto de 1,5% acima da inação. Além
disso, o Programa prevê a implementação de uma política de longo prazo
para o reajuste do salário mínimo, que, como se sabe, tem impacto direto nos
gastos da previdência social. O PAC estabelece, quanto ao encaminhamento da
questão previdenciária, a criação de um foro, já implantado, para a realização
de amplo debate nacional.
Voltando às palavras do Presidente Lula, cabe enfatizar que a decisão de
buscar crescer em passo mais acelerado de modo algum signica que iremos
deixar de crescer de modo correto.
Assim, todas as ações e medidas incluídas no PAC foram denidas de
modo a que se possa compatibilizar a aplicação dos recursos previstos com a
manutenção da responsabilidade scal e a continuidade da redução gradual, nos
próximos anos, da relação entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto.
Os números detalhados do cenário de consistência scal no qual se baseia
o Programa está sendo revisto, à luz da nova metodologia de cálculo do PIB.
A aceleração do crescimento proporcionada pelo aumento dos investimentos,
no entanto, combinada com a redução da taxa básica de juros esperada para
os próximos anos, deverá permitir que a relação dívida pública/PIB chegue
a 35% até 2010, e que o décit nominal do setor público continue a cair, em
direção a zero.
Em resumo, o crescimento mais acelerado da economia brasileira se fará
não com o sacrifício da consistência scal, mas com base e, em última instância,
a favor de uma consistência scal ainda mais sólida e saudável.
Saudável, porque, para o Brasil, crescer em ritmo intenso é uma
necessidade vital. Dada a dimensão dos desaos que trabalhamos ativamente
para superar, sobretudo os relacionados à probreza e às desigualdades que
ainda denem o nosso perl como sociedade, não temos alternativa. É o
único caminho para gerarmos os empregos de que o Brasil precisa, para a
Brasil 2007: pronto para crescer novamente
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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expansão da poupança, do investimento e do crédito, para a ampliação dos
recursos destinados à saúde, à educação, à infra-estrutura, segurança pública,
preservação ambiental, pesquisa, ciência, tecnologia e cultura. Em última
instância, para a melhoria das condições em que vivem os nossos cidadãos e
da nossa capacidade de desenvolvimento.
Em síntese, para o Brasil, não basta crescer no ritmo que, para os países
desenvolvidos, congura uma expansão saudável. Às nossas maiores carências
e urgências, precisamos responder com mais crescimento. Crescer em ritmo
acelerado não é, para o nosso país, apenas uma necessidade econômica, trata-
se de um imperativo social, politico e moral.
DEP
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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* Engenheiro civil, Presidente do Conselho de Administrão da Odebrecht S.A., empresa holding da
Organização Odebrecht.
A integração
regional: fator de
desenvolvimento
sustentável
Emílio Odebrecht*
O
estado do mundo, explicitado em fevereiro último por 2.500 cientistas
reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas por
iniciativa da Organização das Nações Unidas e da Organização Meteorológica
Mundial, coloca diante dos países, das organizações e de cada indivíduo, com
toda sua crueza, a necessidade urgente da busca de sustentabilidade em todas
as atividades humanas. Esse desao, distribuído globalmente segundo as
responsabilidades de cada país, tem na América do Sul uma contrapartida de
histórica oportunidade: é nesta região que se concentra a maior diversidade
biológica do planeta, além de imensas reservas minerais, de água doce e de
terras agriculturáveis onde se podem produzir os recursos necessários para
prover grande parte das necessidades alimentícias e de energia do mundo.
A integração regional: fator de desenvolvimento sustentável
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Os esforços governamentais e o engajamento das empresas e dos cidadãos
deverão fornecer as respostas adequadas a este desao. Porém, sabemos de
muito que as ões isoladas ou setoriais, embora muitas vezes repletas das
melhores intenções, quase sempre resultam em soluções paliativas ou favoráveis
a interesses pontuais. Estamos diante de uma potencial crise de proporções
globais, para a qual é necessário buscar estratégias inovadoras e, acima de tudo,
para cuja resolução será necessário o aprendizado das ações conjuntas.
Mas, embora o cenário seja de alerta, o mundo deve seguir seu curso. Para
os países sul-americanos, o imperativo do desenvolvimento se apresenta não
apenas como forma de solucionar seus graves problemas sociais, mas também
como exigência do ambiente global altamente competitivo. Conciliar o necesrio
crescimento com a defesa do meio ambiente é uma das missões que precisam
ser encaradas solidariamente pelo conjunto das nações do continente.
Integração humana
Formalizado, ocialmente, em 26 de março de 1991, em Assunção,
Paraguai, o Mercado Comum do Sul Mercosul – oferece instrumentos para
essa ação. O programa de liberalização comercial, com reduções tarifárias
progressivas e eliminação de restrões o tarifárias, tem estimulado a
economia regional. Embora o tenha sido possível, em tempos mais recentes,
harmonizar amplamente as políticas macroeconômicas, também pela ampliação
do número de integrantes do bloco regional e de sua diversidade, os países-
membros têm buscado cumprir suas responsabilidades comuns.
Mas a construção de um mercado comum na América do Sul tem que
se basear em premissas otimistas, porém realistas. Aos 16 anos, o Mercosul
tem maturidade para que seus protagonistas possam abandonar certas ilusões,
como aquela segundo a qual “tudo nos une, nada nos separa”, e, por exemplo,
buscar a convergência nas diferenças. Como no ambiente natural, também nas
relações humanas a diversidade deve ser considerada uma riqueza.
Nesse sentido, o Mercosul precisa se tornar muito mais do que a
conjugação oportuna de interesses de negócios. Embora não se possa descartar
as vantagens que oferecem a proximidade geográca e a complementaridade
de nossas economias, nós, latino-americanos, temos que agregar ao tabuleiro
Emílio Odebrecht
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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dos ganhos recíprocos, o valor que se oferece na riqueza cultural da região, na
qualidade das pessoas que integram suas populações, em sua capacidade de gerar
conhecimento, no diferencial oferecido por um histórico de resolução pacíca
de conitos – e na solução emergente dos problemas que nos são comuns.
O desao de criar e partilhar riquezas econômicas e sociais, preservando
a riqueza natural, não pode ser alcançado sem que as relações de negócio sejam
amplicadas pela busca da integração entre nossos povos. Ao mesmo tempo
em que as organizações buscam exercer sua parcela de responsabilidade na
construção do desenvolvimento, na busca de resultados cada vez melhores,
as comunidades devem ser estimuladas a também buscar o fortalecimento
de seus valores culturais e o atendimento às suas necessidades básicas, para
que possam se apresentar, inteiras, com sua parcela de contribuição para o
enriquecimento do complexo sócio-cultural que é de todos.
Obviamente, essa integração não haverá de acontecer de forma linear.
Cada país, cada comunidade, cada organização, se encontra em um determinado
estágio de envolvimento no processo de adaptação ao ambiente de negociações
no qual os interesses individuais e nacionais têm que ser harmonizados com
o grande mapa dos interesses comuns.
Até porque o Mercosul é, atualmente, muito mais do que a zona de
livre corcio pactuada por seus quatro Estados fundadores em 1991.
O estabelecimento da Tarifa Externa Comum, em 1
o
. de janeiro de 1995,
deniu a vontade política de seus integrantes, assinalando o caminho que as
políticas econômicas nacionais iriam consolidar. O recente ingresso de novos
participantes, estendendo o alcance do bloco, antes restrito ao Cone Sul, a toda
a extensão do continente, estabelece uma nova realidade. Somos agora 311
milhões de cidadãos, com um Produto Interno Bruto de aproximadamente 2
trilhões de dólares.
Essa nova conguração conduz a instituição a um novo patamar de
complexidade e exige ainda mais determinação dos dirigentes e agentes
blicos, das organizações empresariais e da opinião pública. Eventuais
discordâncias na forma ou no ritmo de implementação de algumas medidas,
bem como as divergências que sempre aoram nos sistemas complexos devem
ser tratadas sob o pressuposto da tolerância, com vistas aos objetivos maiores
que têm até aqui estabelecido o norte de todas as decisões.
A integração regional: fator de desenvolvimento sustentável
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Desenvolvimento sustentável
Assim como a entrada em vigor do Tribunal Arbitral Permanente de
Revisão do Mercosul, em 2004, trouxe mais segurança jurídica aos participantes
e seus parceiros comerciais mundo afora, é preciso ter em conta, sempre, que
não estamos tratando apenas de produção e comércio, mas de uma escolha
fundamentada em princípios democráticos, observando-se permanentemente
o que foi pactuado no Protocolo de Ushuaya, de modo que esteja assegurado
que a plena vigência das instituições democráticas seja “condição essencial para
o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados-Partes”.
Nesse sentido, é essencial o fortalecimento institucional do Mercosul,
com a consolidação de seus órgãos e instâncias de representação. Um esforço
político de ser realizado para reduzir restrições burocráticas ainda pendentes.
Da mesma forma, é necessário tornar mais ágeis os processos de comunicação
entre as partes, aproveitando-se a rápida expansão, no continente, das novas
tecnologias de informação e telecomunicações.
A integração comercial, retratada em acordos sobre agricultura, energia
e transportes, que em tempos recentes vem se congurando também como
um processo de convergência em termos políticos, com a rearmação dos
valores democráticos, começa a favorecer a busca de pontos comuns em setores
como educação, cultura e justiça. O reconhecimento de títulos acadêmicos, os
protocolos de cooperação em assuntos judiciais e o incentivo ao intercâmbio
de bens culturais, servem muito ao propósito da integração social, sem o qual
o Mercosul se tornaria vulnerável.
A ampla gama de intercâmbios potenciais a que nos referimos tem aqui
seu ponto de máxima inexão. Quando cultura, justiça e educação de origem
em nacionalidades diversas podem se realizar em um ambiente comum, tem-
se o sinal da verdadeira integração. Não teria bastado, para que o mercado
comum se consolidasse, que as iniciativas se houvessem limitado às questões
tarifárias ou aos investimentos em infra-estrutura.
Da mesma forma, embora represente um passo essencial, também não
seria a integração das cadeias produtivas dos países participantes que haveria
de assegurar um futuro sólido ao Mercosul. Evidentemente, a integração dos
processos produtivos torna os países-membros mais competitivos diante
do mercado global, especialmente com a criação de instrumentos ágeis de
Emílio Odebrecht
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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nanciamento e estímulo aos investimentos. Mas ainda o basta para assegurar
sustentabilidade.
É a integração da sociedade e a redução das desigualdades que podem
assegurar esse futuro.
Embora seja conveniente a observação permanente de todos os
protocolos e o acompanhamento constante das práticas no dia-a-dia, é num
espectro mais profundo de tempo que podemos avaliar melhor algumas
assimetrias remanescentes, considerando que uma experiência dessa
envergadura apresenta naturalmente algum grau de comportamento cíclico,
e que o equibrio no comércio regional e o alinhamento político serão
alcançados em prazo mais longo.
Juntamente com os negócios e as iniciativas de caráter político, devem
prosperar projetos educacionais fundamentados em novos paradigmas,
nos quais estejam inseridos os valores essenciais para o desenvolvimento
sustentável.
São esses valores que proporcionam rmeza e exibilidade, como o
respeito à diversidade cultural, étnica e de credos religiosos, o gosto pelo
aprendizado, a tolerância quanto às diferentes visões de mundo que o ser
humano desenvolve segundo sua história, seu ambiente físico e social.
Assim como os protagonistas das negociações entre organizações
devem ser educados para o melhor desempenho, com respeito ao parceiro,
em processos nos quais todos devem ganhar, as comunidades alcançadas pela
integração devem ter a oportunidade de crescer no entendimento das intenções
e benefícios possíveis valorizando o espírito cooperativo que é condição para
a existência de mercados comuns.
Aprendizados da integração
Sem problemas fronteiriços, a América do Sul de muito cultiva,
nas interseções de seus países, a tradição do comércio e do intercâmbio de
conhecimento, sendo muitos os casos em que uma mesma etnia nativa habita
ambos os lados da fronteira, assumindo cada lado sua nacionalidade. Da mesma
forma, cidades-espelho convivem e se complementam em vários pontos do
continente, eventualmente diferenciadas pelos idiomas próprios de seus países
A integração regional: fator de desenvolvimento sustentável
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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mas desenvolvendo expressões comuns que são utilizadas especicamente
para esse intercâmbio.
Serviços médicos, escolas, equipamentos de lazer e festividades também
se incluem nesses pontos de converncia, sem que uma ou outra das
comunidades tenha que abrir mão de sua própria cultura, de suas crenças,
de seus hábitos e preferências. Com ou sem a formalização de um acordo de
livre comércio entre seus governos, com ou sem contratos de negócio entre
as organizações, temos no continente uma sociedade tradicionalmente afeita
ao convívio pacíco e mutuamente proveitoso entre vizinhos.
Ao contrário de exacerbar as diferenças, por conta de interesses temporais,
os representantes dos Estados-membros e os gestores das organizações devem
se inspirar nesse longo histórico de relações harmoniosas, que tem sido capaz
de manter o continente imerso em ambiente de paz, para, sobre essa paz,
empreender o esforço conjunto pela prosperidade.
Em seus 16 anos de existência, o Mercosul elevou o volume de comércio
entre os países da região de 3 para 30 bilhões de dólares. Além desse evidente
fator de crescimento, o comércio regional tem ajudado muitas empresas a
desenvolver a cultura adequada para sua inserção no mercado global. Valiosas
lições sobre negociação acontecem diariamente nas relações entre parceiros
sul-americanos, o que constitui uma base de conhecimento inestimável para
a expansão dos negócios no âmbito mundial.
Até o Tratado de Assunção, que deniu a criação de uma zona de livre
comércio entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, as empresas da região,
de modo geral, eram muito voltadas para seus mercados internos. Nesse novo
cenário, muitas dentre as quais a Organização Odebrecht, desenvolveram
as qualicões necesrias para se inserir no mercado internacional. O
relacionamento com fornecedores e parceiros do mercado regional tem se
constituído numa forma adicional de expandir esse conhecimento e desenvolver
competências para a realização de negócios em ambientes políticos e culturais
diversicados.
Da mesma maneira, os formuladores de políticas públicas poderiam
combinar seus interesses nacionais com os interesses comuns ao bloco, de
modo a estimular o desenvolvimento de políticas industriais conjuntas e
complementares. Os empecilhos e eventuais períodos de diculdades devem
Emílio Odebrecht
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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ser encarados como desaos dessa aprendizagem. Uma lição a ser aprendida
desse processo é que não se deve discriminar geração de conhecimento da
geração de riqueza.
A busca de melhor qualicação tem tirado empresas do torpor provocado
pela comodidade dos mercados domésticos. A necessidade do desenvolvimento
de novas compencias tem injetado ânimo novo e induzido à busca do domínio
de conhecimentos mais avançados, não apenas em termos de tecnologia, mas
principalmente nos processos de gestão. O desao da inserção no mercado
regional é um estímulo vigoroso à melhoria contínua e à inovação e às
empresas sul-americanas cabe compreendê-lo, com enfoque na oportunidade.
Nesse sentido, é legítimo que os empresários lancem mão das forças de seus
países e das estruturas competentes nos âmbitos de seus Governos, visando
o alcance dos propósitos de suas empresas, na perspectiva do bem comum,
representado pela geração de riquezas que a sociedade compartilha e pela
prática do empresariamento socialmente responsável.
Segurança pública e educação
Nesse caminho, ainda há grandes obstáculos a superar. A falta de
segurança é um deles, talvez a grande ameaça capaz de alterar o espírito
conciliador que ainda nos caracteriza. A existência de comunidades que,
sem contar com recursos públicos, se tornaram reféns de grupos criminosos
organizados, não pode ser ignorada pelos protagonistas que constroem o
Mercosul. Essas populões precisam ser resgatadas para o ambiente da
convivência saudável e merecem a oportunidade de serem integradas ao projeto
de desenvolvimento comum.
As estruturas altamente sosticadas do crime organizado, que desaam
as mais elaboradas políticas de segurança pública, podem ser desmanteladas
pela ação interna, com o corte das linhas de suprimento de mão-de-obra que
as alimentam.
O crime organizado não se alimenta da pobreza em si, mas da pobreza
sem esperança, daquela pobreza que não dialoga com as oportunidades, aquela
na qual uma geração, especialmente no tempo em que o indivíduo desperta
para a vida independente, não vislumbra em seu horizonte uma réstia de
A integração regional: fator de desenvolvimento sustentável
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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dignidade. O resgate desses cidadãos escravizados no outro lado da lei se faz
pela formação e pelas oportunidades de desenvolvimento pessoal.
Neste ponto, educação é a palavra-chave.
Não estamos nos referindo apenas, evidentemente, à educação como
tarefa do Estado, com suas redes de escolas e suas escolhas próprias de
políticas pedagógicas. Referimo-nos à missão de educar que compete a todo
cidadão e a todas as instituições e organizações, públicas ou privadas. Estas,
por sinal, sendo as instituições que, por denição, não subsistem sem contar
com prossionais qualicados e bem educados, sem os quais não teriam
condições de crescer nem mesmo no mercado interno, devem se colocar no
papel de fontes de educação de qualidade.
Espera-se das organizações que não se restrinjam aos investimentos sociais
que tenham como objetivo a educação e a cultura, mas que se transformem,
institucionalmente e na gura de cada um de seus líderes e integrantes, em
centros difusores de conhecimento. Cada contato, cada negociação, cada
contrato e cada etapa de uma obra, prestação de serviço ou fornecimento de
produto deve ser encarado como uma oportunidade para essa troca de saberes
que constitui o educar e ser educado.
O comércio sempre esteve atado a esse fenômeno, no qual se trocam não
apenas mercadorias e serviços, mas principalmente conhecimento e visão de
mundo. A cultura, as crenças, as ciências e a linguagem têm viajado o mundo
por conta desse intercâmbio sutil, que deixa marcas em expressões cuja origem,
muitas vezes, remonta ao outro lado do planeta e a um tempo que se perdeu
na História. Construir um mercado comum, mais uma vez, supera em muito
a simples busca de vantagens mercantis, para se constituir em uma missão
civilizatória e humanizadora através da educação.
Responsabilidade social
Como nas organizações de necio voltadas para a sustentabilidade,
também a gestão deste processo integrador deve considerar aqueles
elementos de conhecimento que contribuem para o sucesso de qualquer
empreendimento. Temos, em todos os países integrantes do Mercosul,
organizações de ponta que construíram hisrias individuais de sucesso,
graças ao desenvolvimento de estratégias apropriadas fundadas em
Emílio Odebrecht
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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tecnologias empresariais ecientes, respeitosas quanto ao ser humano e ao
meio ambiente, apoiadas em princípios sólidos.
Essa cultura empresarial de vanguarda precisa ser instilada no sistema
estrutural do Mercosul, através do intercâmbio entre gestores públicos e
prossionais das organizações privadas. Esse relacionamento deve ser baseado
na premissa de que há objetivos comuns a serem alcançados, e não no mero
pressuposto de que um lado solicita e outro arbitra.
Da mesma forma, essa cultura empresarial do desenvolvimento
sustentável deve ser transmitida às comunidades, através de programas de
responsabilidade social e ambiental que levem em grande consideração
as diversas características culturais e étnicas, as vocações, os desejos e as
qualicações existentes e possíveis de serem desenvolvidas em cada uma delas.
O domínio do conhecimento, hoje uma disciplina profundamente inserida na
losoa das organizações que buscam a sustentabilidade, deve ser estimulada
no âmago das comunidades, em especial entre suas populações mais jovens,
para que elas encontrem o caminho das melhores condições de vida sem que
suas energias tenham que ser deslocadas para outros centros em busca de
oportunidades.
O contato com tais comunidades precisa ser planejado para evitar que
valores culturais estranhos a elas, venham a se sobrepor ao que constitui
as tradições. Muitas vezes, a tradição é o que mantém as sociedades locais
íntegras e, assim fortalecidas, lhes permite conectar-se ao global sem serem
engolfadas pela cultura de massa, que muitas vezes predomina. Os indivíduos
de cada comunidade devem ser levados em consideração, uma vez que neles se
realiza e se perpetua o complexo de conhecimentos, crenças e valores daquela
sociedade.
A idéia de um mercado comum sempre está relacionada à potencialidade
da produção em grande escala, mas ela não se realizará a contento se sua
construção e consolidação não for baseada no respeito ao indivíduo. Da
mesma forma, a busca da competitividade de cada país, de cada organização,
pela combinação de forças, talentos e competências agregadas em um
mercado comum, tem no indivíduo sua síntese. Esse indivíduo será localizado,
identificado e devidamente valorizado nesse processo pela ptica do
relacionamento aberto e democrático, no qual os objetivos comuns estejam
explicitados e as oportunidades sejam oferecidas à iniciativa de cada um.
A integração regional: fator de desenvolvimento sustentável
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Aqui, então, retornamos ao ponto inicial. O estado do mundo, tal como
descrito pelos 2.500 cientistas que estudaram as mudanças climáticas, não
esgota sua lista de más notícias na descrição dos nossos problemas ambientais.
O mesmo sistema de exploração indiscriminada de recursos naturais, que
gerou a grave crise física do planeta, deu causa ao outro grande desao, que é
o abismo social que separa os seres humanos. Ao negligenciarmos o indivíduo,
nós asfaltamos seu caminho rumo à marginalidade social.
Nesse sentido, merece especial atenção o tratamento às comunidades
indígenas presentes em quase todos os países da região. Detentores de uma
sabedoria milenar, principalmente no trato das relações entre o homem e a
natureza, não compartilham este conhecimento com o conjunto da sociedade e
são privados do acesso a bens e serviços que sem agredir seus modos de vida
– lhes asseguraria os benefícios do desenvolvimento humano e do progresso
cientíco e tecnológico.
Projeto comum de desenvolvimento
O Mercosul tem conseguido incrementar sua corrente de comércio. Da
mesma forma, vem consolidando o processo de integração política, apesar
de algumas divergências e das naturais diferenças de interpretação de temas
relacionados a modelos de desenvolvimento. Temos rios e orestas em comum
e nossas fronteiras conhecem alguma instabilidade onde o crime ainda
domina. Temos sabido produzir protocolos e instrumentos nacionais para
preservar esse patrimônio, mas dependemos, para isso, do engajamento das
comunidades nessa missão.
Sem elas, não Estado capaz de defender e preservar suas riquezas
naturais. Essa razão adicional reforça a tese de que a grande meta é a integração
social. Nossas relações serão mais produtivas e sustentáveis quanto mais
integradas estiverem nossas comunidades. É necessário, portanto, estimular
as relações interpessoais entre latino-americanos, levando para a vida civil o
que ocorre nas relações políticas e de negócios. Conhecendo-nos melhor
uns aos outros, poderemos identicar os grandes pontos de convergência
que nos unem e equacionar as diferenças, aprendendo mutuamente o valor
da diversidade que enriquece nosso continente.
Nossos estudantes devem ser estimulados ao intercâmbio regional e
os líderes comunitários devem ter a oportunidade de trocar experiências, de
Emílio Odebrecht
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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modo que as melhores práticas sejam disseminadas rapidamente por todos
os paises.
O turismo regional precisa crescer, com a divulgação de destinos pouco
procurados nos roteiros regulares, o que ajudará a nos conhecermos melhor.
Para isso, deve ser incrementado o investimento em infra-estrutura. No entanto,
estradas comuns não devem servir para transportar a miséria de um lugar para
outro. Elas devem ser recuperadas e postas em condição de uso, a par com
projetos de apoio aos produtores, para que por elas não apenas possa escoar
a produção de uma comunidade para mercados mais amplos, mas também
para que através delas possam ser levadas a todos os rincões o conhecimento
mais evoluído.
Exemplos de excelência, como os resultados dos estudos de alta qualidade
e aplicabilidade produzidos pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
– EMBRAPA – devem ser colocados à disposição dos produtores rurais em
todo o continente, para que o desenvolvimento da agricultura, da pecuária e
da indústria que eles promovem ocorra de maneira equânime. Apoiados em
tecnologias avançadas, cultivos tradicionais podem ganhar competitividade e
gerar riqueza, ajudando a conter os movimentos migratórios forçados pela
pobreza.
Da mesma forma, os projetos de inclusão digital devem andar lado a
lado com a educação bilíngüe, para que se potencialize o que a tecnologia da
informação pode oferecer. No caso do nosso continente, Português e Espanhol
devem encontrar campos comuns de convivência, pois através da familiaridade
com outros idiomas as pessoas são estimuladas a buscar a compreensão do
universo cultural que cada língua representa.
Esse aprendizado de cidadania, uma cidadania do mundo que não se
rejeita pelo contrário se orgulha de sua origem, deve estar no centro de
um projeto de integração social do Mercosul. Ainda temos contra nós uma
brutal desigualdade. Mas temos a nosso favor uma natural curiosidade pelo
outro, o gosto pelas cores e pelo ritmo, a aceitação e apreciação da nossa
riqueza musical e artística, o humor e um saudável orgulho nacional. Estes,
são elementos de uma equação sustentável.
O pressuposto de que, juntos, podemos amplicar ainda mais os êxitos
comerciais e políticos até aqui alcançados, revertendo-os em benefícios para
a mais ampla gama de nossas populações, deve orientar nossas escolhas.
A integração regional: fator de desenvolvimento sustentável
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
60
Dessa forma, poderemos realçar as capacidades individuais, dando a cada
um a oportunidade de imprimir sua marca pessoal no projeto comum de
desenvolvimento.
O que move o ser humano é a percepção de bem-estar. Se conseguirmos
aliar os ganhos recentes de nossas economias consorciadas e os frutos do
processo de consolidação de nossas democracias a um positivo sentimento de
melhoria nas nossas sociedades, teremos as comunidades associadas ao esforço
pelo desenvolvimento sustentável de toda a América Latina. Sem abdicarmos
das crenças, da orientação que cada um pode dar à sua própria existência, o
estabelecimento de objetivos comuns e o amplo compartilhamento de seus
benefícios podem conduzir todo o continente, num prazo relativamente curto,
a uma posição destacada no cenário mundial, deixando para a História todos
os estigmas do subdesenvolvimento.
DEP
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
61
Em busca do
crescimento com
eqüidade
Ricardo Ffrench-Davis*
A
s reformas realizadas durante mais de um decênio e meio no quadro
do chamado “Consenso de Washington” produziram resultados mistos na
América Latina. Por um lado, progressos no controle da inação, balanços
scais mais equilibrados e recordes de exportações. Porém, por outro lado,
no que era fundamental, isto é, o crescimento econômico e a eqüidade, o
desempenho foi medíocre. No período 1990-2005 se observa um crescimento
do produto (PIB) de apenas 2,7% anuais, com um aumento por habitante de
somente 1% no mesmo período, taxa insuciente para conseguir reduzir em
alguma medida o hiato em relação aos países desenvolvidos. De fato, a brecha
com os Estados Unidos se ampliou no decurso desses anos. O desempenho
atual se reete também no fato de que em 2005 havia no continente cerca de
9 milhões de pobres a mais, em relação a 1990.
Em resumo, produziu-se uma dupla divergência. Por um lado, o PIB
per capita não convergiu no sentido dos países desenvolvidos, e por outro, o
hiato regressivo entre os grupos de elevados rendimentos e os de baixa renda
* Professor de Economia da Universidade do Chile e Assessor da CEPAL.
Em busca do crescimento com eqüidade
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
62
aumentou. Atualmente, o PIB por habitante na América Latina é de somente
um quarto do dos países mais ricos (G-7), enquanto que a diferença de eqüidade
é mais do dobro da dessas economias. O desao é crescer, porém com muito
mais eqüidade (ver gráco 1).
Gráco 1
América Latina versus países desenvolvidos, per capita PNB
& rendimento/distribuição PPP dólares )
Fonte: Fundo Monetário Internacional, perspectivas econômicas mundiais base de dados (2006) e Dados:
Fundo Monetário Internacional, perspectivas económicas mundiais base de dados (2006), Banco Mundial,
Desenvolvimento mundial – Indicadores Base de dados (2006.)
Neste artigo fazemos uma revisão sucinta das reformas implementadas
desde os anos 90 (seção 1), as realizações (seção 2), as falhas (seção 3), os
desaos no novo decênio e a necessidade de implementar o que denominamos
reforma das reformas (seção 4).
1. Reformas econômicas na América Latina
Era necesrio reformar? Indubitavelmente sim. A América Latina
de 1990 necessitava reformas profundas. Tínhamos super intervenção nas
economias, com um setor privado restringido, excessivo intervencionismo e
regras pouco transparentes. o obstante, as maciças privatizações na América
Latina e as intensas liberalizações comerciais acarretaram mudanças muito
abruptas, com seqüências equivocadas, sem adequação à especicidade de
cada país e com hiatos graves.
Ricardo Ffrench-Davis
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
63
Essas reformas foram em geral lineares. Tenderam a mover-se sempre
na mesma direção e a outorgar a cada reforma um caráter de objetivo e não de
meio, que é o que elas são. Portanto, é vital não dirigir-se às reformas per se, e
sim levar a cabo as reformas funcionais para conseguir os objetivos de crescer
mais e crescer com mais eqüidade.
Dentro do espírito do Consenso de Washington o que se buscava era que
as reformas tendessem a conduzir a preços corretos e que fossem amigáveis para
com o mercado. Compartilho plenamente desses dois princípios. No entanto,
os resultados se orientaram na direção contrária. Por um lado, os preços
macroeconômicos chave a taxa de câmbio e a taxa de juros tenderam a
desalinhar-se, exibindo muita instabilidade em seguida às reformas na década
de 90. Isso se torna muito pouco amigável para com o mercado, pois submete o
setor produtivo a uma enorme tensão. Por outro lado, a demanda, ou capacidade
de compra, da população sofreu grandes variações, determinadas por uxos de
capital voláteis e pros de exportação muito utuantes. Em conseqüência, os
resultados se desviaram muito das expectativas dos reformadores neoliberais.
2. As realizações
Entre as realizações houve conquistas importantes.
a) No lado comercial ocorreu um grande aumento das exportações. Esse
fenômeno é generalizado na América Latina desde os anos 90. Os volumes
exportados cresceram de maneira substancial, a uma taxa média de 7,9%
anuais em termos reais no período 1990-2005. Esse impulso exportador dio
da América Latina foi signicativamente mais rápido do que o aumento das
exportações do mundo na mesma época (5,7%).
b) Os equilíbrios scais. Na década de 80, a América Latina mostrou
desequilíbrios scais muito elevados, com o décit de alguns países da ordem
de 10-17% do PIB. Nos anos 90 registrou-se um progresso notável nos
equilíbrios orçamentários da região, quando vários países aparecem com
superavits scais durante muitos anos: em média, a América Latina cumpria
com folga o critério de Maastrich, antes da crise asiática, com um décit scal
da ordem de 1,5% do PIB.
c) O controle da inação. Nesse âmbito, a América Latina experimentou
notável melhora, com o desaparecimento dos processos de hiperinação de
Em busca do crescimento com eqüidade
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
64
décadas anteriores. Com efeito, nos anos 80 houve países com veis de inação
de mais de 1.000% anuais, o que é muito destrutivo para as empresas e as
pessoas. Isso era um inimigo mortal do investimento, da inovação, da eqüidade
e da harmonia social. Desde os anos 90 esses níveis de inação desapareceram,
cedendo lugar a taxas de um dígito (uma média regional de um dígito desde
1997, e de 6,1% em 2005).
3. As falhas
As reformas padeceram também de graves deciências. Entre as mais
salientes, destacam-se:
a) Volatilidade nanceira e macroeconômica
A volatilidade constitui um dos principais problemas das economias
latino-americanas. Embora tenha havido um esforço decidido para conseguir
equilíbrios macroeconômicos, como no campo scal e no da inação, houve
também uma notável incapacidade para prever os problemas decorrentes dos
desequilíbrios nanceiros externos, assim como os efeitos dos desequilíbrios
reais (econômicos e sociais) que surgiram como produto de reformas
nanceiras concebidas de maneira ideológica.
Com efeito, os desequilíbrios externos dos anos 90 respondem a
uma oferta externa de capitais contagiada por etapas de super-otimismo e
super-pessimismo. A experiência da região durante os períodos de auge de
nanciamento externo entre 1990 e 1994 e entre meados de 1995 e 1998
mostra um forte crescimento dos décits externos e atrasos cambiais,
estimulados por ingressos maciços de capitais, o que inevitavelmente gera
vulnerabilidades. Em conseqüência, a América Latina sofreu em 1995 a crise
mexicana e em seguida, desde 1998, a crise asiática e seu prolongamento até
a crise argentina. O conjunto da região sofreu, durante todo um sexênio (1998-
2003) uma situação recessiva; com efeito, o PIB por habitante decresceu como
havia ocorrido na crise da dívida (a década perdida). Esses ciclos nanceiros
determinaram também os ciclos produtivos, ocasionando grandes brechas
entre o desempenho efetivo da economia e seu potencial.
O gráco 2 mostra essa dinâmica de montanha russa, em que se sucedem
períodos de auge e de crise. Como veremos, esses ciclos têm conseqüências
Ricardo Ffrench-Davis
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
65
negativas duradouras sobre o desenvolvimento social e o investimento produtivo.
Isso responde aos desequilíbrios que foram criados como fruto da maneira de
fazer política macroeconômica, comercial e particularmente, nanceira (ver
Ffrench-Davis, 2005). Surgiu um conito, um trade-off, entre um “nanceirismo
excessivo, muito de curto prazo, e um débil “produtivismo”.
Gráco 2
América Latina (19): PNB instabilidade, 1990-2005
(variação anual – porcentagens)
Fonte CEPAL, baseado em dados ociais.
É surpreendente que os erros cometidos nas reformas nanceiras
e cambiais da Argentina e do Chile nos anos 70 que os levaram a pagar
enormes custos econômicos e sociais ao produzir-se a crise da dívidatenham
se repetido em outros países da região desde meados dos 80, e em países da
Ásia durante os 90. Não apenas compartilham a debilidade da supervisão
prudencial, mas também os cenários de booms dos segmentos de capitais de
curto prazo e deslocamento da poupança interna, fortes atrasos cambiais e
crise nanceira de elevado custo scal e social.
Devido à trajetória seguida pela globalização, os peritos em intermediação
nanceira um treinamento microeconômico passaram a ser chave para os
desequilíbrios macroeconômicos das economias emergentes. Nas economias
em desenvolvimento, que baseiam parte de sua estratégia de desenvolvimento na
diversicação das exportações, uma taxa de câmbio dominada por movimentos
de capitais de curto prazo revela uma clara inconsistência de política. Para ter
Em busca do crescimento com eqüidade
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
66
um bom sistema econômico, com crescimento e eqüidade, é preciso premiar
os ganhos de produtividade mais do que a especulação, e as perspectivas de
longo prazo em vez do curto-prazismo.
Em conseqüência, a integração dos mercados de capital tem importantes
repercussões na governabilidade das políticas internas. De fato, a maioria dos
líderes dos países emergentes vivem em uma “síndrome do duplo eleitorado”: por
um lado, são eleitos pelos votantes de seus países, porém por outro lado em
breve procuram o apoio daqueles que “votam” por meio de seus investimentos
nanceiros. Os ciclos dos mercados nanceiros do último terço do século
revelam uma notável contradição entre ambos os fatores, em um jogo de soma
zero, com os países encerrados em uma armadilha nanceira. A prolongada
recessão recente – de 1998-2003 – assim atesta.
b) Exportações com baixo valor agregado
O maior impulso exportador, positivo em si, não se traduziu em maior
dinamismo para o conjunto da economia. Por um lado, em muitos casos,
processos de liberalização comercial abruptos, desenvolvidos em presença de
uma taxa de câmbio pouco competitiva, debilitaram a produção eciente de
bens comerciáveis, causando um grande incremento das importações. Como
resultado, apesar do dinamismo exportador, foram gerados desequilíbrios de
grande signicação nas contas externas.
Por outro lado, houve pouco progresso na diversicação da pauta
exportadora dos países da América Latina em direção a produtos com maior
valor agregado. Pelo contrário, não obstante certo progresso, a região ainda
exporta principalmente produtos baseados em recursos naturais com escasso
dinamismo em sua demanda internacional e com preços especialmente
propensos aos vaivéns da economia mundial. O auge dos preços internacionais
dos recursos naturais é um paliativo bem-vindo, mas que não resolve a falência
de um desempenho exportador que apresenta encadeamentos e externalidades
muito débeis para o restante de nossas economias.
Durante os anos 90 houve alguns avanços claros nesse sentido através
do fortalecimento do comércio inter-regional, que permitiu a expansão
vigorosa das exportações de manufaturas com maior valor agregado (CEPAL,
2002). Não obstante, a volatilidade macroeconômica presente nas principais
economias da região desde a crise asiática de 1998 teve impacto muito negativo
Ricardo Ffrench-Davis
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
67
sobre o intercâmbio regional, especialmente sobre o Mercosul. Este vem
ultimamente se recuperando.
c) Equilíbrio scal que não prioriza a modernização produtiva e social
No setor scal, embora se tenham conseguido orçamentos reequilibrados,
ainda prevalece uma insuciência de investimento em capital humano, em
infra-estrutura e em inovação produtiva. Há uma marcada insuciência de bens
blicos. É preciso investir recursos dirigidos à melhoria da qualidade dos sistemas
educacionais para os cidadãos do futuro. Além disso, porém, é preciso atender
aos requisitos de maior capital humano da atual força de trabalho, tanto de mão
de obra quanto empresarial. Isso é imprescindível para redundar em aumento
das possibilidades de crescimento econômico e alcançar, paralelamente, maior
eqüidade na distribuição de oportunidades e da produtividade.
Quanto à outra face do orçamento, a da receita tributária, existem ainda
grandes vazios nos sistemas tributários e demasiada evasão em comparação com
as economias desenvolvidas. Os sistemas predominantes recolheram um dos
cios da atual globalização, que enfatiza a carga tributária sobre o trabalho menos
vel e o capital produtivo, privilegiando o capital móvel e especulativo.
d) Má distribuição das oportunidades e das produtividades: o desao da eqüidade
Segundo estimativas da CEPAL, em 2005 havia 209 milhões de pobres
na América Latina (cerca de 40% da população), 9 milhões a mais do que em
1990 (ver quadro 1). Isso se explica, em parte, pelo ajuste recessivo de 1999 e
pela derrocada argentina em 2001-2002. Uma conclusão das experiências dos
anos 90 é que as crises afetam nossas sociedades de maneira muito regressiva.
trabalhos muito interessantes como os de Rodrik (2001), Ocampo (2005)
e Bourguignon e Walton (2006) – que reforçam a armação de que em cada
uma das crises nanceiras uma intensicação da pobreza e da regressão
distributiva. As crises não são neutras entre os setores, afetam de maneira
diferenciada inúmeras empresas e pessoas, consumidores e produtores,
com um viés regressivo, pois recaem mais sobre os que estão nos quintís de
menores rendas. A recuperação posterior não é automática e sim lenta, o que
representa uma signicativa perda de rendimento e patrimônio para os grupos
mais pobres, com conseqüências regressivas sobre o patrimônio dos lares e
nos balanços das pequenas e médias empresas.
Em busca do crescimento com eqüidade
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
68
Tabela 1
América Latina: indicadores sociais, 1980-2005
Fonte: Ffrench-David (2005, Cap. I ) e CEPAL.
e) Investimento produtivo insuciente
Um dos aspectos em que as reformas mostram desempenho mais
medíocre é o do insuciente investimento produtivo e conseqüentemente o
do escasso crescimento econômico. A América Latina dos anos 90 investiu
5 pontos do PIB menos, em média, do que nos anos 70, e somente alguns
décimos mais do que na década perdida dos anos 80 (ver gráco 3). O resultado
foi o minguado crescimento do PIB a partir da década de 80, conseguindo
apenas uma taxa de 2,7% desde 1990 (ver quadro 2). Isso implica que em
1990-2005 o PIB por habitante da região (1%) cresceu menos do que o mundo
(1,2%) e do que nos Estados Unidos (1,8%).
Gráco 3
América Latina (19): capital bruto axado, formação e
classicação, 1971-2005 (PNB %, em preços de 1995)
Fonte: CEPAL, baseado em dados ociais.
Ricardo Ffrench-Davis
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Tabela 2
América Latina: crescimento do PNB, 1971-2005
(classicação anual média, %)
Fonte: Ffrench-David (2005, cap. I) e CEPAL.
A chave para crescer de modo sustentável é o investimento. É freqüente
deixar-se enganar com taxas de crescimento elevadas porém transitórias, pois
muitas vezes se baseiam em processos de recuperação da atividade econômica
e não de forte expansão da capacidade produtiva (Chile em 1985-89; Argentina
em 1992-94 e 1997; a maior parte da América Latina em 2004-2006, depois
da recessão de 1998-2003). É importante aproveitar a recuperação seguinte às
recessões, mas a chave é reativar de maneira que os investimentos e os ganhos
de produtividade mantenham sustentável o crescimento elevado depois que
termina a reativação.
Uma exceção interessante na América Latina dos anos 90 foi o Chile.
Entre 1990 e 1998 o ps cresceu 7% (Ffrench-Davis, 2004). Um fator
determinante desse aumento sustentado do produto foram as reformas do
regime democrático efetuadas sobre as reformas neoliberais da ditadura.
Costuma-se falar em “aplicar o modelo chileno”. Já demonstramos (ver
Ffrench-Davis, 2004) que com o retorno à democracia foram realizadas
mudanças substanciais, em especial no início dos anos 90; por outro lado,
também documentamos que inclusive na ditadura se registraram mudanças
signicativas entre o anos 70 (um modelo neoliberal mais extremista) e os 80,
com diversas intervenções no mercado embora também, com viés regressivo
(certo pragmatismo regressivo).
Em busca do crescimento com eqüidade
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
70
Outra variável de grande relevância foi o nível da taxa de investimento
produtivo. Nos anos 90 o Chile investiu 10 pontos do PIB mais do que durante
o governo de Pinochet (1974-89). Como cou dito, a América Latina, em
contraposição, investiu 5 pontos menos do que nos anos 70 (ver gráco3).
Essa é uma razão determinante para explicar porque o Chile (apesar de incluir
a deterioração de seu crescimento após a crise asiática desde 1998) cresceu
5,2% em média e a América Latina somente 2,7% em 1990-2005.
f) Concentração da propriedade e o poder econômico
A concentração é um fenômeno generalizado, que se reete na deterioração
da distribuição da renda registrada na América Latina. As privatizações tiveram
em geral um impacto regressivo na distribuição do poder econômico.
Houve processos internos de privatizações na Argentina, Bolívia,
Peru e México, entre outros. No México, por volta de 1994, as empresas
públicas tinham se reduzido de 1155 a menos de 80 (ver Morley, Machado e
Pettinato, 1999).
O Chile fez privatizações maciças no curso dos anos 1974-89, durante
o regime de Pinochet
1
. A venda de empresas se realizou, em grande parte,
em períodos de recessão e taxas de juros muito elevadas no mercado interno.
Por causa disso, poucos agentes tiveram possibilidade de aceder à compra.
Esse fato constituiu uma das causas da aguda concentração de propriedade
registrada nesses anos. Nesse processo, foi notória a fraca participação direta
das empresas transnacionais. Não obstante, um maciço incremento de créditos
externos e seu domínio sobre bancos nacionais projetou uma fração substancial
do nanciamento necessário a grupos econômicos para adquirir as empresas
que eram privatizadas.
Mesmo quando os processos de privatização constituíram uma das causas
de concentração de poder, as outras reformas comercial, nanceira, conta
de capitais, tributária, legislação trabalhista - contribuíram signicativamente
para a recessão. A isso juntaram-se as sucessivas crises macroeconômicas, com
seu intenso impacto regressivo. É curioso que se diga, com freqüência, que a
região aprendeu a fazer macroeconomia. A verdade é que aprendeu a controlar
a inação sem aprender a fazê-lo de maneira coerente com o desenvolvimento
produtivo e o combate à desigualdade.
1
Ver Ffrench-Davis (2004, cap. II); aí se encontram numerosas referências bibliográcas.
Ricardo Ffrench-Davis
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
71
4. Como melhorar o desempenho?
A necessidade de reformar as reformas
Dada a heterogeneidade de resultados das reformas econômicas, com
suas feições positivas e negativas, é vital aplicar mudanças que tendam a
conservar as características saudáveis e corrigir os erros mais graves. No fundo,
trata-se de introduzir reformas às reformas.
No caso do Chile, ao ser recuperada a democracia em 1990 produziram-
se diversas reformas das reformas. Houve uma reforma tributária para cobrir
um aumento do gasto social. Reforma trabalhista para restabelecer (não para
eliminar) direitos dos trabalhadores. Reformas macroeconômicas substanciais
para que a economia se tornasse mais sustentável, o que signicou ir contra
a moda de abrir indiscriminadamente a conta de capitais; introduziu-se uma
regulamentação macroeconômica prudente a m de desalentar um ingresso
excessivo de capitais nanceiros de curto prazo, aperfeiçoou-se a supervisão
preventiva do sistema nanceiro, estabeleceu-se uma aplicação sistemática de
um fundo de estabilização do cobre; procurou-se desenvolver (ainda muito
debilmente) o segmento de longo prazo do mercado de capitais e se aplicaram
políticas cambial e monetária ativas, e uma política scal muito responsável: cada
novo gasto social teve nanciamento efetivo (ver Ffrench-Davis, 2004).
a) Macroeconomia real sustentável.
Existe amplo consenso quanto a que os “fundamentos macroeconômicos
saudáveiso uma variável determinante. o obstante, grande incompreensão
sobre como se denem e como consegui-los e mantê-los. Uma denição
adequada dos fundamentos macroeconômicos deveria incluir junto com
a inação baixa, contas scais saneadas e exportações dinâmicas décits
externos e dívidas líquidas suportáveis, investimento sustentável em capital
humano, investimento elevado e eciente em capital físico, passivos externos
líquidos reduzidos, taxa de câmbio real não desalinhada, forte regulamentação
e supervisão prudente do sistema nanceiro. Em períodos recessivos deveria
implicar, por exemplo, i) a implementação de um equilíbrio scal estrutural
(reconhecendo que durante a recessão as receitas scais são inusitadamente
baixas e que, nessas circunstâncias, o gasto blico não deveria acompanhar os
impostos em sua trajetória descendente e sim desempenhar, ao contrário, um
papel compensador ou contra-cíclico) e ii) um forte impulso da demanda real,
Em busca do crescimento com eqüidade
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
72
com mudanças decididas de política, quando a atividade interna esteja claramente
abaixo de sua capacidade produtiva (ver Ffrech-Davis, 2005, cap. VI).
Como foi exposto no icio, necessitamos reformas amigáveis para
com o mercado (market friendly) e preços corretos (right prices), sendo ambas as
coisas evidentemente essenciais para o crescimento. No entanto, o magro
desempenho atual indica que a amizade não tem sido conável e que com
freqüência os preços macroeconômicos se afastaram do equilíbrio. Esses
desequibrios dicultam, evidentemente, a avaliação de projetos para a
alocação de recursos, promovem o investimento especulativo de preferência
ao produtivo e contribuem para deteriorar a carteira das instituições nanceiras
e excluir as pequenas e médias empresas do acesso ao nanciamento.
Por isso, é fundamental preocupar-se com que esses preços macroeconômicos
que afetam o conjunto de agentes econômicos e a demanda acumulada
sejam relativamente estáveis e não estejam demasiadamente desalinhados ou
desequilibrados. Isso depende de variáveis de política econômica e da forma
como se organizam os mercados. Por exemplo, a escolha do regime cambial é
uma das chaves. A taxa de câmbio determina a competitividade das exportações
e das empresas que competem com os produtos importados, motivo pelo
qual seu nível e volatilidade têm impacto enorme sobre o desempenho do
setor produtivo e as contas externas. As opções que hoje estão mais na
moda se limitam a dois extremos: por um lado, uma taxa de câmbio xa ou a
dolarização, o que implica em renunciar à moeda nacional e a fazer política
cambial e monetária; e por outro lado, uma taxa de câmbio totalmente livre,
que é tremendamente sensível aos uxos de capitais andorinha, de natureza muito
volátil; o resultado é uma taxa de câmbio notavelmente instável.
É preciso olhar mais além das modas e encontrar uma resposta pragmática
para o problema. Em Ffrench-Davis (2004) mostramos que é possível um
melhor desempenho global ao utilizar um sistema eciente de exibilidade
administrada da taxa de câmbio que permita ajustes de preços relativos e uso da
política monetária, que evite as cotações extremas e que facilite a transição entre
períodos de auge e de escassez de nanciamento externo. Não obstante, para
que uma política desse tipo tenha êxito, uma condição necessária é que exista
um conjunto coerente de políticas scais, de supervisão bancária e de gestão
da conta de capitais, dotados de elementos contra-cíclicos e de prudência;
e um equilíbrio entre objetivos como o controle da inação e a geração de
Ricardo Ffrench-Davis
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
73
emprego, superando o atual predomínio anti-inacionário a expensas do
desenvolvimento produtivo. Aqui surge, novamente, a importância de um
enfoque integral e a coerência entre objetivos e meios.
b) Desenvolvimento sustentado e investimento social
Para crescer de modo sustenvel, é preciso criar nova capacidade
produtiva: maior quantidade e qualidade de capital e de trabalho, organização e
institucionalidade funcional. Nesta era de “globalização”, isso é necessário para
aproveitar as oportunidades que se apresentam e eludir os perigos. Destaca-se
nesse ponto um papel chave para a educação e a capacitação do operariado.
A capacitação da mão de obra é uma peça fundamental para incrementar a
produtividade; é a maneira “progressista” de exibilizar o mercado pelo lado
da oferta. Os trabalhadores que deixaram o sistema educativo e que vão estar
na força de trabalho durante quarenta anos já não podem voltar ao primeiro
ou o segundo graus; precisam ser capacitados durante sua vida prossional.
Um tema com características semelhantes é o da difusão tecnológica, em
particular nas pequenas e médias empresas. Na capacitação trabalhista e na
tecnologia externalidades e falhas de mercado substanciais, que não foram
corrigidas com decisão: essa é uma das diferenças entre desenvolvimento e
subdesenvolvimento.
Como vimos, quando se enfrenta uma crise, as pessoas e empresas de
menores recursos econômicos têm menos capacidade de proteger-se e, em
conseqüência, a pobreza aumenta e a distribuição de renda tende a piorar. Isso
impõe uma responsabilidade muito grande de gestão macroeconômica.
É imperativo ético e técnico gerar melhores condições para superar a
pobreza e melhorar a distribuição de renda, que evitem o surgimento de tensões
e maior desintegração social no interior de nossos países. Trata-se de participar
da globalização integrando-nos internamente e não nos desagregando;
queremos fazer nossa globalização. A integração latino-americana é um desses
instrumentos ecazes para avançar nesse objetivo.
c)
O caráter integral do desenvolvimento
Para conseguir um desenvolvimento vigoroso e sustentável é necessário
um conjunto coerente de políticas econômicas e sociais, com um horizonte
extenso. O objetivo central de elevar o bem-estar do conjunto da população não
Em busca do crescimento com eqüidade
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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se realizará sem avanços signicativos na consolidação de economias dinâmicas
e competitivas, capazes de enfrentar os desaos de um mundo globalizado.
Eqüidade e desenvolvimento econômico são, nesse sentido, elementos de
uma mesma estratégia integral (ver CEPAL, 2002). O desenvolvimento social
não pode repousar exclusivamente na política social, assim como a política
econômica não pode, por si só, isolada do projeto da política social, assegurar
objetivos socio-econômicos. A geração de emprego e renda sustentáveis; a
superação de heterogeneidades produtivas estruturais, tanto herdadas quanto
de criação recente, potencializando a contribuição das pequenas e médias
empresas para o desenvolvimento; a canalização de maiores recursos para
o melhoramento do capital humano, e programas integrais de luta contra a
pobreza que priorizem distribuir produtividade, de maneira consistente com
uma política scal saudável, são alguns dos elementos de conexão entre o
desenvolvimento econômico e o social.
Os modelos de desenvolvimento econômico o são “neutros” em
termos sociais. Políticas macroeconômicas que gerem equilíbrios sustentáveis na
economia real, e políticas de desenvolvimento produtivo, consistentes com uma
melhor distribuição de oportunidades e de produtividades através da sociedade,
o vitais para a consecução daquele objetivo esquivo, qual seja o desenvolvimento
econômico com eqüidade. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento social, a redução da
desigualdade e a eliminação de diversas formas de discriminão criam condições
favoráveis para o desenvolvimento econômico, como resultado do investimento
em capital humano e da constrão de “capital social”, que favorecem a
competitividade sistêmica das economias em um mundo globalizado.
Não se consegue a eqüidade com a mera ão ex post e sim incorporando-
a ao sistema produtivo, porque na medida em que as pessoas e as pequenas e
dias empresas aprendem a operar cada dia melhor, obm-se desenvolvimento
econômico e social: crescimento com eqüidade.
Referências bibliográcas
Bourguignon, F. Y M. Walton (2006), “Is greater equity necessary for higher
long-term growth in Latin America?”, em R. Ffrench-Davis e J.L. Machinea
(orgs.), Economic Growth with Equity: Challenges for Latin America, Palgrave
Macmillan, Londres.
Ricardo Ffrench-Davis
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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economicas en America Latina y el Caribe, Fondo de Cultura Economica/CEPAL,
Santiago.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
76
Colômbia: desaos
até 2010
Álvaro Uribe Vélez*
P
az, defesa e segurança
1. Insistir no diálogo útil com os grupos armados à margem da lei, com
intermediação nacional e internacional. Obter apoio político e recursos de
cooperação internacional para os processos de paz. Aumentar para 10 o
mero de reges atendidas pelos Programas de Desenvolvimento e Paz.
2. Fortalecer o Programa de Reincorporação à Vida Civil para os reinseridos
em todas as etapas; assisncia psicológica, formação acamica ou
prossional e emprego.
3.
Estender a presença da polícia a 236 corregimientos. Aumentar a presença
policial permanente nas ruas das cidades.
4.
Implementar um número telefônico único de atenção à cidadania.
5. Fortalecer os mecanismos de cooperação cida na luta contra a
delinqüência, tanto na cidade quanto no campo.
6.
Reduzir o número de homicídios e sequestros.
7. Melhorar a proteção da propriedade.
* Presidente da República da Colômbia.
Álvaro Uribe Vélez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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8. Fortalecer a produção de inteligência e contra-inteligência estratégica da
nação e sua institucionalidade.
9.
Criar uma unidade especializada para a defesa judicial digna e oportuna
de militares e policiais acusados de presumíveis delitos cometidos durante
o desempenho de suas operações e serviços.
10.
Equilibrar o incremento e o bem estar da força pública, oferecendo-lhe
oportunidades de moradia, saúde e educação.
11.
Vincular ao programa musical Batuta 25.000 crianças deslocadas.
12. Um milhão de crianças jogando xadrez a m de melhorar a capacidade
analítica e de solução de conitos e a disciplina de trabalho da população
infantil vulnerável.
Direitos humanos, interior e justiça
1. Aprofundar e estender à totalidade dos funcionários os programas de
capacitação e treinamento em direitos humanos e direito internacional
humanitário de juizes, scais, militares e policiais.
2. Apresentar um projeto de lei de anistia que benecie gratuitamente os
colombianos maiores de 25 anos das camadas I, II e III cuja situação
militar não esteja regularizada.
3.
Promover connios de segurança social com países receptores de
imigrantes colombianos a m de melhorar suas condições de vida.
4.
Construir um país sem droga, desenvolvendo uma campanha ativa de
prevenção contra a dependência e penalização do consumo com penas
diferentes da privação de liberdade.
5.
Reduzir o número de hectares cultivados com coca, com ênfase especial
nos cultivos ilícitos em parques nacionais.
6.
Manter e defender a instituição da extradição como um dos principais
instrumentos de cooperação judicial internacional na luta contra o
narcotráco.
7
. Fortalecer a potica de segurança coletiva dos cidadãos, urbana e rural.
8. Fortalecer a defesa jurídica internacional dos interesses colombianos.
Colômbia: desaos até 2010
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9. Ampliar a oferta nacional de vagas nas penitenciárias e cárceres e a
construção de novas prisões. Reduzir a superpopulação nas prisões.
10. Impulsionar a criação de Casas de Justiça, Centros de Convivência e Casas
de Conciliação nas diversas regiões do país.
11.
Criar novos mecanismos de justa comuniria, promover decisões
judiciais equânimes.
12.
Promover brigadas de justiça que permitam o deslocamento de juizes aos
municípios e bairros.
13.
Adotar um código único de procedimento que favoreça a oralidade como
regra geral em todas a áreas e jurisdições.
Economia: conança para o investimento
1. Prosseguir na potica macroeconômica que conduza a uma taxa de
crescimento de 6% anuais, mantenha baixos o décit scal e a inação e
promova a redução da dívida pública líquida.
2. Reformar o Estatuto Orgânico de Orçamento e incluir noções como a
da avaliação dos gatos e orçamentação por resultados.
3.
Promover uma reforma tributária para crescer com um sistema simples,
equitativo e competitivo, que promova a poupança e o investimento.
4.
Realizar a “Segunda Revolução do Microcrédito” assegurando maior
nanciamento de microempresários mediante desembolso de recursos do
Bancóldex e continuar beneciando as Micro, Pequenas e dias Empresas
por meio do Fundo para a Micro, Pequena e Média Empresa.
5.
Criar o “Banco de Oportunidadescomo organismo gestor da massicação
do crédito popular.
6.
Humanizar a informação creditícia modicando a lei de habeas data a m
de equilibrar os relatórios relacionados com microempresários feitos às
centrais de risco.
7.
Promover créditos para os projetos associativos de Micro, Pequenas e
Médias Empresas, que ajudem a aquisição e comercialização de insumos
e produtos importados.
Álvaro Uribe Vélez
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8. Facilitar o entorno nacional para o investimento estrangeiro, promovendo
acordos bilaterais para promoção e proteção dos investimentos e acordos
gerais para evitar a dupla tributação.
Desenvolvimento industrial e turismo
1. Fomentar as diferentes formas de alianças ou associações para a formação
de empresas.
2.
Eliminar obstáculos de acesso ao nanciamento.
3. Incrementar a percentagem de empresas exportadoras aprofundando a
promoção da oferta nacional exportável por meio do Proexport.
4.
Dar prioridade a bens e serviços produzidos no país nas compras feitas
pelas instituições do Estado.
5.
Modernizar o Estatuto de Proteção ao Consumidor.
6. Estabelecer uma política de propriedade intelectual de longo prazo, através
de uma única autoridade.
7.
Organizar e regulamentar o uso de praias e recuperar litorais em cidades
estratégicas para o turismo, como San Andrés e Santa Marta.
8.
Duplicar os projetos de pousadas turísticas em diversas regiões do país.
9. Avançar nos programas de certicação turística empresarial.
10. Consolidar as rotas de Vive Colombia.
11. Fortalecer a polícia turística (infra-estrutura, equipamento).
12. Gestionar tarifas especiais para estudantes, decientes físicos e idosos
para que tenham acesso aos serviços turísticos.
Agricultura e desenvolvimento rural
1. Implementar o programa Agro, renda segura” como estratégia integral
de resposta às necessidades do setor pecuário.
2. Impulsionar a Revolução Agroindustrial, como pilar do desenvolvimento
produtivo nacional, em produtos nos quais a Colômbia possui vantagens
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comparativas, de alto conteúdo de conhecimento tecnológico e utilização
da biodiversidade.
3. Consolidar o país de proprietários rurais não somente com a entrega de
títulos de propriedade de terras, mas também com projetos produtivos
segundo um esquema associativo de gestão.
4.
Projetar e promover uma organização social empresarial da produção
agrícola.
5.
Consolidar o nanciamento do setor promovendo a entrega de títulos de
propriedade, o microcrédito e o ICR, prosseguindo o incentivo CIF para
reorestamento, aumentando as colocações do Finagro e a cobertura do
Fundo Agropecuário de garantias, e incentivando o capital de risco para
o desenvolvimento de projetos produtivos de longo prazo.
6.
Incentivar a incorporação de terras propícias à produção em um quadro
de desenvolvimento rural integral. Recuperar 593 mil novos hectares
agrícolas e criar 140 novas bancas de maquinaria.
7.
Generalizar o cumprimento integral do sistema nacional sanitário e to-
sanirio. Avançar para que a Colômbia seja um país 100% livre de aftosa.
8.
Focalizar novos projetos de infra-estrutura de irrigação e drenagem do
país segundo as necessidades do setor agropecuário, incentivando o setor
privado para que invista na construção de distritos de irrigação.
9.
Aumentar a área em hectares entregues a camponeses prossionais e
técnicos agropecuários dos bens submetidos a extinção de domínio pela
DNE, a partir de sua desapropriação.
10.
Fazer da saúde rural uma prioridade, incentivando os municípios para que
implementem unidades móveis de saúde e as EPS para dispor de mais
alternativas para prestar efetivamente os serviços.
11.
Ampliar a cobertura educativa e melhorar a qualidade da educação em
zonas rurais.
Comércio internacional e integração
1. Promover o ajuste dos objetivos da CAN para que atue como mercado
regional com uma verdadeira zona de livre comércio.
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2. Aprofundar os acordos comerciais e convênios de cooperação com o
Mercosul.
3. Realizar acordos de livre comércio (TLC) com os países centro-americanos
(Panamá, Salvador, Guatemala), Canadá e União Européia.
4.
Passar de membro observador a membro pleno do Plano Panamá Puebla.
5. Promover a cooperação econômica com a China e o Japão. Estimular a
aproximação comercial e cultural com outros países e mercados asiáticos.
6.
Consolidar o Guichê Único de Comércio Exterior.
7. Fortalecer o recurso humano como instrumento de competitividade
mediante a capacitação em matéria de comércio exterior, comércio
internacional, produção agrícola e manufatura.
Infra-estrutura: transporte
1. Avançar na construção e manutenção dos grandes corredores viários.
2. Promover a associação das entidades territoriais a m de investir nas vias
terciárias.
3.
Concluir 8 projetos de Sistemas Integrados de Transporte de massa para
16 cidades.
4.
Conseguir o desenvolvimento integral da infra-estrutura dos portos,
especialmente os de Santa Marta e Buenaventura. Promover o
desenvolvimento de um porto de águas profundas no Pacíco.
5.
Resgatar os corredores ferroviários estratégicos para mobilidade de
produtos aos principais portos.
6.
Prosseguir no crescimento do transporte uvial dos rios Magdalena e
Meta.
7.
Assegurar a modernização dos principais aeroportos do país.
8. Construção das obras de proteção de Mojana del Rio Cauca e do baixo
Magdalena.
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Telecomunicações e informática
1. Potencializar o desenvolvimento de indústrias que se apoiem na infra-
estrutura de telecomunicações e informática e nas capacidades prossionais
do talento humano.
2. Estabelecer o programa Colômbi@ Porto da Informação para que o país
seja líder na atração de empresas dedicadas a atender o mercado de língua
espanhola através da conectividade internacional aos cabos submarinos de
ambas as bacia oceânicas e do desenvolvimento de indústrias de TIC.
3.
Todo colombiano terá acesso à Sociedade da Informação diretamente ou
através de centros de acesso comunitário.
c
ontar com 10.000 centros dotados de ao menos 200.000 computadores
conectados à Internet de banda larga;
realizar
um plano maciço de alfabetização informática e capacitação,
a cargo do Sena e do Ministério da Educação, na instrução primária,
secundária, educação técnica, de adultos e para professores, e
Criar
uma linha especial de crédito do Icetex, apoiado pelo Findeter,
para que todos os estudantes universitários contem com seu próprio
computador e serviço de acesso à Internet.
4. Eliminar o IVA para os computadores de baixo custo.
5. Fortalecer os projetos da Agenda de Conectividade, especialmente os
relacionados com o desenvolvimento e uso efetivo da Internet II.
6.
Oferecer incentivos para os cidadãos que façam uso da Internet para os
trâmites com o Estado.
7.
Desenvolver um esquema normativo e institucional que permita a
sustentabilidade do serviço postal universal.
8.
Desenvolver um esquema normativo e institucional que permita a
sustentabilidade da televisão pública, do operador nacional e dos
operadores regionais.
9.
Contar com o Plano Nacional de Telecomunicações e Informática,
construído sob coordenação do Governo com ativa participação dos
usuários, do setor produtivo da academia e das entidades territoriais.
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Minas e energia
1. Promover o fortalecimento comercial em mercados internacionais do setor
mineiro de alto valor agregado, como a indústria do carvão e a produção
de petróleo e seus derivados.
2. Desenvolver uma agressiva política petrolífera para poder acrescentar
1.500 milhões de barris de reserva antes de 2010 com altos incentivos e
participação do capital privado e de Ecopetróleo.
3.
Estabelecer uma moldura adequada para explorar todas as jazidas.
4. Fortalecer o desenvolvimento do mercado de gás natural por meio da
vinculação de 300.000 novos usuários.
5.
Melhorar a infra-estrutura de interconeo de gás natural buscando
uma regionalização ótima, nacional e internacionalmente. Fomentar a
construção do gasoduto colombo-venezuelano.
6.
Espera-se que em 2010 a cobertura em energia elétrica seja de 95%.
Recuperação de eletricadoras para que existam proprietários que gerem
valor com serviços de qualidade e cobertura universal.
7.
Aumentar a capacidade de transmiso de energia a países vizinhos
priorizando a interconexão futura com o Equador e o Panamá.
8.
Implementar 5 novos projetos de construção de hidrelétricas em Guapi,
Mitú, Araracuara, Juradó, Unguía, Nuquí e La Chorrera.
9.
Aproveitar as vantagens do TLC (tarifa zero) para massicar a produção
e exportação de biocombustíveis nas zonas francas.
10.
Passar a produção de 550.000 litros de álcool combustível por dia para
3.500.000 litros diários em 2010.
Política social e redistributiva
1. Elevar para 1,5 milhão os beneciários do Programa Famílias em Ação.
2. Endurecer a legislação penal em matéria de delitos contra a família e a
infância.
3.
Estabelecer um serviço social obrigatório como requisito para diplomação
em algumas prossões cujos destinarios sejam crianças menores de 5 anos.
Colômbia: desaos até 2010
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4. Conseguir a ampliação dos programas de nutrição a toda a população
infantil menor de 5 anos de Sisben I e II.
5. Aumentar para 180 os dias do ano em que funcionam os restaurantes escolares.
6. Pôr em marcha a plena cobertura de saúde para as famílias das mães
comunitárias
7.
Ampliar a cobertura de atenção básica a 900.000 idosos e vulneráveis.
8. Aumentar a percentagem de pessoas ocupadas, formais, autônomas e
informais liadas à previdência social.
9.
Garantir a segurança universal em saúde para as populações do Sisben I,
II e II.
10.
Criar zonas hospitalares especiais, com a nalidade de fortalecer a
prestação de serviços de saúde e incentivar o turismo médico.
11.
Melhorar a eciência e transparência do setor saúde:
C
onsolidando o Sistema Único de Informão da Previdência Social;
R
edesenhando a Superintendência de Saúde;
Conc
entrando em uma Entidade Única de Arrecadação de Previdência
Social a auditoria de todos os recursos do setor;
P
rosseguir a política de hospitais públicos sem corrupção, sem politicagem
e sem excessos sindicais, para que sirvam à comunidade, e
C
ontrolando a evasão e fraude nos pagamentos de contribuições à
previdência social e aos parascais.
12. Agilizar os processos de reconhecimento e transparência na gestão de
aposentadorias fundindo as caixas públicas que as administram e criando
um grupo de elite de descongestão.
13.
Ampliar a cobertura aumentando para 100.000 o número de empresas
liadas a riscos prossionais.
14.
Desenvolvendo a Segunda Revolução do Sena, promover a articulação
eciente entre oferta e demanda de trabalho:
F
ortalecendo o sistema de informação para emprego;
R
ealizando esforços suplementares quanto à pertinência da formação;
Álvaro Uribe Vélez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Procurando garantir o acesso ao crédito dos diplomados pelo Sena, e
F
ortalecer o Sistema Nacional de Formação para o trabalho com o
objetivo de certicar as instituições técnicas e tecnológicas para que
acedam aos recursos de formação do Sena.
15. Fazer um grade pacto social para que os trabalhadores que exercem
trabalho permanente sejam vinculados a contratos de prazo indenido.
16.
Promover os Pactos Territoriais e Setoriais para o Emprego.
17. Assegurar salários reais positivos.
Educação
1. Fortalecer o processo de formação de capital humano por meio da
articulação dos níveis educativos com base em competição, programas
de adestramento e preparação para a educação básica.
2.
A Revolão Educativa aprofundará o conhecimento cienco e tecnológico
e o uso maciço das tecnologias da informação e da comunicação para a
instrução, aprendizagem e desenvolvimento da criatividade.
3.
Apoiar o melhoramento das competências de docentes e alunos como
atores centrais da construção de uma sociedade do conhecimento.
4.
Cobertura universal para a educação básica no terceiro ano de governo.
Reduzir a taxa de deserção na educação superior por matéria a 40% e a
interanual a 8,4%.
5.
Aumentar a carteira do Icetex a um mínimo de $2 bilhões para nanciar
o acesso à educação superior, procurando incluir além da matrícula a
manutenção para os extratos I e II.
6.
Financiar com créditos a 30 anos com recursos do FNA a moradia para
prossionais com doutorado ou mestrado.
7.
Adequar o sistema educativo para que os bacharéis adquiram conhecimento
básico de inglês como segunda língua.
8.
Aumentar a oferta de programas de educação superior nas regiões do país
por meio de programas virtuais.
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9. Gerar maiores incentivos para os docentes:
Premiando seu desempenho;
G
arantindo condições de trabalho equitativas para os professores
contratados por entidades que prestam serviços ao Estado;
Atualizando as listas de antigüidade para melhorar
suas rendas, e
A
cedendo a cdito de moradia por meio do Fundo Nacional de Poupança.
10. Ampliar a infra-estrutura e dotação da educação pública.
11. Consolidar a descentralizão, dando mais autonomia à Instituição
Educativa e fortalecendo institucionalmente as secretarias de Educação.
12.
Realizar a Segunda Revolução do Sena”, promovendo a articulação
eciente entre oferta e demanda de formação:
F
omentar maciçamente a “formação técnica diplomada”;
P
ermitir exibilidade entre programas de média técnica, tecnológica
superior e prossional;
F
ortalecer o sistema nacional de formação para o trabalho com o
objetivo de certicar as instituições técnicas e tecnológicas para que
acedam aos recursos do Sena, e
F
ortalecer a capacitação no Sena para reinsertados e decientes físicos.
Conhecimento para o desenvolvimento
1. Promover o desenvolvimento cientíco, tecnológico e a inovação como
pilares para que a Colômbia se insira na sociedade do conhecimento e
permita gerar um desenvolvimento produtivo e social sustentável.
2. Alcançar um investimento total de 1% do PIB para 2010, com pelo menos
metade de fontes privadas.
3.
Impulsionar setores intensivos em conhecimento e que contribuem para
o desenvolvimento produtivo.
4.
Articular as políticas de ciência, tecnologia e inovação com as políticas de
educação superior.
Álvaro Uribe Vélez
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5. Incrementar a Formação em Doutorado e Mestrado de pesquisa através
de créditos perdoáveis.
6.
Dar estímulos aos cérebros colombianos no mundo para que montem
empresas no país para apoiar a educação superior e as empresas.
7.
Continuar o programa bandeira de criação e consolidação de Centros de
Pesquisa de Excelência para chegar a nanciar 12 centros em 2010.
8.
Incentivar os parque tecno-cientícos como articuladores no território
dos atores de desenvolvimento cientíco, tecnológico e de inovação.
9.
Promover os prossionais portadores de doutorado para que se vinculem ao
setor produtivo e impulsionem projetos de pesquisa e desenvolvimento.
10.
Duplicar os recursos da linha de crédito Bancoldex-Colciencias para
incentivar a inovação empresarial.
11.
Aprofundar a Diplomacia Científica com o objetivo de promover
a cooperação científica e tecnológica nas agendas de cooperação
internacional.
Moradia, serviços públicos e meio-ambiente
1. Elevar o piso do orçamento para moradia de interesse social de $150.000
a 350.000 milhões.
2.
Massicar o mecanismo dos Bancos de Materiais para o melhoramento e
construção de moradia popular. As prefeituras acompanharão com entrega
de lotes com serviços públicos e as caixas de Compensação Familiar
supervisionarão o processo.
3.
Às es chefes de família beneciárias do Banco de Materiais será
concedido um salário mínimo durante 2 meses para que possam dedicar-
se ao melhoramento de sua moradia.
4.
Consolidar o sistema de concessão de subsídios através das Caixas de
Compensação Familiar, que devem acompanhar e realizar uma intervenção
estrita tanto na moradia urbana quanto na rural.
5.
Impulsionar a legalização de títulos de propriedade que permita, mediante
um processo notarial e a custo reduzido sanear prédios de possuidores
pobres e de boa fé.
Colômbia: desaos até 2010
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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6. Dar títulos de moradia de interesse social construídas em bens scais de
propriedade da nação ou de entidades territoriais.
7.
Democratizar a propriedade e fomentar as micro-empresas comunitárias
nos serviços de abastecimento de água, esgoto e limpeza pública.
8.
Promover uma nova cultura da água e alcançar uma gestão integrada
dos recursos hídricos, em função dos diferentes pisos térmicos, regiões
e ecossistemas da Colômbia.
9.
Criar um sistema de acreditamento que garanta a qualidade na prestação
de serviços de abastecimento de água, esgoto e limpeza pública.
10.
Gerir ecientemente os resíduos sólidos e líquidos, através de declaração
de utilidade pública dos terrenos que tenham vocação para aterro sanitário
regional.
11.
Fomentar a luta contra a deserticação e a seca de acordo com a orientação
do PAN (Plano de Ação Nacional).
12.
Defender o patrimônio biológico e ecológico da Colômbia. Isso implica:
F
ortalecer o sistema de áreas protegidas, especialmente no que se
refere à consolidação cientíca, operacional e institucional do Sistema
de Parques Nacionais Naturais;
Apoiar
a rede de Reservas da Sociedade Civil e outras organizações
semelhantes e estimular os esforços particulares dirigidos à preservação
de vegetações naturais;
E
stabelecer um programa nacional de preservação de espécies em perigo
de extinção e apoio aos atuais projetos em execução;
Melhorar os controles para apro
veitamento dos bosques naturais, e
F
ortalecer os incentivos de conservão, orestamento e reorestamento.
13. Controlar rigorosamente o comércio ilegal nacional e internacional de
exemplares de espécies de plantas e animais nativos da Colômbia e a
introdução de espécies exóticas no país, especialmente as que sejam
potencialmente invasoras.
Álvaro Uribe Vélez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Cultura e esporte
1. Tramitar a lei de Patrimônio e a Lei de Patrimônio Subaquático.
2. Prosseguir o Plano Nacional de Bibliotecas com o objetivo de criar ou
fortalecer uma biblioteca pública em cada município da Colômbia.
3.
Impulsionar o Plano Nacional de Música para dotar de instrumentos
musicais 260 bandas municipais do país.
4.
Concluir a recuperação de 38 centros históricos. Consolidar o projeto
de ampliação do Museu Nacional e de restauração do Teatro Cristóbal
Colón.
5.
Ampliar o programa de bolsas de estudo e de residências artísticas no exterior.
6. Filiar 10.000 artistas e trabalhadores da cultura ao sistema de previdência
social.
7.
Consolidar a Señal Colombia como canal educativo e cultural.
8.
Construir depósitos para preservação do patrimônio cinematográco.
9. Tramitar a raticação da Convenção para proteção e promoção da
diversidade das expressões culturais.
10.
Mais pessoas praticando esportes, mais pessoas com acesso à recreação e
educação física, mais oportunidade através do desenvolvimento da infra-
estrutura pública.
11.
Mais pessoas sicamente ativas, uma população educada sicamente e
uma Colômbia com cultura física.
12.
Melhor preparação e obtenção de melhores resultados para desportistas de
alto rendimento nos eventos do ciclo olímpico e eventos internacionais.
13.
Organização de eventos desportivos e recreativos nacionais e internacionais
com benefícios econômicos, sociais e culturais.
14.
Adequar a infra-estrutura desportiva de San Andrés e Cali, cidades que
receberão os próximos Jogos Desportivos Nacionais.
Eciência e transparência do Estado
1. Promover a participação da cidadania como mecanismo de luta contra
a corrupção, estimulando as denúncias por meio de recompensas,
Colômbia: desaos até 2010
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
90
“contratistas visíveis”, “auditores visíveis” para os privilégios e “Guic
do Subsídio”.
2. Focalizar em quatro setores chave a luta contra a corrupção: Saúde,
Aposentadorias, Privilégios e Obras Públicas.
3.
Impulsionar uma agenda legislativa para implementar as Convenções
Internacionais de Luta contra a Corrupção.
4.
Estabelecer um sistema de acompanhamento inter-estatal (Organismos
de Controle, Fiscalização e Governo) para que as entidades territoriais
respondam pelo destino dos recursos cedidos.
5.
Reformar a lei 80 e adoção de práticas de bom governo para evitar a
contratação arbitrária, eliminar a burocracia e promover a contratação de
pequenas e médias empresas.
6.
Adequar organizacionalmente as entidades prioritárias nos planos de
governo e que exigem profunda mudança institucional.
7.
Fortalecer a gestão orientada a resultados como instrumento de gerência
pública, promovendo a avaliação de alguns programas de ordem nacional
e territorial.
8.
Anar o sistema de avaliação de desempenho e de remuneração dos
funcionários públicos, rever as curvas salariais e possibilitar remuneração
variável em função do desempenho.
9.
Avançar na carreira administrativa para funcionários provisórios,
substituindo a prova básica por sua experiência, e estabelecendo um
sistema especial de carreira para os empregados blicos civis não
uniformizados do Ministério da Defesa, suas entidades descentralizadas,
as Forças Armadas e a Polícia.
10.
Adotar um sistema de transferências para plenas coberturas em educação
e saúde.
11.
Aprofundar a descentralização associativa.
12. Impulsionar a expedição de uma lei que modernize os tributos
territoriais.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
91
Um plano para o
Equador
Rafael Correa Delgado*
Q
uando se fala de Paz, Justa e Eqüidade em termos abstratos, o discurso
tende a diluir-se em retórica ou lirismo sem substância. Para que o pensamento,
a palavra e a ação sejam elos de uma conduta, de uma ética, é preciso que
exista, além de conseqüência, uma categoria humanista, porque ideologias,
políticas, práticas, doutrinas, que não podem ser mudadas, mas a guerra e ódio
podem e devem ser erradicados da face da Terra.
A m de enfrentar as tenebrosas pirotecnias dos conitos bélicos, a
história registrou posturas como as de Jesus Cristo, Ghandi, Mandela ou Luther
King, que apostaram no amor, na contemplação insubmissa, na utopia.
Nossa Pátria, que hoje se levanta, rebelde e otimista, teve ao longo de
sua história uma vocação pacista que é necessário acentuar, porque apesar
de ter sido agredida no passado, jamais invocou a guerra como solução dos
conitos. Por isso, ao apresentar publicamente hoje (24 de abril de 2007) o
Plano Equador, trazemos nossa visão do presente e futuro e não um arsenal
de rancores do passado.
Proclamamos o direito à autodeterminação dos povos, tal como reza a
Carta das Nações Unidas; colocamos no coração e no horizonte da América e do
* Presidente Constitucional da República do Equador.
Um plano para o Equador
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
92
Universo nosso direito e dever de defender nossa soberania; denimos que jamais
militarizaremos nossa política externa e defendemos nosso direito à paz.
Por tudo isso, amparados na justiça, em nossa condição pensante e
patriótica, propomos diante do mundo o Plano Equador, política de Estado
para a fronteira norte que concebe a segurança humana como resultado da paz
e do desenvolvimento; política de relações internacionais eqüitativa e solidária,
e uma política de defesa baseada na proteção da população, dos recursos de
seu patrimônio com efetivo controle do território nacional.
Três princípios orientam o Plano Equador:
os princípios universais de paz e cooperação como sistema de
convivência entre os Estados;
o repúdio à agressão, à o-intervenção em assuntos internos de outros
países e a igualdade soberana em suas relações com os Estados vizinhos;
a cooperação e co-responsabilidade entre as diferentes instituições do
Estado equatoriano junto com uma ampla participação da cidadania.
O Plano contempla o fortalecimento da economia das reges de
fronteira, o impulso a seu desenvolvimento social e a melhoria da qualidade
de vida de nossos compatriotas.
O princípio elementar de não-intervenção impede uma análise histórica,
social ou acamica de conitos regionais ou universais, ainda que se faça necesria
uma breve reexão sobre o conito vivido pelo povo colombiano, situação da
qual somos testemunhas por nossa vizinhança territorial e histórica.
Em nossa memória estão registrados episódios por meio dos quais
conhecemos e admiramos a irmandade entre dois povos de origem semelhante:
o Equador e a Colômbia.
Eugenio Espejo e Antonio Nariño compartilharam seu talento e seu fervor
republicano, e com Miranda sua condição de precursores da Independência.
Pela mão de Bolívar alcançamos a liberdade; do temperamento de Sucre
somos herdeiros; os batalhões colombianos que lutaram por nossa liberdade
gravaram seu heroísmo na alma equatoriana.
Quase esquecidos pela história ocial estão os nomes dos lutadores
colombianos que sob as ordens do general Eloy Alfaro combateram na Revolução
de 1895: coronel Carlos de Janón Gutiérrez e major José Manuel López Arbeláez,
Rafael Correa Delgado
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
93
entre outros internacionalistas. E a defesa apaixonada de Alfaro, depois de Hoguera
rbara, foi feita por José Maria Vargas Vila, também colombiano.
Invocamos essa breve resenha de irmandade porque o Equador tem
sido aliado histórico da Colômbia na conquista da Independência e no
fortalecimento de suas respectivas soberanias; e hoje, quando o conito vivido
pela Colômbia repercute mais além de suas fronteiras, é necessário, no âmbito
do Plano Equador, projeto que transcende conjunturas ou circunstâncias,
mencionar também certos efeitos que derivam precisamente desse conito:
1. O risco de que grupos ou organizações dedicadas a atividades ilegais
penetrem em território equatoriano, provoquem danos a pessoas ou bens
públicos ou privados, realizem ações contra a estabilidade interna e constituam
elemento de distorção das relações bilaterais;
2. O incremento permanente de deslocados e refugiados que vêm da
Colômbia a nossas três províncias fronteiriças, Esmeraldas, Carchi e Sucumbios
e sua evidente inuência em outras, como Imbabura, Pichincha e Orellana.
O êxodo, fruto da violência na Colômbia, incide em problemas de ordem
humanitária e suas expressões públicas, como os acessos à saúde, educação,
alimentação e proteção;
3. O incremento do uxo de pessoas e o crescimento da pobreza, que
geram formas inéditas de delinqüência e violência, e
4. Os impactos nocivos à saúde e ao meio ambiente pelos efeitos das
aspersões aéreas com glifosato nas zonas limítrofes.
Dissemos em várias ocasiões que conforme a ótica, os direitos humanos
podem ser vistos com vs de caráter político e com rias dedicatórias
ideológicas ou políticas.
Em abril do ano passado, o relatório do chefe para a América do escritório
do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR),
Philippe Lavanchy, se referia precisamente a uma espécie de discriminação
entre conitos, deslocados e refugiados, especialmente quando a incidência
nas populações originais é maior.
Um dos problemas é que os doadores de recursos nanceiros também
agem com prioridades de caráter geopolítico, porque nossa região não se
encontra no centro das preocupações da comunidade internacional. Fala-se de
um conito que dura mais de quarenta anos e que perdeu impacto devido a
Um plano para o Equador
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
94
sua longa duração, o que signica que, por força do costume, a insensibilidade
diante desse problema é maior.
Mas não se trata de notícias, de atualidade, de escândalo; trata-se de seres
humanos em agonia, a quem certos planos belicistas estão decididos a ignorar.
Esse conito, que nunca buscamos, no qual não intervimos, explode
para nós nas províncias do norte, na Amazônia e em Esmeraldas. Talvez antes
não se tenha atentado devidamente para a natureza desse transe histórico, por
causa do olhar insensível de governantes que preferiam calar-se e submeter-se
a outros desígnios antes de enxergar nossa própria gente.
Não se pode, portanto, esquecer a natureza dessa guerra que injustamente
herdamos. Não é um conito que se restrinja ao âmbito interno, protegido
por fronteiras e muralhas: é a agonia de povos que por sua vez enchem de
angústia, incerteza e violência seus vizinhos e irmãos. E na busca urgente da
paz é necessário descobrir e revelar quem se benecia da dor alheia.
Objetivos do Plano Equador
O objetivo principal do Plano é impulsionar um processo de paz,
desenvolvimento e segurança integral, centrado no ser humano, e para isso é
indispensável a participação dos cidadãos, a m de estabelecer a convivência
pacíca da população assentada na fronteira, gerando redes de comunicação
que armem a presença do Estado e o tecido social capaz de prevenir conitos,
num quadro de absoluto respeito aos direitos humanos.
O Plano Equador concilia as diferentes instituições do Estado. Esse conito
não deve centrar-se exclusivamente nos ministérios da Defesa, de Governo ou das
Relações Exteriores, e portanto os eixos de ação do Plano se dirigem à igualdade
de gênero, ao fortalecimento da participação cidadã e nalmente à consolidação
da relão bi-nacional entre o Equador e a Colômbia.
Por meio do Plano Equador vamos opor a paz à guerra, a justiça
à violência, e para isso precisamos que a partir das Juntas Paroquiais,
governos seccionais, organizações espontâneas não-governamentais, e
naturalmente as instituições do Estado, trabalhemos juntos para criar redes
de coordenação civil.
Com o Plano, teremos uma política de reativação do emprego e da
produção, e rero-me às atividades artesanais, aos pescadores, agricultores,
Rafael Correa Delgado
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
95
empresas de turismo sustentável e transportes. Dizer que “a Pátria é de todos”
não é um lema; é a simbologia de um novo Equador, compartilhado o apenas
em suas riquezas, mas também em suas decisões.
As linhas de micro-crédito, a capacitação, o apoio às unidades de pequena
e média escala que geram cadeias produtivas, os créditos a juros baixos, a
consolidação jurídica, o melhoramento da infra-estrutura social básica, o
gerenciamento sustentável dos recursos naturais, a promoção de projetos
ambientais, a administração da justiça e o controle dos ilícitos, toda essa imensa
responsabilidade não cabe a um Presidente, um gabinete, um governo, e sim
a todo um povo, que deve estar, como até hoje, em permanente vigília para
que as conquistas que vamos obtendo não sejam arrebatadas.
O Plano Equador, naturalmente, se dirige vivamente à comunidade
internacional, da qual o país se havia afastado, talvez para viver de costas para
essa comunidade.
A m de levantar a cabeça diante do futuro é preciso desanuviar o olhar,
e o Plano Equador é a expressão de nossa aposta, diante da comunidade
internacional hoje presente, por meio do Corpo Diplomático e dos convidados
especiais; uma aposta em um novo Equador, altivo, soberano e generoso.
E devemos ser generosos, porque em política internacional ser generoso
é ser humano. Quando pensamos nos refugiados colombianos, chega à nossa
lembrança o desalento dos equatorianos desterrados devido à sua pobreza, à
falta de emprego, de oportunidades, de no porvir. Assim como os cidadãos
colombianos, eles abandonaram tudo: a memória, a bandeira, o vento de seu
povo. Deixaram sua família, seus amores, seus lhos, suas canções.
Os colombianos deslocados não podem voltar para olhar, não por temor
a converter-se em estátuas de sal, e sim pela certeza de saber que se o zerem
serão para sempre um retro esquecido, uma recordação perdida. Por isso, e não
por um jogo de recompensas, é que o Equador protege também os colombianos
deslocados. Porque nos vemos em seu dolorido espelho, porque não podemos
ter uma moral dúplice que exige para os compatriotas um tratamento justo e
esquece os refugiados de outros povos. Porque cremos que não existem seres
humanos ilegais, o que existe são práticas ilegais, doentias, violentas.
Há tempos advogamos o livre trânsito de pessoas, porém encontramos
a decisão rotineira e imoral de um neoliberalismo ao qual interessa o livre
Um plano para o Equador
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
96
trânsito de capitais, os tratados de livre comércio, deixando o ser humano em
último lugar na escala social, homens e mulheres para quem, especialmente
os pobres, tudo é proibido.
O Plano Equador conta com 135 milhões de dólares para nanciar esses
projetos de segurança e ordem social na zona de fronteira, e pretendemos
em breve dobrar essa cifra com o apoio da comunidade internacional. A
coordenação do Plano Equador está a cargo do Ministério Coordenador de
Segurança Interna e Externa, além da participação direta dos ministérios das
Relações Exteriores, da Defesa, e de Governo e ainda da Vice-presidência da
República, por meio da Unidade de Desenvolvimento Norte UDENOR. Essa
Unidade participou permanentemente da elaboração do Plano. Esse trabalho
interdisciplinar é, além disso, consagrado à paz, não como um mito ou uma
utopia, e sim como a maior necessidade de nossos povos. Por isso o governo
equatoriano, de olhos em seus próceres e em seu legado, ativou com decisão
a desejada União de Nações Sul-Americanas, com origem e destino comuns.
Recordemos as imagens da guerra, as das crianças órfãos, as fotograas
da miséria humana. O Plano Equador se coloca contra os abutres da guerra;
contra os tracantes de armas; contra os que em meio a suas malditas guerras
falam de liberdade; contra os mercenários e aos verdugos.
O Plano Equador é a favor da paz; defende o direito à igualdade, à
fraternidade. A favor das mulheres e seu direito à própria vida e à de seus lhos;
a favor da educação, do salário, do trabalho. A favor dos campos cultivados
pelos agricultores da fronteira; a favor dos artesãos e seus tecidos de estrelas.
O Plano Equador quer bradar que a paz eclodiu em El Chical, Maldonado,
Tobar Donoso, El Carmelo, Tuño; o Plano Equador vai fundar uma nova
esperança em Cascales, Cuabueno, Shushundi, Lago Agrio, Gonzalo Pizarro,
Putumayo e Sucumbios; o Plano Equador quer ouvir marimbas e cununos em
Esmeraldas, em vez de balas e granadas.
Ante a guerra o Equador opõe esse lume de esperança. Ante os restos
mortais e ossos, uma oferenda pela paz.
O governo equatoriano se orientará pelas trilhas da paz, da solidariedade
e da justiça.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
97
Identidade cultural e
creolização
*
na Guiana
Prem Misir**
O
mundo tornou-se etnicamente mais diversicado, e o nacionalismo
étnico está na moda nos países que possuem estrutura multiétnica tradicional.
Inquestionavelmente, ainda que sirva somente para livrar a sociedade do
domínio de uma etnia, a unidade nacional tem de ser um objetivo estratégico,
obrigatório e valioso para todas as sociedades multiétnicas em desenvolvimento;
uma unidade nacional que extrai contribuições das culturas minoritárias.
A idéia de sociedades que miniaturizam culturas minoritárias,
subordinando-as a uma única entidade cultural dominante, não é na verdade
a melhor maneira de procurar a unidade nacional. Uma unidade nacional e
regional que seja produto de uma identidade dominante, para a qual as culturas
minoritárias não contribuam, é uma falsa unidade; e a absorção de culturas
* A palavra creole, usada na região insular e continental do Caribe e aparentada com o termo criollo usado na
América espanhola, signica especialmente uma pessoa nascida na região porém de ascendência européia. Tem,
no entanto, diversas outras conotações na região conforme a ancestralidade ou o contexto cultural. Na língua
portuguesa castiça, o termo crioulo indica também origem européia dos nascidos aqui, mas no Brasil, quando
aplicado a negros e mestiços, possui carga pejorativa. No artigo, a palavra creole e seus derivados são usados para
indicar uma categoria cultural própria do Caribe, oriunda da Europa porém modicada na região ao longo do
tempo. O contexto deixa claro para o leitor esse signicado. A m de conservar o sentido cultural de creole tal
como empregado no artigo, o tradutor preferiu manter “creole” e usar os derivados “creolização”, “creolizar”,
etc., embora tais palavras não pertençam ao léxico em português. (N. do T.)
** Reitor da Universidade da Guiana.
ug_consec@telsnetgy.net
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
98
Identidade cultural e creolização na Guiana
minoritárias em uma cultura dominante produziria uma perda cultural para
cada grupo minoritário.
No plano geral da escravidão no Caribe, os fazendeiros brancos
separavam os escravos africanos de grupos tribais e lingüísticos semelhantes,
segundo um esquema que objetivava garantir a morte das tradições culturais
africanas. Por meio de uma aculturação total, os africanos perderam a maior
parte de sua herança africana e assumiram uma variante creolizada da cultura
européia. Esse processo de absorção é na verdade assimilação cultural em ação,
na qual um grupo minoritário, seja à força ou voluntariamente, abdica de sua
tradição cultural e se deixa envolver por uma cultura diferente e invariavelmente
dominante. A assimilação, principalmente quando forçada, cria e fortalece a
dominação étnica.
O panorama do Caribe é de diversidade étnica, que vai desde as variantes
européias – hispânica, anglo-saxônica, francesa, holandesa e portuguesa, aos
africanos, indianos, ameríndios, chineses, javaneses, sírios, libaneses, judeus,
mestiços e mulatos. A cultura creole de hoje, força cultural dominante, é
geralmente apresentada como fonte da identidade caribenha; a diversidade
étnica é vista como de peso mínimo da busca de uma identidade do Caribe.
É dicil compreender a identidade caribenha e desenvolver uma imaginão
social passada, presente ou futura sem usar a raça, a etnia, a classe social e o
gênero como categorias analíticas e descritivas principais. Essas categorias que
retratam o mundo social do indivíduo fornecem um sentido microcósmico das
instituições da sociedade. Haverá uma raça, etnia, classe social ou gênero que
domine essas instituições? Haverá um tipo especíco de identidade cultural
que cause impacto sobre o funcionamento dessas instituições? As percepções
de alguns grupos indicariam uma exclusão da identidade cultural na formação
dessas instituições? O livro (“Cultural Identity and Creolization in National
Unity: The Multiethnic Caribbean,2006) analisado a seguir, é uma tentativa de
encontrar resposta a essas perguntas por meio do exame do domínio cultural
da creolização, uma variante creolizada da cultura européia.
O professor Norman Girvan nota que A realidade é a diversidade, e
sem dúvida isso deve ser bem recebido, e até mesmo comemorado. O Caribe
seria um lugar muito sem graça se fôssemos todos iguais. Pela mesma razão
creio que é um erro criar uma identidade caribenha especíca por meio de
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
99
Prem Misir
algo chamado ‘integração cultural’. Isso na verdade poderia até mesmo ser
perigoso, porque esse elevado ideal suscita a questão de saber em que se daria
essa integração, em que termos e quem seria o árbitro daquilo que constitui a
cultura caribenha integral. Não seria muito mais sensato falar em entendimento,
interação e intercâmbio cultural; de respeito mútuo e tolerância para com as
diferenças culturais, e da prática de transigência e consenso cultural?”
1
Girvan explica que uma corrente contemporânea considera a creolização
como fonte da identidade caribenha. Segundo Girvan, a creolização é entendida
como envolvendo a fusão de outras identidades étnicas na cultura creole. Nisso
reside o problema em relação à identidade creole do Caribe, uma identidade
baseada na integração cultural e na perda cultural. Com efeito, a perda cultural
cria desvantagens para aqueles que o controlam as alavancas do poder
político e econômico; quem tem pouco poder de manobra tem acesso limitado
às recompensas da sociedade.
É claro que a estrutura dominante de creolização coloca em perigo a unidade
nacional, a boa governança e a estabilidade política. No Caribe, os africanos
habitam a creolização de raiz eurocêntrica e os indianos a cultura indiana; os
indianos não estão localizados no mesmo continuum cultural dos africanos e dos
brancos. O domínio da creolização, herança colonial, ignora o mosaico multiétnico
do Caribe; e creolização não signica o mesmo em cada sociedade caribenha.
Existe, no entanto, a necessidade de reconhecer a presença de outras culturas
além da creolização, de criar uma estrutura para a apreciação cultural mútua e a
institucionalização de todas as culturas em busca da unidade nacional.
Segundo Paulo Freire,
2
os grupos étnicos minoritários não vivem “fora”
da sociedade. Esses grupos sempre estiveram “dentro”, isto é, dentro de
uma estrutura dominante que pode haver feito deles “seres para os outros”.
Dado o grande mosaico das culturas caribenhas, o caminho para diante não
é a integração de culturas minoritárias em uma estrutura de dominação, e
sim transformar essa estrutura, para que as minorias se tornem “seres para
si mesmos”. A alternativa é a integração cultural, perda cultural e dominação
étnica, adverrios da unidade nacional; na verdade um “movimento de
aproximação” que hoje em dia não existe no Caribe. A dominação étnica
ignora as identidades das minorias e as manipula a m de camuar uma
1
Girvan, N. Cooperation in the Greater Caribbean. Jamaica: Ian Randle Publication, 2006.
2
Freire, Paulo. Pedagogy of the Oppressed. NY: The Continuum Publishing Corporation, 1977.
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100
Identidade cultural e creolização na Guiana
unidade fundamental de interesses dos indianos e dos africanos no Caribe.
A compreensão dessa unidade fundamental de interesses facilitará as políticas,
programas e projetos multiculturais, em busca da unidade nacional.
Por meio de uma série de interpretações, este livro argumenta que a
dominação étnica aplicada por meio da creolização é antitética e contrária à
construção da nação, ao produzir-se e reproduzir-se por meio da competição
em busca de espaço nacional, integração cultural, hierarquização, fragmentação
da classe operária, politização da categorização etno-cultural, racialização
da consciência, imperialismo cultural, uso da raça como trunfo político e
dominação étnica.
Figura 1
Entraves à unidade nacional e regional
O diagrama de fluxo da figura 1 demonstra a interconexão das
interpretações. O diagrama narra a história do Caribe multiétnico onde os
entraves teoricamente produzem e reproduzem a creolização a m de inibir o
crescimento da unidade nacional e regional.
A creolização como prática social é produzida e reproduzida; e a teoria da
estruturação
3
explica esse processo. A estruturação determina as condições que
3
Giddens, A. New Rules of Sociological Method. Londres: Hutchison & Co. (Publishers) Ltd., 1976, 1977.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
101
Prem Misir
causam impacto na continuidade e na dissolução de estruturas. A estruturação
tem três componentes: estrutura, sistema e dualidade de estrutura, como
proposto por Giddens.
4
Estrutura se refere a regras e recursos: sistema denota
relações reproduzidas entre pessoas ou coletividades, organizadas com práticas
sociais recorrentes; e dualidade de estrutura signica que as pessoas e/ou as
coletividades criam as estruturas e simultaneamente essas estruturas são o
meio e o resultado de tal criação.
Quadro 1
Dualidade de estrutura na interação social
Signicados Poder Normas
Interação Comunicação Poder Sanção
(Modalidade) Esquema interpretativo Facilidade Norma
Estrutura Signicação Dominação Legitimação
Fonte: Giddens, A. New Rules of Sociological Method. Londres: Hutchinson & Co (Editores) Ltd., 1976, 1977.
No quadro 1, a linha superior classica a interação; a linha inferior
classica a estrutura; e as “modalidades” representam o terreno médio entre
estrutura e interação.
O quadro 1 mostra de que maneira a creolização é produzida e reproduzida.
Na segunda coluna, a comunicação do signicado envolve o uso de símbolos
por meio dos quais as pessoas compreendem o que cada um faz e diz; o uso
desses símbolos depende da cultura creole e dela se alimenta; os símbolos são
os meios pelos quais a cultura creole é reconstituída. Igualmente, o poder da
creolização para dominar envolve algum controle sobre os recursos; a capacidade
de dominar depende das instituições plasmadas pela creolização e dela se
alimenta; mas ao nutrir-se dessas instituições, o controle sobre os recursos
recria essas instituições; o controle sobre os recursos é o meio pelo qual as
instituições creole se reproduzem. Novamente, a constituição ética da creolização
contém regras que emanam de alguma ordem moral; mas ao nutrir-se dessa
ordem moral as regras recriam essa ordem; essas regras são os meios pelos
quais a ordem moral creole é reproduzida. Claramente, por meio da dualidade
4
Ibid.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
102
Identidade cultural e creolização na Guiana
de estrutura, as pessoas aplicam mbolos creole, usam instituições creole e
moralidade creole para produzir e reproduzir a creolização. Num sentido macro,
o continuum europeu-africano é o que produz e reproduz a creolização; mas nem
todos os povos do Caribe consentem a creolização.
No capítulo 1, Brinsley Samaroo mostra que a cultura indiana faz parte
da identidade caribenha tanto quanto a creolização. Samaroo demonstra uma
constante conexão com a Diáspora indiana, a realidade da persistência cultural
indiana no Caribe. Ele nota a consistente prática dos indianos do Caribe
em comunicar-se com a Índia e o Paquistão desde o nal do século XIX
até os tempos atuais. As persistentes ligações da Diáspora transformaram
esses contatos iniciais em laços políticos entre indianos da Diáspora e a terra
ancestral. A persistente conexão da Diáspora indiana com a Índia surgiu
também, com fortes raízes, através do indomável espírito e do trabalho do
Congresso nacional indiano, ao demonstrar considerável preocupação e nculo
com a inquietação da Diáspora indiana, ao advogar em favor dos direitos a
propriedade de terras de indianos na África do Sul e no Quênia, do direito
de voto dos indianos do Caribe e de maior participação no serviço público
durante a contratação. Samaroo assinala também os possíveis benefícios que a
Índia poderia obter com a intensicação dos vínculos com a Diáspora indiana
no período pós-independência; a numerosa comunidade indiana no exterior
pode representar tanto uma fonte de investimentos quanto um mercado
formado para produtos indianos; os indianos no exterior, boa parte dos quais
ocupa posições inuentes, podem ser embaixadores não-ociais para a Índia,
representando as preocupações indianas nos foros mundiais. A Índia está hoje
no Caribe, com ligações amplas com outras partes da Diáspora indiana.
No capítulo 2, Percy Hintzen reforça o argumento de que o status
minoritário da cultura indiana e de outras que a creolização atribua, retarda
a unidade caribenha. Hintzen argumenta que a identidade caribenha es
localizada em um continuum, europeu “puro” numa extremidade e africano
“puro” na outra, que é Europa em um pólo e África no outro. No entanto, a
“unidade” caribenha é ainda fugidia, apesar da universalidade da identidade
creole; essa “unidade” caribenha é frágil em grande parte devido a diferenças
históricas na formação de diferentes construções da cultura creole em diferentes
territórios; novas comunidades oriundas de diásporas, como a dos indianos,
estão fora do continuum europeu-africano; e o número e importância dos creoles
brancos varia através do Caribe. As novas comunidades oriundas de diásporas
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
103
Prem Misir
cujas origens estão fora da África e da Europa estão fora da sociedade creole;
especicamente, cria-se uma dialética quando as principais instituições creole
se superimpõem ao mundo social indiano; uma manifestação dialética na qual
os indianos observam o império da lei creole e ao mesmo tempo se esforçam
em prol da pureza cultural. Os indianos caribenhos competem agressivamente
pela inclusão no espaço nacionalista por meio da resistência à creolização, numa
tentativa de legitimar sua incluo por meio de um contra-discurso redentor que
se oe ao nacionalismo afro-creole. Hintzen nota que as representões de pureza
cultural, especialmente no caso de indianos, têm obtido aceitação em meio à
presença de elementos bridos. Mas as conseqüências desse triunfo produziram
dilemas debilitantes: noções de pureza branca continuam a nutrir a depenncia
globalizada; a creolização continua a ocultar a prevalência de capitalismo racial
dostico. A resposta a esses dilemas é substituir a Créolité.
No capítulo 3, Verene Shepherd discorre sobre as possibilidades de
integração da cultura indiana na cultura creole, mediante a “Coolitude
5
.
Shepherd apresenta a “Coolitude” como uma teoria de identidade étnica, e
sugere ver se a “Coolitude” é capaz de fazer com que a creolização seja inclusiva,
incorporando outras identidades étnicas, inclusive a indiana. O ensaio de
Shepherd expõe diculdades existentes para inserir a cultura indiana em uma
cultura que é substancialmente euro-africana. Ela acredita que a integração
cultural tenha começado, mas não está ainda terminada, mesmo em países
como a Jamaica, de população indiana pouco numerosa. Shepherd conclui
que não existe fusão idealizada entre as culturas indiana, africana e européia.
A “Coolitude” busca integração cultural, que não funciona para desenvolver
uma identidade caribenha a partir de um todo diferenciado; todas as culturas
necessitam de um espaço próprio.
Patricia Mohammed, no capítulo 4, descarta a integração cultural. Ela
mostra que os indianos de Trinidad vêem a creolização como indicação de perda
cultural. No período pré-independência, os indianos a consideravam semelhante
à cultura Afro. Mohammed se refere a esse processo como de “aculturação”.
Trata-se de um processo pelo qual um grupo étnico adota os traços e práticas
culturais de outro. No entanto, na era pós-independência, o desconforto
5
Neologismo derivado de “coolie”, designação genérica e pejorativa dada aos trabalhadores manuais asiáticos,
sobretudo chineses. No contexto do artigo, “coolitude” refere-se ao processo de interação cultural entre indianos
e creoles no Caribe. “Coolitude” guarda certa analogia com “negritude”. (N. do T.)
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
104
Identidade cultural e creolização na Guiana
indiano com a creolização é ainda um fator no psiquismo dos trinitários, uma
rejeição da integração cultural, uma rejeição da perda cultural.
No capítulo 5, Walter Rodney reconhece o conceito de diferenciação
cultural na Guiana (antiga Guiana Britânica). Rodney mostra que no século
XIX a raça na Guiana Britânica sempre foi fator de diferenciação entre creoles e
imigrantes. Indianos e africanos trouxeram de suas respectivas terras de origem
imensas heranças culturais. A cultura créole acabou se transformando em barreira
para a sustentação da cultura indiana. E Rodney nota que a cultura indiana e
africana também mantiveram seu ambiente de trabalho onde a cultura creole
era a força dominante. No entanto, fazendeiros do século XIX manipularam
o ambiente de trabalho a m de controlar as massas, o que era uma estratégia
para fragmentar a unidade da classe operária e diluir as identidades culturais
indiana e africana. Apesar da estratégia de fragmentação e diluição por parte
dos fazendeiros, a argumentação em favor da divio racial é exagerada.
As heranças culturais indiana e africana são ainda uma pré-condição para a
unidade nacional; uma posição clara contra a integração cultural, que é uma
manifestação de perda cultural.
Cheddi Jagan, no capítulo 6, assinala o valor utilitário da diferenciação
cultural na busca da unidade nacional. Jagan nota que a raça nunca foi problema
grave na Guiana. Para ele, o problema era de classe social. A divisão inicial
do trabalho produziu e reproduziu antagonismo cultural e perda cultural a
m de dividir e explorar a classe trabalhadora. Com efeito, sob o sistema de
indenture
6
os indianos eram vistos como desterrados, culturalmente diferentes
e economicamente subservientes. O período 1928-53 representou um golpe
contra a unidade guianense devido à técnica britânica de “dividir para reinar”
com os alinhamentos e divisões raciais que a acompanham. No início da
década de 1920, não havia funcionário público indiano mais graduado do que
amanuense de Terceira Classe. Em 1931, os indianos detinham somente 8% dos
cargos no serviço público, mas representavam 42% da população. E na década
de 1960, a derrota de Burnham em eleições sucessivas produziu uma ênfase
maior na consciência africana de raça e uma frente africana unicada, sendo
os indianos o inimigo comum. Claramente, essas descrições dos fatos eram
6
Contratos de trabalho, instrumento pelo qual os britânicos zeram vir da Índia, no século XIX, dezenas de
milhares de trabalhadores para as lavouras em suas colônias no Caribe. (N. do T.)
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
105
Prem Misir
antagônicas em relação à promoção da identidade cultural, um antagonismo que
não era primordial para indianos e africanos mas era construída e manipulada
por políticos. Também aqui a institucionalização política da cultura de cada
grupo étnico pode dissipar a linguagem emotiva de raça e de conito racial, e
contribuir para a unidade nacional. Jagan realmente reforça a argumentação
em favor da distribuição de espaço político a todas as culturas no caminho
para a unidade nacional.
Vidia Naipaul, no capítulo 7, no imperialismo cultural uma grave
barreira contra a unidade nacional. Naipaul nota que um administrador colonial
considera que o povo local não possui qualidades distintivas, e que todos
podem ser compartimentalizados em uma massa amorenada sem características
culturais diferenciadas. Naipaul rejeita essa asserção colonialista. A concepção
colonialista euroia de unidade nacional era a compartimentalização de
todo o povo local em um único grupo cultural, e sua re-socialização para
que mostrasse deferência à cultura anglófona e adotasse a conformidade
norte-americana e inglesa. Esse pensamento e ação colonialistas signicavam
imperialismo cultural, sendo a creolização uma manifestação que sustenta o
continuum euro-africano.
No capítulo 8, John La Guerre explica a conexão e congurão cambiantes
entre cultura e política na Jamaica, Trinidad & Tobago e Guiana. La Guerre nota
a agudeza da consciência étnica entre os grupos nesse países. Sua tese é que
existe um nexo com instintos primordiais, mas que o recurso ao apelo étnico
e às armas é parte integrante das lutas políticas nessas nações-Estado. As lutas
políticas tratam de questões de identidade, porém somente no contexto de busca
de reconhecimento e recompensas políticas. La Guerra mostra de que forma os
partidos políticos representam interesses da comunidade, criando a percepção
de que o partido que ocupa a sede do poder excluirá os que não participam de
seus interesses étnicos. Mas os críticos indianos argumentam que o ex-primeiro-
ministro de Trinidad & Tobago, Basdeo Panday, que tinha a maioria do apoio
indiano, aplicou uma política de apaziguamento “para não parecer um Caroni”.
O primeiro-ministro Patrick Manning, no entanto, rejeita qualquer política de
apaziguamento em relação aos indianos. La Guerra conclui que a agudização da
etnicidade é uma manifestação do estado da política nesses países do caribe.
Prem Misir, no capítulo 9, procura deslindar os obstáculos no caminho
da busca da unidade nacional ao tratar de questões importantes: A Guiana é
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
106
Identidade cultural e creolização na Guiana
uma sociedade profundamente dividida? O conito étnico é primordial? A
classe social é utilizada para realçar o entendimento do conito étnico ?
uma prevalência de insegurança e desconança étnicas ? Os políticos utilizam
o trunfo racial-étnico? A história da Guiana mostra uma história de alianças
étnicas? Misir nota que uma subdivisão de políticos e mídia privada, somadas
à literatura de ódio racial, potencializam o conito racial-étnico e a polarização
étnica na Guiana. E esse conito étnico é lançado dialeticamente contra uma
unidade de interesses fundamental subjacente entre as classes trabalhadoras
indiana e africana.
No capítulo 10, Anton Allahar assinala que um aceso debate sobre a
denição do Caribe focaliza questões relativas à identidade racial, étnica, cultural
e nacional, e ao sentimento de pertencer. A marca de uma racionalização da
consciência por parte dos colonizadores persiste hoje em dia, quando grupos
diferentes criam e recriam espaço cultural para si. A experiência comum do
açúcar, da escravidão, da indenture”, da exploração e do capitalismo dependente
não produziram uma identidade caribenha comum. Duas perspectivas de
estudo do Caribe incluem a noção plural do Caribe e da creolização; ambas são
limitadas; ambas tendem a homogeneizar o Caribe como se a diferenciação
cultural fosse praticamente inexistente; o Caribe é apresentado como se
possuísse um único processo, o da creolização. O nível e diferenciação da
creolização varia de uma sociedade para outra. Na era pós-colonial, as heranças
de raça e estraticação persistiram, impactando a identidade caribenha; com
efeito, a política racial de Afrocentrismo e Hindutva
7
aumentam ainda mais o
problema da identidade nacional e regional no Caribe.
Bhikhu Parekh, no capítulo 11, argumenta em favor do pluralismo cultural.
Parekh defende o multiculturalismo, a conuência de um mosaico cultural,
uma rejeição da dominação étnica. Nota que muitas sociedades modernas são
multiculturais e mostra que sua diversidade cultural emana de diversas fontes:
globalizão, a desintegração de consensos morais tradicionais, a ênfase liberal
em escolhas individuais e a imigração. As sociedades multiculturais têm de buscar
maneiras de resolver suas exigências aparentemente conitantes, pois o podem
desprezar a diversidade e nem descartar a unidade. A integração é um processo
recíproco. É difícil para os imigrantes integrar-se em uma nova sociedade se as
7
Palavra cunhada em 1923 a m de designar o modo de vida, estado de espírito e outras características dos
indivíduos que se classicam como hindus. (N. do T.).
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
107
Prem Misir
8
Sen Gecti. India: A National Culture? New Delhi, India: Sage Publications, 2003.
outras pessoas os rejeitam. Ambos os grupos os imigrantes e a sociedade que os
recebe têm de estender-se as os e aceitar suas obrigações tuas. Os novos
imigrantes devem demonstrar que eso comprometidos com a nova sociedade e
tornar-se culturalmente competentes, que é uma pré-condição para relacionar-se
com as principais instituições da sociedade. Por sua vez, a sociedade que os recebe
deve aceitar os imigrantes como membros iguais e legítimos e desenvolver um
programa de integração, que envolve a eliminação da discriminação e a criação
de oportunidades iguais, espaços inter-étnicos, diálogo intercultural e educação
multicultural. A justiça e interesses comuns são necessários, mas o sucientes,
para manter coesa a sociedade; o desenvolvimento de vínculos emocionais
também ajudaria o processo de identidade nacional.
No capítulo 12, Prem Misir argumenta contra a dominação étnica. Misir
defende a institucionalização de múltiplas identidades culturais na busca da
unidade nacional, no processo de aceitação e inclusão de todas as culturas; e
rejeita a creolização como forma de dominação cultural. Assinala que a diluição
e a hegemonia culturais são males gêmeos para incitar tensões étnicas em
uma sociedade multiétnica. Mas as pessoas resistirão a qualquer tentativa de
enfraquecimento de sua cultura. Misir mostra que um grupo étnico dominante
em geral conspira para reduzir a importância de outras culturas, a m de manter
seu domínio. Como reação a esse domínio, alguns enclaves étnicos defendem
e preservam suas culturas por meio de comportamentos do tipo “separação”.
Nessas condições, a dominação étnica retarda a unidade nacional.
A creolização caribenha ou o nacionalismo creole tem sido formulado e
reformulado com objetivos políticos desde os colonizadores até os grupos de
poder político dos dias de hoje. A creolização produziu uma identidade cultural
ao mesmo tempo penetrante e persuasiva. Nesse sentido, a onipresença e
inuência da creolização em cada território caribenho exprime alguma forma
de nacionalismo cultural militante, excluindo e subordinando as culturas
minoritárias, de minorias cuja vestimenta, língua e aparência geral eram
estranhas aos guardiães e habitantes da cultura creole. Assim se criou o “nós”
e o “eles”, com a xenofobia como construtora dessa diferenciação.
Edward Said, sob a referência de Sen,
8
nota que “com o tempo, a cultura
passa a ser associada, muitas vezes de maneira agressiva, com a nação ou o
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
108
Identidade cultural e creolização na Guiana
Estado; isso diferencia o ‘nós’ do ‘eles’, quase sempre com algum grau de
xenofobia. A cultura, nesse sentido, é uma fonte de identidade, e na verdade
uma fonte bastante combativa, como vemos em recentes “voltas” à cultura e
à tradição. Essas ‘voltas’ acompanham códigos rigorosos de comportamento
moral e intelectual que são opostos à permissibilidade e associados com
losoas relativamente liberais como o multiculturalismo e o hibridismo”.
O nacionalismo creole moderno fabrica e sustenta o “nós” e o “eles” de
Said, apresentando uma cultura insular que se apresenta como cultura nacional
e regional; não uma cultura nacional como deveria ser praticada, e sim como
é percebida ou imaginada; livros, panetos, jornais, lmes, etc., articulam a
imaginação creole sobre o Caribe, a constante identidade cultural caribenha
dominante. No entanto, os que estão excluídos do continuum da creolização em
geral apresentam imaginações diferentes para sustentar sua identidade “pura”;
criação de uma dialética cultural entre identidades creole e as das minorias.
Appadurai
9
considera desta forma essas noções cambiantes: “Nessa visão, o
Estado moderno surge menos de fatos naturais como a linguagem, sangue,
solo e raça – mas é um produto quintessencialmente cultural, um produto da
imaginação cultural.As práticas e imaginação creole, que surgem por toda parte,
possivelmente no íntimo preconceituosas, transformara, a creolização em uma
cultura monolítica; creolização, reprodutora de normas culturais dominantes
que asseguram agendas políticas e controlam a distribuição das recompensas
da sociedade.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
9
Appadurai, Arjun. Patriotism and its Futures. Public Culture, 5 no. 3:414, 1993.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
109
Paraguai:
Estado patrimonial
e clientelismo
Milda Rivarola*
U
m recurso usado pelos latino-americanos para denir seus próprios
países é apresentá-lo como únicos. Diferentes por algum motivo particular,
qualquer que seja: sua pátria não pode ser comparada com outras nações. Nós,
paraguaios, contamos com boas desculpas para adotar essa visão: no século
XIX sobrevivemos a uma cruenta guerra contra três nações vizinhas, sofremos
a ditadura militar mais longa do século XX e para culminar, no início de um
milênio denido por mudanças tão aceleradas, somos o único país que conta
com seis décadas consecutivas de governo por um mesmo partido, numa
transição democrática sem alternância.
Isso para não mencionar outros curiosos fenômenos como da recente
candidatura de um ex-general golpista e hoje a de um ex-bispo para a
presidência da República. Esse somatório de características únicas, unido ao
uso generalizado da língua guarani, ratica – diante da diplomacia e dos mass
media internacionais, a imagem de um pays exotique e imprevisível. Um cônsul
* Membro da Academia Paraguaia de História.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
110
francês repetia, na correspondência que enviava de Assunção: Este é o país
onde o incrível de ontem é a certeza de amanhã”.
Não tenho a intenção de prosseguir com esses lugares comuns. Prero
trabalhar com os senhores um elemento próprio do sistema político paraguaio
que está ressurgindo em outras nações latino-americanas, devido às crescentes
desigualdades que as dividem e às tradições políticas que lhes são próprias.
Pretendo apresentar-lhes não o país excepcional, e sim o que compartilha
processos com a região. Como o clientelismo político paraguaio adquiriu
formas e extensões paradigmáticas durante a transição, seu estudo pode ilustrar
um fenômeno que ameaça a ordem democrática latino-americana.
Uma pesquisa rápida na Internet permite encontrar estudos sobre o
clientelismo contemponeo no México, em países da América Central (Nicagua,
Guatemala, Costa Rica), em muitas nações andinas (Venezuela, Colômbia,
Equador, Chile) e nos do Mercosul (Argentina, Brasil, Uruguai). Nações muito
insuspeitadas em uma lista semelhante, como Espanha e Estados Unidos,
também observam o ressurgimento dessas relões em seus afazeres políticos.
Weber no Paraguai
Nem todo aparelho de Estado é capaz de entabular relações de patrão-
clientela com os cidadãos. De fato, nos Estados de bem-estar, o exercício
ativo da cidadania torna impossível distribuir, a título de favores, os direitos
reconhecidos e garantidos por esses sistemas, e muito menos exigir, em
compensação, lealdades partidárias ou eleitorais. Subsiste, porém, um Estado
ao qual essa tentação é permitida.
Max Weber foi o fundador do conceito de Estado patrimonialista:
“Falamos de uma organização estatal-patrimonial quando o soberano organiza
o poder político de maneira análoga a seu poder doméstico (...) O caráter
patrimonial carece antes de tudo da distinção burocrática entre a esfera ‘privada
e a ‘ocial’, pois a própria administração pública é considerada uma questão
puramente pessoal do soberano (...) e portanto a forma de exercer o poder
depende inteiramente de seu livre arbítrio, sempre que a ecaz santidade da
tradição não lhe imponha limites, como sói acontecer...”
1
1
Max Weber, Economía y Sociedad, México: Fondo de Cultura Económica, 1994, p. 759 e 774.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
111
Historiadores especializados no Paraguai do século XIX
2
denem
como patrimonial o Estado de Francia e dos López, no qual a estrutura
colonial persistiu com mínimas inovações republicanas, e onde a legalidade
do império espanhol foi substituída pelo arbítrio “revolucionário” de um
poder pessoal, sem Constituição, instâncias parlamentares ou magistratura.
A posse de terras e indústrias do país, o quase monopólio de seu comércio
e o poder de extrair trabalho servil da população davam caráter literal a esta
denição de Estado patrão, arbitrário, dono e senhor de vidas e fazendas.
A ordem liberal, vigente desde o pós-guerra da Tríplice Aliança (1870)
até a do Chaco (1936), opôs sérias limitações ao patrimonialismo do Estado
paraguaio, com um quadro constitucional, formação de uma magistratura
independente, desenvolvimento parlamentar e reconhecimento de certa
autonomia da sociedade diante do Estado. Porém, desde a década de 1940,
com o estatismo e personalismo dos regimes nacionalistas (militares e/ou
colorados) este ressurgiu sob novas formas, chegando a sua expressão máxima
durante o terço de século do regime de Stroessner.
“Sob o controle de Stroessner, o Estado operava de maneira patrimonialista,
desfazendo a fronteira entre propriedade pública e privada, apresentando
padrões de autoridade discricionária, servindo como caminho principal para
a riqueza e como fonte vital de clientelismo para o Partido Colorado, que
se comportava domo “dono” do Estado. Nessa época, tanto quanto hoje, as
nomeações e promoções na função pública se baseavam essencialmente na
lealdade política e nas relações pessoais, mais do que no mérito.
3
As chances de clientelismo crescem nos lugares onde os governantes
têm controle efetivo dos recursos desejados e não estão constrangidos por
normas burocráticas para fazer deles uso personalista, e quando desejam fra-
cionar (desarticular socialmente) os eleitores.
4
No Paraguai, como no resto
da América Latina, o Estado proprietário de empresas, o alto nível de cor-
rupção e a pouca institucionalidade facilitaram a expansão do clientelismo,
com a distribuição de empregos públicos em uma burocracia estatal de baixa
capacitação e baixos salários.
2
A obra de Thomas Whigham, Jerry Cooney, Barbara Potthast-Jutkeit, etc.
3
Banco Mundial, Paraguay, Temas de Desarrollo Social para el alivio de la pobreza, Análisis Social del País, Gacitúa
Marió, E., Silva-Leander, A. y Carter, M., janeiro de 2004. A ênfase é nossa.
4
Clapham, Christopher (org.): Private Patronage and Public Power: Clientelism in the Modern State. St. Martin’s Press,
Nova York, 1982.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
112
Vários processos ocorridos durante a transição democrática iniciada
com a derrubada de Stroessner em 1989 – permitiram a sobrevivência desse
sistema. Em primeiro lugar, a reforma do Estado foi mínima e as privatizações
afetaram muito poucas empresas públicas: companhias aéreas, uma empresa
de álcool e uma siderúrgica. Nos últimos dezessete anos o emprego público
cresceu constantemente. Durante uma prolongada crise econômica (entre 1995
e 2002 o PIB caiu a uma média de 2,3% anuais) e apesar do décit scal, o
Estado paraguaio continuou a apresentar caráter patrimonial e patronal.
Como arma um relatório preparado para o Banco Mundial:
“a transição paraguaia enfrentava dois desaos básicos. Por um lado (...)
democratizar o regime criando condições para assegurar uma adequada
contenda política e participação da cidadania na eleição das principais
autoridades governamentais. Por outro, devido a seu forte legado patrimonialista e à
apropriação do Estado pelo partido, era necessário modernizar o Estado e promulgar
reformas signicativas no setor público. Em termos gerais, o Paraguai teve
modesto êxito na democratização de seu regime, mas as tentativas de inovação
no plano estatal foram relativamente inecazes.
5
Evolução do emprego público, 1989/2005
Fonte: ODH – PNUD, Paraguai, com base em dados do Ministério da Fazenda, 2006.
5
Banco Mundial, Paraguai, op. cit.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
113
Por outro lado, o Partido Colorado o mesmo que reestruturou o
patrimonialismo e estabeleceu laços de clientela com a população desde
meados do século XX continuou governando durante toda a transição, sem
pressões internas que o impelissem a realizar transformações fundamentais
em sua práxis política. Paralelamente, a crescente pobreza (de 1,5 milhão de
pobres em 1998 passou-se a 2,2 milhões em 2005, ou seja 38,2% da população
total) favoreceu o crescimento de uma massa clientelar, disposta a identicar
o processo eleitoral com oportunidades de obter uma parte dos rendimentos
econômicos e serviços básicos de que precisava com urgência.
Taxas de crescimento do PIB per capita (em %)
1980/1990 1990/2000 2000/2005
Paraguai -1.7 0.0 -0.5
Região (Brasil, Argentina, Bolívia,
Chile, Paraguai, Uruguai)
-1.2 1.1 0.6
Fontes: Fernández y Monge. Economic Growth in Paraguay. BID, Economic and Social Study Series, maio de 2004,
e Anuários Estatísticos da CEPAL para 2000/5.
Alguns antropólogos explicam esta relação dos paraguaios homens
e mulheres com o poder potico. Bartomeu Mel assinala como um
dos núcleos da identidade do Paraguai o ore mboriahú (somos pobres): a
comunidade paraguaia seria uma comunidade que se reconhece a si mesma
na exigência de uma distribuição eqüitativa de recursos. Porém, o que em vez
disso ocorreu foi uma distribuição particularista e discriminatória (clientelista e
partidária) dos recursos, extraindo-os em parte do pprio aparelho do Estado.
“que foi e o que é, senão uma prática de caça e coleta o que se aplicou
sistematicamente no Paraguai desde há séculos e com maior intensidade nos
últimos anos? (...) Todo o Paraguai se converteu em um terreno de caça e coleta,
sendo o Estado a maior reserva e o mais fácil terreno de caça, para onde o
cidadão é obrigado a carrear seus recursos, e não exatamente os que sobram,
e sim os mais necessários.
6
Dessa forma, os governos (por extensão o partido do governo) não se
legitimam por sua origem democrática ou por sua eciência administrativa,
6
Meliá, B. El Paraguay Inventado, Cepag, Asunción, 1997.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
114
e sim por sua predisposição a distribuir “ajuda” aos pobres, cargos públicos
aos desempregados, terra aos camponeses, subvenções aos industriais, etc.
Para Manuela Schmundt, os camponeses se relacionam hoje com o Estado,
os partidos, e inclusive as ONGs, sob essa lógica de “caça e coleta”.
O aparelho do Estado é o campo principal da coleta de bens e serviços,
e os projetos de desenvolvimento e os processos eleitorais são vistos como
presas de caça.
7
Caçam-se os animais de uma manada, sabendo que no
futuro, cíclica e naturalmente, aparecerá outra no mesmo lugar. A caça e a
coleta sobrevivem então como lógicas políticas no século XXI, com feições
claramente predadoras. Segundo o mesmo Meliá:
“Em grande parte de seu imaginário, o Paraguai passou a ser caçador-coletor
(...) deixou de ser industrial e está deixando de ser agricultor (...) nem sequer
estamos na fase mais civilizada da selvageria, e sim na fase prévia da caça-
coleta, precisamente a dos stickters. São predadores terríveis (...) destroem tudo,
nem sequer comem tudo o que caçaram (...) essa atitude passou da política à
sociedade (...) somos caçadores e coletores sem rituais nem regras.
8
Responderiam melhor as ditaduras militares a esse imaginário “redistribuidor?
O intervencionismo econômico, o acelerado crescimento estatal e o auge econômico
da década de 1970 parecem haver-se adequado melhor à função “ajudadorado
Estado do que os governos da transão, a julgar pela alta avalião que a ditadura
continua a receber da opinião pública.
Qualicação de governos, em percentagem de população
Qualicação Stroessner Rodríguez Wasmosy
Cubas
Grau
González
Macchi
Duarte
Frutos
Péssimo ou ruim 14 22 73 64 71 40
Regular 18 27 13 13 8 24
Bom/excelente 64 39 10 11 5 34
Fonte: A. Vial. Pesquisa de opinião política e participação da cidadania. CIRD-USAID, 2005.
7
Fonte oral, M. Schmundt, Institut für Etnologie der Universität Berlin, 1995. A presa é facilmente identicável,
pois chega à comunidade em um “todo terreno” com logotipo.
8
Meliá, B. Conferência para o grupo Visión Paraguay, Projeto PNUD – Fundação em Alianza, San Bernardino,
setembro de 2001.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
115
Algumas falhas no funcionamento do Estado assinaladas por organismos
locais e internacionais ausência do império da lei, ineciência do serviço civil,
corrupção sistêmica, etc. mostram as características do patrimonialismo. De
fato, a corrupção nada mais é do que a manifestação prática dos elementos
assinalados por Weber: a falta de distinção entre o público e o privado, a
direcionalidade da gestão do poder. São termos institucionais que exprimem
o início do funcionamento da lógica caçadora-predadora mencionada pelos
antropólogos.
Avaliação da luta de seu governo contra a corrupcão,
em percentagem de população
Avaliação
Muito ecaz ou
ecaz
Inecaz ou
ausência de luta
contra ela
Fomenta a
corrupção
Argentina 21 60 14
Bolívia 40 46 7
Chile 20 68 8
Paraguai 4 56 40
Fonte: Transparência Internacional, Barômetro Global da corrupção, 2006
Do ut des
O Estado patrimonialista mantém relações clientelistas que lhe servem
de legitimação diante da sociedade. O clientelismo inicialmente estudado em
sua forma contemporânea no sul da Itália, em sociedades asiáticas e centro-
americanas se dene como uma relação de intercâmbio social, de caráter
instrumental, na qual
“um indivíduo de status socioeconômico mais elevado (patrão) usa sua própria
inuência e recursos para prover de proteção ou benefícios, ou ambas as
coisas, a uma pessoa de status mais baixo (cliente) que por sua vez funciona
reciprocamente, oferecendo apoio geral e assistência, inclusive serviços
pessoais, a seu patrão.
9
9
J. Scott, “Patron-Client politics and political change in Southeast Asia”, citado por J. Ayuero, La dobre vida
del clientelismo politico, em Sociedad no. 8, Buenos Aires, abril de 1996.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
116
Transportado do velho mundo de proprietários territoriais e arrendatários
até a política contemporânea, o clientelismo se articula sobre diferenças
hierárquicas dos atores envolvidos, sobre o particularismo, a bil legalidade e a
instabilidade institucional. As lealdades o nascem do respeito às qualidades de
quem ostenta o poder, nem da conança em sua capacidade de fazer bom governo,
e sim dos incentivos materiais. O uxo de intercâmbio obedece ao princípio de
reciprocidade entre desiguais: os “patrões” (caudilhos políticos) entregam bens
e serviços, exigindo em contrapartida o voto e a lealdade de sua clientela.
Trata-se de uma relação entre indivíduos (ocorre entre duas pessoas, ou
poucas mais), bem diferente da que a burocracia do Estado mantém com a
coletividade ou com grupos sociais. Desarticula assim os interesses coletivos e
as reivindicações da cidadania por direitos (de caráter geral, legal e estável),
que essa miríade de relações diádicas é o que proporciona emprego, dinheiro
ou serviços sociais, informalmente, com caráter de favores.
O clientelismo se alimenta “de cima” com a corrupção, que os recursos
nanceiros, bens e serviços distribuídos durante as campanhas eleitorais o
nanciados por empresários privados (em seguida privilegiados com licitações,
isenções de impostos, etc., por “seus” políticos assim eleitos), com a caixa preta
do partido (tco de inuência, arrecadação ilegal de funciorios de ministérios
ou entidades mistas) ou com cargos presenteados no aparelho do Estado.
Essas práticas, excepcionais nos sistemas democráticos, abrangem hoje
uma proporção da ordem de três quintos do eleitorado pobre do Paraguai
(camponês ou da periferia urbana), ou uma terça parte do eleitorado total.
Numa sondagem realizada entre usuários de serviços públicos, 27% das pessoas
armou haver recebido incentivos materiais em troca do voto,
10
e segundo outro
estudo de caso, 32,5% do eleitorado tinha sido levado a votar por operadores
políticos (cabos eleitorais) nas eleições municipais de 2001.
11
Fontes comparativas regionais coincidem com essa proporção de votos
não autônomos e livres.
12
O transporte pelos cabos eleitorais é o ato nal
10
Citado pelo PNUD-IIG, Diagnóstico Institucional da República do Paraguai. Assunção, PNUD-IIG, 2002, p. 86.
11
Roberto L. Céspedes R., Capacidades y libertades, Participación en las elecciones municipales de 2001 en
Paraguay, em Revista Latinoamericana de desarrollo Humano no. 22 e 23, junho/julho de 2003.
12
31% dos paraguaios responderam armativamente à pergunta; Soube de alguém que nas últimas eleições
presidenciais tenha sido pressionado ou recebeu algo em troca de votar de certa maneira? Nessa classicação
o Paraguai somente é superado pela República Dominicana, com 51%. Ver Latinobarômetro 2005-6, em www.
latinobarometro.org
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
117
de uma longa cadeia clientelista; e Pedro Velazco, sacerdote pároco de um
populoso bairro da capital, se perguntava, nas eleições nacionais de 1998:
“Como se pode chamar participação em eleições à qual comparecem votantes
de cabresto, depois de ter sido credores de material para suas casas, alimento
ou atenção médica, ou promessa de emprego ? (...) É triste ver esse espetáculo
de táxis ou veículos de todo tipo que vão buscar as pessoas em suas casas,
embora o lugar da votação esteja a menos que quatro quarteirões”.
13
Uma primeira conseqüência do clientelismo, muito prejudicial à
democracia, é portanto o retorno a um tipo de sistema eleitoral censitário.
Por meio dessas relações, retira-se na prática às populações pobres que
coincidem com as de mais baixo nível de instrução e as de expressão guarani o
direito eleitoral tanto passivo (não podem candidatar-se a cargos eletivos, por
carecerem dos vastos capitais necessários à campanha) quanto ativo (perdem
liberdade e autonomia eleitoral).
No outro extremo reforça-se um reduzido grupo de “grandes eleitores”,
os nanciadores privados das campanhas (empresários contratistas do Estado
ou beneciários de licenças e isenções de impostos), e as autoridades públicas,
dirigentes políticos ou congressistas cuja posição dentro do aparelho do Estado
lhes permite “apadrinhar” candidaturas, proporcionando bens, serviços ou
empregos públicos.
Os elevados montantes investidos nas eleições sobre os quais
muito pouca scalização tornam verossímil a magnitude dessa clientela.
14
Nas eleições internas do Partido Colorado em 1992, cada pré-candidato
presidencial gastou cerca de 5 milhões de dólares, e nas mesmas eleições, em
2002, um deles admitiu haver investido 7 milhões. No interior do país, cada
candidato a prefeito deve gastar de fundos próprios ou arrecadados de
amigos ou padrinhos aproximadamente 30 mil dólares, em cidades maiores
o investimento total de uma lista de partido (prefeito e vereadores) chega a 100
mil dólares. Nas campanhas para a prefeitura de Assunção, esses montantes
chegam a níveis muito superiores.
13
Entrevista a ABC Color, Assunção, 24.V.1998, citado por M. Lacchi em Recolección de fondos y gastos electorales
en las elecciones municipales, Informe de investigación, Transparencia Paraguay – Alter Vida-Desarrollo en Alianza-
USAID, Assunção, outubro de 2005.
14
Ver M. Lacchi, op. cit. A imprensa escrita e radiofônica divulga esses dados, com naturalidade, durante as
campanhas eleitorais. O salário mínimo legal era, nesses anos, inferior a 200 dólares mensais.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
118
Transporte ao lugar de votação segundo a renda, 2001
Fonte: Céspedes, R., Capacidades y Libertades, em Revista Lationamericana de Desarrollo Humano, no.
22 e 23, junho/julho de 2006.
Não admira então que somente cerca de 20% da população paraguaia
considere limpas as eleições, a mais baixa proporção da América Latina.
Enquanto que 83% dos uruguaios, 69% dos chilenos e 47% dos argentinos
cona na limpeza de seus pleitos,
15
quatro de cada cinco paraguaios suspeitam
estar sendo afetados por fraudes.
Os exagerados investimentos em campanhas eleitorais tanto em termos
regionais quanto em relação ao tamanho da economia paraguaia contrastam
com o baixo nível de Gasto Público Social paraguaio; no ano passado alcançava
9,3% do PIB, menos da metade da taxa vigente em outros países do Mercosul.
Isso pressupõe 142 dólares anuais per capita, cinco vezes inferior ao gasto
social médio na América Latina, de 696 dólares.
16
A “privatização” ou partidarização da assistência social, dos serviços
blicos de saúde, da promoção do emprego e da provio de serviços
15
Ver relatório Latinobarômetro 2006, em www.latinobarometro.org
16
Flora Rojas. Los gastos de cohesión social en el Paraguay, apresentação no Seminário Internacional las Legitimidades
del Gasto Público de Coesión Social, CEPAL Santiago do Chile, 2007. Essa percentagem se reduziu ligeiramente
nos últimos anos; era de 9,6% em 2002.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
119
básicos é outra conseqüência desse sistema, construído sobre a insuciência
e falhas do aparelho do Estado. Longe de assegurar – mediante a competição
eleitoral maior cobertura e qualidade dos serviços públicos, as práticas
clientelistas reforçam suas carências como condição de sua persistência e
desenvolvimento.
Comparação de indicadores sociais da região
Indicadores Argentina Brasil Chile Uruguai Paraguai
% analfabetos, 15 e
mais anos (2005)
2,8 11,1 3,5 2,0 5,6
% partos institucio-
nais(2003)
100 88 100 100 71
% lares com água
encanada (2004)
98,6 82,4 92 98,8 52,4
Fonte: Processamento próprio com dados da CEPAL: Anuário Estatístico da A. Latina e Caribe,
Estatísticas Sociais em www.cepal.org
História e cultura
Mas o clientelismo não pode ser visto apenas em termos contratuais,
como um intercâmbio informal de bens e serviços por lealdades políticas. Sua
força e amplitude seriam inexplicáveis fora do contexto histórico ou cultural
paraguaio. As origens de sua forma atual datam da ditadura do Gen. Alfredo
Stroessner (1954-1989), na qual o partido Colorado, em aliança com as Forças
Armadas, funcionou como “partido único”, ou “partido-Estado”, apelando
a uma lógica totalitária.
Em sua pretensão de controlar toda a sociedade paraguaia, a ditadura
reprimiu as organizações sociais preexistentes. Desde meados da década de
1950, as centrais sindicais, corporações empresariais, estudantis ou prossionais
tiveram de reorganizar-se sob a tutela do Partido Colorado e foram cooptadas
pelo aparelho do Estado.
Essa desarticulação da sociedade civil foi paralela à partidarizão
completa da burocracia do Estado (inclusive as forças de segurança, Exército
e Polícia) por parte da Associação Nacional Republicana, o que deixou forte
e negativas heranças à transição democrática.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
120
Desde a presidência de Juan Carlos Wasmosy (1993-1998) os pactos de
governabilidade permitiram desliar as Forças Armadas, mas deram lugar a
uma pluri-partidarização (por meio de quotas políticas) de parte do aparelho
do Estado: Poder Judiciário, Tribunal Eleitoral, Relações Exteriores, etc.
Em eleições seguintes, os partidos de oposição ganharam alguns poderes
regionais (governos estaduais e prefeituras) e sob o Governo de Unidade Nacional
de González Macchi (1999-2003) chegaram inclusive a integrar o Gabinete do
Executivo. Além disso, a auncia ou instabilidade da maioria parlamentar ppria
levou o partido do governo a assegurar lealdades de bancadas opositoras por
meio de “quotas” de emprego público para seus liados.
Se a ditadura havia imposto o modelo do partido-Estado, na transição
democrática generalizou-se o spoils system (sistema que premia os serviços
partidários com empregos blicos) em todo o espectro partidário. Isso
contaminou as competições eleitorais, conferindo-lhes um caráter de luta pela
obtenção e manutenção de empregos públicos e contratos com o Estado.
Contribuiu também para alimentar em vários sentidos o clientelismo político.
na segunda década do século XX o pensador liberal Eligio Ayala sustentava
que no Paraguai:
A nalidade da política, dos partidos [...] é chegar (aos altos cargos públicos).
O Poder Executivo é o poder distribuidor dos postos públicos, ele assegura
sua obtenção e conservação. E por esse motivo esse poder é o objetivo da
atividade política. Os partidos políticos, portanto, lutam no Paraguai para
adquirir e conservar o poder do Estado, o motor efetivo desse poder, o Poder
Executivo, como nalidade, como fonte de distinção, de prestígio social, e
como fonte de ganhos e recursos.
17
As práticas clientelistas foram e são aceitas como naturais por quase to-
dos os partidos parlamentares,
18
e somente algumas organizações religiosas
da sociedade civil questionam o direito dos partidos de retribuir com emprego
público a lealdade eleitoral de seus membros, ou o dos pobres de entregar seus
votos em troca de bens materiais ou serviços sociais durante as campanhas
17
Eligio Ayala. Migraciones. Santiago do Chile, 1941. Eligio Ayala, que redigiu essa obra em 1915, foi Presidente
do Paraguai entre 1924 e 1928, e é recordado como um de seus melhores estadistas.
18
Exceto talvez os recém-formados, que após alguns anos de práxis política aceitam jogar com a mesma lógica.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
121
eleitorais. Essa complexa conjunção de intercâmbio de favores, sanção de
hierarquias de poder e corrupção permanece então estável e impune.
A outra fortaleza do clientelismo paraguaio é seu profundo enraizamento
cultural. Segundo o sociólogo José N. Morinigo,
19
esse sistema se baseia em
valores e pautas de conduta próprias da sociedade tradicional paraguaia. A
estrutura social camponesa esteve historicamente “centrada no sistema de
relações oré, em uma visão comunitária restrita à família, às amizades e aos
vizinhos, fundada no parentesco e no trato cotidiano”.
20
Essa estrutura de participação se transmitiu ao plano do poder político
como práticas de oré clientelista e de orekueté, sistema de relações mais fechado
e excludente, no qual o clientelismo oferece vantagens, privilégios e imunidades
aos integrantes do grupo, num quadro de obrigações recíprocas.
Os candidatos usam as redes de relações pré-existentes nos bairros
urbanos ou companhias rurais para estabelecer sua comunidade de lealdades
oré, que na campanha eleitoral os levará a um cargo público. Para isso apelam
para os brokers ou mediadores: o operador político, ou cabo eleitoral (referente ou
puntero, segundo a quantidade de votos que assegura), que atua em nome do
candidato mediante uma rede de promessas, ajudas e favores, satisfazendo as
necessidades do eleitorado mais pobre. A clientela assim construída integra por
meio do operador uma rede de obrigações recíprocas, com a carga solidária
– inclusive moral – própria do oré.
Brokers versus seccionaleros
A legislação eleitoral da transição democrática instaurou o voto direto
obrigatório para todas as organizações (políticas ou não) em 1990, o que
obteve categoria constitucional em 1992. Esse sistema, que obriga a preencher
cargos e candidaturas com os votos de todos os membros da organização,
longe de “democratizar” as anquilosadas diretorias dos partidos, alimentou
19
Morinigo, José Nicolás, Clientelismo y Padrinazgo en la práctica patrimonialista del gobierno en el Paraguay, USAID,
Assunção, 2004.
20
Ibid. O guarani tem duas ou três formas da primeira pessoa do plural: ñandé é um nós que inclui o destinatário,
enquanto oré o exclui. Este último “nós sem vós que escutais” se acentua com o enfático orekueté”, que implica
em “só e exclusivamente nós”.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
122
exponencialmente o clientelismo eleitoral,
21
gerando além disso maior
indisciplina e mudanças de partido.
O poder das autoridades partidárias, dos caudilhos regionais e dos
Presidentes de seções foi paulatinamente substituído pelo desses operadores
políticos, que decidem o resultado das campanhas e tratam somente com o
candidato para o qual trabalham, sem maior lealdade à estrutura partidária.
22
Em conseqüência, está desaparecendo esse sentimento de pertinência
partidária que sempre foi tradicional no Paraguai...
23
A prossionalização fez com que vários operadores passassem a trabalhar
indistintamente para candidatos de um ou de outro partido, da mesma forma
que uma parcela não desprezível do eleitorado está liado a dois ou mais
partidos políticos e participa simultaneamente de várias eleições internas.
Esses operadores reforçam as promessas eleitorais de seu candidato com ações
concretas e imediatas que beneciam seus eleitores, chegando até mesmo a
servir de avalistas para obtenção de empréstimos urgentes.
Trata-se de caudilhos locais ou líderes de bairros reconhecidos em sua
comunidade, donos de um “capital socialna acepção de P. Bordieu (com redes
de relacionamento, amigos, conhecidos, padrinhos, etc.), aos quais acodem
em caso de necessidade, e não apenas durante a campanha. Os operadores,
ajudando quotidianamente seus vizinhos e conterrâneos, podem transferir a
própria credibilidade aos candidatos para os quais trabalham.
Assim explica a operadora de um partido de oposição:
“... como em nosso país a política é assistência social e não política, ou seja,
devido à falência do Estado cabe a nós um pouco o papel da parte social
(...) temos de funcionar como assistentes sociais em todos os sentidos, a
parte social econômica, a parte social de saúde, a parte social de educação e
assistência, digamos, a problemas judiciais de todo tipo, penal, civil, da infância
e especialmente o problema econômico e de saúde.”
24
21
USAID-Alter Vida-desarrollo en Alianza, Clientelisemo y Padrinazgo en la práctica patrimonialista del
gobierno en Paraguay, ensaio, 2007.
22
Ibid.
23
M. Lacchi, op. cit.
24
Citado em Ibidem.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
123
O clientelismo implica diversos níveis e tipos de intercâmbio e retribuição.
No ponto mais alto da cadeia (o orekuetê) os padrinhos políticos do candidato
(parlamentares, ministros, ou chefes de repartições do Estado) oferecem ao
candidato pacotes de cargos públicos, bens ou serviços do Estado, e com
menos freqüência, dinheiro. Uma vez eleitos, os candidatos retribuem com o
apoio de sua comunidade (oré) eleitoral a futuras postulações (ou reeleições)
de seus padrinhos.
Os padrinhos empresariais trazem ao candidato fundos em dinheiro vivo,
às vezes insumos (materiais de construção) e uma frota de veículos para o
transporte de eleitores, recebendo em contrapartida privilégios em licitações ou
aquisições públicas futuras, redução de impostos e taxas e inclusive proteção
(impunidade) em caso de delitos menores e irregularidades scais.
25
Por sua vez, o candidato retribui o trabalho de seus operadores com
promessas de cargos públicos (ou com nomeações efetivas, do pacote já
proporcionado por seus padrinhos políticos), ou garantias de manter o cargo
público que estejam ocupando. Se o candidato que se apresenta e ganha é
da oposição, parte dos funcionários existentes será despedida para dar lugar
a esses operadores.
26
No último elo da cadeia, o operador se encarrega de visitar os eventuais
eleitores “casa por casa” e atende a suas necessidades mais urgentes, pagando
faturas atrasadas de serviços básicos, conseguindo atenção médica e remédios
ou ataúdes para os mortos, ajudando-os em seus trâmites perante a burocracia
estatal, etc. Paralelamente, transmite-lhes as promessas e ofertas de seus
candidatos, compromete seu voto e se encarrega de torná-lo efetivo (assegurando
o transporte e controle nas seções eleitorais) no dia das eleições.
27
Essa complexa rede de intercâmbios necessita da existência de confusão
entre o privado e o público que é característica do Estado patrimonial. Porém,
ao mesmo tempo, as relações clientelistas enraizadas na história e na cultura
paraguaias e fortemente expandidas nos últimos anos provocam uma
rejeição generalizada da política, dos partidos e do sistema democrático em
seus protagonistas.
25
Em caso de incerteza quanto aos resultados, esses padrinhos nanciam várias candidaturas (rivais entre si),
assegurando o reconhecimento posterior da autoridade eleita, seja quem for.
26
A prefeitura de Assunção, cuja chea mudou de partido político em quatro ocasiões, recebe em cada período
entre 1000 a 2000 funcionários novos ou contratados.,
27
M. Lacchi, op. cit.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
124
Filiados e desconados
Como se entende e como vive a política no Paraguai atual? Formalmente,
sua população é uma das mais politizadas ou “partidarizadas” do mundo,
com quatro quintos do eleitorado liado a algum partido político.
28
Depois
da ditadura, os partidos se encarregaram de registrar seus adeptos (muitos
dos quais tampouco possuíam carteira de identidade), função que hoje está
potencializada pelas eleições internas dos partidos: cada facção mostra seu
poderio trazendo milhares de novos liados(as).
Essa nova massa eleitoral provém dos setores mais pobres e vulneráveis,
não participa da vida partidária, desconhece seus princípios doutrinários e
naturalmente não contribui com quotas para a manutenção da organização.
Conhece o operador que o “sgou”, e em cada campanha o candidato para o
qual este trabalha, porém pouco ou nada sabe do restante da lista parlamentar
eleita com seu voto.
29
Se o exercício universal dos direitos políticos é nuclear para o sistema
democrático, a tendência ao abstencionismo eleitoral exprime no Paraguai as
falhas geradas por essa conjunção de Estado patrimonial e clientelismo. Desde
o ano de 1993, quando foram saneados os registros eleitorais e passou a haver
estatísticas mais conáveis, a participação cresceu até as eleições nacionais de
1998, ano em que já abarcou quatro quintos da população registrada.
Tipo de eleição Abstenção
1991, Municipal 27 %
1993, Geral 31 %
1996, Municipal 17 %
1998, Geral 20 %
2001, Municipal 45 %
2003, Geral 36 %
Fonte: dados do Superior Tribunal de Justiça Eleitoral, 2003; e Flecha, V.L.
e Martins, C. Historia de la Transición, Asunción, UUHH, 1994.
28
Ver a distribuição por partidos de 2.405.101 pessoas registradas, em Ultima Hora, Assunção, 19/20 de abril
de 2003, p. 4.
29
Um estudo realizado depois das eleições nacionais de 2003 mostrou que 81,5% dos eleitores desconhecia o
número e a identidade dos parlamentares em quem haviam votado; ver GEO, Estudo sobre Abstencionismo
Eleitoral, pesquisa realizada para o STJE, Assunção, 2004.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
125
Não obstante, essa tendência posteriormente se inverteu. A participação
caiu radicalmente nas eleições municipais de 2001, mantendo-se baixa nas
eleições nacionais de 2003, quando somente 54% do eleitorado colorado
registrado votou, e 47% do liberal, que tradicionalmente se comportava de
forma mais disciplinada. Se for acrescentado a essas cifras o abstencionismo
oculto (jovens que não se registram e carecem, portanto, do direito de votar),
o absenteísmo eleitoral será ainda mais elevado.
Diversas fontes detectam outras formas de rejeição à política e sobretudo
à atividade partidária. Essa atitude tem raízes históricas: no nal da ditadura
de Stroessner a atividade política era a que menos interessava à população
(somente a 3,4% dos entrevistados, diante dos 30% que se interessavam mais
pelo trabalho, 25% à família, etc.), que a considerava perigosa e alheia às
necessidades da população.
30
Sondagens atuais de opinião registram apenas um décimo da população
a quem a política interessa muito, contrastando com mais da metade
dos entrevistados a quem ela não interessa em absoluto. Essa rejeição
é explicada por motivos de ineciência e imoralidade: a política seria
incapaz de resolver os problemas pessoais, comunitários ou nacionais, ou
funcionaria de maneira “suja.
Você diria que a
política lhe interessa:
2001 2002 2003 2004 2005
Nada 54,1 50,9 38,5 46,8 55,3
Pouco 33,7 33,3 44,4 41,1 33,6
Muito 12,2 15,4 17,2 11,9 10,9
Fonte: A. Vial, Pesquisa de opinião política e participação da cidadania, CIRD-USAID, 2005
Como era de esperar-se, os partidos políticos paraguaios recebem siste-
maticamente a pior qualicação em termos de conança, embora esta seja
uma perceão que hoje caracteriza outras sociedades latino-americanas.
Em 2005, uma porcentagem elevada, de 73,4% dos paraguaios qualicava
os partidos como a organização menos conável, seguidos de longe por
30
Morinigo, J.N.; Silvero, I & Villagra, S., Coyuntura electoral y liderazgos politicos ene l Paraguay, Asunción, UCA-
Histórica-F. Naumann, 1988;
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
126
outro órgão político, a Seccional Colorada (filiais locais do partido),
com 4,3%.
31
Certos fenômenos políticos da transição se ajustam a essa percepção. Os
novos partidos e movimentos adotam um discurso anti-partidário (ao menos
em suas origens), conseguindo com isso bastante aceitação. Isso se repete em
toda a amplitude do espectro ideológico, desde a esquerda (Asunción para Todos,
1990, e Tekojojá, 2007, que hoje apoia Fernando Lugo) e o centro (Encuentro
Nacional, 1992, Patria Querida, 2001) até os de direita (Unace, 1996).
O sistema paraguaio se aproxima então daquilo que A. O’Donnell chama
“Democracias Delegativas”, onde os votantes são “mobilizados por vínculos
clientelistas, populistas, personalistas (mais do que programáticos); e no qual
os partidos e grupos de interesse – isto é, a sociedade civil organizada – “são
débeis e fragmentados”.
32
Esse paulatino divórcio entre partidos e cidadãos foi assinalado por
diagsticos institucionais como um sério obstáculo à governabilidade. Desde
a transição para a democracia desenvolveu-se um Paraguai no qual:
“a esfera partidária e a social estão cada vez mais separadas, as instituições
cada vez mais longe das pessoas, com a conseqüente falta de legitimidade e
fragmentação em relação à política e dentro da própria sociedade para que
possam ser gestoras de seu próprio desenvolvimento.
33
Democracia para quê?
Essa conjunção de indicadores vidas sobre a limpeza do jogo
eleitoral, rejeição ao sistema de partidos, débil participação política foi
dando alento a uma atitude muito mais perigosa: a rejeição à democracia como
sistema de governo e forma de convivência política. Somente um terço da
população a prefere aos regimes autoritários e uma proporção semelhante se
declara indiferente.
31
A. Vial, pesquisa sobre cultura política e governabilidade democrática 2005, Assunção, CIRD, 2005.
32
Transcrito pelo Diagnóstico do PNUD-IIG, op. cit..
33
Ibidem.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
127
Opções 2001 2005
A democracia é preferível a qualquer outra forma
de governo
33 32
Em algumas circunstâncias, um governo autoritário
pode ser preferível
43 33
Para gente como nós, dá no mesmo que o governo
seja democrático ou não
19 31
Fonte: Alejandro Vial (Coord.), Cultura Política y Gobernabilidad democrática, Assunção, CIRD, 2006,
p. 35-37.
Este dado exige leituras mais complexas. Diante da pergunta de até
que ponto o país é democrático, os paraguaios lhe dão a pior classicação
no contexto latino-americano (3,9 em uma escala em que 1 signica não é
democrático e 10 é completamente democrático). Essa classicação oscila
entre 5,9 (Brasil) e 7,2 (Uruguai) nos demais países do Mercosul.
34
Mais do que uma rejeição, estaríamos então diante de uma crescente
insatisfação em relação a um sistema que instaurou na transição alguns de seus
elementos formais, sem chegar a estruturar o poder nem as práticas políticas
realmente existentes. Se a tendência a valorizar o funcionamento da democracia
é crescente na região (com uma ruptura em 2000-2001), o Paraguai se situa
mais uma vez na contramão do processo.
Satisfação com o funcionamento da democracia,
em percentagem de população (1996-2006)
Países 1996 2006
Uruguai 51 66
Argentina 34 50
Brasil 20 36
Chile 28 42
Bolívia 25 39
Paraguai 21 12
Fonte: Elaboração própria, com dados do Informe Latinobarômetro 2006.
34
Informe Latinobarômetro, 2006.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
128
Como são percebidos os governos instalados em processos eleitorais
periódicos, com um corpo jurídico e constitucional democrático e uma relativa
divisão de poderes? Que sionomia apresenta hoje o Estado paraguaio diante
da sociedade? A primeira percepção é de completo alheamento, a de um Estado
que se governa para benefício próprio (do Presidente e seu entorno, dos
ministros e parlamentares, dos ricos e poderosos), sem pertencer à coletividade
nem representar os interesses de toda a nação.
Percentagem da população que crê estar-se
governando para o bem de todo o povo
País Percentagem
Uruguai 43
Bolívia 38
Brasil 36
Chile 27
Argentina 22
Paraguai 16
Fonte: Elaboração própria, com dados do Informe Latinobarômetro 2006.
O Estado aparece como gestor de interesses de minorias, e o que é
mais grave, como crescentemente submetido ao poder de grupos delituosos.
Recentes sondagens consideraram a “máa” a organização de maior poderio
no país, superando o governo, os partidos políticos e o parlamento. Três
quartos das pessoas entrevistadas entendem que essa hegemonia se fortaleceu
nos últimos anos.
35
A relação dos órgãos de governo com a delinqüência se torna possível
por meio do sistema clientelista. A restrição progressiva do direito eleitoral
passivo, gerada pela inversão que exige posicionar-se em listas eleitorais, termina
por abrir os cargos públicos à delinqüência. Como arma um operador do
Partido Colorado:
“Eles vão ocupar os melhores lugares. uma pirâmide (…) quem contribuiu
com um milhão de dólares tem o cargo mais alto, quem deu 300 mil dólares
tem cargo mais baixo, quem deu 100 mil, mais baixo ainda.
35
73% das pessoas crê que seu poder está aumentando no Paraguai, ver A. Vial, op. cit., 2005.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
129
Essa opinião é corroborada por um ex-parlamentar da oposição: “Hoje
em dia é impensável lançar-se a um pleito interno para eleição a deputado se
não se contar com 250 a 300 mil dólares para gastar…”
36
Se na melhor das hipóteses esse investimento provém do capital
próprio do candidato (ou de empréstimos feitos para essa nalidade) permanece
o problema de sua restituição ou reposição durante o exercício do cargo para
o qual foi eleito. E aqui entra a funcionar a lógica predadora:
“o emprego público é uma fonte importante de um sistema de patrocínio
que ajuda a classe política eleitoralmente () As nomeações () são
freqüentemente percebidas como posições para vender ou comprar o acesso
ou a inuência, e não como vocações para carreiras prossionais…”
37
Para o polilogo Alejandro Vial, “o meta-relato dos universais da
democracia, quando o pagamento em dinheiro ou em favores é decisivo na
localização do número a ocupar nas listas para cargos eletivos”, encontra
obstáculos para normatizar a cultura política paraguaia.
38
Alguns autores
apelam para o conceito de Estado predador”, uma variante do patrimonialismo
na qual o Estado serve de agência a um grupo, a m de subtrair rendas públicas
em benefício próprio:
“Os Estados predadores tendem a criar sistemas de governo que funcionam
mal sistemas que não proporcionam incentivos para as atividades produtivas.
(...) a depredação se baseia em interferir nos mecanismos de mercado em vez de
incrementar sua eciência. Os direitos de propriedade não estão em geral bem
denidos e decisões políticas com freqüência ocupam o lugar das decisões de
um mercado descentralizado. (...) O resultado é, por um lado, uma distribuição
deciente de recursos e taxas de crescimento baixas (ou negativas), e por outro
uma redistribuição da renda em favor do grupo dominante e em detrimento
da maioria da população.
39
36
Ambos discursos em Grupos Focales, citados por M. Lacchi, op. cit.
37
Richards, Donald. “É possível um Estado para o desenvolvimento no Paraguai?” em Abente, D. & Masi, F. (orgs.)
Estado, Economia e Sociedade. Una Mirada Internacional a la Democracia paraguaia, CADEP, Assunção 2005.
38
Alejandro Vial, “La crisis de conanza en las instituciones democráticas” em CIRD-USAID, Transición en
Paraguay, Cuktura Política y Valores Democráticos, Assunção, 1998, p. 124/5.
39
Matt Lundahl, Inside the Predatory State: The rationale, methods and economic consequences of kleptocratic
regimes, em Nordic Journal of Political Economy, 1997, 24, citado por Diego Abente em “ Estatalidad, Burocracias
y Indentidad”, consultoria para o PNUD-IDH Paraguai 2007.
Paraguai: Estado patrimonial e clientelismo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
130
Uma variável de governabilidade trabalhada para o Banco Mundial
40
cobre parcialmente esse conceito: o “controle de corrupção” denido como
a medida em que o poder público se exerce para conseguir ganhos privados,
inclusive pequenas e grandes formas de corrupção, e na qual o Estado é
“capturado” por elites e interesses privados. A posição do Paraguai, em sua
perspectiva regional, é eloqüente.
Controle de corrupção, comparação entre
países selecionados (2005)
País
Posição
(de 0 a 100)
Número de registros/
sondagens
Argentina 41.9 12
Brasil 48.3 11
Chile 89.7 12
Paraguay 7.4 10
Uruguay 74.4 10
Fonte: Kaufmann D., A. Kraay, e M. Mastruzzi 2006: Governance Matters V: Governance Indicators
for 1996-2005.
Os caminhos do futuro
Alguns autores
41
armam que o clientelismo supõe certo desenvolvimento
político, onde a participação direta seja limitada, que permite aproximar
“centro” e periferia, elites e massas excluídas, incrementando a consciência e
participação política dos atores envolvidos. O clientelismo seria uma fase na
transição de sociedades pré-modernas, submetidas ao controle patriarcal e com
severas exclusões, em direção a regimes democráticos, isto é, seria funcional
nesse caráter.
Nessa perspectiva, Gino Germani pensava que entre o Estado oligárquico
(ou patrimonialista) e o Estado moderno (democrático e social de direito),
haveria uma etapa intermediária na qual a população excluída se integrava à
demanda política por meio de mecanismos particularistas (ou clientelistas, que
40
Em http//info.worldbank.org/governance/kkz2005/mc_chart.asp
41
Boissevain, Powell, Weingrod, Silverman, citados por Auyero, Javier, op. cit.
Milda Rivarola
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
131
ele chamou “populismo”). Somente depois de uma aprendizagem democrática
esse “populismo” de exigência (particularista e arbitrário) se tornaria mais
político e cívico; a exigência de direitos substituiria a demanda clientelista de
favores.
Seja como for, o m do patrimonialismo e a substituição das práticas
clientelistas enfrentam desaos complexos no Paraguai. É precisamente o Estado
que detém a força jurídica e institucional necessária para dar esse combate
– quem serve de sujeito e agente desses fenômenos. A impunidade inerente a
essas práticas, sua “dispersãoao espectro político partidário e o enraizamento
que mantêm nas mentalidades coletivas tornam mais árdua essa tarefa.
Mas se o Paraguai passou de um governo baseado na força política a
outros baseados parcialmente no intermbio de lealdades por bens, pode-se
esperar que enquanto não se restabeleça a força a sociedade aprenderá,
com sua experiência, a fazer uso dessas liberdades para construir formas de
autodeterminação, no plano pessoal e no coletivo. Entre o otimismo utópico
e o pessimismo cínico, existe uma diversidade de caminhos democráticos
possíveis.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
132
Colonialidade do
poder, globalização
e democracia
Aníbal Quijano*
Introdução
N
esta ocasião me proponho, principalmente, a abrir algumas das questões
centrais que ainda não parecem sucientemente investigadas no debate sobre o
processo denominado “globalização” e sobre suas relações com as tendências
atuais das formas institucionais de domínio e em particular do moderno Estado-
nação. Não obstante, mesmo restrita como é o caso aqui, qualquer discussão
dessas questões implica de toda forma em uma perspectiva teórica e histórica
sobre o tema do poder e aqui é sem vida pertinente indicar alguns dos traços
principais da que orienta esta investigação.
Toda forma de existência social que se reproduz a longo prazo implica
em cinco âmbitos básicos, sem os quais não seria possível: sexo, trabalho,
subjetividade, autoridade coletiva e natureza”. A disputa contínua pelo
controle dos mencionados âmbitos origina as relações de poder. A partir
dessa perspectiva, o fenômeno do poder se caracteriza por um tipo de relação
* Universidade Nacional Maior de São Marcos, Lima, Peru.
quijanoanibal@yahoo.com
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
133
social constituído pela co-presença e permanente interação de três elementos:
dominação/exploração/conito, o que afeta cada um e todos os cinco âmbitos
sicos de toda existência social e que é resultado e expressão da disputa por seu
controle: 1) o sexo, seus recursos e seus produtos; o trabalho, seus recursos e
seus produtos; 2) o trabalho, seus recursos e seus produtos; 3) a subjetividade/
inter-subjetividade, seus recursos e seus produtos; 4) a autoridade coletiva (ou
pública), seus recursos e seus produtos; 5) as relações com as demais formas
de vida e com o resto do universo (tudo o que na linguagem convencional
costuma ser denominado “natureza”).
As formas de existência social em cada um dos mencionados âmbitos
não nascem umas das outras, mas não existem, não podem existir, e nem
operam, separadas ou independentes entre si. Por isso mesmo, as relações de
poder que se constituem na disputa pelo controle de tais áreas ou âmbitos
de existência social tampouco nascem e nem se derivam umas das outras,
porém umas não podem existir sem as outras, salvo de maneira intempestiva
e precária. Isto é, elas formam um complexo estrutural que certamente se
comporta como tal, mas no qual as relações entre os âmbitos diferenciados não
têm, nem podem ter, caráter sistêmico ou orgânico
1
, posto que cada âmbito
da respectiva existência social tem origens e condições especícas. Nessa
mesma medida, sem prejuízo de pertencerem a uma conguração estrutural
comum ao poder como tal, as relações de poder em cada âmbito se comportam
também com ritmos, maneiras e medidas diferentes dentro do movimento da
estrutura conjunta. Os elementos concretos e as respectivas medidas e maneiras
pelas quais se articulam em cada âmbito e na estrutura conjunta provém das
condutas concretas das pessoas, isto é, são sempre históricos e especícos em
sua origem, em seu caráter, em seu movimento. Em outras palavras, trata-se
sempre de um determinado modelo histórico de poder
2
. Em conseqüência o
modelo de conito é, evidentemente, histórico e especíco, tanto em relação
ao modelo de poder como tal quanto em relação a cada um de seus âmbitos
e dimensões constitutivas.
1
Sobre o sistemicismo e organicismo no debate sobre a questão da totalidade na produção de conhecimento, de
Aníbal Quijano, principalmente, “Colonialidade do Poder e Classicação Social”. Originalmente em Festschrift
für Immanuel Wallerstein, Journal of World-Systems Research, VI, 2, Colorado, Fall/Winter 2000: 342-388. Special
Issue. Giovanni Arrighi and Walter Goldfrank, orgs., Colorado, USA.
2
Sobre a questão do poder esbocei algumas propostas em “Poder e Direitos Humanos”, em Carmen Pimentel
Sevilla, Comp. Poder, Salud Mental y Derechos Humanos. Lima: CECOSAM, 2001: 9-26.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
134
Colonialidade do atual modelo de poder
O modelo atual de poder mundial consiste, primeiramente, na associação
estrutural entre dois eixos centrais:
1)
Um novo sistema de dominação social que consiste, antes de tudo,
na classicação social e básica da população do planeta em torno
da idéia de raça e em relação à qual se redenem todas as formas
anteriores de dominação, especialmente o modo de controle do sexo,
da inter-subjetividade e da autoridade. Essa idéia e a classicação
social nela fundada (ou “racista”) se originaram 500 anos junto
com a América, a Europa e o capitalismo. São a mais profunda
e duradoura expressão do domínio colonial e foram impostas a
toda a população do planeta durante a expansão do colonialismo
europeu. Desde então, impregnam todos e cada um dos âmbitos da
existência social no atual modelo mundial de poder e constituem a
mais profunda e ecaz forma de dominação social, material e inter-
subjetiva, e são, por isso mesmo, a base inter-subjetiva mais universal
de dominação política dentro do atual modelo de poder
3
.
2) Um novo sistema de exploração social ou de controle do trabalho,
que consiste na articulação de todas as formas de exploração
historicamente conhecidas escravidão, servidão, pequena produção
mercantil simples, reciprocidade e capital – em uma única estrutura
de produção de mercadorias para o mercado mundial, em torno
da hegemonia do capital e por esse motivo se caracteriza em
seu conjunto como capitalista. Dessa perspectiva, a categoria de
capitalismo se refere ao conjunto da mencionada articulação estrutural.
O capital é uma forma especa de controle do trabalho que
consiste na mercantilização da força de trabalho a ser explorada.
Por sua condição dominante nesse conjunto estrutural, outorga
3
Ver, de Aníbal Quijano, “Colonialidad Del Poder, Eurocentrismo y América Latina”, em Edgardo Lander,
Colonialidad Del Saber, Eurocentrismo y Ciencias Sociales. Buenos Aires: CLACSO-UNESCO, 2000: 20-246. Aqui,
sem dúvida, é útil notar que os termos “colonialidade” e “colonialismo” dão conta de fenômenos e de questões
diferentes. O “colonialismo” não se refere à classicação social universalmente básica e às formas de dominação
social nela fundadas, que existem no mundo desde há 500 anos, nem à relação estrutural entre todas as formas
de exploração e de controle do trabalho sob a hegemonia do capital, e sim à dominação político-econômica de
alguns povos sobre outros e é anterior à colonialidade em milhares de anos. Ambos os termos estão obviamente
relacionados, posto que a colonialidade do poder não teria sido possível historicamente sem o especíco
colonialismo imposto no mundo desde o nal do século XV.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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a este último seu caráter central isto é, o torna capitalista mas
historicamente não existe, nunca existiu e é provável que não venha
a existir no futuro, separado ou independente das outras formas
de exploração.
4
Sobre esses dois eixos se organiza o controle da
autoridade coletiva, da subjetividade e do sexo. Para o que interessa
aqui, o que importa antes de tudo é discutir a questão do controle
da autoridade coletiva e da dimensão subjetiva das relações sociais.
O controle da autoridade coletiva se exerce sobretudo por meio da
instituição que se conhece como Estado. Esta é muito antiga, embora não
esteja bem estabelecido desde quando e em associação com quais condições
históricas foi imposto como forma central universal de controle da autoridade
coletiva e de dominação política, e menos ainda quando, como e onde chegou
a ser Estado-nação. Em troca, sabemos bem que o moderno Estado-nação é,
por um lado, relativamente recente e por outro lado não está consolidado
a não ser em alguns poucos espaços de dominação estatal chamados países.
Seus sinais específicos são, primeiro, a cidadania ou presunção formal
de igualdade judico-política dos que habitam seu espaço de domínio,
não obstante sua desigualdade nos demais âmbitos do poder; segundo, a
representatividade política que, sobre essa base, se atribui ao Estado em
relação ao conjunto de cidadãos e não apenas, como nas demais variantes do
Estado, a algum interesse social particular ou setorial. Foi sendo constituído
no período conhecido como Era Moderna, que se abriu a partir da América,
e em vinculação com o processo de eurocentralizão do capitalismo e
da modernidade; alcançou seus atuais traços denidores desde o nal do
século XVIII e foi admitido durante o culo XX como modelo mundialmente
hegemônico, o que certamente não equivale a que tenha também chegado a
ser praticado mundialmente. Na etapa atual do poder colonial/moderno/
capitalista, sua “globalização” especialmente desde meados dos anos 70 do
século XX pressiona no sentido do desvirtuamento daqueles traços originais
e especícos, inclusive no sentido da reversão de seus respectivos processos,
em particular quanto à institucionalização do conito social em torno da
ampliação da igualdade social, da liberdade individual e da solidariedade social
5
.
4
Ver “Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina, artigo citado.
5
Esta discussão em Aníbal Quijano, “Estado-Nación, Ciudadanía y Democracia, Cuestiones abiertas”, em
Heidulf Schmidt e Helena Gonzáles, orgs., Democracia para uma nueva sociedad. Caracas: Ed. Nueva Sociedad,
1998: 139-15, e em “El Fantasma Del desarrollo”, em Revista Venezolana de Economia y Ciencias Sociales, 2, 2000.
Caracas, Universidad Central de Venezuela.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
136
A produção e controle da subjetividade, isto é, do imaginário social, da
memória histórica e das perspectivas centrais de conhecimento se expressam e
se conguram no eurocentrismo. Assim denomino aqui o modo de produção
e de controle das relações inter-subjetivas que foi sistematicamente elaborado,
isto é, teorizado, desde pouco antes de meados do século XVII na Europa,
como expressão e como parte do processo de eurocentralização do modelo
de poder colonial/moderno/capitalista. Em outras palavras, como expressão
das experiências de tal colonialismo especíco e da colonialidade do poder,
das necessidades e experiências do capitalismo e da eurocentralização daquele
modelo de poder. Foi mundialmente imposta e admitida nos séculos seguintes
como única racionalidade legítima. Em todo caso, como racionalidade
hegemônica, modo dominante de produção de conhecimento. Para o que
interessa aqui, entre seus elementos principais é pertinente destacar, sobretudo,
o dualismo radical, cartesiano em sua formação original, entre “razão” e
“corpo e entre “sujeito e “objeto na prodão do conhecimento; tal
dualismo radical está associado à propensão reducionista e homogeneizante
de seu modo de denir e identicar fenômenos ou “objetos”, sobretudo na
percepção da experiência social, seja em sua versão atomizada e a-histórica,
que percebe de forma isolada ou separada os fenômenos ou os objetos e não
exige em conseqüência nenhuma idéia de totalidade; seja na que admite uma
idéia de totalidade evolucionista, organicista ou sistemicista, inclusive a que
pressupõe um macro-sujeito histórico. Essa perspectiva de conhecimento está
atualmente em um de seus períodos de crise mais abertos, assim como está
também toda a visão eurocêntrica da modernidade
6
.
Esse modelo de poder começou a constituir-se desde a Conquista e
Colonização do que hoje se denomina América, a primeira id-entidade do
período colonial/moderno
7
e se desenvolveu produzindo a formação da
Europa Ocidental como nova id-entidade histórica e sede central de controle
do novo modelo de poder, isto é, como um modelo de poder eurocentrado e
colonial, e se expandiu e se desenvolveu mundialmente desde o século XVIII,
no mesmo curso de expansão da dominação cultural da Europa Ocidental
sobre o resto do mundo. Foi, pois, produto da destruição histórica dos mundos
6
Ver Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina”, artigo citado; também, do mesmo autor, Towards a Non-
Eurocentric Rationality, documento ainda inédito do Simpósio sobre Subalternidade e Colonialidade, Duke University,
octubre 1988: e “Colonialidad Del Poder y Clasicción Social”, em Festscrhift für Immanuel Wallerstein, op. cit.
7
Sobre a relação colonialidade/modernidade ver de Aníbal Quijano: Colonialidad y Modernidad/Racionlidad.
Originalmente em Peru Indígena, 13, 29, 1992: 11-20.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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históricos anteriores durante a conquista da América e da constituição de novas
formas de dominação/exploração/conito, sob a violência da colonização.
Mas ao longo dos últimos 500 anos não deixou de estar constituído pelos
mesmos fundamentos básicos que lhe deram origem. Em outras palavras,
não deixou, não pode deixar, de estar fundado nos elementos produzidos
colonialmente. Nesse sentido especo, a colonialidade é o traço central
inerente ao atual modelo de poder e a idéia de raça é sua pedra básica e original.
8
Por suas características, na história conhecida este foi o primeiro
dos modelos de poder com caráter e vocação global. Nesse sentido, o que
agora se chama “globalização” é, sem dúvida, um momento do processo de
desenvolvimento histórico desse modelo de poder, talvez o de sua culminação
e de sua transição, como vários já sugeriram
9
.
Todas essas propostas e categorias são, como é óbvio, questões abertas.
Não se deve perder de vista, conseqüentemente, que sua indagação sistemática
e seu debate estão apenas começando. Isso não quer dizer que as propostas
que faço neste trabalho sejam arbitrárias, e sim que voltarei a elas conforme
a investigação e o debate se desenvolvam.
As questões centrais da “globalização”
O que hoje se denomina “globalização” é, obviamente, uma questão
de muitas questões sobre as quais muito debate e uma literatura vasta e
crescente. É provável que a iia mais difundida entre as que circulam associadas
a esse termo seja a de uma contínua e crescente integração econômica, política
e cultural do mundo. Na prática isso implica em que fenômenos e processos
que afetam todo o mundo de maneira imediata, inclusive simultânea, isto é...
global. E se atribui à “revolução cientíco-tecnológica” nos meios e sistemas
de comunicação e de transporte a qualidade de ser a principal determinante
histórica desse possível processo.
8
A dominação e discriminação de “gênero” são talvez as mais antigas na história da espécie. Mas no atual modelo
mundial de poder caram subordinadas à Colonialidade do Poder. E como sobre aquela um prolongado debate
e uma inesgotável literatura, aqui é pertinente enfatizar as questões de autoridade e de subjetividade.
9
De certo modo, a proposta hegeliana, desenvolvida por Kojéve e retomada por Fukuyama (O m da História)
implica nessa idéia de culminação desse modelo de poder. Ver Aníbal Quijano, “El n de cual História?” em
Análisis Político, Revista do Instituto de Estudos Políticos e Relações Internacionais, 32, Bogotá, Universidade
Nacional da Colômbia, setembro-dezembro, 1997: 27-32.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
138
Originalmente, a “globalidade” se referia a uma mudança drástica das
relações entre o espaço e o tempo na subjetividade, como conseqüência
da velocidade de circulação de informações produzida pelos novos
recursos cientíco-tecnológicos, de tal maneira que era possível perceber
simultaneamente o que ocorria em qualquer lugar do mundo. Em nossa
subjetividade, em nossas relações inter-subjetivas, não somente o mundo se
havia reduzido de tamanho, mas também isso ocorria porque o mundo se
havia integrado com o tempo, passou a ser simultâneo. A famosa imagem da
“aldeia global” foi, sem dúvida, a bem sucedida construção mental inicial que
explicava essa nova relação subjetiva com o espaço e o tempo
10
.
Embora, talvez, para muita gente essas sejam as imagens mais associadas
com a idéia de “globalização”, temos de admitir que elas vão submergindo
sob outras mais recentes que para muitos parecem possuir toda a consistência
de genuínas categorias conceituais, ainda que resistam a abandonar seu habitat
na mídia: a “realidade virtual”, a “sociedade virtual” e a “nova economia”
(que a partir da mesma perspectiva poderia ser chamada “economia virtual”).
A primeira tem implicões decisivas no debate sobre a produção do
conhecimento. Põe em relevo, sobretudo, o fato de que com a tecnologia atual
não se reproduzem, se combinam ou se usam imagens e sons presentes
na “natureza” ou na “realidade”, mas também se produzem, se manipulam e
se difundem novos elementos visuais e sonoros, novas imagens produzidas
com tais elementos novos que em seu conjunto constituem um mundo
“virtual” e que de muitas maneiras se superpõe ao mundo “real” e até mesmo o
desloca e substitui, ao ponto em que em numerosas áreas não é fácil distinguir
entre ambos, além do que isso signicaria para a questão da percepção, do
conhecimento e do modo de produzir conhecimento. A “sociedade virtual”
é uma idéia que prolonga essa imagem e propõe que as relações sociais
ocorrem, cada vez mais, precisamente dentro daquela “realidade virtual” e
com ela entremeadas, e de alguma forma possuem essa consistência. A “nova
economia” é a mais recente, midiática como todas as demais, e remete à idéia
de que a economia do mundo se converteu, ou está em via de converter-
se, em uma rede única de intercâmbio de mercadorias e valor. Essa seria
10
Sobre as implicações da “revolução cientíco-tecnológica” é muito ilustrativo seguir o curso que vai dos
estudos do Coletivo Radovan Richta em Praga, antes da invasão dos tanques russos em 1969, até a visionária
“aldeia global” de MacLuhan. Ver, p. ex., Aníbal Quijano, “Tecnología del Transporte y Desarrollo Urbano, no
volume coletivo Aproximación Crítica a la Tecnología en el Perú. Lima: Mosca Azul Editores, 1982.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
139
a expressão emblemática da integração global da economia mundial e sem
dúvida se apoia e se mescla com a “realidade virtual” e “sociedade virtual”.
O debate não consegue ocultar sempre uma tendência à misticação. De
fato, na linguagem da mídia o termo “globalização” passou a ser virtualmente
sinônimo de um vasto e sistêmico maquinismo impessoal, que existe e se
desenvolve de forma independente das decisões humanas, isto é, de um certo
modo natural e nesse sentido inevitável, e que abarcaria e explicaria todas as
ações humanas de hoje.
Mas o “mundo” se com esse termo quer-se dizer a existência social
humana articulada em uma especíca totalidade hisrica seja ou o
“globalizado” não poderia ser entendido fora do fato de que o que lhe outorga
seu caráter de “mundo”, ou de totalidade histórica especíca, é um especíco
modelo de poder, condão sem a qual qualquer idéia de “globalização
seria simplesmente inútil. De outro modo, o resultado seria que as redes de
comunicação, de informação, de intercâmbio, etc., etc., existem e operam em
uma espécie de vácuo histórico. Portanto, é teoricamente necessário, e não
apenas pertinente, investigar cada uma das atuais áreas de controle da existência
social para trazer à luz os sentidos possíveis que a tão comentada globalização
tem ou pode ter na experiência. Dentro dos limites deste trabalho, não irei
além de abrir as questões que me parecem centrais em duas áreas principais:
o controle do trabalho e o da autoridade pública.
Capitalismo e globalização
Se examinarmos com cuidado as tendências atuais do capitalismo – no
sentido que tem dentro da Colonialidade do Poder os dados são sem dúvida
impressionantes sejam referidos à geograa política da distribuição de renda,
bens e serviços básicos ou dos uxos de capital, sejam referidos às relações
em forma de capital ou às relações entre capital e trabalho. Como os dados
são, em geral, acessíveis a todos, para os objetivos desta investigação é mais
pertinente assinalar algumas das tendências principais:
1.
Em 1800 74% da população mundial (na época 944 milhões) tinha
acesso a 56% do Produto Mundial Bruto (em lares de 1980,
229.095.000.000), enquanto que 44% desse PMB se concentrava
em 26% dessa população. Mas em 1995, 80% da população mundial (que
já era de 5.716.000.000) somente tinha acesso a 20% do PMB (em dólares
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
140
de 1980, 17.091.479.000.000), enquanto que os restantes 20% da população
concentravam 80% do PMB.
2.
A diferença de 9 para 1 na razão entre a renda média dos países ricos e dos
países pobres chegou em dois séculos a 60 para 1. Enquanto isso, desde
1950 a população dos países ricos aumentou 50%, e a dos países pobres
250%
11
.
3. Segundo o relatório do Banco Mundial (ano 2000), em termos de produção
mundial, em 1999 os países do Grupo dos 7 (G7 daqui em diante) isto é,
menos de 12% da população mundial e com 16% da superfície do planeta,
produziam 65% da riqueza do mundo, 3% mais do que em 1980.
4.
No mesmo movimento histórico, também aumentou a distância entre ricos
e pobres dentro de cada um dos países do mundo. Assim, no país mais rico
do planeta, os Estados Unidos, se em 1970 havia 24,7 milhões de pessoas em
situação de pobreza crítica (11,6% da população) em 1977 essa cifra saltara
a 35,6 milhões (13,3% da população), isto é, 43% em menos de 20 anos.
Um estudo recente mostra que entre 1997 e 1989 1% das famílias conseguiu
captar 70% do total de aumento da riqueza familiar e viu aumentadas suas
rendas em 100%. Na América Latina, desde 1973 as diferenças de renda
pioraram: a renda média dos 20% que auferem rendimentos é hoje 16 vezes
mais alta do que o dos 80% restantes. No Brasil essa diferença chega a ser
de 25 para 1, comparados com 10 para 1 na Europa Ocidental e 5 para 1
nos Estados Unidos. O mesmo ocorre com a diferença de salário entre
“qualicados” e os demais.
Por exemplo, no Peru a diferença cresceu na década de 90 mais de 30%, e
na Colômbia mais de 20%.
12
11
Nancy Brisdall, “Life is Unfair: Inequality in the World”, Foreign Policy, Summer 1998: 76-93. Carnegie
Endowment for International Peace,. Também em Robert Grifths, org., Developing World 99/00; Guilford,
CT USA: Dushkin-McGraw Hill, 1999: 25-34.
12
Ver Paul Krugman, “The Right, the Rich and the Facts: Deconstructing the Income Distribution Debate”,
em American Prospect, Fall 1992. De Michael Bruno, Martin Ravallion e Lynn Squire, Equity and Growth in Developing
Countries. Washington: World Bank, 1996, citado em Nancy Brisdall, op. cit., Developing World 99/00, op. cit.: 33. Sobre
o Brasil, ver as cifras mais recentes: “O instituto Brasileiro de Geograa e Estatística (IBGE), órgão federal, acaba
de divulgar índices aterradores, que valem como balanço destes cinco anos e quatro meses do governo de FHC:
1% da população tem em mãos uma riqueza superior à de 50% dos brasileiros. O seja, cerca de 1,6 milhões de
pessoas possuem uma fortuna superior à de 83 milhões de brasileiros. 19,6% das famílias têm renda mensal de no
máximo ½ salário mínimo”, Frei Betto: “Los Rumbos de la Oposición”, em ALAI: América Latina en Movimiento,
314, 23 de maio 2000: 2-3. E na Venezuela, segundo o relatório da CEPAL, a renda de 40% da população urbana
mais pobre caiu de 16,8% a 14,7% , entre 1990 e 1997, enquanto que a de 10% da população urbana mais rica
subiu de 28,4% a 32,8% no mesmo período (CEPAL, Panorama Social da América Latina, 1998:64).
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
141
5. Dadas essas condições, as três pessoas mais ricas do mundo m uma
fortuna superior ao PIB dos 48 Estados mais pobres, isto é, a quarta
parte da totalidade dos Estados do mundo. Por exemplo, em relação
à América Latina, em 1996 as vendas da General Motors Corporation
foram de 168 bilhões de dólares, enquanto que o PIB combinado da
Guatemala, El Salvador, Honduras, Costa Rica, Nicarágua, Panamá,
Equador, Peru, Bolívia, Paraguai e Uruguai chegou somente a 159
bilhões de dólares.
6.
Ao mesmo tempo, segundo a ONU (Relatório do PNUD, 1998),
para satisfazer as necessidades básicas do planeta bastariam 4% das
225 maiores fortunas do mundo. E para satisfazer as necessidades
sanitárias (em 1998, 4 bilhões de habitantes do Terceiro Mundo não
tinham acesso a água potável nem a energia elétrica) e de nutrição
(50% das crianças sofre de desnutrição), bastariam 13 bilhões de
dólares, isto é, 13% do que se gasta anualmente em perfume nos
Estados Unidos e na Europa.
7.
Se considerarmos a direção dos uxos de capital, verica-se que entre
1990 e 1995, por exemplo, 65% do total do Fluxo de Investimento
Direto (FDI) foi em direção ao “centro” e o restante se dirigiu a uns
poucos entre os chamados “países emergentes”. Entre 1989 e 1993
apenas 10 desses países receberam 72% desse FDI restante (China,
México, Malásia, Argentina, Tailândia, Indonésia, Brasil, Nigéria,
Venezuela e Coréia do Sul)
13
. Um problema crucial do uxo mundial
de capitais é que a dívida do terceiro Mundo aumentou em menos
de duas décadas de 615 para 2.500 bilhões de dólares. E isso, como
todo mundo sabe, é uma história que não se acaba, literalmente,
porque é impagável. Porém, acima de tudo, é uma história trágica
14
.
8. Por outro lado, dos 6 bilhões de pessoas que compõem a população
do planeta no início do novo século, cerca de 800 milhões não têm
emprego assalariado. Essa é sem vida uma estimativa conservadora,
13
Developing World 99/00, op. cit., p. 46.
14
“No ano passado, o governo de Uganda gastou somente 3 dólares por pessoa em cuidados de saúde, porém
despendeu 17 dólares por pessoa para o serviço da dívida externa. Enquanto isso, uma entre cinco crianças
ugandenses não chegarão ao quinto ano de vida em conseqüência de doenças que poderiam ser evitadas com
investimentos em cuidados fundamentais de saúde.” Marie Griesgraber, “Forgive our debts: The Third World’s
Financial Crisis”, em The Christian Century, 22 de janeiro de 1997: 76-83.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
142
que as estatísticas registram apenas os que procuram emprego, e a
cifra deve ser multiplicada pelo menos por 5, se considerar o número
de famílias, ou lares, que dependeriam desses salários inexistentes.
E a população conjunta de desempregados e sub-empregados é
mais ou menos a metade da população mundial, que 3 bilhões
de pessoas vivem com menos de 2 dólares diários. Os economistas
cunharam a noção de “desemprego estrutural” para referir-se à
tendência que produz um desemprego mundial crescente. Não são
poucos agora os que propõem a idéia do “m do trabalho” para
explicar as implicações dessa tendência
15
.
9. Da mesma forma, e ainda que não estejam sucientemente avançadas
as pesquisas especícas e os dados sejam igualmente provisórios, a
população mundial em situação de escravidão é estimada em mais
de 200 milhões de pessoas
16
. Ainda não estão estatisticamente
estabelecidas as informações sobre servidão e sobre reciprocidade.
10.
Todas essas tendências na distribuição de capital, de emprego, de
produção, de renda e de bens e serviços no mundo de hoje estão
vinculadas à mudaa nas relações entre as diversas formas de
acumulão capitalista em favor da absoluta hegemonia da acumulão
especulativa. Assim, as transações cambiais mundiais, que eram mais
ou menos de 20 bilhões de dólares em 1970, representavam 1,3
trilhões em 1999. Somente nos Estados Unidos, em 1980 os fundos
de pensão”, os “fundos comuns”, as companhias de seguros e os
seguros de vida constituíam ativos nanceiros da ordem de 1,6 trilhões
de dólares, cerca de 60% do PIB do país. Mas em 1990 esses ativo
eram de 5,2 trilhões de dólares, ou 95% do PIB, e em 1993 mais de
15
Por exemplo, Jeremy Rifkin, The End of Work. Nova York, Jeremy Tarcher Inc., 1996. Também Dominique
Meda: Le Travail, une valeur en voie de disparition. Paris: Champs, Flamarion, 1995. A pesquisa sobre tendências nas
relações entre trabalho e capital se refere exclusivamente ao emprego assalariado. Suas descobertas produziram
uma numerosa família de categorias: a “exibilização”, a “precarização”, a “subcontratação”, o regresso do
“putting-out system”, a “informalização”, entre as principais de uma abundante literatura. Sobre a América Latina,
veja-se, por exemplo, de V.E. Tokman e D. Martines, orgs., Flexibilización en el margen: La reforma del contrato de
trabajo. OIT 1999. Também os estudos do Primeiro Encontro Latinoamericano de Estudos do Trabalho. Carlos Santiago,
org. Revista de Administración Pública, Universidad de Porto Rico, 1996.
16
Em 1991 a OIT reconhecia a existência de cerca de 6 milhões de pessoas em situação de escravidão no mundo. A
ONU encarregou a uma comissão o estudo desse problema. O relatório da comissão, em 1993, arma que existiriam
200 milhões de escravos na população mundial. Veja-se a entrevista de José de Souza Martins em Estudos Avançados,
Revista do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), 31, 1997. São Paulo, SP, Brasil.
Desde então cresceu a documentação sobre a expansão do tráco de escravos e sua correspondente ética social.
Existe, inclusive, legislação recente que proíbe o trabalho escravo, como por exemplo, no Brasil, desde 2004.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
143
8 triles, ou 125% do PIB norte-americano. O predomínio nanceiro
surge também na chamada “nanciarização” das empresas, porque
seus investimentos produtivos decrescem continuamente em favor
dos investimentos nanceiros. Por outro lado, uma hipertroa
dos ganhos nanceiros na “periferia” e nos “países emergentes”. Em
1983, os lucros das periferias nas bolsas chegaram ainda a 100 bilhões
de dólares; mas em 1993, a cifra já era de 1.500 bilhões
17
.
Tal conjunto de informações permite fazer algumas inferências, talvez
provisórias, porém não por isso menos pertinentes:
I)
Está em curso um processo de re-concentração do controle de
recursos, bens e renda em mão de uma minoria reduzida da espécie
humana (atualmente não mais de 20%).
II)
O que acima foi dito implica em que está em curso um processo
de polarização social crescente da população mundial, entre uma
minoria rica, proporcionalmente decrescente porém cada vez mais
rica, e a vasta maioria da espécie humana, proporcionalmente
crescente e cada vez mais pobre.
III)
Está em curso um processo de incremento da super-exploração
da massa mais numerosa de trabalhadores do mundo, que junto
com a re-concentração de rendas e riquezas cresce a distância
salarial entre os assalariados e se expande a proporção dos
desempregados, marginalizados dos âmbitos centrais da estrutura
de acumulação, e isso permite a redução contínua da média salarial.
IV)
Está em curso um processo de declínio do interesse e da capacidade
do capital de converter a força de trabalho em mercadoria, em
especial nos níveis tecnologicamente mais avançados da estrutura
mundial de acumulação
18
.
V) Em conseqüência, estão em expansão as formas não-salariais de
controle do trabalho. Encontram-se novamente em expansão a
17
Segundo essas informações, o capital nanceiro atual tem um caráter quase oposto ao do período pré-crise. O
anterior servia para promover investimentos produtivos; o atual é quase puramente parasitário, ergo predatório.
18
O estudo e debate dessas tendências começou na América Latina desde meados dos anos 60, num debate
sobre a questão da marginalização. A partir dessa perspectiva, veja-se, principalmente José Nun “Superpopulação
Relativa, Exército Industrial de Reserva e Massa Marginal”, em Revista Latinoamericana de Sociologia, V, 2, julho de
1969. E de Aníbal Quijano, os textos incluídos em Imperialismo y Marginalidade en América Latina, Lima: Mosca
Azul Editores, 1977. E também, do mesmo autor, “Crise Capitalista e Classe Operária”, no volume coletivo
Crisis Clase Obrera, México: ERA, 1975.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
144
escravidão, a servidão pessoal, a pequena produção mercantil
independente, a reciprocidade. O assalariamento ainda é a forma
de controle do trabalho que mais se expande, porém, para usar
uma linguagem familiar, como um relógio que se atrasa.
VI)
Es em curso um processo de crise em uma das dimensões
básicas as relações entre as formas especícas de exploração
incorporada ao modelo capitalista de controle do trabalho: está
declinando, talvez se esgotando, os mecanismos que no curso do
desenvolvimento histórico da acumulação capitalista distribuíam
essa população das formas não-salariais para a salarial, em geral
do não-capital para o capital, e entram em ação mecanismos que
indicariam, embora em grau ainda não passível de precisão, o
começo de uma tendência inversa.
VII)
A conguração do capitalismo mundial, isto é, a estrutura das
relações entre o capital e cada uma das formas de controle do
trabalho, assim como as relações de conjunto de todas elas entre
si, estão em processo de drástica mudança, o que implicaria em
um processo de transição do sistema.
VIII)
Nesse sentido especo e nessa dimensão, na estrutura de exploração
do trabalho estaria em curso um processo de reclassicação social
da população do mundo, em escala global.
IX)
Em todo caso, está em curso um processo de reconcentração e
de reconguração do controle do trabalho, de seus recursos e
seus produtos, em escala mundial. Em suma, das relações entre
capitalismo e trabalho.
X)
Tais processos estão associados a mudanças drásticas na estrutura
mundial de acumulação capitalista, ligados à nova posição e função
de predomínio que dentro daquela estrutura tem a acumulação
especulativa e nanceira, em especial desde meados dos anos 70
do século XX.
19
19
Na América Latina, embora o debate geral sobre a crise capitalista estivesse no ar desde meados dos anos 70,
provavelmente foi o brasileiro Celso Furtado um dos primeiros a chamar a atenção para a hegemonia do capital
nanceiro e sobre suas implicações. Ver de Aníbal Quijano Transnacionalización y Crisis de la Economía en América
Latina, en Cuadernos del Cerep, San Juan, Porto Rico: 1984. Sobre o debate recente, a partir da perspectiva das
áreas dependentes e periféricas do capitalismo, ver de Kalvajit Singh: Globalization of Finance, Londres/Nova
York: Zed Books, 1999, e do mesmo autor Taming Financial Flows: Challenges and Alternatives in the Era of Financial
Globalization, Londres/Nova York: Zed Books, 2000.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
145
Nenhuma dessas tendências é nova e nem imprevista. Nem sequer as
últimas. Indicam um momento, um grau ou um nível do amadurecimento
e do desenvolvimento de tendências inerentes ao caráter do capitalismo
como modelo global de controle do trabalho e que haviam sido amplamente
teorizadas, sobretudo a partir de Marx
20
. Portanto, faz pouco sentido discutir
esses processos e os problemas decorrentes como se fossem exatamente
novos, ou pior, como se fossem conseqüência de um fenômeno novo chamado
“globalização”, diferente ou separado do capitalismo, resultado único, ou
principalmente, da inovação tecnológica e sua capacidade de modicar de todo
nossas relações com o espaço/tempo, em vez do caráter capitalista da estrutura
dominante de controle do trabalho e do desenvolvimento de suas tendências.
Não obstante, o dúvida de que tais tendências básicas do capitalismo
se aprofundaram, e mais ainda, se aceleraram e m um curso de maior
aceleração. A questão, portanto, é: qual a causa da aceleração e aprofundamento
dessas tendências do capitalismo? Ou, em outras palavras; por que motivo a
exploração capitalista se tornou mais profunda e de certa forma mais fácil?
Ninguém pode explorar outra pessoa se não a dominar, e muito menos
explorá-la de maneira estável e duradoura. Portanto, é necessário abrir aqui
a questão das relações entre a dominação e a exploração no atual modelo de
poder. A força e a violência são requisitos de qualquer dominação, mas na
sociedade moderna não são exercidas de maneira explícita e direta, pelo menos
não de modo contínuo, e sim encobertas por estruturas institucionalizadas de
autoridade coletiva ou pública “legitimadas” por ideologias constitutivas das
relações inter-subjetivas entre os diversos setores de interesse e de identidade da
população. Como já foi assinalado desde o começo deste trabalho, tais estruturas
20
Em O Capital e em suas agora não menos célebres Grundrisse Marx adiantou notavelmente essa elaboração,
indo tão longe quanto era possível sem atravessar o teto de uma perspectiva eurocêntrica de conhecimento.
Em todo o caso, estabeleceu as bases e as questões principais do debate. Assim, a tendência ao esgotamento da
conversão da força de trabalho em mercadoria quando uma força produtiva superior permite a automatização
da produção é a questão central aberta em 1858, com o capítulo sobre a contradição entre o princípio de
base (medida do valor) da produção burguesa e o seu desenvolvimento. Ver Fondements de la Critique de l’Économie
Politique (tradução francesa dos Grundrisse), vol. 1:220-231. Anthropos 1968, Paris. Sem dúvida não é por acaso que
os próprios economistas da burguesia ou os funcionários das principais entidades de administração internacional
do capital descobrem surpreendidos o quanto as previsões teóricas de Marx coincidem com as tendências mais
visíveis do capitalismo “globalizado”, em particular a concentração do capital e a polarização social global, por
tanto tempo simplesmente negada entre os economistas da burguesia. Ver, por exemplo, a nota de John Cassidy,
“The Return of Karl Marx”, New Yorker, outubro 20-27, 1997. E Nancy Birsdall, vice-Presidente executiva do
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) não vacila em iniciar seu texto dizendo: Exactly 150 years after
the publication of the Communist Manifesto, inequality looms large on the global agenda.”. Op. cit.: 25. Ver também minha
“Crisis Capitalista y Clase Obrera” em Fernando Claudin, K.S. Karol, Aníbal Quijano e Rossana Rosanda: Crisis
Capitalista y Clases Sociales. México: ERA, 1974.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
146
são as que conhecemos como Estado. E a colonialidade do poder é sua
argamassa legitimadora mais profunda. Em conseqüência, é necessário investigar
o que terá ocorrido nas relações entre o modelo de exploração capitalista e os
dois níveis do modelo de dominação, o Estado e a colonialidade do poder.
A relação entre o capitalismo como estrutura global de controle do
trabalho e sua organização em espaços particulares de dominação, assim como
a organização de estruturas especícas de autoridade coletiva nesses espaços
é ainda uma questão aberta. Em geral, as relações entre a dominação e a
exploração nem sempre são claras em todo modelo de poder, e muito menos
sistêmicas ou orgânicas.
Se parece mais historiado e teorizado o modo pelo qual o colonialismo
moderno o que se constituiu na América congurou o contexto adequado
para a formação do capitalismo, ainda o foi aberta e nem obviamente
estudada a questão de saber porque tal capitalismo se associou, no mesmo
movimento e ao mesmo tempo, com diversos tipos de Estado em diversos
espaços de dominação. Assim, o moderno Estado absolutista/imperial (todos os
Estados da Europa ocidental, menos a Suíça, entre 1500 e 1789); o moderno
Estado-nação imperial colonial (por exemplo, a França e a Inglaterra desde o nal
do século XVIII até depois da Segunda Guerra Mundial), o moderno Estado
Colonial (a América do Norte antes de 1776 e a América do Sul antes de 1824,
assim como os do sudeste asiático e da África até meados do século XX); o
moderno Estado despótico/burocrático (a ex-União Soviética e os da Europa oriental
até ns da década de 1980, seus rivais nazistas e fascistas na Alemanha, Japão
e Itália entre o nal de 1930 e 1945, a China na atualidade); o moderno Estado-
nação democrático (os atuais da Europa ocidental, os da América do Norte, Japão,
Oceania); os modernos Estados oligárquico/dependentes (os da América Latina antes
do nal dos anos 60, com exceção do México, Uruguai, Chile desde o m da
década de 1920); os modernos Estados nacional/dependentes (em diversas medidas,
todos os da América Latina atual, assim como a maioria dos da Ásia e alguns
da África, principalmente a África do Sul) e os modernos Estados neocoloniais
(muitos, talvez a maioria dos da África).
Essa classicação é uma hipótese de trabalho, assim como sua respectiva
exemplicão. Mas não pode ser considerada arbitrária. Nessa medida
permite questionar a perspectiva histórica e sociológica eurocentrista segundo
a qual o tipo de Estado correspondente ao capitalismo é o moderno Estado-
nação (Ralph Miliband), enquanto que todos os demais seriam “de exceção”
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
147
(Poulantzas) ou “pré-capitalistas” ou “de transição” (virtualmente todos os
autores do “materialismo histórico”)
21
.
Não possuímos ainda, a meu ver, uma teoria histórica verdadeiramente
solvente das relões entre capitalismo e Estado enquanto a questão da
colonialidade do poder não seja integrada à investigação histórica e teórica
respectiva. Mas aqui não é o lugar e nem a ocasião para ir mais longe acerca
dessa questão crucial.
Em todo caso, o recente debate sobre as relações entre a “globalização”
e o Estado, na perspectiva dominante (eurocentrista) se circunscreve
exclusivamente na presumida crise do moderno Estado-nação sob os impactos
da “globalização”
22
.
Capitalismo, globalização e moderno Estado-nação
O que, não obstante, as tendências atuais do capitalismo e em particular
a hegemonia do capital nanceiro e a ação predaria dos mecanismos
especulativos de acumulação tornaram bruscamente visível foi o fato de que
capitalismo moderno, como um dos eixos centrais do atual modelo de poder
mundialmente dominante, tem estado associado com o moderno Estado-
nação somente em poucos espaços de dominação, enquanto que na maior
parte do mundo tem estado ligado a outras formas de Estado e em geral de
autoridade política.
É mais pertinente, portanto, e mais produtivo, tratar de trazer à luz as
tendências mais dinâmicas que se encontram em desenvolvimento nas relações
entre as mudanças atuais na conguração do capitalismo e os que ocorrem
nas estruturas de autoridade coletiva e de dominação política. A esse respeito,
é possível distinguir as seguintes tendências principais:
21
De Ralph Miliband, The State in Capitalist Society, Nova York: Basic Books, 1969, foi especicamente proposto
como um estudo do Estado nos países chamados “ocidentais”. De Nicos Poulantzas, Poder Político y Clases Sociales
en el Estado Capitalista, México: Siglo XXI Editores, 1969. Uma útil revisão da literatura anterior ao eclipse do
“materialismo histórico” no debate mundial é a de Tilman Evers, El Estado en la Periferia Capitalista, México;
Siglo XXI Editores, 1979 e 1985.
22
Sobre este assunto não deixa de uir uma imensa literatura. Sobre uma parte do debate na América Latina ver,
por exemplo, de Daniel Garcia Delgado: Estado-nación y Globalización, Buenos Aires: ARIEL, 1998. De Francisco
Capuano Scarlato et al., Globalização e Espaço Latino-Americano. São Paulo: Hucitec-Anpur, 1993. E em relação
aos processos políticos vinculados aos culturais, de José Sánchez Parga: Globalización, Gobernabilidad y Cultura,
Quito: Abya-Yala, 1997. De Daniel Mato, Crítica de la Moderna Globalización y Construcción de Identidades, Caracas:
Universidad Central de Venezuela, 1995; de Néstor Garcia Canclini, coord., Culturas en Globalización, Caracas:
Nueva Sociedade 1996, Caracas.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
148
1. A formação de um Bloco Imperial Mundial integrado pelos modernos
Estados-nação do “centro” do sistema mundial;
2.
A luta pela hegemonia regional entre os Estados nacional-dependentes
associados ou em conito com o Bloco Imperial nas regiões mais
conitivas, como no Oriente dio (Israel de um lado, Síria e
Iraque do outro), na América do Sul (Brasil, Chile, Argentina), na
Ásia ndia e Paquistão em um extremo e China e Coréia do Sul no
outro), e na África de modo mais uido, por não parecer existirem
ainda regiões diferenciadas de modo alogo às anteriores, com
exceção da África do Sul;
3.
A erosão contínua do espaço nacional-democrático, ou em outras
palavras a contínua des-democratização e des-nacionalização de
todos os Estados nacional-dependentes onde não se chegou à
consolidação do moderno Estado-nação;
4.
A gradual conversão dos Estados menos nacionais e democráticos
em centros locais de administração e controle do capital nanceiro
mundial e do bloco imperial.
Não é meu objetivo aqui explorar sistemática e exaustivamente cada um
desses processos e seu conjunto. Por enquanto, para nossos ns, é necessário
insistir, sobretudo, na constituição do Bloco Imperial Mundial e na des-
democratização e des-nacionalização dos Estados dependentes e sua conversão
progressiva em uma espécie de agências político-administrativas do capital
nanceiro mundial e do bloco imperial mundial, pois são essas duas tendências
as que expressam mais claramente do que as demais, a re-concentração do
controle mundial da autoridade pública, a re-privatização local desta última e
a sombra virtual de um espaço global de dominação.
O bloco imperial mundial e os Estados locais
Ninguém poderia hoje negar que uns poucos entre os Estados-nação
modernos o Grupo dos 7, agora, com a tardia incorporação da Rússia
– mais fortes, vários deles sedes centrais dos modernos impérios coloniais e
todos eles do imperialismo capitalista durante o século XX
23
formam agora
em seu conjunto um genuíno Bloco Imperial Mundial. Primeiro, porque
23
No sentido de Hobson e Lenin.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
149
suas decisões são impostas sobre o conjunto dos demais países e sobre os
centros nevrálgicos das relações econômicas, políticas e culturais do mundo.
Segundo, porque o fazem sem haver sido eleitos, e nem sequer designados,
pelos demais Estados do mundo, dos quais portanto não são representantes e
a quem, conseqüentemente, tampouco precisam consultar para suas decisões.
São virtualmente uma autoridade pública mundial, embora não um efetivo
Estado mundial.
Esse Bloco Imperial Mundial não é constituído somente pelos Estados-
nação mundialmente hegemônicos. Trata-se, na verdade, da conguração de
uma espécie de trama institucional imperial formada por tais Estados-nação,
as entidades intergovernamentais de controle e exercício da violência, como
a OTAN, as autoridades intergovernamentais e privadas de controle do uxo
nanceiro mundial em especial (Fundo Monetário Internacional, Banco
Mundial, Clube de Paris), Banco Interamericano de Desenvolvimento, entre as
principais) e as grandes corporações globais. Essa trama institucional constitui,
de fato, uma espécie de governo mundial invisível
24
.
Em outras palavras, trata-se de uma re-concentração mundial do controle
da autoridade pública, em escala global. E este é, de meu ponto de vista, o fenômeno
novo mais destacado da chamada “globalização” do atual modelo de poder mundial.
A emergência do Bloco Imperial Mundial talvez fosse melhor chamá-lo
diretamente Global? – implica, obviamente, em que os demais Estados sejam
submetidos à redução crescente de sua autonomia. Isso ocorre, em particular,
com os Estados e sociedade que não culminaram ou não avançaram no
processo de formação dos modernos Estados-nação. E se, por outro lado, se
observa o que ocorre com a sociedade, com as diferenças sociais, culturais e
políticas produzidas pela imposição mundial do neoliberalismo como matriz
de política econômica, tanto dentro de cada país quanto entre países, pode-se
perceber sem diculdade que essa erosão contínua da autonomia (ou soberania)
de tais Estados, consiste sobretudo na des-democratização da representação
política da sociedade no Estado, e desse modo na des-nacionalização da
sociedade e do Estado. Isso é o que mostra claramente a associação estrutural
24
Thomas M. Gallaghy cunhou o conceito de “transgovernance” para explicar o fato de que as instituições
do Estado são imprescindíveis para aplicar ou impor em cada país as normas e as condutas que correspondem
aos interesses do capital e do mercado. Porém que, ao mesmo tempo, essas instituições estatais estão mescladas
com as especícas do capital. Ver “Globalization and Marginalization. Debt and International Underclass”, em
Current History, novembro de 1997: 392-396 e em Developing World 99/00, op. cit: 50-54.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
150
entre as necessidades do capital nanceiro, dos mecanismos especulativos
de acumulação e as tendências de re-concentração mundial do controle da
autoridade pública, cuja maior expressão atual é o Bloco Imperial Mundial.
Esses processos paralelos e interdependentes não implicam, entretanto,
em que a autoridade pública do Bloco Imperial Mundial se exerça direta
e explicitamente em todos os demais espaços de dominação ou “países”
daqueles (salvo de modo excepcional e transitório, como foi o caso da invasão
do Panamá e a prisão de Noriega), embora tendam claramente nessa direção,
como mostram as ações recentes em Kosovo, na Chechênia, na África e agora
na Colômbia e potencialmente em toda a área andino-amazônica da América
do Sul (Plano Colômbia)
25
.
Por enquanto, ao menos, esse Bloco Imperial Mundial precisa dos Estados
locais para impor suas políticas em cada país; desse modo, alguns dos Estados
locais estão sendo convertidos em estruturas institucionais de administração
local de tais interesses mundiais, e outros tornam mais visível que já vinham
exercendo essas funções. Esse processo implica em uma re-privatização local
e global de tais Estados
26
, pois respondem cada vez menos à representação
política dos setores sociais de cada país. Formam parte, assim, dessa trama
mundial de instituições de autoridade pública, estatais e privadas, que em seu
conjunto começam a conformar uma espécie de governo mundial invisível
27
.
A re-privatização do controle da autoridade coletiva
Tal re-concentração do controle mundial da autoridade pública, em
escala global, implica fundamentalmente em uma re-privatização do controle
de um âmbito central da existência social e sua respectiva esfera institucional.
O controle da autoridade coletiva havia sido reconhecido como público durante
25
Desde que foi escrito este texto, essa tendência de re-colonização global está evidenciada pela invasão
imperial/colonial do Iraque e do Afeganistão pelos Estados Unidos e Inglaterra, com o apoio explícito ou
discutido do Bloco Imperial Global.
26
Sobre a questão das relações entre o público e o privado na conguração e na ação da autoridade coletiva,
estatal em particular, adiantei algumas propostas em “Lo Público y lo Privado; Un Enfoque Latinoamericano”,
em Aníbal Quijano, Modernidad, Identidad y Utopía en América Latina, Lima: Ediciones Sociedad y Política, 1988.
27
Depois de minha conferência e terminada esta revisão do respectivo texto, li a obra de Michael Hardt e
Antonio Negri Empire, Cambridge, Mass/Londres, Inglaterra: Harvard University Press, 2000. Sua tese central é
a de que estamos dentro de um Império Global, de características históricas e culturais análogas às do Império
Romano, e que terminou a era do imperialismo e do Estado-nação, que em sua perspectiva são instituições
mutuamente correspondentes. Essa idéia se encontrava no livro de George Soros, The Crisis of Global Capitalism,
Nova York, 1998. Os leitores perceberão que tenho divergências para com essas propostas.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
151
o período da modernidade e em particular desde o século XVIII em diante. O
moderno Estado-nação emergiu, precisamente, como a encarnação do caráter
público da autoridade coletiva. Público no sentido especíco e explícito de que
admitia a participação igual de todos os “cidadãos” e se legitimava, acima de
tudo, por essa razão
28
. Agora, ao contrário, embora uma parte, cada vez mais
secundária, inclusive basicamente simbólica, desse universo institucional seja
ainda reconhecidamente pública, o fato é que os núcleos dominantes dessas
instituições são privados, como as corporações globais, ou são privados como a
tecnocracia administradora das entidades nanceiras e das políticas econômicas
dos Estados, inclusive quando se trata de instituições supostamente públicas,
como as instituições intergovernamentais do capital nanceiro, o FMI ou o
que se conhece como Banco Mundial.
No debate mundial em curso sobre essa tendência de contínua e
crescente erosão dos Estados/sociedades mais débeis porque seu processo
de democratização/nacionalização não chegou a culminar e afirmar-se
sucientemente, a proposta teórica mais difundida a apresenta como uma
tendência ao declínio da própria instituição do moderno Estado-nação
29
.
Essa é uma clara mostra do domínio da perspectiva eurocêntrica de
conhecimento. É verdade que o moderno Estado-nação, junto com a família
burguesa, a empresa capitalista e o eurocentrismo
30
é uma das instituições
fundamentais de cada área do modelo de poder mundial que corresponde
ao período da modernidade e que começa com a América. Também se pode
dizer que o moderno Estado-nação é a instituição mundialmente hegemônica
dentro do universo de instituições que atuam no mundo no conito em
busca do controle da autoridade pública e de seus recursos, especialmente a
violência. O que não é verdade, no entanto, é que o moderno Estado-nação
exista realmente em todos os espaços de dominação conhecidos como países.
Tampouco é verdade que todos os atuais Estados de todos os países, ou
espaços de dominação, tenham o caráter de moderno Estado-nação, ainda que
se auto-representem dessa forma ou inclusive sejam admitidos no imaginário
ou no universo simbólico de cada país.
28
Ver de Aníbal Quijano, “Lo Público y lo Privado, un Enfoque Latinoamericano”, op. cit.
29
A literatura respectiva já é extensa e aumenta a cada dia. Ver, por exemplo, as referências em Daniel
Garcia Delgado, Estado-nación y Globalizacn. Fortalezas y Debilidades en el Umbral del Tercer Milenio. Buenos
Aires: Ariel, 1998.
30
Acerca dessa questão, de Aníbal Quijano, La Colonialidad del Poder y sus Instituciones Hegemónicas, cuja primeira
parte foi publicada com o título de “Poder y Derechos Humanos” em Carmen Pimentel, Comp. Op. cit.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
152
Colonialidade do poder e Estado-nação
A diferença denidora entre os processos que chegaram a culminar e
armar Estados-nação modernos e os que não o zeram reside no modo e
na medida de suas respectivas relações com a colonialidade do poder. Nos
primeiros, esta não esteve imediatamente presente nos espaços de dominação
nos quais foram levados a cabo processos de democratização das relações sociais,
os quais produzem e redenem o caráter dos processos de nacionalização da
sociedade e de seu Estado. Assim ocorreu na Europa Ocidental desde o último
terço do século XVIII até o m da Segunda Guerra Mundial.
A colonialidade do poder, não obstante, esteve e está de todo modo ativa,
pois forma parte do contexto global dentro do qual ocorrem os processos que
afetam todos os espaços concretos de dominação. Isso porque a concentração
dos processos de democratização e nacionalização dos Estados modernos na
Europa ocidental, até o culo XX, explica, precisamente, a imposão mundial da
colonialidade do poder. O eurocentrismo do modelo colonial/capitalista de poder
não se deveu somente, e menos ainda principalmente, à posição dominante na
nova geograa do mercado mundial, e sim sobretudo à classicação social sica
da população mundial em torno da idéia de raça. A concentração do processo
de formação e consolidação do moderno Estado-nação na Europa ocidental
não poderia ser explicado, nem entendido, fora desse contexto histórico
31
.
A outra face do mesmo processo de constituição e de consolidação do
moderno Estado-nação era o mundo colonizado, África e Ásia, ou dependente
32
como a América Latina. Nesse resto do mundo, a colonialidade do poder
não apenas esteve e está presente no contexto global do modelo mundial de
poder, como atua de modo direto e imediato dentro do respectivo espaço de
dominação, criando obstáculos aos processos que se dirigem à democratização
das relações sociais e a sua expressão nacional na sociedade e no Estado.
Se alguém pensa que a diferença repousa em que alguns espaços eram
colonizados e outros não, basta comparar os processos da Europa ocidental
e da América Latina, os dois cenários mais representativos de cada lado das
diferenças nesses processos, que aliás ocorreram no mesmo período, entre
31
Ver “Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina”, artigo citado.
32
Sobre o conceito de “dependência” implicado nessa proposição, ver “Colonialidad del Poder, Eurocentrismo
y América Latina”, artigo citado. Também “Colonialidad del Poder, Cultura y Conocimiento en América Latina”,
em Anuario Mariateguiano, IX, 9, 1997:113-122.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
153
o nal dos culos XIX e XX
33
. Diferentemente da Europa diferença
devida, exatamente, à distribuição diversa da colonialidade do poder entre
ambos os espaços – na América Latina, precisamente ao término das guerras
chamadas de independência, produziu-se o paradoxo histórico mais notório
da experiência latino-americana: a associação entre Estados independentes e
sociedades coloniais, em todos e cada um de nossos países. Essa associação,
ainda que sem dúvida comprometida e confrontada de modo permanente,
embora errático, não deixou, no entanto, de presidir às relações sociais e estatais
de toda a América Latina.
Se tomarmos a América Latina, não poderíamos a rigor admitir como
Estados-nação modernos plenamente constituídos e armados os Estados/
sociedade da área chamada “andina” ou do Brasil, por exemplo, a menos que
se admita como nacionais as sociedades e Estados explicitamente fundados na
colonialidade das relações de poder. O Uruguai e o Chile avançaram um pouco
mais na constituição de modernos Estados-nação, porém à custa do extermínio
genocida das populações aborígenes e de uma apropriação de seus territórios
relativamente menos concentrada e portanto com limites intransponíveis, a
menos que ocorra uma descolonização radical das relações com as populações
que descendem dos aborígenes sobreviventes e que, como todo mundo sabe,
já estão em movimento em ambos os países.
No México, uma revolução social, entre 1910 e 1930, iniciou esse
processo de descolonização das relações de poder, mas suas tendências radicais
foram em breve derrotadas e o processo não pode ser tão profundo e global
para permitir a plena armação de uma sociedade e um Estado democráticos e
nacionais. Essa derrota não tardou a produzir suas conseqüências, perceptíveis
no estrangulamento crescente da descolonização da sociedade e nas tendências
atuais que se orientam para a reconstituição da associação entre o capitalismo e a
colonialidade do poder. Seja como for, trata-se do único lugar na América Latina
onde a sociedade e o Estado avançaram, durante um período importante, no
processo de descolonização do poder, de democratização/nacionalização. Nos
demais países, as revoluções que se orientavam em direção ao mesmo horizonte
33
Essas questões foram discutidas por mim em diversos textos, principalmente em Colonialidad del Poder,
Eurocentrismo y América Latina”, artigo citado; em Estado-nación, Ciudadanía y Democracia; Cuestiones Abiertas. Em Heidulf
Schmidt e Helena Gonzales, comps., op. cit; em “El Fantasma del desarrollo”, Revista Venezolana de Ciencias Sociales,
2, Universidade Central da Venezuela, 2000; em “Colonialidad, Ciudadanía y Democracia”, em Amérique Latine:
Democratie et Exclusion. Paris: l’Harmattan, 1994; em “America Latina en la Economia Mundial”, em Problemas del
Desarrollo, Revista do Instituto de Investigações Econômicas, UNAM, XXIV, 95, México, 1993 .
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
154
entre 1925 e 1935 foram derrotadas, sem exceção. Desde então, os processos
m sido em toda parte erráticos, parciais e nalmente precários. As guerras
civis centro-americanas, desde a cada de 50 até pouco, que obviamente
expressaram os mesmos conitos e interesses, mostraram a ilegitimidade e a
conitividade inevitáveis da colonialidade do poder nesses como em todos os
demais países, mas as forças sociais descolonizadoras foram derrotadas.
Em termos realistas, somente nos países do “centro”, em primeiro lugar,
e naqueles onde foram possíveis profundas revoluções sociais triunfantes,
como na China, ou onde as guerras e derrotas tornaram possíveis processos
relativamente importantes de democratização social, como no Japão, Coréia do
Sul, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia, pode vericar-se o desenvolvimento
de processos de Estado-nação, ainda que com diversos graus de armação
e amadurecimento na direção de Estados-nação modernos. A China, por
exemplo, é hoje um Estado central fortalecido depois de 1949. O que não é de
todo seguro é que tenha chegado a ser uma sociedade totalmente nacional,
que existe no mesmo espaço de um império colonial e certamente não deixou
de ser um despotismo burocrático.
Notavelmente, não é nesses países, e especialmente nos do “centro”
(Estados Unidos, Europa Ocidental, Japão), que se pode observar a erosão ou
declínio da institucionalidade do moderno Estado-nação. O processo iniciado
de unicação política dos países da Europa ocidental não tem o signicado de
erosão do Estado-nação moderno, e sim da constituição de um novo e mais
amplo espaço de dominação para sua vigência. Haverá quem sugira que o
tamanho do espaço de dominação é o fator decisivo do caráter de um Estado?
Ou que a União Européia terá novamente um Estado absolutista ou despótico
somente devido à ampliação do espaço de dominação?
Somente em todos os países nos quais não foi possível culminar ou armar
os processos de democratização/nacionalização de sociedades e Estados, ou
processos de formação de modernos Estados-nação, é que se podem observar
processos de erosão do que já se havia conseguido avançar nessa direção.
Trata-se aqui de processos de des-democratização da sociedade e do
Estado e nessa medida de des-nacionalização de ambos, como parte de uma
tendência mundial de re-concentração do controle mundial das instituições
de autoridade pública, isto é, do Estado em primeiro lugar, e de gradual
constituição de uma trama mundial de instituições, estatais e privadas, de
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
155
autoridade pública, que parecem operar como um governo mundial, invisível
porém real.
A globalização capitalista: uma contra-revolução global
Poucas vezes na história do período da modernidade poderia ser
observado um grau tão notável de re-concentração do controle do poder,
especicamente no âmbito do trabalho e da autoridade pública. Semelhante
extremo é quase equiparável ao que ocorreu com o colonialismo europeu
entre os séculos XVI e XIX
34
.
O curso desse processo poderia localizar-se entre meados da década
de 1970, quando estalou a crise mundial do capitalismo. E seu momento de
aceleração desde o nal da década de 1980, a partir da famosa “queda do
muro de Berlim” em 1989. E muito novamente implica em uma mudança
verdadeiramente dramática em relação ao período imediatamente anterior,
por sua vez localizável, grosso modo, entre o m da Segunda Guerra Mundial e
meados da década de 1970.
Se compararmos ambos os períodos, podemos começar a perceber o
decisivo signicado histórico dessa drástica mudança. Brevemente, que se
trata de uma história conhecida, restringir-me-ei aqui somente a mencionar
as linhas e fatos mais salientes do período entre 1945 e 1973:
1)
A descolonização política do sudeste asiático ndia, Indonésia,
Indochina, Ceilão, etc), do leste asiático (China, Coréia), da maior
parte da África e do Oriente Médio, assim como das Antilhas e da
Austrália e Nova Zelândia.
2)
O triunfo de revoluções sociais profundas, na China, no Vietnam,
na Bolívia, em Cuba, e a extensão de movimentos revolucionários
de orientação “socialista” e de “libertação nacional”, inclusive os
“socialismos africanos”. Em alguns casos, implicaram em derrota
militar dos Estados hegemônicos, como na Coréia, Vietnam,
Argélia e na queda de regimes autoritários e colonialistas como o de
Portugal.
34
No monumental livro de L.S. Stavrianos, Global Rift, the Third World Comes of Age. New York: William Morrow
& Co., Inc., 1981.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
156
3) A extensão de regimes de Welfare State na Europa e nos Estados
Unidos.
4) Os movimentos e regimes na América Latina de tendência nacional-
democrática, que produziam reformas sociais e políticas orientadas
para a democratização das relações sociais e políticas, inclusive a
estatizão dos recursos de produção: peronismo, velazquismo,
allendismo.
5)
O desenvolvimento de movimentos sociais radicalmente democráticos,
anticapitalitas, antiautoritários e antiburocráticos, na Europa, Estados
Unidos e algumas zonas da Ásia e América Latina, produzidos na
segunda metade dos anos 60, sobretudo, pelas ondas revolucionárias
na França, Alemanha, Estados Unidos, China e México.
6)
A exteno de movimentos sociais de democratização radical,
intitulada “libertação” nas relações sexuais e nas relações de gênero,
nas relações “raciais” e “étnicas” e nas relações de idade.
7)
O início da crítica sistemática do eurocentrismo como perspectiva
de conhecimento, sobretudo na América Latina no começo, porém
logo na Europa, Ásia e África.
Todos esses processos implicaram: a) uma ampla des-concentração do controle
da autoridade pública, arrebatando parte desse controle ao colonialismo europeu e
ao imperialismo europeu e norte-americano; b) uma relativa, porém importante,
redistribuição do controle do trabalho entre grupos de capitalistas imperialistas e
locais; c) uma também relativa, porém igualmente importante, redistribuição
de benefícios e rendimentos, seja por meio dos mecanismos do Welfare State nos
países do “centro” ou por meio da extensão de emprego e serviços públicos
(em especial educação, saúde, e segurança social públicas, na América Latina,
Índia, etc.); d) em medida muito menor, uma relativa redistribuição do controle
dos recursos do trabalho, sobretudo por meio de “reformas agrárias” em diversos
países, Japão, Coréia do Sul, América Latina; e) last but not least, a extensão da
crítica anticapitalista e de movimentos políticos anticapitalistas, e de outros
que radicalizavam as lutas anti-imperialistas. De modo a produzir uma virtual
ameaça para o modelo mundial de poder em seu conjunto.
Todos esses processos, movimentos e conitos, produziram um cenário
inequivocamente revolucionário em seu conjunto, na medida em que, embora
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
157
de modos e maneiras desiguais segundo as regiões ou problemas, era o
modelo de poder mundial, como tal, seja em seus regimes de exploração ou
de dominação, ou em ambas dimensões, o que estava em questão e em algum
momento, como no nal da década de 1960, em situação de efetivo risco.
Foi a derrota de todo este contexto, mediante a combinação de medidas
de re-concentração do controle sobre o trabalho que se produziu durante a
crise mundial do capitalismo, e da derrota dos movimentos que alguns chamam
“anti-sistêmicos”, primeiro por uma aliança entre os regimes rivais dentro
do sistema, e da derrota e desintegração posterior dos regimes rivais mais
inuentes (a ex-União Soviética, o “campo socialistaeuropeu), o que permitiu
aos Estados-nação mais poderosos do modelo mundial de poder a rápida e
relativamente fácil – sem resistência apreciável até agora – reconcentração do
controle da autoridade pública, em muitos casos, uma clara re-privatização do
Estado, como no caso peruano por meio do regime fujimorista
35
.
Que é essa “globalização”?
Tudo o que foi dito permite chegar a certas proposições necessárias:
a “globalização” consiste, antes de mais nada, em uma reconguração das formas
institucionais da Colonialidade do Poder, o que implica: 1) uma connua e pida
reconcentração da autoridade pública mundial, a rigor uma re-privatização do controle da
autoridade coletiva; 2) sobre essa base ativa-se o aprofundamento e a aceleração das tendências
básicas do sistema capitalista de controle e de exploração do trabalho. 3) A correspondente
expressão institucional no “centro” é a conguração de um Bloco Imperial Mundial,
integrado, por um lado, pelos Estados-nação que eram mundialmente hegemônicos, sob
o predomínio do principal entre eles, os Estados Unidos; e por outro lado, pelo bloco de
corporações mundiais de capital nanceiro; 4) o Bloco Imperial Mundial está mesclado
estruturalmente com as instituições de controle e de administração do capital nanceiro
mundial, principalmente o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Clube
de Paris; e com as entidades de controle e administração mundial da violência internacional,
social e política, como o Tratado do Atlântico Norte e o Sistema Interamericano de Defesa
Regional; 5) o conjunto desse tecido institucional, estatal e paraestatal, tende a operar como
um governo mundial invisível; 6) na “periferia”, a expressão institucional mais destacada
do processo é a des-nacionalização e des-democratização dos Estados de tendência nacional,
35
Minhas propostas teóricas e políticas sobre esses processos foram apresentados sumariamente em “El Fin
de Cuál História?”, artigo citado.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
158
e nesse sentido especíco trata-se de uma contínua erosão da autonomia (ou soberania) e das
tendências à formação ou consolidação do moderno Estado-nação nas áreas não centrais do
capitalismo; 7) na medida em que o conjunto de tais processos seja o resultado da derrota
mundial dos regimes, organizações e movimentos rivais ou antagônicos ao modelo de poder
capitalista mundial/colonial/moderno e eurocentrado, a atual “globalização” desse modelo
de poder tem o caráter de um processo contra-revolucionário em escala global.
Esse caráter basicamente político da chamada globalização
mostra que não se trata, como em sua imagem mítica, de uma espécie de
fenômeno natural” e portanto inevitável e inescapável. Pelo contrio,
trata-se do resultado de um vasto e prolongado conflito em busca do
controle do poder, do qual sram vitoriosas as forças que representam
a colonialidade e o capitalismo. E, em conseqüência, a globalização” é
uma inevitável arena de conitos tanto entre os vencedores e vencidos
como entre os próprios vencedores, isto é, suscetível de outros resultados.
Apenas de maneira breve, desta vez, é pertinente assinalar que a
reconcentração do controle sobre o trabalho e sobre a autoridade pública não
implicaram uma paralela reconcentração do controle global sobre todas as
outras áreas do poder, especialmente nas relações inter-subjetivas de dominação
social, a de “raça”, de “gênero”, e no modo de produzir conhecimento. O
racismo-etnicismo, a família burguesa e o eurocentrismo continuam a ser, sem
vida, mundialmente hegemônicos. Mas nessas dimensões do atual modelo de
poder e em suas respectivas instituições, até hoje a crise não se tornou senão
mais profunda e mais explícita.
Da perspectiva nacional à global?
Existe também algo neste campo que se não é exatamente novo, de todo
modo é provavelmente uma novidade para muitos não estudiosos do assunto.
Trata-se da mudança de perspectiva inerente à idéia e à imagem vinculadas ao
termo “globalização”. Depois de mundo tempo, agora é possível, e inclusive
é quase um consenso comum, enfrentar o poder e em primeiro lugar o
capitalismo e sua verdadeira e permanente escala: a escala global.
Não somente Marx, na verdade, senão virtualmente todos os que depois
dele debateram essas questões, até antes da Primeira Guerra Mundial tinham
em mente a idéia de capitalismo mundial. Mas desde então até depois da
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
159
crise mundial iniciada em meados da década de 1970, a perspectiva global de
capitalismo como padrão mundial de controle do trabalho foi descartada em
favor da perspectiva chamada nacional, isto é, referida ao Estado-nação.
Esse deslocamento da perspectiva implicou, necessariamente, também em
um deslocamento de problemática ou, em outras palavras, das principais perguntas
signicativas que era pertinente fazer à experiência (ou à “realidade”) e da
signicação atribuível às observões, aos descobrimentos ou às vericações.
Tais deslocamentos de perspectiva e de problemática ocorreram sob a
marca hegemônica do eurocentrismo como perspectiva básica de conhecimento.
A referência privilegiada ao Estado-nação à européia não teria sentido de outra
forma, já que não havia chegado, e nem o fez até hoje, a ser a real estrutura
de autoridade pública da “periferia”.
Esses deslocamentos afetaram, embora em modos e medidas diferentes,
todas as vertentes do debate. Isto é, não somente os defensores do capitalismo
e de suas formas associadas de poder mas também os que exerciam ou tentavam
exercer sua crítica teórica e política. Enquanto que para aqueles facilitava-
se a defesa teórica de seu sistema, para os últimos o resultado foi teórica
e politicamente desastroso. Em primeiro lugar, perpetuou-se a a-histórica
visão dualista/evolucionista entre os chamados pré-capital e capital. Em
segundo, perdeu-se de vista o caráter global das relações fundamentais entre
os processos de exploração e de dominação, dos processos de classicação
social e de suas relações com os espaços particulares de dominação chamados,
com razão ou não, de nacionais.
Nessas condições não era possível reconhecer, porque não podiam ser
vistas, as tendências do capitalismo que agora estão à vista de todos e que por
isso, principalmente, presume-se serem novas. Em especial, a polarização social
global da população mundial entre uma minoria rica e uma imensa maioria
que cresce e que é continuamente empobrecida; a constante concentração
do capital; a contínua revolução nos meios de produção; e ainda quase não
estudada sistematicamente, a tendência ao esgotamento do interesse e da
necessidade de converter a força de trabalho em mercadoria.
Essa perspectiva não apenas tomava o Estado-nação, real ou suposto,
como unidade de estudo, mas também como perspectiva teórica ou metodológica
para investigar as tendências e processos gerais do capitalismo. Essa perspectiva
de conhecimento não podia ser senão reducionista. E, naturalmente, a partir
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
160
dela não era em absoluto difícil demonstrar que nos Estados-nação modernos
dos países do “centro” as tendências globais que agora são patentes para todo
mundo não ocorriam, ou não eram ainda tão visíveis como hoje. E portanto
as diculdades do desenvolvimento capitalista nos demais países eram uma
questão de “modernização”, isto é, em seus termos, de colocar-se na mesma rota
dos mais avançados”, ou de tempo e acerto nas medidas de política econômica,
para aqueles que tivessem ingressado nesse caminho. Em todo caso, era um
problema “nacional” e devia ser resolvido por meio do Estado-nação. Isto é,
não era um problema do poder mundial nem do capitalismo mundial.
Colonialidade e Estado-nação na América Latina
O nacionalismo latino-americano foi concebido e atuado a partir dessa
perspectiva eurocêntrica de Estado-nação e nacionalismo, como uma lealdade
a uma identidade estabelecida ou assumida pelos beneciários da colonialidade
do poder, à margem e não poucas vezes contra os interesses dos explorados/
dominados colonial e capitalisticamente. Por isso, primeiro o liberalismo
latino-americano desde o século XIX e em seguida o “desenvolvimentismo”
e a “modernização” após a Segunda Guerra Mundial atolaram na quimera
de uma modernidade sem revolão social. O materialismo hisrico
naufragou em outro pântano, de natureza igualmente eurocêntrica: a idéia
de que os dominadores desses países eram e são, por denição, “burguesias
nacionais e progressistas”. Desse modo confundiram-se as vítimas e estas se
desviaram das lutas pela democratização/nacionalização de suas sociedades,
onde a descolonização social, material e inter-subjetiva, em termos estritos a
des/colonialidade do poder, é a condição sine qua non de todo possível processo
de democratização e de nacionalização.
A des/colonialidade do poder é o piso necessário de toda revolução social
profunda. Também para um enérgico desenvolvimento do capitalismo nesses
países seria necessária essa revolução/des/colonização, como o demonstra
o destino desta região na economia mundial e os inúteis e inconclusivos
projetos e discursos atuais de “integração de mercado”, seja o Pacto Andino ou
no Mercosul
36
.
Enquanto essas condições não forem removidas, a soberania nacional
não pode consistir em defesa dos interesses dos donos do Estado de uma
36
Ver América Latina en la Economía Mundial, op. cit. Também El Fantasma del Desarrollo en América Latina, op. cit.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
161
sociedade colonial e do controle do trabalho, de seus recursos e de seus
produtos, antes sócios menores dos interesses imperiais, hoje apenas seus
agentes administradores no espaço de dominação chamado nacional. Isso
é antagônico em relação aos interesses da imensa maioria de trabalhadores.
O fujimorismo é a mais acabada expressão dessa perversa experiência
37
.
Nas condições da globalização contra-revolucionária do mundo,
o desenvolvimento de Estados-nação à européia é um caminho sem
saída. E o discurso de que somos sociedades multiétnicas, multiculturais,
etc., não implica, não poderá implicar, na real descolonização, no
sentido de des/colonialidade, da sociedade, nem do Estado, e em vários
casos, dos quais Fujimori no Peru é a ilustração par excellence, serve para
escamotear as preses para a re-legitimação do racismo/etnicismo e
desvirtuar as lutas sociais contra essas formas de dominação
38
.
Para os países onde a colonialidade do poder é o fundamento real
das relações de poder, a cidadanização, a democratização, a nacionalização,
não podem ser reais senão de modo precário no modelo eurocêntrico de
Estado-nação. Nós, povos latino-americanos, teremos de encontrar outra via
alternativa. A comunidade e a associação de comunidades como a estrutura
institucional de autoridade pública, local e regional, surgem no horizonte
com o potencial de chegar a ser não apenas a moldura institucional mais apta
para a democracia das relações quotidianas entre as pessoas, mas também
estruturas institucionalizadas mais ecazes e mais fortes do que o Estado, para
o debate, o planejamento, a execução e a defesa dos interesses, necessidades
e trabalhos e obras de grande fôlego da população do mundo.
A questão da democracia
O que o termo democracia signica no mundo atual, no modelo mundial
de poder colonial/moderno/capitalista/eurocêntrico, é um fenômeno concreto
37
Discuti este tema em vários textos, entre os principais: El Fujimorismo y el Perú, Lima, 1995; “Fujimorismo
y Populismo”, em El Fantasma del Populismo, Felipe Burbano de Lara, Caracas: Ed. Nueva Sociedad, 1998; “El
Fujimorismo, la OEA y el Perú”, em América Latina en Movimiento, 25 de julho de 2000, Quito, Equador.
38
A Corte Suprema do Poder Judicial controlado e manipulado pelo Serviço de Inteligência Nacional, a serviço
dos especuladores e negociantes corruptos do país, decidiu pela legalidade dessa discriminação imposta pelas
empresas das casas de diversão noturna em Lima. Ver meu artigo “Qué tal raza”, originalmente publicado no
volume Cambio Social y Familia, publicado por CECOSAM, Lima, 1999, 186-204. Reproduzido em revista Venezolana
de Ciencias Sociales 2000, 6,1, janeiro-abril: 37-45. Em Ecuador Debate, 49, Quito, dezembro de 1999:141-152.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
162
e especíco: um sistema de negociação institucionalizada dos limites, das condições e
das modalidades de exploração e de dominação, cuja gura institucional é o moderno
Estado-nação
39
.
A pedra de toque desse sistema é a idéia de igualdade jurídica e política
dos desiguais nas demais áreas da existência social. Não é difícil perceber o
que ela historicamente implica, a conuência e a trama entre três processos,
a) a secularização burguesa e sua expressão na nova realidade eurocêntrica;
b) as lutas entre o novo modelo de poder e a “ordem antiga” pela distribuição
do controle da autoridade coletiva; c) as lutas pela distribuição do controle do
trabalho, de seus recursos e de seus produtos, no período do capital competitivo
sobretudo entre seus próprios grupos burgueses, e desde o ingresso no período
monopolista, sobretudo entre o capital e o trabalho.
Fora dessa conuência histórica não se poderia explicar nem entender a
instalação da idéia de igualdade social, da liberdade individual e da solidariedade
social como questões centrais das relações sociais, como expressão da
racionalidade no período da modernidade. A des-sacralização da autoridade
na conguração da subjetividade, de modo que o foro interno individual seja
autônomo, faz parte da secularização da subjetividade, do novo modo de
subjeticação das pessoas e é o fundamento da liberdade individual. Mas por
outro lado, as necessidades do mercado capitalista, assim como as lutas pelo
controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, impulsionavam
o reconhecimento da igualdade social e a solidariedade de todos os seus
participantes. Essa conuência de idéias de igualdade social, de liberdade
individual e de solidariedade social estão na própria base da admissão de que
na sociedade todos têm igualmente a possibilidade de participar do controle
do trabalho, assim como do controle da autoridade coletiva, que dessa forma
se tornava pública pela primeira vez. A democracia se estabelecia, desse modo,
como cifra e compêndio da modernidade.
Dois elementos, no entanto, condicionaram de modo decisivo esses
processos. Em primeiro lugar, o novo modelo de poder tinha caráter moderno,
porém ao mesmo tempo colonial e capitalista. Portanto, não apenas a
racionalidade e a modernidade, mas também a desigualdade social fundada,
ao mesmo tempo, no novo sistema de dominação racial/sexual e no novo
39
Sobre minhas propostas históricas e teóricas a respeito dessa questão, remeto, principalmente, aos textos já
citados “Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina”; “Estado-nación, Ciudadanía y Democracia:
Cuestiones Abiertas” y “El Fantasma del Desarrollo”.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
163
sistema de exploração social capitalista, isto é, a colonialidade da exploração
e da dominação se constituía nele. O mercado, em conseqüência, operava
como piso da igualdade, porém ao mesmo tempo como um teto, isto é, como
seu limite. Mas somente naqueles espaços de dominação, ou países, onde a
colonialidade da dominação racial/sexual não estava imediatamente presente
ou era marginal. O mercado põe em situação formal de igualdade agentes de
condições sociais desiguais. Da mesma maneira, o foro individual não podia ter
a mesma ilimitada autonomia para todos os indivíduos de qualquer das áreas
de existência social onde o poder estava comprometido: em primeiro lugar o
sexo, seus recursos e seus produtos. Assim, as mulheres, inclusive nos países do
“centro”, não obtiveram na época aquele foro próprio, não podiam participar
no âmbito blico, e sim somente no privado, no qual foram reclusas a família,
a atividade sexual e seus produtos, o prazer e a prole. O mesmo ocorreu, em
segundo lugar, com o trabalho, seus recursos e seus produtos. Os que haviam
sido, ou seriam, totalmente vencidos na luta pelo controle respectivo e que
não dispunham portanto senão da própria força de trabalho para participar do
mercado, não poderiam tampouco ser iguais a não ser nos limites do mercado,
e nem individualmente livres mais além de sua subalternidade.
De todo modo, as relações sociais desde então passariam a ter um caráter
novo: sua inter-subjetividade marcada pelo domínio dessa nova racionalidade e
sua materialidade marcada pelo mercado capitalista. Dali em diante, portanto,
o conito social consistiria, antes de mais nada, na luta pela materialização
da idéia de igualdade social, da liberdade individual e da solidariedade social.
A primeira coloca em questão a exploração. As outras, a dominão. A
democracia se constituía, assim, em área central do conito de interesses
dentro do novo modelo de poder. Todo o processo histórico desse modelo
especíco de poder tem consistido na contínua existência dessa contradição:
de um lado, os interesses sociais que lutam, todo o tempo, pela permanência
da materialização e universalização da igualdade social, da liberdade individual
e da solidariedade social. Do outro lado, os interesses que lutam por limitá-las
e sempre que possível reduzi-las ou eliminá-las, exceto para os dominantes.
O resultado até agora tem sido a institucionalização da negociação dos limites e modalidades
de dominação, e a cidadania é sua expressão exata. Dos limites da cidadania depende a
negociação dos limites e modalidades da exploração. O universo institucional que resultou
dessas negociações é o chamado Moderno Estado-nação. Isso é o que, no atual modelo de
poder, se conhece como democracia.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
164
Em segundo lugar, o novo modelo de poder era colonial/eurocêntrico.
Isto é, estava fundado na colonialidade da classicação racial como classicação
social sica e universal e era eurocentrado devido a essa determinação
especíca. Dessas características se originou o fato de que, durante quase dois
séculos, desde ns do XVIII até meados do XX, essa contradição especíca
em que se fundava a democracia não pudesse estabelecer-se plenamente,
a o ser na Europa ocidental. Primeiro, porque nesses países não estava
originalmente presente, de modo direto e imediato como na atualidade, a
colonialidade da classicação social, graças, precisamente, à colonialidade
imposta entre os europeus” e os demais membros da espécie humana.
Segundo, porque na Europa se havia concentrado a mercantilização da força de
trabalho, de modo que o capital era para eles, na verdade parecia a eles, como
a relação social universal. Terceiro, porque neles fora erradicada a modalidade
senhorial de dominação. Em troca, nos demais lugares do planeta, conforme
foi se expandindo o colonialismo europeu, a colonialidade foi imposta como
classicação básica; devido a isso a forma dominante de exploração tendia
à exclusão do salário até ns do século XIX, e as formas de controle da
autoridade tinham caráter estatal/colonial/senhorial.
Em todo caso, a plena institucionalização da negociação dos limites
e das modalidades de dominação e de exploração aparece consolidada nas
sociedades “européias” (Europa Ocidental, Estados Unidos, Canadá, Austrália,
Nova Zelândia) embora sob a “globalização” comece a car na defensiva.
E foi conseguida de maneira tardia e com claras limitações naquelas que não
foram resultado do colonialismo europeu e da colonialidade do poder, como
o Japão, Taiwan, Coréia do Sul. Em todos os demais é ainda uma trajetória
a percorrer, na maioria dos casos, ou por culminar, como em particular na
América Latina.
Globalização e democracia
Circula profusamente no debate político atual a idéia de que a democracia
está em pleno curso de armação em todo o mundo. Essa idéia se refere ao
fato de que a maioria dos governos atuais no mundo são resultado de eleições.
O voto, em conseqüência, é entendido como exclusiva instituição denidora
da democracia
40
.
40
Sobre esse debate ver as referências em meu texto “Estado-nação, Cidadania e Democracia: Questões Abertas”,
em Heidulf Schmidt e Helena Gonzáles, comps., op. cit.,
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Essa idéia de democracia é uma expressão do crescente caráter
tecnocrático da racionalidade burguesa e eurocêntrica, e escamoteia dois
problemas. Primeiro, que o governo de todos os Estados, e em especial dos
não democráticos e não nacionais, ou não plenamente nacionais, é exercido
cada vez mais por tecnoburocracias não eleitas e completamente à margem da
vontade dos votantes, ou pior, contra ela.
41
Essa patente tendência é encoberta,
não obstante, por um grosseiro contrabando intelectual, um argumento que
apesar de ser quase ridiculamente absurdo acabou sendo imposto como de
virtual bom senso: o governo dos assuntos econômicos, sobretudo, e em
geral os assuntos de gestão do Estado, não são problemas políticos, mas
sim técnicos! Segundo, que essa relação entre políticas estatais e votos, não
poderia ser explicada separadamente da “globalização”, i.e. do atual processo
de reconcentração do controle da autoridade pública, que reduz ou busca
reduzir toda participação política dos cidadãos que não seja pelo voto, para
fazer possível a atuação local, nem sempre muito oculta, de um tipo de governo
mundial tecnocrático ou “transgovernance”.
Com toda a vital importância que tem, sem a presença de condições
democráticas nas relações sociais básicas, o voto não apenas pode ser objeto
de fraude, manipulado, escamoteado, como inclusive se é exercido com plena
legalidade, não pode assegurar aos votantes o controle das instituições de
autoridade pública, pois estas são controladas de modo separado e, cada vez
mais, contra a explícita vontade dos votantes.
Não se pode concordar, em tais condições, que a democracia esteja
precisamente em curso de expansão e de armação mundial. Muito pelo
contrário. O capital nanceiro e a acumulação especulativa desenfreada passaram
a ter o domínio do capitalismo mundial, do conjunto da estrutura mundial de
acumulação. E o exercem usando todos os recursos tecnológicos mais avançados
e colocando a serviço de suas próprias nalidades e interesses a racionalidade e
a produção do conhecimento. Essa é uma tendência estrutural atual do poder
colonial/capitalista no mundo. Seu desenvolvimento exige que os espaços
democráticos na sociedade sejam reduzidos, porque esses espaços implicam,
41
O caso mais escandaloso na América Latina é obviamente o de Fujimori no Peru, cujo triunfo em 1990 se
deveu a uma maciça oposição dos votantes peruanos contra o programa econômico neoliberal de Vargas Llosa,
mas que imediatamente impôs a mais extrema e perversa versão do neoliberalismo contra a vontade expressa
de seus eleitores. Desde então se mantém no governo recorrendo a golpes de Estado e a fraudes eleitorais
mundialmente condenados. Isto é, novamente, contra a vontade dos eleitores.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
166
necessariamente, uma distribuão igualmente do acesso e controle do trabalho,
seus recursos e seus produtos, do sexo, seus recursos e seus produtos, da
subjetividade e em primeiro lugar do conhecimento. Por tudo isso, é indispenvel
a distribuição democrática do controle da autoridade blica, isto é, do Estado.
O moderno Estado-nação se constitui, tendencialmente, desse modo e sobre essas
bases. Mas as necessidades atuais de acumulação especulativa exigem, também
necessariamente, a redução desses espaços e, onde possível, sua eliminação ou
o desvirtuamento de suas instituições, como a cidadania e o voto.
O caráter capitalista do poder que se globaliza e o domínio do
capital especulativo dentro da etapa atual do capitalismo são contrários à
democratização da sociedade e, nessa medida, de sua nacionalização, que
todo Estado-nação moderno é nacional somente e enquanto é organização
e representação política de uma sociedade democtica. Essa especa
“globalização” vai des-ocultando cada vez mais sua direção contrária aos
processos de nacionalização/democratização em todas as sociedades e
Estados, mais imediata e drasticamente contra a armação de Estados-nação
da “periferia” e em particular onde a colonialidade do poder preside às relações
sociais, como nos países latino-americanos.
Por outro lado, apesar de toda a sua reconhecida capacidade de distorção,
a racionalidade eurocêntrica pôde ser levada a admitir a crítica e o debate,
precisamente, de seus elementos de distorção, e mais recentemente de sua
colonialidade. Nessa medida e em essas condições foi um dos fundamentos
centrais da legitimação mundial das idéias de igualdade social, de liberdade
individual e de solidariedade social, o que legitimou a luta dos explorados, dos
dominados, dos discriminados, não apenas contra seus opressores, o apenas
para mudar de lugar o poder, mas também contra a opressão, contra o poder,
contra todo poder. Mas desde a crise mundial de meados dos anos 70 do culo
XX, as necessidades e interesses da exploração pressionam essa racionalidade.
As tendências predatórias do capitalismo atual e a re-concentrão
do controle mundial do poder com o Bloco Imperial Mundial abrem
espaço aos fundamentalismos, a todos os preconceitos e mitos nos quais se
baseia a sacralização das hierarquias sociais; pressionam em direção ao uso
exclusivamente tecnocrático do conhecimento, da ciência, da tecnologia, com
o propósito explícito e excludente de fortalecer a exploração e a dominação,
inclusive agora a intervenção tecnológica na biologia humana a m de perpetuar
Aníbal Quijano
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a discriminação racista/etnicista a serviço dos privilégios impostos, através do
colonialismo e do imperialismo, contra a imensa maioria da espécie.
Existe mundialmente uma pressão ativa no sentido da des-modernização
da vida das pessoas e não no sentido da crítica e eliminação do caráter colonial
da versão eurocêntrica da modernidade, e sim em favor da re-legitimação das
mais opressivas formas de poder. O poder foi quase eliminado como tema de
pesquisa, de debate e em particular de crítica, exceto num sentido tecnocrático
e administrativo. Desse modo legitima-se uma postura cínica como orientação
da conduta quotidiana, que o poder como elemento das relações sociais não
pode ser excluído da realidade.
42
O capital nanceiro pressiona em direção
à radical mercantilização de todo conhecimento e o Bloco Imperial Mundial
busca a militarização do controle da investigação cientíca e da tecnologia.
43
O capitalismo especulativo que marca esta etapa da “globalização” exacerba
todas e cada uma dessas tendências.
Nesse sentido especo, a “globalizão implica em riscos mais
profundos e decisivos do que em qualquer momento da história dos últimos
200 anos. Desta vez não se trata somente de tendências de autoritarismo, como
o nazismo, o fascismo, o estalinismo, emergindo na contramão de tendências
democráticas mais fortes que formavam, ainda, parte do contexto histórico
da modernidade e que envolviam não apenas os explorados e dominados, mas
também a uma parte importante da burguesia mundial, posto que as tendências
do capitalismo não haviam podido chegar a seus extremos atuais devido à
resistência mundial, aos conitos entre os poderes rivais, às lutas mundiais
contra o atual modelo de poder. Mas essas lutas foram derrotadas e os conitos
e rivalidade pela hegemonia mundial foram controlados e deram lugar ao Bloco
Imperial Mundial. Por tudo isso, trata-se agora, infelizmente, de tendências que
parecem congurar-se no próprio terreno da sociedade e da cultura desse modelo
de poder, em direção à formação e reprodução de um novo sentido comum
universal no qual o poder, as hierarquias sociais, o controle desigual do trabalho
e de seus recursos e produtos, o controle desigual e concentrado da autoridade
e da violência, o controle repressivo e mercantil do sexo, da subjetividade e
doconhecimento, sejam admitidos como legítimos e, em especial, como naturais.
42
Sobre tais questões no debate chamado pós-modernista, por exemplo Steven Best e Douglas Kellner: Postmodern
Theory Critical Interrogations, Nova York: Guilford Press, 1991.
43
Uma discussão provocante dessas questões, em Paul Virilio: La Bombe informatique. Paris: Editions Galilée, 1998.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
168
Os processos últimos do capitalismo exigem a mais completa
instrumentalização da racionalidade eurocêntrica. Desse modo levam à re-
legitimação da desigualdade que a extrema polarização social em curso implica,
à redução das margens democráticas de acesso ao controle do trabalho assim
como das margens de acesso ao controle da geração e gestão das instituições
de autoridade pública e de seus recursos, em particular da violência.
Enquanto o capitalismo for um dos termos básicos do eixo central
do atual modelo de poder mundial, com processos que necessariamente
irão agudizando suas atuais necessidades ou interesses, suas necessidades
de dominação, principalmente política e cultural, serão impelidas na mesma
direção. Nesse caminho estão os esforços poticos e tecnológicos do
“transgoverno” mundial para concentrar todo o controle da comunicação e
da informação, exatamente aquilo que fascina sus intelectuais e propagandistas
como sinal de “integração” mundial, da redução do tamanho do mundo.
As perspectivas próximas: conitividade e violência
Na imagem tica da “globalização” difundida pelos publicistas do
capitalismo e do Bloco Imperial Mundial, estaríamos imersos em um processo
que escapa às intenções e às decisões das pessoas. Tratar-se-ia, pois, de um
fenômeno natural, diante do qual toda intervenção intencional seria, e é,
inútil. A imagem que circula em toda parte é que enfrentar a “globalização” é
como se um indivíduo pretendesse deter um trem colocando-se à frente dele.
E como se trata de uma integração econômica, política e cultural do mundo,
seria preciso admitir que se trata de uma totalidade sistêmica da qual não
como escapar ou defender-se.
Não obstante, a indagação anterior torna pertinente observar, primeiro,
que não existe tal coisa chamada globalização, pois não maneira de que algum
modelo de poder possa ser totalmente hegemônico, sistêmico, mecânico ou
orgânico, e em geral nenhuma totalidade histórica. A heterogeneidade histórico-
estrutural de todo modelo de poder implica em que os âmbitos de existência
social e as respectivas formas de controle nele articuladas o possam ter ritmos
sistêmica ou organicamente correspondentes. O que ocorre entre a economia”,
a “política” e a “cultura” ou, de outra perspectiva, entre o trabalho, o sexo,
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a subjetividade e a autoridade coletiva, é uma relação descontínua, histórica
e estruturalmente, e do mesmo modo em cada uma das mencionadas áreas.
Assim é factível vericar hoje quando se observam as brechas e contradições
atuais dentro da “economia”, em especial entre a “bolha” especulativa e a
produção de novo valor material. Ou na “política”, nas relações entre o Bloco
Imperial Mundial e os processos vinculados à luta atual por espaços autônomos
para identidades nacionais, étnicas, etc. E obviamente, entre tais “economia”
e “política”, ou entre a crise de racionalidade eurocêntrica e as tendências no
sentido de uma re-colonização da inter-subjetividade, ou anal entre a crise
dos padrões de classicação social e as tendências para a re-classicação da
população mundial em escala global. Essas razões levaram alguns estudiosos
a propor que se pense de preferência em termos de “globalizações” em cada
área e em diversos períodos
44
.
Em segundo lugar, o caráter basicamente político do que se chama
globalizão, tal como ficou mostrado, especialmente em relação à
seqüência entre um período de mudança e riscos revolucionários, cuja derrota
permitiu impor o Bloco Imperial Mundial, afasta a curiosa idéia de que se
trata de uma espécie de fenômeno natural e não um avatar das disputas de
poder e em conseqüência sujeito, sem dúvida, às intenções e às decisões
das pessoas, quaisquer que sejam os prazos do conito e de seus resultados.
Em terceiro lugar, a estrutura de poder que se processa na “globalização”,
tanto nas relações de exploração como nas de dominação, mostra como um
de sus problemas inerentes uma extrema conitividade: entre o capital e um
universo de trabalho mais heterogêneo e portanto menos controlável; entre o
capital nanceiro e uma massa de trabalhadores aprisionados entre a falta de
emprego assalariado e rendimentos e a inescapável necessidade de sobreviver
no mercado; entre ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais numerosos
e cada vez mais pobres; entre o Bloco Imperial Mundial e os Estados locais
e suas tendências nacionais e regionais; entre os Estados que lutam por
hegemonias regionais; entre as lutas pela redução ou simples extinção da
democracia e as que combatem em favor de sua consolidação política e sua
extensão à sociedade; enm, entre as tendências crescentes de reducionismo
44
Embora seu foco de interesse especial seja a área cultural, são pertinentes a esse respeito as propostas de
Goran Therborn em “The Atlantic Diagonal in the Labirinths of Modernities and Globalizations”, em seu
Globalizations and Modernities, Estocolmo: FRN, 1999: 11-40.
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tecnocrático no modo de produzir conhecimento e as tendências mundiais
em direção a outra racionalidade não eurocêntrica
45
.
A enumeração anterior não é de modo algum exaustiva. Põe no entanto
a descoberto fontes e tendências insanáveis de conflito que comam a
emergir à superfície e a transformar-se em lutas ativas. Essa extrema
conitividade inerente ao momento atual do modelo de poder mundial é
também sinal de sua impossível estabilidade. E essas condições não podem
significar senão o potencial igualmente extremo de violência contido
nessa situação e que tem expressões cuja ferocidade é patente para todos,
no Golfo Pérsico, no Chifre da África, em Ruanda-Burundi-Congo, nos
Bálcãs, no Oriente Médio e na ex-União Soviética, assim como agora na
Chechênia ou na América Latina e na Colômbia e em toda a área andino-
amazônica. Essa violência, muito provavelmente, está apenas começando.
E nem sequer tocamos ainda nos possíveis conitos mais violentos que
parecem estar-se preparando para o futuro entrevisível: as disputas entre o
Bloco Imperial e a China (e eventualmente China-India-Russia); dentro do
bloco entre os Estados Unidos e a União Européia, e de cada um de ambos
com o Japão ou com a Rússia. É difícil admitir, diante dessas perspectivas, as
imagens misticadas que circulam no universo de comunicação e de informação
sob controle do capital nanceiro global.
Em suma, a “globalização” do modelo de poder mundial ameaça levar
a seus extremos a polarização social, a reconcentração do controle do poder
mundial em os de uma pequena minoria da espécie humana. Com a re-
colonização do mundo dentro de uma estrutura imperial de domínio a serviço
das piores formas de exploração e dominação; amea com a des-democratizão,
ergo a des-modernização das relações sociais, materiais e intersubjetivas, com a
extrema tecnocratização do conhecimento. Põe a descoberto, pela primeira vez
de maneira explícita, a velha ameaça eurocêntrica de uma barbárie técnica.
45
Sobre os limites do processo de globalização da economia capitalista uma extensa literatura. Entre os
textos de maior interesse, o de Elmar Alvater e Birgit Mahnkopf: Grenzen der Globalisierung, Oekonomie, Oekologie
und Politik in der Weltgesellshaft. Ed. Munster, Alemanha: Verlag Westfalisches Dampfboot, 1996. E o volume
compilado por Robert Boyer e Daniel Drache: States Against Markets. The Limits of Globalization. Londres/Nova
York: Routledge, 1996.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
171
As opções alternativas
A primeira coisa que é necessário estabelecer com toda clareza é que
a integração mundial da comunicão, da informação, do transporte, do
transporte, do intercâmbio de bens e de serviços, assim como as mutações
de nossas relações com o tempo e o espaço, não têm de estar sempre ou
necessariamente associadas com o aumento da exploração e da dominação no
mundo, nem com o agravamento da conitividade e da violência, como ocorre
com as atuais tendências do capitalismo globalizado. O que está em questão
não é, em conseqüência, a integração do mundo, e sim o caráter capitalista,
contra-revolucionário e predador do atual poder mundial que se “globaliza”.
A integração democrática do mundo é um dos mais ilustres e persistentes
sonhos da espécie humana. Trata-se, portanto, não de impedir a integração do
mundo, e sim, pelo contrário, permitir seu mais completo desenvolvimento,
libertá-la da conitividade sistemática e da perversa violência desatada pelas
tendências atuais do capitalismo, de modo que a diversidade da espécie deixe de
ser um argumento da desigualdade na sociedade e que a população do planeta
se integre em um mundo de relações entre pessoas de identidades diversas e
socialmente iguais, individualmente livres.
Nessa perspectiva, trata-se em primeiro lugar de libertar das tendências
do capitalismo e do Bloco Imperial Mundial o processo de integração do
mundo. Isso implica, necessariamente, a redistribuição mundial do poder, isto
é, do controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos; do controle do
sexo, de seus recursos e de seus produtos; do controle da autoridade coletiva,
de seus recursos e de seus produtos; do controle da subjetividade e antes de
tudo do modo de produção do conhecimento. Tal redistribuição signica o
regresso do controle de cada um dos âmbitos vitais da existência social à vida
quotidiana dos homens e mulheres desta Terra.
É verdade que durante mais de duas décadas a desintegração do “campo
socialista” europeu, a derrota mundial dos movimentos “anti-sistema”, o
eclipse do “materialismo históricocomo discurso legitimador do “socialismo”,
entre os principais elementos que se desencadearam junto com a crise
mundial desde meados dos anos 70, permitiram que a integração do mundo
ocorresse como globalização da dominação imperialista. A derrota política
foi acompanhada pela desintegração social e política do mundo do trabalho
Colonialidade do poder, globalização e democracia
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e de seus associados. Originou a desmoralização e a desocupação políticas,
quando não a aberta decomposição política dos derrotados. Produziu entre
eles uma crise profunda e mundial de identidade social, a fragmentação e a
dispersão de seus agrupamentos sociais e políticos, subalternizou novamente
o discurso social dos dominados e explorados e inclusive recongurou seu
padrão de memória. Entretanto, o capital nanceiro pôde levar a cabo, quase
sem resistência, sua ação predatória contra sociedades e Estados dependentes e
contra a avassaladora maioria dos trabalhadores. Esse tempo está, no entanto,
começando a acabar. A resistência está começando mundialmente. Para os
latino-americanos, basta olhar em torno, já que as lutas sociais criaram crises
e instabilidade política em toda a América do Sul.
Todo o tempo de derrota dos explorados e dominados permite aos que
controlam o poder levar a cabo profundas mudanças nas relações sociais de
poder, muitos deles profundos e irreversíveis. Seria inútil, ou pior, derrotado de
antemão, toda tentativa de luta pela simples restauração do que foi destruído ou
mudado. A nostalgia não tem o mesmo rosto da esperança e nem olha na mesma
direção que ela. Porém, na ausência de uma proposta solvente e admitida de
re-conhecimento da realidade e de suas opções reais de mudança em benefício
das vítimas do poder, em períodos semelhantes as lutas de resistência começam,
quase sempre, com a memória do que foi perdido, porque se trata de reconquistar
as poucas concessões arrancadas aos exploradores e dominadores.
E o que se perdeu nestes anos é muito grande e muito importante:
emprego estável, rendimentos adequados, liberdades públicas, e na maioria
dos países do mundo espaços de participação democrática na gerão e
gestão da autoridade pública. Em outras palavras, a exploração se fez mais
forte e a dominação mais direta. As lutas de resistência em todo o mundo
se dirigem, precisamente, à reconquista do emprego, de salários, de espaços
democráticos, de participação na gestão do Estado. O problema, não obstante,
é que nas tendências atuais do capitalismo não existem condições para a
expansão do emprego assalariado, e sim, pelo contrário, para sua progressiva
redução
46
. Se isso é correto, a fragmentação, a dispersão, a heterogeneidade de
46
Ver de Aníbal Quijano: El Trabajo al Final del Siglo XX. Conferência pública por ocasião da comemoração do
Primeiro Centenário de fundação da Confederação dos Trabalhadores de Porto Rico, a convite deles, no paraninfo
da Universidade de Porto Rico, em Rio Piedras, outubro de 1998. Publicado em Bernard Founou-Tchuigoua,
Sams Dine Sy e Amady A. Dieng, comps., Pensée Sociale Critique pour le XXI Siècle. Mélanges en l’honneur de Samir
Amin. Forum du Tiers Monde, Paris: L’Harmattan, 2003: 131-148.
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
173
identidades sociais, étnicas e culturais da população mundial dos trabalhadores
somente aumentarão. Nessas condições, a erosão dos espaços ganhos na
democratização e nacionalização dos Estados locais da “periferia” tampouco
será, provavelmente, reversível na maioria dos casos
47
.
As necessidades atuais do capital pressionam hoje, inclusive nos países
do “centro”, em prol da redução dos espaços democráticos de negociação dos
limites da exploração e da dominação e em prol do desvirtuamento de seus
propósitos, identicando a democracia apenas pelo voto. Na vasta “periferia”,
a colonialidade do poder bloqueou a plena democratização e nacionalização de
sociedades e Estados, e hoje as pressões do Bloco Imperial Mundial reduzem
continuamente os espaços ganhos e em muitos casos conseguiram quase
anulá-los. E sem o controle da autoridade pública ou sem sequer uma plena
e consolidada participação em sua constituição e em sua gestão, os limites da
exploração e da polarização social atual não podem ser controlados.
A luta pela democratização e nacionalização de sociedades e Estados é,
sem dúvida, ainda uma tarefa mundialmente importante na defesa de direitos
conquistados ou de sua reconquista. Mas é indispensável admitir que esse é um
caminho limitado, caso se mantenha a perspectiva eurocêntrica de Estado-nação
moderno. E em todo caso agora é visível que no mais moderno, democrático
e nacional dos Estados, a democracia não deixou de ser, não poderá deixar de
ser mais do que um espaço de negociação institucionalizada das condições,
dos limites e das modalidades de exploração e de dominação.
Por outro lado, dadas as tendências de limitão crescente à mercantilizão
da foa de trabalho, de crião e ampliação do emprego assalariado, a
heterogeneização, a fragmentação, a dispersão, a multiplicação de interesses
e identidades locais conspiram de forma crescente contra a organização e
mobilização dos trabalhadores nas formas estabelecidas durante os séculos
XIX e XX. E nessas condições, a luta pelo controle do Estado é um caminho
limitado e poderia ser, em m de contas, cego. Isto é, o controle mais ou menos
democrático do Estado, a cidadania como igualdade jurídica de desiguais no
poder, não levou, não pode levar, a uma contínua expansão da igualdade social,
da liberdade individual e da solidariedade social; em suma, da democracia.
Os espaços ganhos estão agora postos em questão no “centro” e sofrem
47
Adiantei algumas propostas de debate em “Globalización y Exclusión desde el Futuro” em La República,
Lima, 18 de agosto de 1997.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
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constante erosão na “periferia”. E nas atuais condições sociais e políticas e de
provável ou certo desenvolvimento de suas tendências já assinaladas, as lutas
dos dominados em busca do controle do Estado somente poderiam ter êxito
de modo excepcional e precário.
A prolongada experiência demonstrou, também largamente, que é inútil
tratar de impor à realidade nossos desejos e aspirações, por mais atraentes
e plauveis que possam ser ou parecer. Em vez disso, é indispensável
observar no cenário atual do mundo as tendências e possíveis tendências que
implicariam outras formas de organização, de identicação dos trabalhadores
e de organização da sociedade.
Nessa perspectiva, hoje é demonstrável que os próprios processos do
capitalismo e as tendências de dominação imperial são as que impulsionam
tendências alternativas. Assim, de um lado, na área do controle do trabalho, dos
recursos e dos produtos, devido às limitações na mercantilização da força de
trabalho e da correspondente crise na produção do emprego assalariado, estão
de regresso a escravidão e a servidão pessoal; a pequena produção mercantil
independente é mais disseminada do que nunca e é o coração do que se rotula
como “economia informal”. Na área do controle da autoridade, a formação do
Bloco Imperial Mundial e a erosão dos processos locais de Estado-nação na
“periferia” estão associadas à reprodução de formas locais, pré-modernas, de
autoritarismo, de hierarquização da sociedade e de limitação à individualização,
como ocorre com as tendências fundamentalistas em todo o mundo. o obstante,
diante delas estão tamm em re-expansão a reciprocidade na organização do
trabalho e a comunidade como estrutura de autoridade pública.
Essas tendências exigem ser estudadas e debatidas em relação com
seu potencial de ampliação e consolidação da igualdade social, da liberdade
individual e da solidariedade social em escala global. se sabe que na escravidão
ou na servidão todo resquício de democracia é nulo ou existe para os amos,
uma reduzida minoria. O que o salário e o capital permitem, em termos de
democracia, já foi vericado até o fundo, assim como se vericam agora suas
crescentes limitações e seus prováveis becos sem saída num prazo não muito
longo. Em troca, a reciprocidade consiste, precisamente, no intercâmbio
socializado do trabalho e da força de trabalho, de seus recursos e de seus
produtos. E a comunidade, como estrutura de autoridade, é sem dúvida a forma
de socialização ou democratização plena do controle da geração e da gestão da
Aníbal Quijano
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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autoridade pública. E ambas as tendências ocorrem agora no mundo urbano
novo, no mundo produzido como cenário central da sociedade e da cultura do
capitalismo e da modernidade, como relações livres entre indivíduos livres
48
.
A teoria eurocêntrica sobre a democracia coloca os arranjos de autoridade
entre os senhores escravistas da polis ateniense do século V A.C. como o
momento de origem da linhagem euroia ocidental da democracia, e a
institucionalização dos arranjos de poder entre os senhores feudais e a Coroa
da Inglaterra, no século XIII, na famosa Magna Carta e depois no Parlamento,
como o momento do reinício moderno de sua história. Não por acaso, e
sim porque permite perpetuar o mito do indivíduo isolado, concentrado em
si mesmo e contraposto ao social, e do mito que lhe fundamento e que
baseia na realidade a versão eurocêntrica da modernidade, o mito do estado
de natureza como momento inicial da trajetória civilizadora cuja culminação
é, claro, o “Ocidente”.
Essa teoria, o obstante, bloqueia a perceão de outra linhagem
histórica da democracia, sem vida mais universal e mais profunda: a
comunidade como estrutura de autoridade, isto é, o controle direto e imediato
da autoridade coletiva pelos povoadores de um espaço social determinado.
Para não ir mais longe, essa linhagem não está ausente da própria história da
Europa ocidental. No mesmo século XIII as comunidades camponesas da
área helvética se reuniram e concordaram em associar-se, como comunidades,
na Confederação Helvética, a m de defender-se do despotismo feudal e do
despotismo imperial. A atual República Suíça é a adaptação dessa trajetória
às condições do capitalismo e do Estado-nação moderno, porém mantendo
as instituições chave da democracia direta: o referendo, isto é, a consulta à
cidadania sobre qualquer decisão que afete de maneira signicativa a vida
coletiva, e a ausência de forças armadas prossionais, separadas do controle da
cidadania. A defesa externa e a segurança interna são realizadas de modo direto,
institucionalizado, pela comunidade. Não embalde a Sça foi reconhecida como
um modelo particular de democracia avançada nas condições do capitalismo.
Estas são, evidentemente, propostas de pesquisa e debate. Mas não são
arbitrárias, se as tendências assinaladas forem ativas e vitais no mundo atual,
48
Um debate inicial dessas questões em Aníbal Quijano, La “Economia Popular” en America Latina. Lima: Mosca
Azul editores, 1998. Do mesmo autor: Modernidad, Identidade y Utopía en América Latina. Lima: Ediciones Sociedad
y Política, 1998.
Colonialidade do poder, globalização e democracia
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com a formação de comunidades e de associações regionais de comunidades,
como estruturas genuinamente democráticas de autoridade pública, como
formas de autogoverno popular em muitas áreas urbanas e semi urbanas
do mundo, sobretudo na “periferia”, e com a reciprocidade como forma de
organização do trabalho e de distribuição democrática de seus recursos e de
seus produtos, associada hoje em parte à chamada “economia informal” em
todo o mundo, um horizonte novo está emergindo para as lutas mundiais
em busca de uma nova sociedade, na qual a democracia não seja somente a
negociação institucionalizada do conito contínuo entre vencedores e vencidos,
e sim o modelo quotidiano da reciprocidade e da solidariedade entre pessoas
diversas, socialmente iguais e socialmente livres.
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DEP
Tradução: Sérgio Duarte
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180
* Procurador-Geral da República do Suriname.
proc.gen@sr.net
Combate ao
narcotráco no
Suriname
Subhaas Punwasi*
1. O combate ao crime organizado ligado ao tráco
de drogas no Suriname
O
combate ao crime organizado no setor de drogas no Suriname não
pode ser considerado isoladamente em relação aos problemas de drogas no
mundo. O Suriname não é produtor de substâncias estupefacientes, mas seu
território é utilizado por organizações criminosas nacionais e internacionais a
m de introduzir em nosso país drogas provenientes dos países produtores,
às vezes por intermédio de outras nações. Essas drogas são posteriormente
reexportadas a seus destinos nais, inclusive a Europa. Por esse motivo o
tráco de drogas é considerado uma forma de crime transnacional.
Em conseqüência do envolvimento de grupos rebeldes violentos, como
as FARC, na produção de drogas e na sua proteção, o tráco de drogas e de
armas de fogo e munição para os rebeldes estão intimamente ligados. Diversas
investigações criminais revelaram que o Suriname não é utilizado somente como
Subhaas Punwasi
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
181
local para reexportação de drogas, mas também de armas e munição, sendo essas
armas trocadas por drogas. Dessa forma, o armamento roubado dos arsenais
da polícia e do exército nacionais chegaram às mãos desses grupos rebeldes.
A ameaça que essas organizações criminosas transnacionais representam para
nossos Estados é bem conhecida. A ameaça tem muitas formas, inclusive contra
a economia do país, porque o principal objetivo das organizações criminosas
internacionais é acumular recursos fora das estruturas legais e aceitáveis. São
bem organizadas no plano nacional e internacional, possuem meios modernos
de comunicação e outros recursos técnicos disponíveis e o capazes de inltrar-
se em instituições governamentais e privadas. Procuram manter e fortalecer seu
poder e capacidade de inuência sustentando organizações políticas e sociais.
Não deixam de utilizar a violência, a intimidação e o suborno. O Suriname
não é exceção nesse particular.
Por esses motivos, as organizações criminosas nacionais e internacionais
constituem uma ameaça à nossa segurança nacional, tanto no plano social
quanto no político e econômico. As organizações criminosas transnacionais
se aproveitam do comércio internacional e do relaxamento das fronteiras no
mundo. Temos de levar esse fator em conta no contexto do CARICOM, que
permite a livre movimentação de pessoas.
As organizações criminosas internacionais se beneciam da debilidade e
ineciência de nossas instituições governamentais, das tradições democráticas
pouco desenvolvidas, da instabilidade política e da relativa pobreza de nossos
pses. Conseguem estabelecer uma poderosa infra-estrutura em regiões especícas
do ps e em certas camadas da sociedade a m de poder operar livremente.
Outorgam vantagens às populações locais, que não se empenham na colaboração
com a investigação de atividades ilícitas. Recentemente, um dos jornais do
Suriname atribuiu a deteriorão ecomica às drásticas medidas governamentais
de combate à criminalidade no setor de drogas e lavagem de dinheiro.
Os crimes no setor de drogas, ou a ele relacionados, constituem uma
ameaça global e exigem medidas globais. Por esse motivo, congratulo-me com
o ministro da Justiça e o governo do Suriname pela iniciativa de organizar esta
Conferência Anti-Narcóticos de âmbito internacional.
Os países de produção, transferência, reexportação ou consumo de drogas
têm responsabilidade compartilhada em relação a essa resposta global. Espero
que essa idéia constitua um princípio orientador durante esta Conferência.
Combate ao narcotráco no Suriname
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2. Cooperação nacional e internacional no combate ao
crime organizado transnacional
A necessidade de cooperação internacional para tratar a questão das
drogas de maneira eciente é hoje perfeitamente entendida, devido ao caráter
global do tema. Para que a cooperação seja ecaz, portanto, é preciso que
estejamos bem informados sobre nossas respectivas instituições encarregadas
das questões relativas às drogas.
Nos termos de nossa Constituição (art. 133) o Poder Judiciário é formado
pelo Tribunal de Justiça e pelo Departamento da Promotoria Pública.
O Judiciário (Supremo Tribunal de Justiça e Departamento da Promotoria
blica) estão instalados organizacionalmente no Ministério da Justiça e Polícia.
Isso signica que o ministro dessa pasta é responsável pelo Poder Judiciário.
Segundo o artigo 148 da Constituição, o governo decide a política geral da
promotoria, e em casos concretos pode determinar ao Promotor Público
propor ação criminal no interesse da segurança do Estado.
O Departamento de Promotoria Pública tem competência exclusiva
para investigar e propor ação criminal em todos os atos puníveis nos termos
da Constituição (artigo 145), e é cheado pelo Promotor Público, nomeado
em caráter vitalício. Dessa maneira, a Constituição relevo à posição
independente do Departamento de Promotoria Pública em sua tarefa de
investigação e incriminação. O Promotor Público também tem a seu cargo o
Departamento de Investigação da Força Policial e instrui esse Departamento
quanto à investigação de ilícitos. A Constituição proíbe qualquer interferência
nas investigações e incriminação e nos assuntos pendentes nos tribunais.
O Corpo de Polícia do Suriname possui um Departamento de
Investigão, a chamada pocia judicria, encarregada de investigões
especiais e especializadas. O Departamento de Investigação possui unidades
especializadas cuja tarefa é combater as formas mais graves de crime, inclusive os
relacionados com drogas, lavagem de dinheiro, tráco de pessoas e corrupção.
Esse Departamento investiga os crimes que possuem caráter nacional e
transnacional, estejam ou não relacionados com o crime organizado.
De 1989 até ser nomeado ministro da Justiça e Polícia, o Sr. Santokhi
chefiou o Departamento de Polícia do Suriname. Sob sua competente
liderança o Departamento de Investigação se transformou num elo vital para
Subhaas Punwasi
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183
o combate aos crimes no setor de drogas e com ele relacionados. Esse êxito
pode ser atribuído, entre outros fatores, ao estabelecimento e fortalecimento
de pequenas unidades especializadas, ao desenvolvimento da cooperação
internacional e ao investimento no setor de inteligência.
As unidades especificamente encarregadas do combate ao crime
organizado no setor de drogas ou a ele relacionado são: o Esquadrão Anti-
Narcóticos (Brigada Anti-Narcóticos), a Equipe Especial de Investigação
(Bizjondere Opsporings Team B.O.T.), a Unidade de Inteligência sobre Narcóticos
(N.I.U), o Serviço de Inteligência da Justiça (de Justitiele Inlichtingen Dienst (J.I.D)
e o Esquadrão de Detenção (nossa Equipe A (Arrestatie Team – A.T.).
Na luta contra o crime organizado no setor de drogas é tamm
importante que um país disponha de instrumentos jurídicos ecazes que lhe
permitam inigir graves danos às organizações que tracam drogas.
Em 1992, o Suriname se tornou parte da Convenção de Viena de 1988.
Em 12 de fevereiro de 1998, foi adotada nossa nova Lei de Narcóticos,
completamente baseada naquela Convenção. As penas de prisão e outras
penalidades foram signicativamente elevadas e em certos casos é até mesmo
possível impor a pena de prisão perpétua.
Tamm se deve acentuar que as atividades de preparação e de
conspiração são hoje passíveis de condenação penal e que a lei é também
aplicável a qualquer pessoa, no Suriname ou em águas internacionais, que
venha a ser considerada culpada de certos crimes relativos a drogas a bordo
de uma embarcação.
Com a penalização da lavagem de dinheiro, a introdução de legislação
sobre consco de bens e o estabelecimento do Escritório de Registro de
Transações Inusitadas, o Suriname praticamente cumpriu todas as suas
obrigações internacionais decorrentes da Convenção de Viena, explicitadas
ainda nas recomendações da FATF e da CFATF. A legislação sobre o controle
de precursores e a penalização do terrorismo e seu nanciamento ainda não
entraram em vigor no Suriname.
Nossa legislação de consco de bens se baseia nas penalidades criminais,
e por isso a sentença de condenação é necessária para que possa haver consco.
Na prática, encontramos freqüentemente o fenômeno de construções ctícias
por meio das quais a propriedade móvel ou imóvel permanece fora do alcance
Combate ao narcotráco no Suriname
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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da justiça e da polícia, por estarem em nome de fundações ou de outras
pessoas. A lei de consco precisa ser emendada para que seja possível tratar
adequadamente deste fenômeno.
Em 2002 foi adotada legislação para proteger testemunhas (proteção de
testemunhas) Não possuímos um “programa de proteção de testemunhas”,
como nos Estados Unidos. O Suriname se encontra atualmente em vias de
participar do Acordo Regional de Proteção da Justiça”. Seguimos a orientação
de que não apenas as testemunhas devem ser objeto de proteção, e sim todos
os atores envolvidos na aplicação da lei que estejam ameaçados, tais como
policiais, promotores públicos e juízes.
Desde 1976 existe um Tratado de Assistência Mútua em Casos Criminais
e de Extradição, celebrado com a Holanda. É intensa a cooperação entre o
Suriname e as autoridades holandesas no campo da luta contra as drogas.
Existe um esforço deliberado no sentido de buscar uma abordagem bem
sucedida na questão das drogas a m de ampliar e intensicar a cooperação
internacional; na maioria dos casos, a iniciativa cabe ao Departamento de
Investigação do Corpo de Polícia do Suriname. A maior parte das drogas
(cocaína) que transitam pelo Suriname entra na Europa através da Holanda.
A presença de quase 300 mil pessoas de origem surinamesa na Holanda
e a intensa movimentação de pessoas entre a Holanda e o Suriname constitui
importante base para o tráco organizado de drogas entre o Suriname e aquele
país. As drogas são transportadas como carga, de avião ou barco, assim como
em corpos humanos, do Suriname à Holanda e outros países europeus.
O XTC é transportado da Holanda para o Suriname e em seguida
reexportado para outros países, inclusive os Estados Unidos.
3. Problemas, êxitos e limitações para a eliminação dos
crimes relacionados com drogas
Nos anos recentes conseguimos prender centenas de pessoas envolvidas
neste tráco e apreender grandes quantidades de drogas. Em alguns casos, nos
quais não nos foi possível interceptar o transporte de drogas para a Holanda, as
autoridades policiais holandesas foram informadas de suspeitas de transporte.
Por outro lado, informações recebidas da Holanda sobre a interceptação de
Subhaas Punwasi
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transporte de drogas do Suriname para a Europa provocaram investigações
criminais paralelas no Suriname. Essa intensa cooperação foi bem sucedida,
não apenas no combate ao tráco de drogas, mas também para estabelecer a
conança mútua necessária à cooperação internacional.
Por exemplo, vários anos atrás foi assinado o chamado acordo FICUS,
entre o Departamento de Investigações e o Departamento da Promotoria
Pública do Suriname, de um lado, e o Departamento de Promotoria Pública
e o Departamento Nacional de Investigações da Holanda, de outro, a m de
lançar uma investigação conjunta sobre o envolvimento do chamado “grupo
de Yokohama” em operações de crime organizado em drogas e lavagem de
dinheiro em grande escala. Isso tinha a ver com uma organização criminal
internacional, cujas guras-chave estavam na Holanda e no Suriname. Seu
campo de operações abarcava diversos países da região, da Europa e do Extremo
Oriente. Ao investigar as pessoas diretamente envolvidas, as autoridades
policiais e judiciais do Suriname e da Holanda trabalharam conjuntamente de
maneira intensa. Isso resultou na detenção de dezenas de pessoas em ambos
os países e em extradição de vários dos principais suspeitos para a Holanda.
Desde então, essas pessoas já foram condenadas.
Os líderes dessa organização no Suriname estão diretamente envolvidos
em negócios de câmbio de divisas e de cassinos. Na Holanda operam um
escritório de câmbio de dinheiro na fronteira e estavam em vias de estabelecer
um banco. indícios de que possuem inuência nanceira em uma ou mais
organizações políticas no Suriname. Nesse caso temiam-se inclusive ameaças
físicas contra os agentes da lei no Suriname.
O êxito deste método nos ajudou a decidir a conclusão de um segundo
acordo para que pudéssemos investigar conjuntamente uma organização
criminal composta de surinameses e holandeses que dispunham de contatos
na Colômbia e que tracavam grande quantidade de drogas da Colômbia
para o Suriname para transbordo em direção à Holanda. Essa investigação se
encontra em curso.
alguns anos obtivemos a informação de que uma organização
criminosa de holandeses e surinameses havia estabelecido um laboratório de
XTC no Suriname, dotado de equipamento, recursos e matérias primas de
origem holandesa. Em termos de capacidade de produção, esse laboratório
de XTC poderia suprir todo o mercado do Caribe e mesmo mais além.
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A organização foi desmantelada mediante estreita colaboração das
polícias holandesa e surinamesa e as pessoas envolvidas foram condenadas a
longas penas de prisão. Temos de permanecer alerta, porque indícios de
tentativas de estabelecer novo laboratório de XTC no Suriname.
A cooperação entre o Suriname e a Holanda no combate ao crime
organizado no setor de drogas entre os dois países tem tido êxito. As cuidadosas
inspeções em nosso aeroporto internacional Joahn Adolf Pengel e em Schiphol,
na Holanda, resultaram em queda signicativa das exportações e importações
de drogas através dos respectivos aeroportos.
Seguindo o exemplo da equipe HATO nas Antilhas Holandesas, o
Suriname está organizando uma das chamadas equipes JAP, por meio da qual
os diferentes serviços que operam em Johan Adolf Pengel participarão do
combate às exportações de drogas através de nosso aeroporto internacional. A
chamada Equipe JAP é uma cooperação entre o Departamento de Investigações
do Corpo de Polícia, Polícia Militar, Alfândega e Serviços de Segurança do
Aeroporto, sob a direção do Departamento de Promotoria blica do Suriname.
A Holanda se comprometeu a apoiar essa unidade de combate integrado em
nosso aeroporto. O objetivo da equipe é dar m às exportações de drogas
através do aeroporto, ou pelo menos reduzi-las consideravelmente.
rios anos Suriname e a Holanda estabeleceram um Grupo Conjunto
de Orientação e um Grupo de Trabalho Conjunto para o combate às drogas.
Esses grupos se reúnem anualmente, de forma alternada, na Holanda e no
Suriname. São formados por representantes do Departamento de Promotoria
Pública, do Departamento de Investigação, do Serviço de Alfândega, da Polícia
Militar e do Ministério da Justiça.
A seção surinamesa do Grupo de Orientação é cheada pelo Promotor
Público, e o Grupo de Trabalho é presidido pelo Advogado Geral.
Além da via aérea, a cocaína é também transportada para o Suriname
em navios que atracam no porto do país.
Os volumes são ocultos em arroz, troncos de árvore, tanques de lastro
do navio, objetos soldados no exterior do casco, etc.
Drogas provenientes do Suriname foram interceptadas em diversos
países europeus. Além da Holanda, pode-se mencionar a Bélgica, a Inglaterra,
Portugal e a Noruega.
Subhaas Punwasi
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Isso mostra a necessidade de expandir a cooperação a outros países
europeus que são destino de drogas, a m de combater o tráco.
Após a interceptação no exterior, é preciso revistar, prender e iniciar
procedimentos criminais contra as pessoas responsáveis no Suriname.
suspeita de que organizações surinamesas e holandesas sejam as principais
responsáveis por esses transportes de drogas interceptados em outros países
de destino. O Suriname tem necessitado muitas vezes do auxílio holandês.
Em muitos casos conseguimos localizar, indiciar e condenar organizações
e pessoas no Suriname responsáveis pelo transporte de drogas, impondo longas
penas de prisão, tanto por meio de assistência jurídica quanto de procedimentos
rogatórios.
Às vezes a droga se encontra a bordo de navios que atracam em portos
do Suriname para, por exemplo, embarcar arroz para exportar à Europa.
Atualmente há um caso levado aos tribunais no qual os tanques de lastro de
um navio de propriedade de um cidadão do Suriname, que havia transportado
cimento da Venezuela para nosso país e partiu daqui carregado de arroz para a
Europa, continha grande quantidade de cocaína. Esse caso foi investigado em
estreita cooperação entre o Suriname e a Holanda, e o resultado da investigação
mostra que provavelmente a cocaína fora colocada a bordo na Venezuela.
Há indícios de que navios ancorados em nossas águas costeiras também têm
cocaína colocada a bordo. A possibilidade de serem apanhados é praticamente
inexistente, porque quase não patrulhas; no entanto, o intercâmbio de
informações tem proporcionado interceptações.
Como armei anteriormente, o Suriname o produz nenhuma das
drogas fortes.
O Suriname é usado como país de transbordo de cocaína, especialmente
vinda da Colômbia, e de XTC proveniente da Holanda. A cocaína chega ao
Suriname por diversos caminhos.
A primeira grande apreensão de cocaína no Suriname ocorreu em 1984, e
é conhecida pelo nome de “caso Tibiti”. Um avião havia trazido da Colômbia
200 kg de cocaína. A polícia conseguiu prender o piloto, assim como pessoas
envolvidas no Suriname, inclusive o ex-chefe de nosso esquadrão Anti-
Narcóticos e vários homens de negócios. Todos foram indiciados e condenados
a penas de prisão que na época eram signicativas. Foi a primeira vez em que
um avião que transportava drogas foi detido no Suriname.
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O “caso Mungo”, no qual quase mil quilos de cocaína foram apreendidos
em 1990, também atraiu muita atenção. Houve também o “caso Redi Doti”,
em 1996, quando cerca de 1200 kg de cocaína entraram no Suriname por
via aérea.
Anteriormente, era principalmente no interior do Suriname que os aviões
transportadores de cocaína aterrissavam, e o transporte da droga era assunto
exclusivamente nacional. Isso mudou com o passar dos anos e atualmente
vemos não apenas estrangeiros tratando do transporte de cocaína, mas também
estabelecendo suas organizações no Suriname. Entre os estrangeiros envolvidos
nessas importações brasileiros, colombianos, argentinos, venezuelanos e
guianenses.
Enquanto isso, as organizações internacionais que operam no Suriname
ampliaram seu campo de operação. Além do interior, usam também a zona
costeira populosa e as partes despovoadas dessa região, próxima ao mar, para
as aterrissagens de aviões que transportam drogas.
Usam pistas de aterrissagem construídas ilegalmente em campos de
cultivo, para aviões utilizados com nalidades agrícolas. Às vezes usam estradas
como pistas. Também lançam pacotes dos aviões em direção ao mar adjacente
à costa e a rios interiores. A cocaína também chega ao Suriname por mar.
Mediante o mapeamento sistemático das organizações envolvidas no
tráco de drogas e seus líderes, do contínuo fortalecimento das unidades
especializadas de combate às drogas do Departamento de Investigação do
Corpo de Polícia do Suriname, de investimentos em inteligência e mediante
intensa cooperação com a D.E.A., temos conseguido êxitos nos anos recentes
no combate às importações para o Suriname.
Dezenas de pessoas, inclusive estrangeiros, têm sido presas e milhares
de quilos de cocaína, além de vários aviões, já foram apreendidos. Com essas
prisões conseguimos desmantelar oito organizações criminosas e seus líderes
receberam penas de reclusão por muitos anos. A contribuição da D.E.A. para
esses êxitos foi valiosa.
Estávamos prestes a desmantelar a nona grande organização criminosa
envolvida no tráco de drogas. Após recebermos informação da D.E.A. de
que estavam sendo trazidas drogas por via aérea, e de localizarmos o local
de aterrissagem, a Equipe A se preparou para interceptar o avião e a carga e
prender as pessoas envolvidas.
Subhaas Punwasi
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A operação fracassou porque o líder da organização recebeu um aviso
vindo de dentro da Equipe A e, no último momento, a pista de aterrissagem
foi bloqueada. A Equipe A, oculta nas imediações, viu o avião fazer círculos
sobre a pista e depois afastar-se. O avião nalmente aterrissou na região de
Maratacca, numa área pertencente a um homem de negócios. No local havia
sido construída uma pista e notavam-se indícios de outras aterrissagens.
Os detidos eram de diversas nacionalidades: surinamenses, guianenses, um
brasileiro, um argentino e um colombiano. Foram apreendidos dois aviões e
uma grande quantidade de droga. Os presos receberam penas de reclusão de
até 15 anos.
O caso Commewijne foi uma bela e bem sucedida operação do
Departamento de Investigação do Corpo de Polícia do Suriname, na qual
25 suspeitos foram detidos, inclusive um dos grandes chefões da droga, que
gostava de ser chamado Pablo Escobar.
A cocaína era transportada por meio de aviões, que aterrissavam em pistas
construídas ilegalmente no litoral de Wia Wia, na costa leste, e em seguida era
levada por barco ao distrito de Commewijne. A D.E.A. nos informou a respeito
do transporte aéreo de drogas naquela região. Nesse caso, foi completamente
desmantelada toda a cadeia de organizações surinamesas e estrangeiras e de
pessoas envolvidas no transbordo e armazenamento da droga, assim com os
nanciadores e compradores e a organização local.
Essas são apenas algumas das dezenas de operações bem sucedidas
levadas a efeito no Suriname. Em conseqüência desses êxitos, nos quais líderes
importantes do comércio de drogas foram presos e condenados a longas
penas, e grandes quantidades de cocaína foram apreendidas, vericamos que
o suprimento de drogas passou a ser realizado na Guiana, e agora muitas
drogas são mandadas desse país para o Suriname. O número de apreensões
de remessas de drogas vindas da Guiana por terra, por meio da travessia do
rio Corantijn, que marca a fronteira, é eloqüente nesse particular.
Recentemente identicamos uma grande organização de tráco de
drogas no distrito fronteiriço com a Guiana, que se dedicava a ativo comércio
de armas, munição e cocaína entre o Suriname e a Guiana.
O caso de Roger Khan produziu manchetes no mundo inteiro. A
apreensão de grandes quantidades de cocaína em Paramaribo e a prisão
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de diversas pessoas que as tinham em seu poder levou à detenção de dois
homens de negócios surinameses, além de Roger Khan e de diversos outros
guianenses. A investigão mostrou que a cocaína provavelmente tinha
origem na Guiana e que Roger Khan era responsável pela importação de
drogas no Suriname. Ele estava sendo vigiado pelas autoridades judiciárias e
policiais devido a seu passado criminoso e seus contatos com o submundo no
Suriname. Os responsáveis pela aplicação da lei o consideravam uma ameaça,
devido a alegações de apoio a surinamenses que planejavam ações violentas
contra os agentes. Por constituir uma ameaça à ordem pública e por o
haver sido possível provar de maneira convincente seu envolvimento com as
drogas apreendidas, Khan foi deportado de nosso país para Trinidad, como
estrangeiro clandestino.
Como se sabe, de Trinidad ele acabou passando aos Estados Unidos, onde
será incriminado por organizar transporte de drogas da Guiana para aquele
país. A prisão e deportação de Roger Khan deve ter sido um duro golpe para
as organizações criminosas surinamesas e seus defensores, devido ao fato de
que essas pessoas começaram a divulgar informações falsas de que ele teria
sido drogado e raptado em direção aos Estados Unidos com a cooperação de
autoridades judiciárias e policiais. A deportação de Roger Khan foi uma clara
advertência às organizações criminosas internacionais.
alguns anos, Carlos Bolas, ligado às FARC, também foi deportado do
Suriname devido à sua situação ilegal. Acabou sendo processado nos Estados
Unidos por tráco de drogas e outras atividades criminosas.
4. Algumas perspectivas no combate ao tráco internacional
de drogas
Inegavelmente, o Suriname tem obtido importantes resultados no
combate ao tráco de drogas. Por um lado, esses êxitos são conseqüência
da boa organização de nosso combate às drogas, e da ênfase conferida ao
sistemático mapeamento e desmantelamento das organizações criminosas
nacionais e internacionais em atividade no país. Por outro lado, a cooperação
internacional com outros países, tais como a Holanda, e o apoio da D.E.A.,
nos permitiram conseguir tais sucessos. Teremos de combater a droga em
diversas frentes. Temos de golpear o poder das organizações que tracam
Subhaas Punwasi
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
191
drogas e as pessoas responsáveis por meio de investigações criminais nanceiras
e consco dos ganhos ilegais. Quanto a isso, o Suriname tem um problema
de capacidade. Não possuímos pessoal especializado suciente. Não se trata
apenas de advogados, mas também de peritos em nanças, como contadores
e contabilistas.
A legislação básica existe, porém simplesmente não temos capacidade
para levar a cabo investigações criminais nanceiras em escala ampla a m de
recuperar a riqueza adquirida ilegalmente.
A D.E.A. nos ajudou no mapeamento das pistas de aterrissagem
clandestinas no Suriname. O que é preciso agora é inutilizá-las. Faltam meios
e possibilidades para fazê-lo.
Enquanto isso, as organizões internacionais de tráco de drogas
não se encontram inativas, e inventam novos métodos para trazer drogas ao
Suriname e transbordá-las a outros países de destino, especialmente na Europa.
A grande extensão de nosso interior, nossos rios, nosso litoral despovoado
e nossas fronteiras não vigiadas com a Guiana, a Guiana Francesa e o Brasil
são ideais para introduzir clandestinamente drogas no Suriname. Além disso
os meios e possibilidades de nosso país são limitados. Não somos capazes
de proteger nosso espaço aéreo contra vôos ilegais de transporte de drogas.
Não possuímos helicópteros que possam deslocar-se rapidamente a áreas
inacessíveis para onde a cocaína é transportada. Estamos insucientemente
equipados para monitorar os rios interiores e a zona marítima. Tampouco
contamos com uma unidade marítima bem aparelhada no Departamento de
Investigações do Corpo de Polícia do Suriname, que possa apresentar-se com
rapidez ao local onde haja o lançamento de volumes na zona marítima. Dada
a escassez de meios, e com o apoio de nossos parceiros estrangeiros, o que
fazemos no combate às drogas é quase milagroso.
O êxito na luta contra o crime ligado à droga depende do grau em que
a cadeia de países produtores, países de trânsito e de destino, assim como
consumidores, estejam dispostos a trabalhar conjuntamente nos níveis
de planejamento e operacional e ao mesmo tempo na troca constante de
informações e lançamento de investigões conjuntas, caso necessário.
Nesse pano de fundo, aplaudo o recente estacionamento de adidos
policiais holandeses e da D.E.A. no Suriname, e entendo que em breve virá
Combate ao narcotráco no Suriname
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
192
também um adido policial francês. Estamos examinando a possibilidade de
receber também um adido policial brasileiro.
Dessa maneira, o serviço anti-narcóticos terá a possibilidade de
comunicar-se, trocar informações e iniciar investigações paralelas,
proporcionando apoio por meio de linhas curtas de comunicação. Com a
assinatura de um Memorandum de Entendimento sobre cooperação policial
e judiciária entre o Suriname, Aruba e as Antilhas Holandesas em janeiro de
2006, estabeleceu-se uma base sólida para uma cooperação mais intensa entre
as unidades de combate aos narcóticos nesses três territórios. O Memorandum
será implementado a curto prazo.
O acordo concluído entre o Suriname e a Colômbia em 1993, relativo
à prevenção do consumo, controle e combate à produção ilícita e ao tráco
de narcóticos e substâncias psicotrópicas fornece espaço suciente para a
cooperação no plano policial e operacional contra o crime transnacional
organizado no campo das drogas.
Também é necessário que os países do CARICOM, inclusive o Suriname,
se tornem parte do Tratado Caribenho de Assistência Jurídica Mútua em
questões criminais graves. Esse Tratado proporciona uma boa base para a
cooperação na luta contra as drogas e para o apoiotuo às investigações
de cada país.
Mas os acordos por si sós não o sucientes. Eles servem de base
para o prosseguimento da cooperação e para apoio em plano da política e
da operacionalização.
Em 2002, realizaram-se conversações bilaterais em grupos de trabalho
mistos de autoridades judiciárias e policiais do Suriname e Venezuela e do
Suriname e Brasil. É desejável a continuação dessa atividade a m de criar
estruturas de consulta e troca de informações para o combate internacional
às drogas.
DEP
Tradutor: Sérgio Duarte
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
193
Mercosul: projeto
e perspectivas
Luis Alberto Lacalle de Herrera*
1. Antecedentes
C
omo Presidente do Uruguai durante o período 1990-1995 estive
ligado, junto com integrantes daquele governo, ao processo de nascimento
do Mercosul. Faço estas reexões nessa qualidade e na de membro da direção
do Partido Nacional. Elas derivam de uma concepção geopolítica do Rio da
Prata e dos interesses de minha pátria que tem sido sustentada durante mais
de 170 anos pelos principais atores pertencente àquela força política. Tais
interesses foram expostos e defendidos durante os anos de meu governo por
dois diplomatas ilustres, que são os drs. Hector Gros Espiell e Sergio Abreu,
os quais, junto com os demais representantes dos interesses do Uruguai,
participaram das negociações que deram origem à organização regional que
agora analisamos.
Devo assinalar que em meu país o ingresso no Mercosul foi precedido
por acordos políticos internos que envolveram todas as forças políticas dotadas
de representação parlamentar, as quais apoiaram unanimemente as decisões
* Ex-Presidente da República Oriental do Uruguai.
Mercosul: projeto e perspectivas
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
194
do governo. Pode-se armar, portanto, no caso do Uruguai, que se tratou de
uma decisão autenticamente nacional.
O fato de que agora não sou titular de nenhum cargo no governo deixa
claro que as opines aqui desenvolvidas o de minha exclusiva responsabilidade.
2. As circunstâncias do nascimento
No mês de julho de 1990 chegou à Chancelaria uruguaia a notícia de que
a Argentina e o Brasil se preparavam para assinar um tratado que estabeleceria
um mercado comum entre ambos os países. Como se compreenderá, para o
Uruguai tratava-se de uma notícia de enorme importância nos terrenos político
e comercial, que afetava o relacionamento mais importante de nossa política
externa, diante do qual não podíamos permanecer indiferentes.
Nesses circunstâncias, tomamos medidas para que nossos representantes
comparecessem diante dos negociadores, que estavam reunidos em Brasília, a
m de ocializar nosso desejo de integrar essa futura organização.
Fiéis a uma concepção global da bacia do Prata e na convicção de que seu
equibrio é um objetivo desevel e saudável para todas as partes, propusemos que
o governo do Paraguai fosse convidado para fazer parte da nova entidade. Um
par de países pequenos era a maneira de completar a presença de duas grandes
nações, de articular melhor os países envolvidos e de fortalecer o sentido da
participação do Paraguai em um mecanismo comercial capaz de melhorar sua
condição mediterrânea e contribuir para seu maior progresso e prosperidade.
3. Os objetivos do Mercosul
Tanto pelos documentos assinados quanto pela vontade do governo
uruguaio evidencia-se claramente que a nalidade exclusiva da nova organização
era a de fomentar o comércio entre os sócios. Convém recordar estes aspectos
no momento atual, quando um dos desvios mais notórios e prejudiciais do
Mercosul é o de pretender dar-lhe conteúdo político.
O documento essencial e programático para esse objetivo é o Tratado
de Assunção, verdadeiro “mapa de roteiroda organizão que nascia. É
especialmente claro o preâmbulo desse instrumento internacional que se
deve ter muito presente na hora de interpretar a vontade das partes.
Luis Alberto Lacalle de Herrera
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
195
Evitaremos uma longa e fastidiosa reprodução textual dessas páginas,
às quais nos remetemos. De toda maneira, cabe recordar alguns conceitos
que demonstram o objetivo exclusivo a que fazemos refencia.
No icio a meta é xada de forma claríssima: ... a amplião das
atuais dimensões de seus mercados nacionais, por meio da integração, constitui condição
fundamental para acelerar seus processos de desenvolvimento econômico com justiça
social”. Em seguida o texto estabelece alguns dos mecanismos para isso:
“aproveitamento mais ecaz dos recursos”; “preservação do meio ambiente”; melhoria das
interconexões físicas”; “coordenação das políticas macroeconômicas”; “complementão
dos diferentes setores da economia”. Completa o sentido a chamada a que diante
da consolidação de grandes espaços econômicos” o Mercosul seja uma maneira de
conseguir “uma resposta adequada a tais acontecimentos”.
Como se pode apreciar, as metas estavam e estão claras. Ainda
mais quando no artigo 1 explicita-se o que o tratado “implicaem: livre
circulação de bens, serviços e fatores de produção com eliminação de direitos
aduaneiros e restrições não tarifárias; estabelecimento de uma tarifa comum e
uma política comercial comum para com terceiros; coordenação das políticas
macroeconômicas; harmonização de legislações nas áreas pertinentes.
Fica claro e fora de qualquer discussão que os países concordaram
em criar uma organizão exclusivamente econômica e comercial e que os
órgãos e instituições que se estabeleciam naquele momento, assim como os
que fossem estabelecidos nas etapas seguintes, eram instrumentais para a
realização das metas originais.
Por outro lado e do ponto de vista potico, de nossa parte jamais
teríamos apoiado e nem levado adiante uma negocião que resultasse em
menosprezo da independência política de nosso país.
Esse é, portanto, o Mercosul que fundamos. Qualquer outra interpretação
é alheia à letra e ao esrito do acordo.
4. O funcionamento
Após um período de transição, a nova organização começou a funcionar
plenamente em 1 de janeiro de 1995.
Mercosul: projeto e perspectivas
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
196
As diculdades de ampliar mercados e abrir as economias são bastante
conhecidas. Quando são afetados os interesses comerciais, industriais e agrícolas
de um país, os setores envolvidos exercem ao máximo sua pressão sobre os
governantes, procurando defender suas posições. É natural e legítimo que isso
ocorra, assim como é legítimo e necessário que os governos sejam capazes de
enxergar mais além do que é adjetivo e particular a m de promover o interesse
geral e, sobretudo, cumprir os compromissos internacionais contraídos. Não é
um caminho fácil, como atesta o constante surgimento de notícias de conitos
comerciais no âmbito do NAFTA e ainda na União Européia. A tarefa dessas
organizações regionais é justamente solucionar esses conitos e ir realizando,
pouco a pouco, a harmonização dos interesses e o efetivo cumprimento de
suas metas originais.
Não é verdade que o Mercosul seja um fracasso comercial. O aumento
do comércio recíproco e as integrações empresariais conseguidas são a prova
disso. Surgiram e surgirão conitos pontuais que devem ser objeto da atenção
dos governos e devem ser solucionados por meio do cumprimento de boa fé
dos acordos. Para isso foi estabelecida uma instância jurisdicional cujas decisões
devem transformar-se em realidade.
Tampouco é verdade que tudo esteja funcionando bem. Não mencionaremos
problemas pontuais, sobejamente conhecidos. Diremos, porém, que é muito
mais importante que as bicicletas uruguaias sejam vendidas na Argentina ou
que a entrada de nosso arroz no Brasil não seja periodicamente perturbada do
que compensar assimetrias que todos conhecíamos de antemão.
Mais do que concessões, o Uruguai e o Paraguai necessitam que sejam
cumpridos os preceitos comerciais em vigor, que seja verdade o que dizem os
documentos. Se países que têm de se perguntar sobre o futuro do Mercosul
estes são os dois sócios maiores, titulares de legítimos interesses globais que
os sócios menores também têm e é necessário que indiquem com fatos
concretos qual é a prioridade que conferem à organização regional.
5. O desvio
A nosso ver, o principal problema enfrentado por nossa organização
comercial é de natureza dupla. Por um lado o esvaziamento da institucionalidade
regional provocada pela bilateralidade argentino-brasileira e por outro a
Luis Alberto Lacalle de Herrera
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
197
introdução de fatores de integração política alheios à natureza do que foi
oportunamente acordado.
As magnitudes de toda espécie que diferenciam os sócios maiores dos
menores são um dado da realidade. Antes de subscrever os tratados sabíamos que
nossos vizinhos o grandes e poderosos. Justamente por isso foram acordadas
regras como a da unanimidade para as decisões do Conselho. Escamotear das
instituições do Mercosul determinadas decisões adotadas no plano bilateral é
uma patologia do tratado. Nisso têm responsabilidade importante os países
menores, que consentiram no avanço de um funcionamento defeituoso dos
órgãos comuns.
Muito mais grave é a introdução de elementos políticos na relação
comercial acordada. Esse desvio assume diversas formas. Uma delas,
aparentemente a mais tênue, é a de pretender que decisões políticas
internacionais sejam adotadas de forma cooperativa. Referimo-nos a episódios
como o voto em um ou outro sentido nas Nações Unidas. Nada obriga a que
seja emitida uma opinião “em bloco” de maneira automática, mais além do
que se possa livremente coincidir no exercício de uma vontade autônoma
de cada nação. Estão no mesmo plano as tentativas, felizmente frustradas, de
coordenação militar, aspecto inadmissível para nossa pátria.
Nesse plano de análise é particularmente grave o estabelecimento do
denominado parlamentodo Mercosul. O Protocolo de Ouro Preto estabeleceu
a Comissão Parlamentar Conjunta como uma instância razoável de coordenação
legislativa encarregada de cumprir o disposto no artigo 1 do Tratado de Assuão,
que indica que os Estados Partes deverão harmonizar suas legislações nas áreas
pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração (ênfase nossa).
Os signatários tinham perfeito entendimento do signicado parlamentar daquilo
que acordaram. Os parlamentos deviam acompanhar o processo de integração,
dentro de suas competências, procurando adequar as normas legais referentes
ao comércio e à economia. Nada mais e nada menos. O estabelecimento
do denominado “parlamento” é alheio aos tratados originais e ao Mercosul
original: trata-se de um projeto independente que, atrevemo-nos a prognosticar,
somente gerará mais problemas em lugar de contribuir para solucioná-los. Para
as nações pequenas é evidentemente prejudicial pertencer a esse “parlamento”,
no qual sempre estarão em minoria. Cabe, porém, formular considerações
semelhantes sobre a presença em tal organismo de nações como o Brasil, com
Mercosul: projeto e perspectivas
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
198
personalidade nacional e nacionalista muito forte, com uma política exterior
própria e característica e com uma vontade natural de participar nos mais altos
veis das nações. Que acontecerá no dia em que uma decisão do “parlamento
do Mercosul seja contrária aos interesses do Itamaraty ? É claro, e todos sabemos,
que o Brasil não levará em conta essa resolução.
De calibre semelhante é o erro de criar a categoria de “sócio político”
do Mercosul, opinião que emitimos independentemente de que hoje se trate
da incorporação da Venezuela. Juízo idêntico nos mereceria o fato caso se
tratasse da Colômbia ou do Peru. Mais do que isso, não consideramos que
entre os sócios fundadores da organização propriamente dita exista um vínculo
“político” em sua plenitude; somente existem compromissos desse tipo na
matéria comercial que é o objeto dos acordos em vigor. Não concebemos
associação política total entre as nações pelo simples fato de que os interesses
de cada uma não são – e nem podem ser – idênticos. Nenhum país pode ser
ontologicamente igual a outro. Nem sequer a antiga aliança entre o Reino
Unido e os Estados Unidos, uma das mais sólidas da história, leva a que se
confundam os interesses políticos. Mal podemos pensar que nos una algum
laço político com a Venezuela. No plano comercial, tudo o que seja conveniente
depois de nalizadas as negociações pertinentes, que no caso especíco foram
omitidas. está o problema maior do Mercosul, na ausência de acordo sobre
sua natureza essencial, no não cumprimento de suas normas segundo convenha
no plano adjetivo e circunstancial. A visão hemiplégica da organização é seu
principal defeito. Não funciona para que produtos uruguaios ingressem na
Argentina ou no Brasil, mesmo em violação das decisões das jurisdições
regionais por falta de cumprimento; mas funciona para impedir tratos de nosso
país com os Estados Unidos.
O atual conito entre a Argentina e o Uruguai proporciona outro
exemplo de funcionamento, ou de não funcionamento. Os bloqueios levados a
efeito nas vias de acesso e pontes sobre o rio Uruguai violam o direito ao livre
trânsito de pessoas e mercadorias e portanto violam o Tratado de Assunção.
Não obstante, a Chancelaria brasileira não hesitou em sustentar que se trata de
um assunto bilateral no qual o Mercosul nada tem a fazer. Prevaleceu a força da
relação bilateral dos países maiores sobre os compromissos internacionais.
Ou o Mercosul funciona integralmente ou não funciona, e portanto seu
conteúdo está esvaziado, somente existe no papel.
Luis Alberto Lacalle de Herrera
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
199
6. A ansiedade histórica
Entre os piores defeitos históricos de nossa sociedade pode-se incluir o
de querer progredir no papel, sem fazer caso da realidade. Também pagamos
tributo às teorias políticas abstratas, ao reinado do voluntarismo. Acreditamos
que basta desejar algo, explicitá-lo em uma lei ou tratado, para que de fato
exista. A história de nossas nações republicanas e de origem espanhola é o
permanente choque entre “o que se deseja e o que se pode”, entre a ilusão e
a realidade. O Brasil pareceu escapar a essa tentação por meio de um devir
nacional muito sábio. Hoje somos semelhantes na semeadura de ilusões.
Não se fez funcionar corretamente um Mercosul comercial e o queremos
“político”, e mais ainda, queremos uma Confederação Sul-americana de Nações
quando muitas de nossas pátrias ainda não são capazes de um autogoverno
sustentado, justo e integrador de seus estamentos sociais, com instituições
vivas na realidade quotidiana.
A soberba está permanentemente de emboscada. Tem predileção especial
por atacar os que exercem o poder. Qualquer Presidente que sabe ter um
mandado com término denido, e que voltará inexoravelmente e é muito
bom que seja assim ! a ser simples cidadão, sente-se habilitado a acreditar
que dentro de seu mandato poderá mudar o mundo. Não ! o que cada um
pode fazer é terminar o que outro tenha iniciado, cuidar do que já funciona
ou começar uma tarefa que seus sucessores levarão a termo. Devemos nos
precaver contra a ansiedade histórica.
É preciso mencionar propostas teóricas preocupantes não apenas em
seu conteúdo mas também devido à relevância intelectual e política de seus
proponentes. Aludimos a Helio Jaguaribe e Carlos Alvarez. O primeiro é
um dos pensadores mais vigorosos do Brasil contemporâneo, e o segundo é
Presidente do Conselho de Representantes do Mercosul.
Cada um deles publicou trabalhos em “Convivência e bom governo”
(Editorial Edhasa, Buenos Aires 2006) nos quais sustentam posições que
nos alarmam, mais além do que sejam visões já conhecidas e rechaçadas por
aqueles que, como nós, defendemos a soberania de nosso país, assim como
a dos demais.
Jaguaribe outorga ao eixo Brasil-Argentina a tutela sobre as nações sul-
americanas, acrescentando hoje a incorporação da Venezuela ao grupo que
Mercosul: projeto e perspectivas
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
200
denomina ABV, que seria encarregado de liderar não apenas o Mercosul mas
também toda a América do Sul. É uma posição perigosa, abonada apenas
pelo entusiasmo patriótico do ilustre pensador. Com todo o respeito, as
nações mencionadas ainda têm muito a realizar no âmbito interno para poder
oferecer-se, sem solicitação de ninguém, para encarregar-se de nosso destino.
A Argentina e a Venezuela, em campos distintos das próprias atividades,
têm um grande décit em matéria política, institucional, democrática, de
vigência do Estado de Direito e de capacidade para representar toda a sua
respectiva sociedade, para que disponham de energias sucientes para outros
empreendimentos.
O Sr. Alvarez menciona a circunstância de que na atualidade os
Presidentes de algumas nações de nosso continente participam de uma
família de idéias” comum e isso, segundo sua opinião, facilitaria as aventuras
de integração política que comentamos. O conceito é muito grave e muito
equivocado. Os governos passam e os interesses nacionais permanecem. Grave
seria que nossos países embarcassem em uniões políticas supranacionais devido
à mera existência de semelhanças ideológicas entre os senhores Kirchner, Lula
da Silva, Chávez e Tabaré Vazquez, coisa que está por ser provada, pelo menos
em seus resultados práticos.
7. Um caminho
Grande parte do que é bom no Mercosul deve ser resgatado e pode ser
resgatado. Para isso é preciso trazer as ilusões à realidade e ter capacidade
para sentir-se grande fazendo somente o possível, bom e positivo, o que é
uma medida de grandeza para os homens de Estado. O Mercosul possível,
bom e positivo para os povos é o que traga prosperidade, e ela vem com o
investimento e o emprego.
Está claro que isso implica em que seja verdade comprovável a
inexistência de obstáculos ao comércio. Que um investidor possa instalar-se
no Uruguai na certeza de poder vender ao Brasil ou à Argentina. Que se os
tribunais regionais decidirem a favor de uma empresa de um país, o outro país
acatará a decisão. Que seja possível passar de um país a outro sem o risco de
bandos que bloqueiem o trânsito diante da passividade dos governantes. Que
por mais anidades que tenham os governos dos países grandes, elas não serão
sucientes para excluir os demais sócios.
Luis Alberto Lacalle de Herrera
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
201
Tudo isso hoje não é verdade. Enquanto não seja verdade não haverá
Mercosul completo, vigente e vivo. Tampouco haverá bases para pensar em
outras formas mais elaboradas e complexas de associação.
Uma forma de exercer a qualidade de estadista de nossos atuais
governantes, uma maneira mais útil para todos, uma meta mais modesta
porém não menos importante para a integração econômica, seria encontrar
uma solução para o problema do gás natural.
Existe na vizinha Bolívia um mar de s. Não obstante, o Chile planeja
tra-lo líquido da Indonésia e o Brasil de Dubai. Eis uma boa tarefa
para provar o espírito integracionista em algo concreto, mais concreto do
que as declarões presidenciais e muito mais útil para o desenvolvimento
de nossos países. Vejamos aí, no terreno da realidade, quão verdadeiro é o
espírito de integração...
Para onde vai o Mercosul? Não sabemos. Precisamos saber.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
202
Acerca da grandíssima
importância de um
partido
*
Hugo Chávez**
A construção do novo paradigma
P
au que nasce torto, nunca se endireita”. Tenhamos conscncia, iros
e irmãs, que está nascendo uma árvore e nós somos seus pais, suas mães, e além
disso até mesmo parteiros. Cuidemos ao máximo para que esta árvore não nasça
torta, que nasça completa, que naa reta; que nosso partido seja um verdadeiro
novo partido, que rompa com todos os esquemas de partidarismo político que
se instalaram na Venezuela e no mundo durante as cadas anteriores.
Esse velho paradigma do partido e do partidarismo se esgotou. Temos
de inventá-lo. Algm falava de Sin Rodrigues: Ou inventamos ou
erramos”. Temos de inventar esse nosso novo partido, que é, efetivamente, uma profunda
e imensa necessidade política, social, estratégica, tática, plena necessidade; criar um poderoso
instrumento, uma nova e poderosa organização, exível, dinâmica, unida, unitária.
* Discurso do Início da Construção do Partido Socialista Unido, 24 de março de 2007.
** Presidente da República Bolivariana da Venezuela.
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
203
Antonia
1
falava do corpo, diga-me você: em que se parece uma unha,
esta unha à orelha? Mas as duas se necessitam. Os componentes do corpo são
uma grande diversidade; é uma fórmula que tem uma resultante. Digo isso
porque temos ouvido, lamentavelmente, porta-vozes e não exatamente da
oposição, dizendo que não estão de acordo com o pensamento único. Bem,
quem falou disso? Ninguém falou em pensamento único. Pensamentos muito
diversos, exibilidade, amplitude, visão holística, integral, sistêmica: é uma nova
conformação. Além disso, não venho aqui para ler-lhes uma cartilha produto
do trabalho de um pequeno grupo, ou meu próprio, fazendo um manual do
partido, nada disso. Convidei-os, e continuo a convidar a todos e respeitamos
as dúvidas de quem as tiver, porém reitam a tempo, porque depois podem
arrepender-se para que construamos o grande Partido Socialista, Revolucionário,
Bolivariano do culo XXI Venezuelano; para que sejamos construtores, em
condições de igualdade: para nos juntarmos e trazer opiniões para tudo isso
que iniciamos, os Cinco Motores, as Sete Grandes Linhas, o Projeto Nacional
Simón Bolívar, a nova etapa; o início do novo governo, tudo o que respeita à Lei
Habilitante, à Reforma Constitucional, à nova Geometria do Poder, Moral e
Luzes, a explosão do Poder Comunitário.
É a tarefa de articular movimentos, partidos, na hora de fazer as listas para
os candidatos a deputado, a deputados regionais, a governadores; e que tarefa,
porque é uma luta, é a IV República viva e em movimento, o partidarismo, o
sectarismo, o “qual é o meu”.
Isso tem que acabar, companheiras e companheiros... o qual é o meu. Somos
todos iguais, somos gente honesta. Eu critico essa coisa de estar utilizando
o dedo; na hora das discussões entre os partidos, na hora de tomar decisões
para inscrever candidatos a Governador. Vamos ver se reelegemos este ou se é
preciso buscar outro, inclusive eu tive de dizer: olhe, espere, agüenta, controla
teus ímpetos, porque quantos conitos regionais, enfrentar fatores regionais, o
inimigo interno sabotando o governo, acusando de não sei quantas mil coisas, de
dentro das próprias leiras; somente para tratar de que o outro caia e em seguida
seu partido, o outro partido, buscar a governadoria ou a prefeitura.
Em certas ocasiões houve ataques contra ministros, bons ministros e
ministras, de dentro do governo, um partido atirando contra o outro para que eu
tire ou desloque a este, para nomear outro. É assim que se faz uma revolução?
1
Antonia Muñoz, Governadora do Estado Portuguesa.
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
204
É preciso ver o prejuízo que sofreu Salvador Allende, Presidente mártir,
quanto prejuízo ele sofreu com o sectarismo dos partidos, da unidade popular,
aqui também nos prejudicou, e muito. Às vezes alguém chega a um ministério
e começa a movimentar todo mundo para trazer o partido quase todo para
tornar-se proprietário desse ministério; isso não pode ser, não pode ser que
algum partido pretenda que esse território seja seu. É preciso jogar tudo isso
na lata do lixo. E como vamos fazer isso? Construindo o Grande Partido Socialista
Bolivariano e Revolucionário, unido de verdade.
Em alguns casos, faões internas em pugna comam a procurar
assinaturas, supostos aliados para tirar algum Governador, sem nenhum tipo
de fundamentação ou debate.
No futuro, não muito distante, em que tenhamos nosso grande partido,
assim creio rmemente, se tivermos um Governador, o partido tem de avaliar,
mas não para pedir-lhe uma comissão, ou pedir um contrato para empresa
de meu irmão ou de minha amiga tal, para que eu ganhe uma comissão; não,
não é para isso.
Porque ainda muito disso, e vocês sabem mais do que eu, inclusive.
Agora, num futuro não muito distante, se tivermos um Governador,
uma governadora e se o partido tiver objeções, vamos debater o assunto, aqui
estão as provas, porém de maneira coordenada e disciplinada.
E se for preciso fazer um processo político contra alguém, contra um
ministro, um Governador, um prefeito, qualquer pessoa, faz-se a investigação
política e se pune politicamente.
Mas não como produto de rivalidades pessoais, rivalidades partidárias,
sectárias, etc. São esses os vícios que herdamos da IV República, que ainda
sobrevivem entre nós. Eu tenho em que com o Partido Único vamos
conseguir apagar essas velinhas – como diz Antonia Muñoz.
Agora, precisamos ter cuidado, portanto, para começar bem, dando os
primeiros passos na direção correta. Por isso, aqui em meio aos propulsores
e propulsoras, desses 2.398 que estamos juramentando hoje, e em maio aos
15 mil propulsores e propulsores que juramentaremos no próximo dia 19 de
abril, para que desde hoje se espalhem pelo mapa da pátria a m de cumprir
sua tarefa; em nosso seio, propulsores e propulsoras, não deve haver dizia
Antonia nem um só embusteiro, não deve haver nenhum personalista, sectário; guerra
ao sectarismo, guerra ao protagonismo, guerra ao personalismo, à ambição.
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
205
Aqui devemos estar como os melhores revolucionários, as melhores
revolucionárias, o homem novo, a mulher nova, demonstremo-lo agora. Tenho
muita em vocês, sei que não vão me deixar mal, nem deixaremos mal nosso
povo e nossa história, sei que todos vocês estão conscientes da grande tarefa
que estamos assumindo.
Por isso dizia, no começo, quão importante tem sido a tarefa da comissão
promotora e dos líderes sociais, dos diferentes movimentos sociais, nestas
primeiras semanas de formação desses batalhões de propulsores, rumo à
formação dos batalhões socialistas, das circunscrições socialistas; rumo ao
congresso de fundação do Partido Socialista Unido da Venezuela; com o
trabalho de todos nós, devemos haver formado o partido antes que termine
este ano de 2007. É uma necessidade, devido ao momento que estamos vivendo
no plano interno na Venezuela.
Sejamos nós, cada um de vocês, cada uma de vocês, chama viva para
iluminar e espada aada para que ninguém se equivoque se tivermos de
desembainhar a espada aada para defender os interesses do povo, os interesses
da Revolução, os interesses supremos da República Bolivariana.
Antes de 27 de fevereiro, os que participamos, nos angustiávamos, quantos
esforços zemos, mas nunca pudemos conseguir a unidade dos fatores com os
quais entrávamos em contato; foi impossível obter uma Plataforma Unitária,
rumo ao que se pregurava, não como um putsch, um golpe de Estado; não, era
uma rebelião cívico-militar. Onde apareceram os estudantes? em Valencia.
Reunimo-nos com movimentos estudantis, e que se ouvia? Não, temos tantos
estudantes, 3 mil estudantes e trabalhadores na Costa Oriental, e petroleiros;
tínhamos ilusões, imaginava-se a rebelião cívico-militar, mas em 4 de fevereiro
de 1992 somente os estudantes de Valencia e outros compatriotas civis nos
acompanharam.
O mesmo ocorria com pessoas de outros partidos e grupos, que diziam
ter velhos combatentes, guerrilheiros adestrados; então, nós nos sentíamos
apoiados, porque tínhamos soldados, rapazes de 19, 20 anos, não treinados para
esse tipo de guerra e além disso tampouco com formação política; camponeses,
nossos lhos camponeses, os lhos dos operários, muitos dos quais deram as
vidas naquela madrugada, não duvidaram, ninguém recuou, nenhum soldado
recuou, todos avançaram.
Mas os movimentos políticos caram, nem um apareceu, nem um. E
quase todos sabiam. Quantos contatos zemos com o velho MAS (Movimento
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
206
Ao Socialismo), mandamos mensagens, indiretas, diretas, com estudantes da
universidade de Maracay, como se chama? A UCV de la Morita; mensagens
no estado Bolívar onde haviam feito compromissos de tirar operários da
siderúrgica, operários dos sindicatos de Guayana, a massa operária; e diziam ter
prontos milhares de trabalhadores que sairiam a apoiar a insurreição. Ficamos
sozinhos, exceção heróica, o grupo de estudantes da universidade de Carabobo
que foi juntar-se aos soldados em Carabobo, em Valencia.
E quatro deles morreram heroicamente, inclusive uma mulher, Columba,
que ainda vive conosco e a trazemos aqui como compromisso de vida, de
cada dia, de cada noite. E os soldados que ali morreram. Agora, qual foi a
causa disso? Era que nunca pudemos fazer uma reunião, e na verdade nos
cansamos de propor; na Força Aérea nos reuníamos, aqui com um acolá com
outro. Tinha de ser separadamente, lembra-te ? E nós, mas vamos fazer uma
reunião. Não, não, porque alguns vinham com antigos ódios da luta armada,
outros simplesmente diziam que não, porque nosso partido é um partido novo
e não quer contaminar-se com o velho; qualquer tipo de desculpa.
“Baderna, baderna, essa gente serve para baderna.”
Necessidade de uma consciência política
Lembro que trouxe um caminhão cheio de fuzis e que paramos em um
lugar onde nos tinham dito que iam chegar alguns combatentes. Eu estava preso,
iam me levando preso, e passei a um lado do camino. Não chegou ninguém,
nem um só. Ali estavam os fuzis, intactos. Aqui está o caminhão, disse eu.
E os soldados, meus soldados, o chofer do caminhão, e dois soldados
de guarda estavam presos, e eles zeram seu dever, caram parados ali
esperando alguém que nunca chegou. Sentimos uma profunda dor.
Agora, um dos motivos daquilo foi, insisto, ou a razão mais poderosa, foi
a profunda divisão. Lembras-te, Francisco? Aquele dezembro difícil em 2001,
por causa do famoso pacto de San Antonio, chegou a Bandeira Vermelha,
se inltrou, e outros grupos mais com um grupo de ociais, manipulados,
ingênuos, sem experiência política. Eles, de boa fé, por trás do comando,
assinaram o pacto de San Antonio e depois me chegaram em Maracay com o
pacto feito, e eu o rasguei e joguei no lixo. Não reconheço pactos, isso não é produto
de nenhum debate, de nenhuma discussão, de nenhum comando; isso é anarquia, e
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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me lembrei de Miranda quando disse: “Baderna, baderna, essa gente só serve
para baderna”, e aqui se trata de fazer uma Revolução.
Uma Revolução Antiimperialista, uma Revolução Socialista. Na noite de 4 de
fevereiro havia uma ordem no interior das leiras, na escuridão, na sombra,
é preciso matar Chávez; naquele dezembro por pouco não me mataram, e
o plano para me matar surgiu desses grupos ali inltrados, grupos políticos;
camos sabendo disso depois que estávamos presos, quando começaram a
aparecer coisas que passavam por nossas costas.
Em Yare, lançava mil raios e centelhas contra tanta infâmia e tanta
insensatez de alguns... de pessoas que se dizem revolucionárias ou de esquerda.
Baderna, só baderna. Mentira, só mentira.
Por isso eu pensava que quem ia ser mais favorável a esta proposta do
Partido Unido iam ser os partidos pequenos; mas compreendi que algumas
pessoas acreditam, ou vêem o partido como um m, e o partido deve ser um
instrumento.
A unidade revolucionária
Quanta baixeza. É o velho partidarismo, e por isso, desta tribuna, volto
a convidar, sobretudo os partidos, o Partido Comunista da Venezuela, o
Partido Pátria para Todos e o Partido Podemos, para que dêem uma demonstração
de desprendimento pela Revolução e que venham conosco construir um verdadeiro partido
revolucionário, um verdadeiro partido socialista.
A atitude de alguns dirigentes, em seus discursos, me causou grande
frustração. No entanto, continuo a chamar à reexão. Li que o PPT não se
dissolve; a questão não é que se dissolva ou não se dissolva, não é o PPT, nem
é o Podemos, nem é o MVR, é a Revolução, companheiros...
O povo, por isso não quero que os líderes políticos quem aí, bem,
como chefes de uma carca vazia, uma casca vazia, mas é isso o que vai
acontecer, estou avisando. Vão car como chefes de uma casca vazia. Não
compreendem, devem ir às ruas, vão ouvir o povo para saber o que diz;
volto a repetir para eles.
O Movimento V República é um partido que nasceu para uma
conjuntura, creio que na verdade durou muito, esse partido nasceu porque
nossa organização, o antigo Movimento Bolivariano Revolucionário, não podia
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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registrar-se no Conselho Eleitoral por causa das leis, das leis eleitorais burguesas
do Estado burguês, e tínhamos uma grande quantidade de pessoas dispostas
a apoiar a candidatura presidencial; assim, decidimos, depois de muito discutir,
é preciso recordar como nasceu o Movimento V República e como cresceu, e
precisamente, em conscncia, esse partido te muitos defeitos; mas vejam, o
logo foi anunciada a decisão do Partido Socialista Unido, isso foi imediatamente
assumido, ninguém, em nenhuma parte do país, disse que não, que o estava
de acordo. É que nós estamos discutindo isso mais de dez anos, desde que
saímos da prisão, até que me cansei de tantas reuniões, reunionite...
Reuniões demais, e cada um com um discurso diferente. Às vezes
passávamos o dia inteiro ouvindo discursos e depois alguém perguntava: Bem,
e o plano de ação? “Não, amanhã continuamos.” Até que um dia eu disse, se
queremos fazer alguma coisa, deixemos de lado estas reuniões, deixemos que
essa gente continue a fazer suas reuniões e nós vamos para as ruas, vamos
aos bairros, vamos às aldeias, falar com o povo, organizar, ouvir o povo... E
foi isso o que zemos.
É a ânsia de apoderar-se de um movimento, de um processo, de impor
uma liderança, e disso o mundo está cheio.
Se tivéssemos cado esperando que os partidos da esquerda se unissem
antes do 4 de fevereiro ainda estaríamos esperando e nunca teríamos feito o 4
de fevereiro. E o mais grave é que depois muitos desses partidos nos acusaram
de golpistas. E eu pensava: até onde essa gente é capaz de chegar, se até há um
mês atrás nos reuníamos e agora nos chamam de golpistas e nos condenam,
e o mesmo aconteceu em 27 de novembro, que coisa terrível! Agora chegou o
momento e eu não vou olhar para trás, não vou voltar atrás com isso. Avante!
Ao ataque, à criação do partido.
Alguns não conseguem reconhecer uma liderança, a minha, que é
circunstancial; não estou aqui por ter feito um plano para estar aqui; sou um
produto da circunstância, até que a situação permita. Chávez não era Chávez,
não era eu; Chávez foi uma esperança que nasceu naquela madrugada. Viva
o 4 de fevereiro! Vivam os mártires de 4 de fevereiro! Viva o 27 de novembro! Vivam os
mártires de 27 de novembro!
Carlos Marx dizia: “Os homens e as mulheres fazem a história, mas
somente até onde a história lhes permite.Eu não estou aqui por minha culpa;
não sou culpado de estar aqui, nem sou a causa de estar aqui; é uma situação
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
209
objetiva, condições subjetivas e até muito por obra do acaso, que sempre está
presente, e também nisto.
Trato de fazer meu trabalho, o papel que me cabe desempenhar, mas
o existe nenhum ser humano individual indispensável. Se Bolívar o
tivesse nascido, teria havido a Revolução em 1810 e 1811? Claro que sim!
Teria acontecido. Se Lenin tivesse morrido na infância ou tivesse sido um
intelectual burguês, teria havido a Revolução Russa? Claro que teria havido,
mas com variantes, táticas de momento, de velocidades, de intensidade; mas
teria havido, mais cedo ou mais tarde.
Agora, ouçam, por isso eu queria focalizar e recordar: assim nasceu o
Movimento V República, s militares zemos nascer o Movimento Bolivariano
Revolucionário, e um grupo de civis também, mas na maioria éramos militares,
a maioria desses companheiros não tinham formação política. Depois veio a
outra etapa, uma verdadeira avalanche e um somatório de líderes de pesos e
correntes de todo tipo.
Busquemos a integração na batalha contra
a desestabilização
Revolucionário e socialista
Agora, se olharmos para os demais partidos de esquerda, como nasceu
o PPT? O PPT nasceu de um cisma da Causa R, que por sua vez nasceu de
outro cisma anterior, de divisões, uma divisão, outra divisão e outra divisão.
Tomara que agora não voltem a dividir-se e uns venham para e outros sigam
por lá; tudo é produto de divisões. Como nasceu o Podemos? A mesma coisa,
o MAS que nasceu também de umas divisões anteriores e depois se dividiu e
nasceu o Podemos. O Movimento Eleitoral do Povo, que também surgiu de
uma divisão. A Liga Socialista, que também nasceu assim, o fundador foi Jorge
Rodriguez, o pai mártir de nosso vice-Presidente e companheiro, foi também
uma separação de outra organização.
Assim nasceram esses partidos e legaram seus mártires, suas bandeiras,
sua história.
Reconheço, apesar dessas críticas, a contribuição de todos esses partidos
a muitas jornadas das batalhas populares que ocorreram na Venezuela durante
os anos 60, 70 e 80.
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
210
As batalhas sindicais, camponesas, as jornadas, a luta das mulheres;
é preciso reconhecer tudo isso e eu o coloco no lugar mais alto de meus
reconhecimentos e meus afetos, e o mesmo em relação ao povo; quem pode
esquecer Argelia Lara? Aquela der que pertenceu ao Movimento ao Socialismo
quando esse partido era uma partido...
José Vicente Rangel, candidato à Presidência em várias ocasiões por
aquele partido e alianças de partidos. Bem, José Vicente poderia contar suas
experiências frustradas de unir a esquerda, porque ele nunca foi militante
do MAS, na verdade era lançado pela esquerda, o candidato de esquerda.
Então, é preciso analisar tudo isso, alguns companheiros, hoje, de outros
partidos, poderiam estar caindo ou deixando-se arrastar perigosamente por
duas tendências, presentes em alguns discursos. Uma, o reformismo, como
que se distanciando; quando alguém diz Pátria, socialismo democrático e vida, está se
distanciando, absolutamente, para bom entendedor bastam poucas palavras.
Cuidado com as correntes reformistas que têm medo de uma verdadeira revolução.
Livremo-nos dos temores, não nãos deixemos chantagear pelo inimigo,
pelo império, não nos deixemos chantagear pela oligarquia e por seus meios
de comunicação, a mim não me importa que me digam o que disserem.
Cuidado vocês, propulsores e propulsoras, porque uma das condições para
ser membro, militante, combatente, camarada do partido socialista é ser revolucionário e
ser socialista; peço que quem tiver dúvidas não se meta aqui, e vocês devem
car muito atentos, aqui precisamos de verdadeiros revolucionários, gente honesta
que venha para construir, como eu já disse umas cem vezes, em condições de
igualdade, aqui somos todos iguais; eu estou despojado de minha condição
de Presidente, não venho aqui como Presidente, venho como mais um companheiro,
mais um camarada.
O reformismo se converte em contra-revolucionário
Simplesmente existem duas correntes por aí, e portanto cuidado com
essas correntes. O reformismo pode acompanhar uma revolução durante algum
tempo, mas existe uma barreira além da qual o reformismo se converte em
contra-revolucionário e é isso o que está ocorrendo aqui. Os reformistas não
gostam da intervenção nos rebanhos de gado, porque isso é a revolução no
campo e pessoas que têm conexões, compromissos com os proprietários
de terras, com a elite nacional ou regional, ou que têm medo que os chamem
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
211
disto ou daquilo, pelo jornal, pelo rádio; ou às vezes têm o rabo preso e não se
atrevem a aparecer. Quem tem rabo de palha não deve chegar perto da vela.
Lendo Lenin, que fez um chamamento ao povo russo para lutar contra
a sonegação de carne e pão, observemos, foi o mesmo método, se passaram
cem anos, mas a mesma coisa se fazia com o velho povo russo, claro, o velho
Estado capitalista, ainda vivo, como aqui está, não me rero ao Estado, e sim
à situação capitalista, o sistema, sobretudo no terreno econômico, e essa é
a outra parte do tema, o socialismo não tem de entrar no tema econômico,
senão não é socialismo o que estamos fazendo, não é revolução o que estamos
fazendo, tema econômico.
Uma revolução dentro da Revolução
A arma é a mesma, muito parecida, passam-se os anos e é a Rússia, ou a
Nicarágua, ou a Venezuela; os capitalistas, que têm ainda nas mãos boa parte das
instrias, os fatores de produção desde a terra e portanto o gado em ; e têm
ainda em suas os o transporte, os matadouros, apropriaram-se dos matadouros
que deveriam ser comunitários, segundo a lei; faço um chamamento a todos
os prefeitos para que recuperem os matadouros e os ponham em mãos dos
Conselhos Comunitários, nas mãos do povo e não nas dos capitalistas [aplausos],
que têm nas mãos os frigorícos, os auto mercados, e então aplicam ao povo a
potica do desabastecimento para tratar de desestabilizar o governo, para tratar de
retirar o apoio ao governo, e em seguida atacar, e isso é parte do momento que
estamos vivendo; e por isso é necessário, imprescindível, um conjunto de medidas, uma delas
a formação de nosso Partido Unido, Socialista, Revolucionário, Bolivariano, porque a situação
interna vai car mais dicil, nos próximos meses surgirão contradições, simplesmente porque
s não planejamos deter a marcha da revolução; muito pelo contrário, é a marcha a fundo, e
na medida em que a revolução vá se aprofundando, vá se expandindo, essas contradições vão
aparecer, inclusive algumas que até agora se mantiveram encobertas, vão car mais agudas,
o intensicar-se, porque se trata do tema econômico e não nada que doa mais a um
capitalista do que o bolso, mas temos de entrar nesse tema; não podemos escapar dele. Temos
avançado, a Missão Robinson, a Missão Ribas, a Missão Vuelvan Caras; tudo isso
é socialismo, mas não teríamos socialismo integral, pleno, se não começássemos a transformar
o modelo econômico, capitalista, que ainda temos na Venezuela.
Isto vai ser uma revolução dentro da revolução; por isso é que o império
es temeroso, e por isso é que as classes abastadas, temerosas disso, começaram
a retomar a tese do magnicídio, do golpe de Estado, da desestabilização; para
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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conseguir uma intervenção dos Estados Unidos por meio dos organismos
internacionais, assim como estão no Haiti e em muitos outros países do
mundo, tutelando-os, mas é por causa do império, no fundo, que esses planos
começaram a ser reativados com força, tanto aqui quanto fora da Venezuela.
A força popular unida é o “seguro de vida”
da Revolução Bolivariana
Um só grande partido: um só grande povo
Um dos maiores “seguros de vida” que possa existir neste caso é a
força popular unida. Porquê...? Simplesmente porque a oligarquia tem medo de
um povo que ruge unido, por isso é que procuram tanto dividir-nos, minimizar o apoio
popular, com campanhas desgurando nosso discurso, tratando de satanizar-me; porque
se conseguissem debilitar, se conseguissem dividir o povo, confundir o país e
debilitar a força revolucionária, isto é, dividir-nos, se conseguissem, tenham
certeza de que viriam ao ataque com toda a força; em troca, se s conseguirmos
aumentar nossa força unitária eles vão pensar um milhão de vezes. Porque
nunca invadiram Cuba? Porque os cubanos conseguiram unir um grande partido
e um grande povo, e estão os cubanos defendendo seu líder e sua revolução.
analistas que dizem não ser possível em Cuba uma mudança de governo e a
prova é que Fidel esteve hospitalizado e em uma situação muito crítica durante
semanas e semanas e mesmo assim em Cuba nenhum furacão moveu uma
folha, isto é, existe uma liderança, há um partido e uma disciplina política, moral.
Por isso, caracterizando o momento interno, quando a revolução deve
aprofundar-se no campo político, os conselhos comunitários, está o que
é político, o Auto Governo, o Governo Popular, o Governo Comunitário, e
então, quando eu enuncio algumas coisas, supostos aliados que começam a
fazer reuniões mas não se atrevem a dizer-me nada cara a cara, e sim começam
a buscar contatos.
Uma das orientações que dei ao ministro da saúde, por exemplo, é que o
Governo Nacional precisa recuperar a gestão e o controle de todos os hospitais,
dos grandes hospitais do país.
Sei que alguns governadores, e não são os do MVR, são de outro partido,
têm dito que não, que isso é uma loucura, que isso se conseguiu como um
grande avanço da democracia, no tempo de Caldera; quando o que zeram
foi esquartejar o pouco que restava do sistema de saúde venezuelano.
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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Criação de verdadeiros quadros revolucionários
Quem vai surgir, agora, para defender a chamada descentralização da
IV República? Quem estiver defendendo isso está defendendo o reformismo
e está se colocando contra a revolução. São vícios e rumores que põem em
perigo nossa Revolução, porque além de tudo possuem redes de contatos e
os vão construindo, muitas vezes, utilizando recursos do Governo e também
muitas vezes inclusive conseguem neutralizar decisões da Revolução, por meio
de um juiz ou um tribunal, ou até mesmo o próprio Tribunal Supremo de
Justiça (TSJ) pelas costas do líder da Revolução, atuando por dentro contra a
Revolução. Isso é, repito, traição ao povo, traição à Revolução.
E essa é uma das maiores ameaças que temos, por dentro, é como o
colesterol, alguns o chamam assassino silencioso, é o reformismo contra-revolucionário,
por dentro de nós mesmos. O partido tem de ser capaz de detectá-lo e ir limpando,
criando verdadeiros quadros revolucionários, inserindo-se junto ao povo, à
classe operária, camponeses, estudantes, juventudes, mulheres, inserindo-se ali
na massa popular, nas multidões, impulsionando o processo revolucionário.
Essa deve ser uma das maiores tarefas de nosso partido, de nosso novo partido,
devemos tratar de perlá-lo, engendrá-lo, alimentá-lo. É preciso começar a
alimentá-lo, a perlá-lo, a adorá-lo, a cuidá-lo para o parto que se aproxima.
Agora, vejam vocês este tema do desabastecimento, o tema da carne,
a regulamentação de preços. Nem um partido, nenhum dos partidos que
temos assume essa tarefa, nenhum, porque não têm vontade nem capacidade
para assumi-la; estão preocupados com outra coisa. Então, o Governo vai
para um lado, os partidos para outro, com outros governinhos formados por
aí; e às vezes também poderes locais, porque não obedecem ao líder e sim a
outros comandos paralelos dos partidos. Prefeitos que também andam com
seus governinhos paralelos.
Temos de demolir tudo isso, temos de demoli-lo e criar a grande unidade
nacional, revolucionária.
A meta: aprofundar a Revolução
O povo orientado pelo partido, o partido orientado pelo povo
Antes que esses fatores divisionistas, reformistas e contra-revolucionários
nos destruam, freiem ou distorçam e vão pouco a pouco acabando com a
Acerca da grandíssima importância de um partido
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Revolução, é o momento de aprofundar; amanhã pode ser tarde demais.
Façamo-lo agora, com decio, com inteligência, com vontade, sem que
obstáculos nem resistências externas ou internas detenham, porque precisamos
aprofundar a Revolução. Necessitamos o partido, necessitamos o povo
orientado pelo partido, o partido orientado pelo povo, juntos: os camponeses
organizados, solidamente organizados, informados.
Muitas vezes tomo decisões e o povo não sabe, porque não existe quem
comunique, tenho um domingo, cinco, seis horas. Dizer, informar; porque não
um partido que seja um intermediário que informe e que direcione as políticas
ditadas pelo Presidente ou ditadas pelo Governo, nem um partido se dedica
a coisas como essa. Dedicam-se a qualquer outra coisa, muitas delas boas, mas
o Governo vai para um lado e parece que isso nada tem a ver com eles.
Eu tenho de cuidar das instituições do Governo, tratando de continuar
a san-las, muitas vezes precisamente o partidarismo e o sectarismo se
convertem em um freio à transformação do Estado, porque, como disse,
muitos partidos começam então a repartir as quotas de algum ministério. Mas
continuamos aprofundando e criando um novo Estado, novas instituões,
isso custa muito, mas vamos avançando.
Para cada uma dessas glebas que vamos tomar estou enviando um
grupo, como um comando cívico-militar, porque há alguns proprietários
de terra que se metem a valentes; vai a Guarda Nacional junto com os
técnicos do Governo e junto com os camponeses.
Desenvolver projetos: em fuão do plano de desenvolvimento
Devemos desenvolver em cada gleba projetos de agricultura, de pecuária,
e dar seguimento a esses projetos, em função do plano de desenvolvimento.
O partido deve participar de tudo isso, mas não para ir fatiar um bolo, para
ver quantas vacas eu levo para mim e quantas cam com outro, vamos vender
aquela vaca e comprar uma casinha para o partido, para colocar a bandeira
do partido; não: é para desprender-se de tudo em função dos interesses da revolução, que
são os interesses do povo.
Enm, internamente, vamos aprofundar a Revolão em todos os sentidos,
e por isso digo que é imprescindível a criação de nosso partido, a unidade.
Em nível internacional, algm pode imaginar que a viagem do
Presidente dos Estados Unidos foi uma viagem assim ao acaso; o, isso
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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faz parte de um plano. Este governo dos Estados Unidos ainda tem dois
anos, e sabemos que esse governo é capaz de qualquer coisa. Ali governam
verdadeiras máas de assassinos, com prontuários criminais, nem todos serão
assim, mas os que tomam as decisões fundamentais o o. Em dois anos,
sabendo-se derrotados por nós, o capazes de qualquer coisa, e a viagem do
Presidente dos Estados Unidos passou por aqui, pelo Brasil e ao regressar
parou aqui na Colombia, vejam, dois extremos da Venezuela. Nessa viagem
estava acompanhado por um plano, no qual Venezuela está em primeiro
lugar como alvo do imrio.
Por essa razão e se ao mesmo tempo vericarmos como cresce o apoio
à Venezuela, a nosso projeto em outros países da América Latina e do Caribe,
América do Sul, América Central, o Caribe. Daí concluímos, devemos concluir,
necessariamente, acerca da grandíssima importância de um partido.
Vocêso têm idéia de quantos líderes no mundo me perguntam: e o
partido? Onde estão os partidos? Com quem podemos falar aí?
A China aposta em s e estamos entrando nela em cheio, a fundo,
em um conjunto de projetos que sem vida agudizarão as contradições em
nível internacional. Porquê? Porque propusemos à China o fornecimento de
petróleo, e aqui antes se dizia que não, que não era posvel porque a China
está muito longe e que tudo deve ser mandado aos Estados Unidos. Agora
estamos demonstrando que isso era uma enorme falsidade, estamos enviando
petróleo à China, encerramos o ano passado em 300 mil barris diários, está
sendo gestada a formação de uma empresa mista aqui, para chegar a produzir,
entre ambos, até um milhão de barris de petleo.
E depois nos propuseram que fôssemos à China. A PDVSA (Petróleos
de Venezuela) com a CNPC (Corporão Nacional de Petróleo da China)
para construirmos juntos três grandes renarias, e é claro que dissemos
imediatamente que sim, queremos ir à China construir essas ts renarias,
conjuntamente com a empresa nacional da China.
Também agora trouxeram outra proposta, a formação de uma empresa
mista em igualdade de condições, 50% venezuelana e 50% chinesa, para
ter uma companhia de transporte marítimo, uns super-tanques que o ser
feitos na China para cruzar os sete mares do mundo com petróleo venezuelano, le-lo
e tra-lo da China e de outros pses. É para comerciarmos juntos.
Acerca da grandíssima importância de um partido
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Esse projeto, que naturalmente torna mais agudas as contradições com
o império dos Estados Unidos, que não perde a esperança de recuperar a
Venezuela, de voltar a converter a Venezuela no que ela já foi até 1988 e até
mais próximo. Ainda em nossos primeiros anos, quando a velha PDVSA
tinham um governo paralelo. A Venezuela era uma colônia dos Estados
Unidos, aqui se fazia o que era decidido em Washington, principalmente em
matéria de petróleo. Então os Estados Unidos, o Governo e a elite vêem
todos esses movimentos e acordos estratégicos com grande preocupão.
A política externa da Revolução deve estar em mãos
da Revolução
Assim, vão car mais ferozes, sem dúvida, os ataques, por dentro e
por fora, contra o Governo Bolivariano, contra a revolução Bolivariana. O
surgimento de governos aliados, governos populares, governos irmãos, como o
do Equador, recentemente; o da Nicarágua, o da Argentina, para citar somente
três casos, exige, clama por um partido que abra seus braços para a América
Latina. Não, aqui cada partido anda para seu lado. Às vezes eu vou à Argentina
e me dizem, veja, vieram aqui uns dirigentes do partido tal, sabia ? Não, eu não
sabia de nada, como vou saber? Estão fazendo seu próprio jogo.
Aqui, certa vez, um dos partidos aliados do Governo convocou um
seminário internacional, convidaram não sei quanta gente. Tive de pedir-lhes
que suspendessem porque o momento era inconveniente do ponto de vista
da potica internacional do Governo e do Estado.
A política externa da Revolução deve estar em mãos da Revolução, é o
cúmulo que haja partidos por fazendo política internacional, pelas costas da
liderança da Revolução e do Governo Revolucionário, colocando em perigo
alianças, dando apoio ao inimigo, inclusive para que me ataque no plano pessoal
e no político. Isso já seria o cúmulo dos cúmulos, não é verdade?
Uma vez fui a Moscou, e encontrei um der partidário, cumprimentei-
o e naturalmente me alegrei ao -lo por lá, mas depois perguntei, que
estão vocês fazendo por aqui? Fazendo alguns contatos. Como vão estar
fazendo contatos aqui sem que o Governo saiba? Exigi informações porque
o Chanceler de nada sabia. Não, além disso fazendo potica internacional;
como camos nós diante do mundo? Bem camos como uns baderneiros,
para usar outra vez a frase de Miranda.
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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E às vezes se pede informação e eles se agastam. Não, porque este
partido tem sua própria política. Que é isso, meu lho? Então é melhor que
o embora, que façam acampamento em outra parte, mas que saibamos,
que saibamos de verdade, com transparência.
Formação da ideologia e da consciência
Nosso grande partido revolucionário
Tenho de exigir respeito ao Governo revolucionário e à decisão tomada
pelo povo. Toda e qualquer análise nacional ou internacional revela a necessidade imperiosa,
e eu diria mais, a urgência de constituir nosso Grande Partido Revolucionário, que levante as
bandeiras do socialismo. Um partido com ideologia clara, porque se estás em um
governo como aliado, não podes colocar a concepção do partido antes da do
Governo, não pode ser, por lealdade a bandeira socialista deve ser a primeira.
Mas não estamos colocando aqui o esquema dogmático que existiu na Rússia
soviética dos anos 20, dos anos 30; este não é um projeto stalinista, não é
assim; nem é um projeto marxista-leninista; se Carlos Marx e Vladimir Lenin
ressuscitassem e zessem um estudo das circunstâncias européias e mundiais
de hoje, estou certo de que não fariam teses radicalmente distintas, mas sim
com muitas diferenças em relação às teses que desenvolveram quase um
século e meio. Mas aqui há pessoas que pegam um livrinho e dizem: não, isto
é um catecismo, daqui não me afasto. Isso foi escrito, com todo o respeito
àqueles ideólogos e grandes revolucionários, lá por 1800, por 1900, é preciso
ver que o mundo mudou.
O dogmatismo contra-revolucionário
E essa é a segunda corrente a que quero me referir. A primeira é o
reformismo, que acaba sendo contra-revolucionário. E a segunda é esta, o
dogmatismo, que também acaba sendo contra-revolucionário.
Tenho um grande respeito por todos os partidos comunistas do mundo,
mas é preciso recordar que muitos partidos comunistas na América Latina
retiraram o apoio à Cuba revolucionária, nos anos 60 e 70, traíram Che Guevara
em alguns lugares, negaram-se a apoiá-lo. Aqui mesmo vocês sabem muito bem
que tenho um grande respeito pelo Partido Comunista da Venezuela (PCV) e
fui um dos que tiveram o cuidado de exigir ao MVR (Movimento V República)
Acerca da grandíssima importância de um partido
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que desse espaço ao partido Comunista; e quando me consultaram, eu sempre
disse sim, assim como quando se trata de ocupar algum cargo, porque sei que
há quadros muito valiosos, muito valiosos. Tenho um grande respeito. Que o
diga don Pedro Ortega Díaz, a quem Deus tenha no céu dos revolucionários,
exemplo de constância, de humildade, de sabedoria.
Quem pode negar a contribuição do Partido Comunista às lutas na
Venezuela? Mas recordo que quando saí da prisão havia dentro do partido
Comunista uma corrente que dizia, com muita força, que eu era um Messias,
um caudilho, e que minha presença nas ruas era prejudicial.
O dogmatismo é um assunto que se converte em contra-revoluciorio. o
duas correntes: o dogmatismo e o reformismo, ambas terminam sendo contra-
revolucionárias. Cuidado, alguns companheiros poderiam estar se deixando levar
por essas correntes, poderiam estar perdendo o horizonte, a bússola.
Como sei que em ambos os lugares gente boa, bons companheiros
que poderiam estar confundidos por enquanto, e seguidores deles que
o bons e de boa fé, e poderiam estar acreditando neles, faço-lhes um
chamamento para que reitam profundamente, que esclareçam suas dúvidas
e que venham conosco.
Liberdade de debate: um partido com frentes
Aqui existe plena liberdade de debate e essa deve ser uma das
características mais profundas do novo partido, o debate, a partir das bases;
não um debate circunscrito a uma elite, a uma cúpula, a um cerne. Consulta,
participação, protagonismo, debate. Isso sim, quando se decida, então vem a
disciplina. Decidiu-se isto, bem, eu tenho uma visão diferente; mas essa é a
decisão, e por teremos de seguir, porque se trata de uma Revolução. Aqui
está em jogo a vida da Pátria, está em jogo o futuro da Venezuela.
Este tem de ser um partido bem consciente; e sobre a eterna discussão,
também interminável, de se deve ser um partido de massas ou de quadros, em
meu ponto de vista, muito modesto, deve ser, como dizia Antonio Gramsci,
um partido de massas que construa quadros, extraordinários quadros.
Essa é a visão gramsciana de partido. E eu creio que devemos ir por
aí. Um partido, além disso, que não seja o que vá controlar o povo, e sim ao
contrário, um partido controlado pelo povo. Não um partido que seja produto
de um conjunto de siglas, não queremos uma frente de partidos; não, na verdade
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
219
queremos um partido de frentes, um partido que tenha uma frente operária,
frente camponesa, de mulheres, dos estudantes, dos jovens, dos trabalhadores.
nos recordava Oswaldo Vera
2
as expressões e a análise, nesse extraordinário
livro Mas Allá del Capital, de Istvan Mezsaros.
Vejam bem, isso faz parte da armadilha capitalista e da armadilha do
Estado burguês. Estou ouvindo isso há muito anos, dirigentes operários que
dizem que o sindicato não pode depender do partido. Uma coisa é o partid, e
outra coisa o sindicato.
Vamos ler Rosa Luxemburgo, por exemplo, sobre esse tema, o próprio
Lenin; Mezsaros volta a tratar do assunto para que o debatamos. “É necessário”,
diz Mezsaros, “haver o braço industrial e o braço político no mesmo corpo;”
o partido, os sindicatos, mas não cada braço para seu lado. Não, os sindicatos
são autônomos e têm sua autonomia, acontece o mesmo com os partidos,
cada partido quer ter seu próprio comando, sua direção, tomam suas decisões
de maneira autônoma, porque isso é o que é a democracia; e além disso os
sindicatos atuam como outro partido, têm sua direção, tomam suas decisões,
não direção para eles, o linhas estratégicas; não isso o pode ser assim,
isso se chama baderna e nós não viemos aqui para fazer baderna, viemos fazer
uma Revolução. Isso é o que estamos fazendo e o que temos de realizar.
Então, esse partido precisa de um braço industrial. Os sindicatos que
quiserem continuar sozinhos, está bem, quase todos envenenados pelo mesmo
veneno, autonomia sindical, porque é a classe operária, e onde está a classe
operária? Toda desorientada, toda dividida, inclusive as correntes internas não
chegam a um acordo.
tempos não me reuno com os dirigentes sindicais. Porquê? Porque
sei que estão todos brigados, e quem se reúne com uns tem de reunir-se com
outros e outros. O que queremos é unidade, é o que necessitamos, unidade.
Agora, se entre os dirigentes sindicais cada um quer conservar seu
partidozinho, porque se converteram em um partidozinho, que quem de lado,
nós iremos diretamente às fábricas para buscar os trabalhadores, para falar-lhes
de unidade e de formarmos um braço poderoso, a frente operária.
Não sabem o prejuízo que causam à Revolução, ao Governo, ao
Povo Venezuelano com essas atitudes; por isso, vejam as mulheres, que
2
Oswaldo Vera, deputado e dirigente sindical.
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
220
lançaram sua Plataforma Unitária, e eu aspiro a que seja a frente feminina das
mulheres socialistas do partido, de um grande partido; e é preciso colocá-las
como exemplo.
Que tenha vários braços, mas uma cabeça, dizia a negra Antonia.
Uma cabeça, a cabeça tem de ser uma direção, portanto. Eu tenho de
desempenhar um papel na direção – obviamente – por algum tempo, não sei
quanto tempo. A gente trata de dar, de desprender-se de quase tudo, entregar-
se completamente ao povo. Então, qual é meu bálsamo? Meu bálsamo é o povo,
vou às ruas e isso me tira todos os males, e me atiro nos braços do povo.
Porque ali está a verdade, ali está Deus, portanto, mas quantas invejas,
quanto ácido a gente também recebe, porque eu não sou uma rocha onde bate
a onda, sou de carne e osso, igualzinho a vocês, tenho sangue nas veias. Faço
um chamado aos dirigentes sindicais, união: ou saiam do caminho, e faço um
chamado à classe operária, à unidade da classe operária.
Porque aí se repete o mesmo esquema do partidarismo, e muitas vezes
os estudantes também caem nesse engano, que não haja um comando, como
dizia Ali Primera, aqui estão os mais radicais, ali estão os reformistas, acolá
os maoístas, ali não sei quais, uma canção de Ali Primera, que coisa tão
terrível; esse é um triunfo que deve ser atribuído ao império, à oligarquia, que
nos dividiram, por isso é que o esforço tem de ser muito grande e eu não
estou disposto a recuar de forma alguma; muito pelo contrário, ajudado por
vocês vamos conseguir a unidade.
Aos propulsores: unidade e mais unidade
Pregadores deste projeto
A unidade é imprescindível, dizia Bolívar, porque nossa unidade se
inspira muito em Bolívar no pensamento de Bolívar, que para mim é uma
ponte espiritual com o povo: A união, disse ele, é o que nos falta para completar a
obra de nossa regeneração, mas não obstante essa união não nos virá por prodígios divinos,
e si por efeitos sensíveis e esforços bem dirigidos.
E isso pode servir-me agora, ou servir a vocês, propulsores, que hoje
vão seguir pelas ruas e estradas para criar os batalhões socialistas e as circunscrições
socialistas, essas são duas das maiores tarefas que vocês farão ali, em suas
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
221
comunidades, elaborar um registro e também estruturar as circunscrições
socialistas; vocês m de ser pregadores dessas idéias, convencer os que
possam estar confundidos quanto à necessidade desse projeto unitário, e este
pensamento de Bolívar é muito bom para aqueles que tiverem dúvidas, que
se guiem e o utilizem como bússola; eu tenho provas irrefutáveis do tino do
povo nas grandes resoluções e por isso sempre preferi suas opiniões às dos
sábios; se hoje perguntarmos ao povo venezuelano o que quer, ou conservar
os partidos políticos Y, Z, X, A, B, C, para que sejam o polo patriótico, não sei
que coisa, ou criar um único grande partido socialista e revolucionário. Eu já
sei o que quer o povo, não é preciso perguntar: o povo quer unidade, porque
o povo sabe que dessa unidade dependerá seu destino, seu futuro.
Mas essa unidade não deve ser burocrática; deve ser real, orgânica, profunda,
deve aprofundar a democracia revolucionária, como disse Bolívar, na Jamaica,
em 1815, quinze anos depois, tinha sido expulso daqui da Venezuela e trataram
de matá-lo em Bogotá, havia renunciado ao Governo e foi-se embora, estava
em Cartagena. Qual foi a grande causa? Ele não se equivocava ao dizer:
“Só nos falta a união para completar a obra de nossa regeneração”. Em outra
ocasião, disse: “Se não fundirmos, a alma nacional em um todo, o corpo nacional em um
todo, o espírito nacional em um todo, a sociedade terminará sendo uma luta corpo a corpo,
homem a homem, pela sobrevivência, e legaremos à posteridade uma nova colonização.”
Ainda em outra oportunidade, disse: “Unidade, unidade, unidade. Unamo-
nos, não sejamos os verdugos de nossa própria pátria.” E terminou, em Santa Marta:
“Se minha morte contribui para que cessem os partidos e se consolide a união, descerei
tranqüilo ao sepulcro.” Bolívar o conseguiu realizar a união e a Venezuela entrou
em um caos, e o que teria podido ser uma grande vitória de nossos povos
acabou sendo 20 derrotas, porque todos os povos terminaram derrotados,
divididos e dominados.
A Revolução bicentenária
Estamos na era bicenteria, nela já entramos, e estamos na hora
bicentenária; dentro de três anos estaremos celebrando 200 anos do 19 de
abril, 200 anos do 5 de julho; que melhor maneira de comemorar os 200 anos
daquela jornada do que em plena revolução? É a melhor oferenda que podemos
fazer aos que nos deram Pátria, aos mártires, a seus ossos e suas recordações,
a suas lágrimas e a seu sangue; é a melhor oferenda.
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
222
Revisitemos, agora, a Cosiata e a divisão Páez contra Bolívar, Santander
contra Bolívar; devemos evitar agora mesmo que se repita a tragédia porque
a história de Bolívar e de seu povo em seu momento passou da grandeza, da
epopéia, à tragédia; vamos permitir que se repita o mesmo fenômeno, com a
segunda epopéia bolivariana, esta de agora, que seja outra tragédia bolivariana?
Se quisermos evitá-la, sigamos a palavra de Bolívar, se não fundirmos a alma
nacional em um todo, se não fundirmos o corpo nacional em um todo, o espírito nacional
em um todo, legaremos uma nova colonização a nossos lhos e a nossos netos; evitemo-lo
desde agora, creio que temos vantagens que Bolívar não teve, ainda que nossos
inimigos sejam muito mais poderosos do que os de Bolívar, então estaríamos
equipados, porque o império da Espanha não era nem a sombra do que hoje
é o império dos Estados Unidos, embora o que disse Navarro
3
seja bem certo,
mas tampouco podemos pecar por otimismo exagerado; porque também é
preciso recordar que desde mais de cem anos fala-se de uma crise terminal
do capitalismo e a crise nal o chega nunca, embora haja, novamente,
sinais de uma crise capitalista, da forma do capital e do capitalismo; não
obstante, ainda resta muita força ao imperialismo, ao capitalismo; é o modo
de reprodução do capital, porque isso às vezes acontece por dentro, como
Mezsaros utiliza o termo, metabolismo, porque é como um metabolismo,
não conseguimos aqui; venezuelanos a quem demos um trator e uma terra
para que zessem um projeto socialista e um deles acaba ocupando a casa
com sua família e amarrando o trator a um poste para que ninguém mais o
utilize; os velhos costumes, a corrupção, a ambição individual pelo benefício
econômico, esse é um inimigo terrível. Nestes últimos anos vi pessoas que se
acreditava ser tremendos revolucionários e não agüentaram a passagem pelo
poder, um cheque de não sei quantos milhões, assim como vi, felizmente,
muitíssimos companheiros que passaram na prova, que passamos na prova,
mas cada qual se prenda [a seus] valores, fortaleça a consciência, porque
o inimigo anda por dentro e não o inimigo declarado, e sim dentro de
nós mesmos, os velhos hábitos, diz Victor Hugo em Os Miseráveis falando
da Revolução Francesa que com todo o seu heroísmo desmoronou e logo
se impôs a restauração, o império e a contra-revolução por meio de um
personagem de seu romance: Acreditávamos haver mudado o mundo, mas
esquecemos uma coisa, mudar os costumes”. Um dos maiores inimigos de
3
O Presidente se refere á formulação de Héctor Navarro, membro da Comissão Promotora do Partido Socialista
Unido, que armou haver o capitalismo entrado em uma crise terminal.
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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qualquer tentativa revolucionária, que ocorreu na União Soviética, vejam que
poderosa palavra de ordem era aquela de todo o poder aos soviets, mas isso
acabou poucos anos depois. Lenin percebeu, no nal. Mas estava muito
doente e em breve morreu; aquilo se transformou, em vez de todo o poder
aos soviets, todo o poder à elite do partido e à nova classe política. Nosso novo
partido deve evitar essa tendência a substituir velhas estruturas por outra
que renasça elitista, de privilégios; zero privilégio, ou seja, desprendamo-
nos de nós mesmos, demos exemplo de desprendimento, de humildade revolucionária.
Bem, esse velho modelo leninista não nos serve; temos de criar nosso
próprio modelo. Irin Fletscher, que escreveu uma obra chamada Carlos Marx e
o marxismo, em 1974, diz o seguinte, referindo-se aos erros em que incorreu o
leninismo: “Não é necessário e nem é possível que a consciência revolucionária
de classe tenha vigência, e esse é o erro.” Ele falava do erro, essa concepção
errônea de que a consciência revolucionária de classe tenha vigência em um
grande proletariado industrial; basta, diz ele, “que exista na elite política, no
partido, uma nova espécie; nessas condições a consciência política de classe
se desvincula de seu substrato político e se converte em propriedade exclusiva
de uma minoria que pretende a direção.Nós não podemos cair nesse erro,
e por isso tem razão Maria León
4
quando diz: Aqui somos todos trabalhadores,
somos todos iguais, todos aqui temos os mesmos deveres, os mesmos direitos”. Por isso digo
aos companheiros a quem agradeço por haverem assumido essa tarefa nada
fácil de ser a comissão promotora, eles sabem e ninguém tem pretensão de
liderança; somos apenas os promotores, os propulsores; porém seriam as bases
populares quem elegerá as lideranças, e essa liderança deve manter conexão
permanente com as bases populares, não desvincular-se delas; por isso, deve
ser um partido de massas, um partido de bases que produza, a partir das bases,
os melhores quadros; mas esses quadros não devem ser ou não devem formar,
em seguida, uma nova elite política e novos núcleos, e portanto é preciso romper o
paradigma da representatividade, é preciso lutar com uma força maior do que a costumeira,
para rompê-la e criar novos costumes, novas realidades, novas idéias, novos cenários, o novo
partido, um partido de moral, assim como Antonia dizia que um embusteiro não
pode estar aqui, assim como, por exemplo, um homem que espanque uma mulher não
pode estar aqui, não pode ser revolucionário, porque há muito disso em nossa sociedade, um
machista não pode ser revolucionário nem socialista, um latifundiário não pode estar aqui,
um corrupto jamais pode estar no Partido Socialista Unido, nem um tracante de inuência.
4
Maria León, dirigente do Partido Socialista Unido da Venezuela.
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
224
Por isso, vejam o tremendo compromisso que têm vocês, propulsores;
com as bases, orientar, e eu cono muito em que assim como nas comunidades,
em assembléias comunitárias estão sendo eleitos os Conselhos Comunitários,
da mesma forma estou seguro de que seo eleitos os melhores porta-
vozes das bases a m de ir formando as estruturas do partido socialista.
Um partido de moral e luzes
A única maneira de que eu possa ser líder do partido, em qualquer nível,
é ser eleito pela base; se não, não devo estar em nenhum cargo de direção,
o partido tem de ser assim, e muito mais, um partido de moral e um partido
de luzes, um partido de estudantes, todos temos de estudar, porque estamos
inventando, investigando, propondo qualquer idéia, discutindo e debatendo,
partido de moral, partido de luzes; e para mencionar Cristo, “sejam luz do
mundo e sal da terra”, um partido, como se chamam os que distribuem sal,
os que atiram sal nas coisas? Salgadores, partido de moral, é a luta contra a
corrupção, a moral leva o sal para evitar a podridão, moral e luzes, um partido
de frentes, portanto, um partido indígena, um partido operário, um partido
negro, afrodescendente, um partido estudantil, juvenil, camponês, esse partido
deve ter muitos braços, sólidos braços, e o conjunto deve ter, como resultante
suprema, o que dizia Alfredo Maneiro
5
, eciência política e qualidade revolucionária,
duas condições de um partido, de um movimento político, deve ser eciente
politicamente, eciente para organizar-se, para mover-se, para ganhar eleições
quando for preciso ganhar eleições.
Qualidade revolucionária, um partido de massas que construa quadros,
a visão de Antonio Gramsci, que se incruste na massa, na multidão, que se
dilua, assim como se dilui o açúcar, da mesma forma deve o partido diluir-se
na massa superior que é o povo, não se impor ao povo; subordinar-se ao povo.
Dizia Simón Rodriguez, a força material está com a massa, na massa popular,
a força moral está no movimento dessa massa, mas para que a massa se mova
deve haver propulsão, os propulsores; deve ter liderança, porque senão tende a
dispersar-se; é a teoria da multidão, a Massa de Negri. Há uma diferença entre a
massa e a multidão, a massa aberta, a massa fechada, são estudos profundos da
psicologia das massas, a massa cresce; porém traz por dentro seu próprio m,
de um momento a outro desaparece; uma multidão não. Uma massa organizada
5
Alfredo Maneiro (1937-1982), militante revolucionário venezuelano.
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
225
em multidões deve ter orientação, propulsão, liderança, força moral que a mova, por isso,
dizia o mestre Robinson, a força material está na massa, acrescenta-lhe força
moral no movimento, na organização, na consciência, na estratégia, na tática.
De tudo isso deve se ocupar o Partido Socialista Revolucionário, da
concepção ideológica, da estratégia, da tática, da propulsão, da orientação
da massa, da multidão; tem de ser um partido que se abra, que se feche, que
ataque, que se defenda e que triunfe sempre, que vença sempre, inclusive eu
diria mais, tem de ser um partido para a paz, mas se for necessário, um exército para a
guerra, junto a nossos soldados, camponeses, trabalhadores, capazes de irmos
à guerra para defender o impulso de nossa revolução; um partido para a paz, em
qualquer cenário exível, amplo, dinâmico, de moral, de luzes; espada aada da Revolução,
chama viva da Revolução, assim deve ser nosso partido.
A formação dos batalhões socialistas
Sei que vocês, propulsoras e propulsores, têm estado se reunindo por
regiões, por setores, que tem havido um bom debate e que vocês vieram porque
merecem. Estou certo de que não vão decepcionar nosso povo e a grande
possibilidade que temos, agora, de construir o que queremos.
Devem cuidar e fomentar a formação dos batales socialistas, de
seu correspondente espaço geográco, os circuitos socialistas; faz parte
do trabalho da Comissão Promotora, do trabalho de vocês, elaborar, cada
grupo, seu próprio plano; mas guiados por essa estratégia, serão eleitos em
cada circunscrição socialista, haverá um batalhão socialista em um território
determinado, onde funcionará e deve nascer um batalhão socialista, ali serão
eleitos os porta-vozes em assembléias populares, é um processo parecido com
o que tem estado ocorrendo nos conselhos comunitários; em assembléias
populares devem ser eleitos os porta-vozes, que escolherão, em todo o território
nacional, os delegados representantes e porta-vozes de cada região, de cada
estado, para o Congresso de Fundação do Partido.
Esses porta-vozes, todos delegados, devem ser eleitos em assembléias
populares, em seu correspondente circuito socialista, por isso peço que eu seja
inscrito no circuito socialista do lugar onde moro e depois vocês me dirão
quantos somos e como vai ser a reunião e onde terei de comparecer para
eleger nossos porta-vozes masculinos e femininas, por esse circuito, e depois
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
226
irão a uma eleição de segundo grau, para eleger os porta-vozes dessa região,
paróquia, município e estado que participarão do Congresso de Fundação, e
esse é um processo que vai atravessar os próximos anos.
Duas tarefas fundamentais
a) A conformação dos batalhões socialistas em seus circuitos correspondentes.
Hoje se instalam os primeiros 2.398 propulsores, propulsoras, entre os
setores de base de todo o país: vocês. Eu os felicito, mas saibam que têm uma
grande responsabilidade; esses propulsores contribuirão para a formação e
indução dos 14 mil propulsores que prestarão juramento no próximo dia 19
de abril; vocês vão induzir, impulsionar outros propulsores.
A comissão tem de esforçar-se plenamente para informar com detalhe
e responder perguntas: é muito importante que isso ocorra com detalhe, deve
até existir um folheto explicativo.
Vão trabalhando, vocês têm de contribuir para a formação e indução de
novos propulsores; em 19 de abril próximo, no Poliedro, vamos juramentar 14
mil propulsores, que somados a vocês serão 16.500 propulsores; temos muito
trabalho, em 19 de maio devemos chegar a 70 mil propulsores, que em três
meses deverão cumprir duas missões principais.
E vocês m essa responsabilidade primária junto com as bases populares.
Agora, a partir de 19 de maio, esse exército de 70 mil propulsores e propulsoras
deverá realizar muitas coisas, sobretudo duas tarefas essenciais, ou missões
principais: Uma, a formação dos batalhões socialistas e seu correspondente
circuito socialista. Isso é parecido, mas o é o mesmo, com o que zemos na
batalha de Santa Inês: recordam as patrulhas? Cada um dos batalhões ou unidades
de batalha tinha uma circunscrição. É um modelo que teve êxito naquela batalha
e não porque o o ser nesta, já temos a experiência, tratemos do território na
comunidade; claro, a isso é preciso acrescentar as bricas, os operários, o bairro
o é somente composto pelos habitantes, é também a brica e o colégio. Esse
grupo de jovens é um ercito, o podem car de fora os estudantes secunrios,
sobretudo os de quarto e quinto ano, mas universidades, UBV, Unefa, UCV; é
preciso ir à luta ideológica, na Missão Sucre, na Missão Robinson II, lá na Miso
Vuelvan Caras, na Missão Madres del Barrio, isto é, é preciso ocupar não apenas os
espaços sicos, mas também os setores sociais, que estão em movimento, onde
trabalhamos, onde estudamos, em Barrio Adentro.
Hugo Chávez
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
227
b) A realização de um censo para o processo eleitoral
São duas tarefas centrais fundamentais: formar esses batalhões socialistas
em seu circuito correspondente e segundo, realizar um censo de eleitores e
eleitoras para esse processo eleitoral, a partir da base; e esses eleitores e
eleitoras serão os futuros militantes do partido; daí saia militância do partido,
muito dinâmico, muito ágil, muito novo em sua concepção, em sua bandeira,
em seu programa, em sua estratégia, em suas diferentes táticas de batalha,
muito exível, muito diverso; é preciso entrar na classe média venezuelana,
esta não tem motivos para ser contra-revolucionária, vamos a ela, muita
gente, em todos os lados, a classe dia, os técnicos, os prossionais
universitários, intelectuais, sobretudo os intelectuais orgânicos, como dizia
Antonio Gramsci, comprometidos com a causa popular, com a revolução.
Agora, trata-se de levantamento do censo e de formação de batalhões; à
medida que estejam avançando nesse levantamento de informação territorial
e social, sobre esse território ou sobre essa brica, devem ir às menores
empresas privadas e públicas, vamos falar com os trabalhadores, desde a
PDVSA até a Pequiven, a CVG, a Venalum, Alcasa, Sidor, etc., as empresas
que estão nascendo, Inveval, etc.
As empresas novas, os núcleos endógenos, o Núcleo de Desenvolvimento
Endógeno Fabricio Ojeda, ali trabalhadoras, trabalhadores; por todos os
lados, vocês têm de pisar o terreno, como diz a gíria militar, penteá-lo, pentear
o terreno. É uma tarefa bonita, oxalá tivesse eu tempo para fazê-la.
As Comissões Integradoras
A Comissão promotora tem um conjunto de equipamentos de trabalho,
a Comissão de Idéias, a de Logística e a Comissão Técnica; esta última deve
receber toda a informação dos propulsores, deve estar bem organizada, pois
fará os ajustes respectivos e se iniciará então uma dinâmica, deve estar [alerta]
com os inltrados, o inimigo pode mandar inltrados, ninguém melhor do
que vocês para evitá-lo e impedi-lo. A melhor vacina contra essa ameaça é o povo, o
povo sabe quem são os que realmente moram ali, quem são os que trabalham
para a comunidade, quem são os honestos, os trabalhadores.
A Comissão cnica deve fazer ajustes, rever e devolver a vocês informões,
alguma vida que exista, seja na circunscrição ou no circuito socialista ou na
formação do batalhão ou no registro, no censo de militantes.
Acerca da grandíssima importância de um partido
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
228
O Congresso de Fundação
Em três meses os batalhões se formam e se ajustam denitivamente,
faz-se a seleção pela base dos porta-vozes; a eleão dos delegados ao
congresso de fundação, que já tem data, está prevista para 29 de julho, a base
dos porta-vozes e em seguida dos delegados ao congresso de fundação do
partido; esperamos instalar, caso essas fases sejam cumpridas, o congresso
de fundação, isto é, todos os porta-vozes eleitos, os delegados devem ser
eleitos a partir de baixo. Esperamos instalar o congresso de fundação no dia
15 de agosto, dia memorável, Juramento do Monte Sacro e Dia da Grande
Vitória da Batalha de Santa Inês e também aquele referendo histórico de 15
de agosto.
É preciso trabalhar intensamente para discutir, a partir de 15 de agosto
até meados de novembro, os estatutos do partido, o programa do partido, a
forma que deve assumir o partido, ali se discutirá o nome do partido, a cor
ou cores do partido.
No domingo 2 de dezembro aspiramos convocar nossos milhões de
militantes, que já tenham se registrado previamente nas bases, para uma
consulta nacional, isto é, o congresso vai tomar algumas decisões: o nome,
os estatutos, o programa; mas isso deve ir às bases do partido para ser
raticado ou não; uma vez conseguida a raticação, nesse dia 2 de dezembro,
em consulta nacional, nesse caso cará formalmente instalado o partido.
O congresso de fundação poderá designar, de seu seio ou de fora dele, uma
diretoria transitória, que deve ser, ao mesmo tempo, aprovada pelas bases
para em seguida, em jornada posterior que será preciso denir, já no ano de
2008, fazer uma eleição nacional para as autoridades permanentes.
Esse é o esquema que projetamos, vocês têm a responsabilidade de
impulsioná-lo junto conosco, obviamente, mas dali em diante, o número de
propulsores e propulsoras, os batalhões socialistas, os circuitos socialistas,
nos bairros, nas comunidades, nas fábricas, tudo isso depende de que
nosso partido nasça como deve nascer: forte, sólido e bem orientado, para
converter-se em um dos grandes propulsores, junto com o povo da Revolução
Bolivariana, para os próximos anos, para as próximas décadas.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
229
Guayasamín
por ele mesmo
S
empre pintei como se gritasse desesperadamente, e meu grito se
junta a todos os gritos que expressam a humilhação e a angústia da época em
que temos de viver. Pinto com a esperança de poder construir um mundo
Cabeça de criança (1975)
Óleo sobre tela, 61 x 61cm
Guayasamín por ele mesmo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
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no qual as culturas moldadas pelos povos como o oleiro faz seu jarro
recebam os mesmos cuidados que o camponês amorosamente dedica à terra
e à sua semente.”
“Tenho conscncia de que proviemos de uma cultura milenar em torno da
qual se formou uma civilização que atingiu momentos de grande esplendor.
Quando sabemos que eles tinham uma noção diferente do tempo, da
vida e da morte; quando pensamos em Quitumbe, fundador de Quito há três
mil anos atrás, como Cidade Divina do Sol, colocada exatamente na metade do
mundo; quando descobrimos que eles sabiam que a Terra é redonda; quando
vemos suas construções, sua cerâmica, as pedras maravilhosamente talhadas,
os cantaros de água que emitem sons mágicos, os jarros que cheios de liquido
permanecem de e ao serem esvaziados adormecem tranqüilamente; quando
vemos que conheciam a física, a astronomia e a medicina; e tudo isso num
ambiente de socialismo original, humanista, no qual os silos eram construídos
para armazenar as colheitas que eram depois repartidas segundo as necessidades
de cada família, de cada aldeia;
Quando conseguimos compreender esse universo, como é possível
não sentir orgulho e admiração ao pensar que nosso presente tem raízes tão
transcendentais?”
“Permaneço no mesmo ponto, porém cada vez mais profundamente,
batendo sem cessar do lado de dentro. Procurando. A América Latina tem
sua própria raiz, que é preciso encontrar e remexer para que possamos nos
expressar com nossa própria voz, que vem da terra profunda e germina.
O pesadelo da fome que se espalha cada vez mais, o medo de uma guerra
atômica, o terror e a morte semeados pelas ditaduras militares, a injustiça social
que fere sempre mais profundamente, a discriminação racial que destrói e mata,
tudo isso corrói lenta e fortemente o espírito dos homens sobre a Terra.
A velha e longínqua esperança de paz é ainda nosso único apoio na angústia.
Se não tivermos força para apertar todas as mãos, se o tivermos ternura
para tomar nos braços todas as crianças do mundo, se não tivermos vontade
Guayasamín por ele mesmo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
231
de varrer da Terra todos os exércitos, este pequeno planeta será um corpo
seco e negro no espaço negro”.
“O artista não pode absolutamente fugir de sua época. Não tem outra
opção. Nenhum criador é somente espectador. Se não participar do drama,
não será criador.
Pintar é uma forma de oração, mas é também uma forma de gritar. É
quase uma atitude psicológica e a mais elevada conseqüência do amor e da
solidão. Eis porque quero que tudo seja límpido, claro, que a mensagem seja
simples e direta. Quero que nada seja deixado ao acaso, que cada gura, cada
símbolo sejam essenciais, porque a obra de arte é uma pesquisa incessante
para ser como os demais sem se parecer com ninguém”.
“Meu avô era um homem cheio de cores. Vestia ponchos verdes,
vermelhos. A lembrança mais viva que guardo dele é vê-lo sobre um monte
de argila, descalço e com as calças arregaçadas, fabricando tijolos grosseiros
para cercar seu terreno, penso eu.
Era organista, tinha um harmônio em casa, e todos os sábados, todos
os domingos, eu me sentava respeitosamente a seu lado para ouvi-lo. Era
organista da igreja de Sangolqui.
Revejo-o assim, chegando a cavalo após uma árdua viagem e trazendo
para mim um chapéu verde, de um verde gritante, que eu não tinha coragem
de usar.
Assim era meu avô: um índio capaz de ler música com uma habilidade
fantástica, de fabricar seus próprios tijolos amassando a argila com os pés e
de me oferecer uma cor tão violenta em um pequeno chapéu.
Minha avó paterna se chamava Zoila Corredores. Era curandeira. Revejo-
a claramente em minha infância, ocupada em cuidar de muitos doentes que
vinham de toda parte para curar-se com ervas, conselhos sábios, imposição
das mãos e preces. Era ao mesmo tempo um pouco de feitiçaria e uma espécie
de medicina. Hoje se sabe que tudo isso fazia parte de uma medicina essencial
no antigo mundo da América e que continua a ser, em nossos dias, medicina
de primeira categoria.
Guayasamín por ele mesmo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
232
Meu pai era um homem duro e decidido. Nos últimos anos de sua
vida estivemos muito próximos, mas em silêncio. Acho que não nos
compreendemos.
Minha mãe era um ser feito de poesia. Estava sempre grávida. Tocava
violão e cantava maravilhosamente. Ela me ensinou os primeiros acordes, as
primeiras vozes.
Lembro-me que quando criança tentei reproduzir um céu vermelho
e atormentado. Naturalmente não conseguia dar-lhe luminosidade; e então
minha mãe, compreendendo minha angústia, verteu um pouco de leite do seio
em um pires de barro cozido e me deu, para que eu visse se ao misturar sua
substância a minhas cores conseguiria capturar a luz. Minha mãe era como o
pão que acaba de sair do forno. Ela me deu as duas vidas que tenho. Era, e
será sempre um terno poema.
Enquanto tiver vida, lembrar-me-ei de ti.
Voltarei sempre, deixe uma luz acesa”.
Fonte: Velasco, Alejandro e Madriñan, Eduardo (orgs). Guayasamín. L’époque il m’a fallu vivre.
Quito: Fundación Guayasamín, Instituto de Cooperación Ibero-americana. Poligraca Division
Editorial, 1988.
DEP
Tradução: Sérgio Duarte
Oswaldo nasceu em Quito, capital do Equador, a 6 de julho
de 1919. Graduou-se como pintor e escultor pela Escola de
Belas Artes de Quito. Realizou sua primeira exibição aos 23
anos de idade, em 1942. Em sua juventude, foi agraciado com
todos os Prêmios Nacionais e foi merecedor, em 1952, aos 33
anos, do Grande Prêmio da Bienal da Espanha e mais tarde
do Grande Prêmio da Bienal de São Paulo. Faleceu em 10 de
março de 1999, aos 79 anos.
Realizou mais de 180 exposições individuais e teve ampla
produção de pinturas, murais, esculturas e monumentos. Seus
murais podem ser encontrados em Quito (Palácio do Governo
e do Legislativo, Universidade Central, Conselho Provincial);
Madri (Aeroporto de Barajas); Paris (Sede da UNESCO).
Fonte: www.guayasamin.com
Guayasamín – auto-retrato
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
233
www.odebrecht.com.br
Construtora
Norberto Odebrecht
As implicações econômicas e sociais das obras
de infra-estrutura no Equador
Projeto Santa Elena (Equador)
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
234
H
á 20 anos a Construtora Norberto Odebrecht iniciou sua primeira
obra no Equador. Ao todo, são 10 projetos de grande porte variando entre
as áreas de transportes, irrigação, energia e saneamento – já implementados
ou em implementação no ps. A primeira obra desta parceria foi realizada
na região de Santa Elena, península situada a noroeste de Guayaquil, a maior
cidade equatoriana. O projeto, empreendido pela Comissão de Estudos para
o Desenvolvimento da Bacia do Rio Guayas (Cede), teve como objetivo
tornar produtivas as terras da Península de Santa Elena ao permitir o cultivo
irrigado de 42 mil hectares. Além disso, possibilitou a chegada de água potável
e de sistemas de esgotamento sanitário a diversas cidades e localidades da
região. As obras, de grande impacto socioeconômico, geraram avanços
importantes na efetivação de parte do grande potencial de desenvolvimento
daquele país. A iniciativa foi o primeiro passo do duradouro relacionamento
que se estabeleceria entre a Odebrecht e o Equador, contribuindo também
de forma signicativa para o aprofundamento da parceria Equador-Brasil.
O exemplo mencionado demonstra com clareza como a infra-estrutura
física atua como protagonista da integração tanto bilateral quanto regional, ao
trazer inúmeros benefícios para todos os envolvidos. Entre as conseqüências
de investimentos desta natureza, estão a incorporação e valorização das
comunidades que são, direta ou indiretamente, beneciadas pelos projetos.
Além disso, tais iniciativas demonstram a articulão entre, de um lado,
os investimentos de parceiros regionais e, de outro, a franca melhoria nas
condições de prodão local e nacional.
A grande potencialidade destes empreendimentos é reconhecida por
organismos internacionais como a Corporação Andina de Fomento (CAF).
Até o nal de 2006, a referida instituão aplicou não menos que US$ 4
biles em projetos de infra-estrutura física na América do Sul. A lógica que
informa o aporte de investimento da CAF é a mesma que motiva a crescente
aproximação entre os países sul-americanos: ambos têm entre seus objetivos
aprimorar a malha infra-estrutural do continente. Em outras palavras, é
consenso que ao viabilizar a integração das cadeias produtivas regionais,
podemos formar economias de escala e, conseqüentemente, aprimorar as
condições de competitividade dos produtos sul-americanos.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
235
Trata-se, em última análise, de reconhecer a necessidade de se trabalhar
constantemente pela redução das vulnerabilidades regionais. Tanto no plano
econômico quanto no energético, estamos diante de questões que estabelecem
imperativos estratégicos a todos os países da América do Sul. No caso do
Equador, não será diferente.
Projeto Santa Elena (Equador)
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
236
Neste momento, a principal fonte de energia do Equador são as
usinas termelétricas. Contudo, essas fontes são insucientes para suprir a
necessidade local, obrigando o país a importar energia da Colômbia. Neste
cenário, o Projeto Hidrelétrico San Francisco, na região de Baños, Província
de Tungurahua, surge como um empreendimento de caráter estratégico para
compensar o atual décit de energia elétrica no Equador. Através dele, estima-
se que o Governo equatoriano economizará mais de US$ 30 milhões por
ano. O valor corresponde ao petróleo utilizado nas usinas termelétricas e que
poderá ser exportado quando a hidrelétrica estiver operando sua capacidade
total de 212 MW.
O consórcio responsável pela execução das obras que consistem na
feitura de túneis, galerias e cavernas subterrâneas é formado pela Odebrecht,
a Alstom e a Vatech. O projeto, considerado de alta complexidade, exige muito
dos trabalhadores, que em sua maioria são habitantes da região e não tinham
experiência anterior em grandes obras. Para desenvolver técnicas que até então
nunca tinham exercitado, cursos de capacitação foram desenvolvidos com o
Usina hidrelétrica San Francisco (Equador)
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
237
intuito de orientar os trabalhadores em suas tarefas, tendo sempre em mente
a extrema importância da segurança no trabalho.
Esses constantes treinamentos realizaram-se de mãos dadas com outros
projetos de apoio à comunidade, gerando oportunidades variadas para os
moradores, tanto durante a execução da obra, quanto após a saída da Odebrecht
da região. Como exemplo deste trabalho continuado, podemos mencionar o
projeto de turismo e preservação ambiental implementado em Baños. A cidade
é famosa por suas cascatas e pelo vulcão Tungurahua, situado 5.016 metros
acima do nível do mar. Juntos, as duas atrações trazem turistas do mundo
inteiro ao local. Através dos projetos sociais implantados, os moradores foram
capacitados para atuar no mercado de ecoturismo e passaram a recepcionar os
visitantes que vinham à região para conhecer a beleza de seus recursos naturais.
Esta via paralela de atuação junto à comunidade, sempre em interação sinérgica
com as obras de infra-estrutura promovidas pelo conrcio, foram responsáveis
por acarretar uma melhoria das condições gerais de vida dos habitantes.
Este engajamento ativo é um tradicional compromisso da empresa com
a comunidade onde seus projetos são executados. Mais do que uma postura
socialmente responvel, essa proposta é inspirada pela não de que a
efetividade da integração depende da capacidade adquirida pelos envolvidos
de usufruir da infra-estrutura oferecida.
A concepção de se disponibilizar infra-estrutura aliada ao espírito de
interação com a comunidade também se faz presente nos demais projetos
da Odebrecht no Equador. O caso das obras em Manabí – situada no oeste
equatoriano constitui um exemplo digno de menção. A região, a terceira
província mais populosa do ps, convivia com o problema de falta de
água durante os períodos secos e inundações no inverno. A diculdade foi
contornada com a realização das obras do Sistema Carrizal-Chone. Parte do
Sistema Integrado de Trasvases de Manabí, o projeto consistiu na implantação
de uma rede de canais para irrigação que benecia, ao todo, 120 mil pessoas
O objetivo com a realização da obra era a elevação da produtividade agrícola.
A meta foi alcançada não apenas com a nalização do projeto, mas também
com a execução de programas de responsabilidade social. As iniciativas visavam
capacitar jovens para a geração de oportunidades de trabalho. Mais que isso,
objetivavam contribuir para a efetiva erradicação da pobreza e da fome na
área afetada. Como resultado imediato destas ações, agricultores da cidade
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
238
tiveram um aumento em seus rendimentos, o que os possibilitou investir na
diversicação de seus produtos e, posteriormente, vendê-los para clientes tanto
nacionais quanto internacionais. Desta maneira, houve um aprimoramento
geral na condição socioeconômica da região, fazendo com que a província,
antes conhecida pelo alto nível de emigração, pudesse oferecer melhores
oportunidades prossionais aos seus moradores, induzindo-os a permanecer
na localidade.
Sistema Carrizal-Chone (Equador)
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
239
Desse modo, faz-se evidente a crucial imporncia do investimento
em infra-estrutura para a comunidade sul-americana como um todo, tendo
sempre em mente a integração continental. Para que tenhamos esforços
conjuntos e viabilizemos resultados positivos compartilhados, a região precisa
que cada uma das partes atuantes tenha força própria. Portanto, para que
possamos obter êxito em uma iniciativa tão complexa quanto a integração
da América do Sul, é indispensável enfatizar a imporncia de cada projeto,
analisando suas implicações econômicas e sociais. Somente quando cientes
desta dimensão, podemos trabalhar no sentido de inserir todas as nações
e comunidades sul-americanas de forma igualitária e efetiva no projeto de
integração continental.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
241
* Ricardo Castanheira é Diretor de Coordenação da América Latina da Andrade Gutierrrez.
www.agsa.com.br
Catapata (Bolívia)
Grupo
Andrade Gutierrez
América Latina: oportunidades, desaos e progresso
Ricardo Castanheira*
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
242
A
engenharia brasileira tem qualidade internacional. E a Andrade
Gutierrez tem o orgulho de ser uma das responsáveis por este reconhecimento.
Provavelmente, esse foi o principal facilitador na abertura das portas de entrada
de uma empresa 100% brasileira em seus países vizinhos. O primeiro passo,
em 1984, foi chegar à Bolívia. Hoje, a América Latina assumiu um papel
fundamental na estratégia de expansão da Construtora Andrade Gutierrez
e faz parte do DNA da empresa. A experiência adquirida em construção de
grandes obras, em inovação de tecnologias e nos desaos conquistados faz
parte da essência da Andrade Gutierrez, dos valores reconhecidos em seus
funcionários e na qualidade de seus projetos.
Criado em 1948, com a fundação da Construtora Andrade Gutierrez, o
Grupo Andrade Gutierrez estabeleceu-se entre os mais importantes do país.
A internacionalização da empresa aconteceu em 1983, por meio de um grande
desao: a construção de uma rodovia no Congo, com 130 quilômetros de
extensão, em meio à oresta africana.
Após ter conquistado seu espaço no Brasil, espalhando sua marca em
uma innidade de obras por todo o país, nos mais variados segmentos, e, com
o sucesso na empreitada no Congo, a empresa decidiu voltar sua atenção para
a América Latina, assinando, seu primeiro contrato na região: a construção da
rodovia Chimoré–Yapacani, na Bolívia.
A dimensão latino-americana
A busca por novos negócios, aliado a um cenário macroeconômico
favorável ao crescimento consistente de países latino-americanos foram as
premissas para despertar o interesse na região. Assim, a empresa abraçou o
novo desao e passou a investir, cada vez mais, nesse mercado. Com 55 projetos
executados no continente americano, a Construtora conta atualmente com
sete escritórios atuando em 15 países, e 12 contratos em execução somente na
América Latina. Seu projeto de expansão contempla alcançar o faturamento
de US$ 1 bilhão até o ano de 2016, o que representa um crescimento de mais
de 15% ao ano na América Latina.
Durante todas essas décadas de atuação em países latinos, a Construtora
enfrentou diculdades que foram importantes para a formação de um portfólio
signicativo. Desaos naturais do frio intenso ao calor extremo zeram
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
243
Aqueduto (República Dominicana)
parte de projetos desenvolvidos nas regiões andinas, desérticas e até mesmo em
mata densa, como foi o caso da Amazônia Peruana. Nesse desbravamento, a
Andrade Gutierrez se viu à frente das diferenças culturais. Embora vizinhos, e
sempre mais próximos, cada país tem suas particularidades e seus diferenciais,
sejam eles políticos, econômicos ou sociais, principalmente no que diz respeito
à cultura empresarial e à legislação. A adaptação aos hábitos locais foi mais
um passo importante para xar-se na região. A natureza adaptável e exível
da empresa, assim como a compreensão do respeito à sociedade e cultura do
país onde atua, facilitou a integração aos diferentes panoramas e à entrega de
projetos de sucesso.
O perl de ser uma empresa realmente forte em engenharia de soluções,
reduziu barreiras econômicas e logísticas. A Andrade Gutierrez sempre
trabalhou em harmonia com clientes, comunidades e governos. Parcerias com
empresários locais rmaram a marca da Construtora não como uma rival, mas
sim uma importante parceira na fomentação de negócios. Essa proximidade
com as empresas dos países, além do forte investimento em o-de-obra local,
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
244
foi determinante para que a Andrade Gutierrez conquistasse seu espaço como
um player regional. E não uma empresa estrangeira.
Com presença na Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México,
Panamá, Peru, República Dominicana, Venezuela, El Salvador e Honduras,
a Andrade Gutierrez preserva uma infra-estrutura importante, além de
relacionamentos fortes, que permitem o seu crescimento duradouro e contínuo
na região. Seus escritórios contam com mão-de-obra, diretoria e gerência
regionais. E, atualmente, a empresa emprega 5 mil funcionários locais alguns
com mais de 15 anos na casa. A expansão de seus necios leva, hoje, cerca de 100
brasileiros a trabalhar e residir em países latino-americanos, onde a Construtora
tem projetos. Os investimentos na região envolvem programas contínuos de
capacitação prossional e processos de sustentabilidade sócio-ambiental.
Casos de sucesso
A Andrade Gutierrez entende seu papel na construção da infra-estrutura
da América Latina, na execução de obras que ultrapassam tempo e espaço.
São construções feitas para atravessar gerações e que têm ação fundamental
em suas vidas. São projetos de infra-estrutura, urbanização e saneamento,
transporte e energia. É criar ambientes que fazem a diferença no dia-a-dia
da população: aeroportos, portos, rodovias, pontes, hidrelétricas, aquedutos,
metrôs, renarias e termelétricas, etc.
E cada uma delas tem história, uma superão. Adversidades de solo, ciclos
das marés, complexidade da estrutura, foram fatores presentes na construção
da Ponte de Guayaquil, uma obra emblemática para o Equador, e que hoje
integra as cidades de Guayaquil, Samborondon e Duran ao resto do país.
Também o Equador é palco de outro projeto marcante. Considerado
um dos projetos mais estratégicos e de maior investimento no exterior no
valor de US$ 600 milhões – devido à sua grandiosidade e importância para a
região, a construção do Aeroporto de Quito, iniciada em janeiro de 2006, que
inclui a concessão para operar o aeroporto por 35 anos pela AG Concessões,
associada à construtora canadense AECON. A perspectiva é de que o aeroporto
receba 3,6 milhões de passageiros por ano.
País importante na estratégia de expansão da Andrade Gutierrez na
América Latina, o Peru apresenta grandes oportunidades. 15 anos, a
Construtora desembarcou na região, e hoje realiza obras principalmente no
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
245
Aeroporto de Quito
segmento de transportes, como as rodovias Interoceânica Norte e o Eixo Sul,
esta última que conectará o Brasil ao Oceano Pacíco. Ainda em processo de
construção e, por ser uma região desabitada, o consórcio enfrenta diculdades
logísticas para o transporte de equipamentos e materiais em longas distâncias.
Outra diculdade é a altitude: grande parte da obra está localizada acima de
3.500 metros acima do nível do mar.
A Andrade Gutierrez participará da licitação das obras da ampliação
do Canal do Panamá, considerado um dos maiores projetos em andamento
no mundo. Essa será uma experiência única, que reúne a ação integrada das
engenharias brasileira, francesa e chinesa, que constituem o consórcio. A
experiência mundial da Construtora em obras dricas foi um ponto importante
para sua participação no projeto. O relacionamento com o país vem desde
a construção da duplicação da Ponte das Américas, o que leva a empresa a
acreditar no sucesso deste empreendimento.
Também bastante signicativos no portfólio da Andrade Gutierrez
estão a República Dominicana, a Argentina e a Venezuela. No primeiro,
a Construtora realiza uma das maiores obras de infra-estrutura do país, a
hidrelétrica Las Placetas. na Venezuela e Argentina, tem planos importantes
na área petrolífera.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
246
Rodovia Panamericana (Perú)
Know-how brasileiro: atuação global
Para alguns segmentos especícos, a engenharia brasileira além de ser
altamente qualicada, é verdadeiramente uma expert. Deste modo, alguns
setores em que a atuação internacional da Andrade Gutierrez ganha maior
peso: hidrelétricas, aquedutos, grandes rodovias, renarias, termelétricas,
saneamento, portos, metrôs, aeroportos. São nichos em que a empresa agrega
valor ao negócio do cliente.
O modelo atual de construção de infra-estrutura exige o apoio ou a
solução na estruturação nanceira do projeto e a Andrade Gutierrez é uma
parceira estratégica de seus clientes. A experiência em concessões, operações
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
247
de infra-estrutura, project nance, o relacionamento com os diversos organismos
multilaterais e fomentadores do desenvolvimento da América Latina habilita
a Andrade Gutierrez a encontrar soluções estruturais aliadas à capacidade e
credibilidade na entrega das obras nos prazos e com a qualidade necessária à
operação a que se destina.
Em quase 60 anos de existência, o Grupo Andrade Gutierrez se renovou,
evoluiu, ganhou novos mercados e alcançou valores que hoje o tornam
uma referência nacional e internacional. É marca de excelência, não apenas
dentro do mercado de Construção Pesada, mas também em setores como
Concessões, Telecomunicações, Transportes e, mais recentemente, Energia,
com a aquisição da Light, empresa que fornece energia ao Estado do Rio
de Janeiro. A experiência e a excelência são, sim, a porta de entrada para a
conquista de novos mundos.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
249
www.embraer.com.br
Embraer Empresa Brasileira
de Aeronáutica S.A.
A internacionalização da Embraer
I
ntrodução
A Indústria Aeroespacial, da qual a Indústria Aeronáutica constitui o
segmento mais expressivo, reúne uma combinação de características altamente
demandantes, que a fazem especial e diferenciada.
Poucas indústrias no mundo embutem combinação de desaos tão
formidáveis como a indústria aeronáutica: do emprego simultâneo de ltiplas
tecnologias de vanguarda, passando pela mão-de-obra de elevada qualicação,
pelas exigências de uma indústria global por denição, à exibilidade necessária
para reagir a abruptas mudanças de cenário e os grandes volumes de capital
exigidos em sua operação.
Como fruto da experiência acumulada em mais de três décadas de atuação
neste mercado competitivo, agressivo e sosticado, na Embraer costumamos
armar que o negócio aeronáutico se fundamenta em cinco grandes pilares,
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
250
que tem como base única a satisfação dos nossos clientes, fonte geradora dos
resultados que permitirão o retorno aos nossos acionistas e a continuidade da
Empresa ao longo dos tempos:
T
ecnologias avançadas: em decorrência de requisitos operacionais
muito exigentes quanto à segurança, de variações ambientais extremas,
e de restrições de peso e volume, a indústria aeronáutica emprega uma
multiplicidade de tecnologias de ponta e reconhecidamente constitui
laboratório para o seu amadurecimento, antes que sejam repassadas
a outros segmentos e atividades produtivas. Tecnologias complexas
e sosticadas estão presentes não somente no produto, mas também
nos métodos e processos de desenvolvimento e fabricação, sendo
necessário ainda a utilização das melhores práticas disponíveis no que
concerne à gestão nanceira e de pessoas.
F
orça de trabalho de elevada qualicação: para que se possa fazer
uso eciente e produtivo compatível destas tecnologias avançadas,
é fundamental que pessoas capacitadas estejam dispoveis, em
todos os níveis de atividades da indústria: no projeto apoiado por
computadores, no relacionamento com fornecedores e clientes
baseados nos cinco continentes, na manufatura com base em quinas
de controle numérico sosticadas, e na construção de elaboradas
soluções nanceiras com instituições internacionais.
F
lexibilidade: abruptas mudanças de cenário afetando a economia e a
ordem geopolítica em escala mundial, das quais o exemplo mais recente
vem dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, tem imediato
impacto sobre a indústria de transporte aéreo e, por decorrência, sobre os
fabricantes de aeronaves. A exibilidade para adaptar-se a estas mudaas,
com nima perda de ecncia e custos, constitui caractestica crucial
para assegurar sua sobrevivência e preservão.
I
ntensidade de Capital: investimentos maciços requeridos para o
desenvolvimento de novos produtos e melhorias em qualidade e
produtividade, aliados a longos ciclos de desenvolvimento e maturação,
fazem da intensidade de capital outra característica marcante deste
negócio. Apenas para exemplicar, o desenvolvimento da nova família
de aeronaves comerciais EMBRAER 170/190 requereu investimentos
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
251
da ordem de US$ 1 bilhão e o novo avião Airbus A350 deverequerer
nada menos que US$ 15 bilhões!
In
stria global: os baixos volumes de prodão e os custos elevados
fazem com que a indústria aeronáutica seja exportadora e global por
natureza, tanto no que se refere à sua base de clientes, como a de
fornecedores, ou das instituições nanceiras e investidores que a apóiam.
A mesma aeronave EMBRAER 170 que opera sob as cores da empresa
nlandesa Finnair no rigoroso inverno escandinavo deve igualmente
suportar as condições de elevadas umidade e temperatura do sul dos
Estados Unidos, operando sob as cores da United Express. Em ambas as
circunstâncias, a Embraer deve se fazer permanentemente presente junto
a seus clientes, provendo apoio cnico local e acesso imediato a peças e
componentes, demonstrando compromisso com o êxito de seus necios
e objetivando, sempre, a satisfação plena que assegura novas encomendas
no futuro. Ao mesmo tempo, tem que viver os diversos ambientes em
que opera para perceber tenncias e mudaas nos cerios, positivas
ou adversas, e ter a capacidade de reagir com rapidez.
Legacy 600 em vôo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
252
Todas essas características tornam a indústria aeronáutica um negócio, ao
mesmo tempo, fascinante e de elevado risco. O insucesso de um novo produto
pode implicar a inviabilidade e conseqüente saída do mercado da empresa que
o desenvolveu. O desaparecimento de empresas tradicionais, como a holandesa
Fokker, e a saída da sueca Saab do mercado aeronáutico civil, dentre outras,
constituem duro atestado desta realidade.
A despeito dos grandes riscos envolvidos, desenvolver uma indústria
aeronáutica autóctone, forte e autônoma, tem sido parte da agenda estratégica
de muitas nações, que através dos anos investem pesadamente em sua
implantação, apoiando-a de forma recorrente por meio de vários expedientes:
rmando grandes contratos de sistemas e produtos de Defesa, nanciando
programas de desenvolvimento de novas aeronaves em condições favoráveis
e propiciando incentivos scais de toda a sorte
A internacionalização da Embraer
Consciente de que a conquista de novos mercados, fundamentais
para o crescimento e consolidação da empresa, somente se dará de forma
efetiva se acompanhada de sua presença física nestes mercados, por meio
de unidades industriais ou de prestação de serviços de pós-venda e apoio ao
cliente, a Embraer adotou, a partir de sua privatização, em 1994, a progressiva
internacionalização de suas operações como um objetivo estratégico a
perseguir.
Longe de signicar perda de sua identidade brasileira e afastamento de
suas origens, a internacionalização da Embraer assegurará novos negócios, o
fortalecimento da nossa marca e a criação de mais empregos de alta qualicação
no Brasil, em proporções sempre superiores aos empregos gerados em suas
subsidiárias e controladas localizadas fora do país.
A partir do ano de 1997, em franca recuperação após o lançamento
no mercado do jato regional ERJ 145, a Embraer deu partida à sua estratégia
de internacionalização por meio de um misto de ações que envolveram:
1- a expansão ou implantação de escritórios de vendas e marketing e centros
de distribuição de peças de reposição; 2- realização de “joint ventures” e;
3- aquisição de empresas especializadas em serviços aeronáuticos tradicionais
e reputadas no mercado.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
253
Estados Unidos e Europa: presenças consolidadas
Em território norte-americano e europeu a Embraer encontra-se
presente de longa data: desde 1978 e 1983, respectivamente, por meio de
escritórios de vendas e marketing e unidades de apoio ao cliente (peças e
serviços).
Ambas as unidades tiveram e têm papel vital na expansão de seus
negócios nos dois principais mercados de Aviação Comercial em todo o
mundo, onde voam hoje, incluído o Brasil, cerca de 950 jatos comerciais,
que se somam aos cerca de 800 aviões turboélices e mais aviões militares
fabricados pela Empresa. Os mercados norte-americano e europeu são
responsáveis por cerca de 95% do total das exportações.
No caso da unidade norte-americana, baseada em Fort-Lauderdale,
no Estado da Flórida, as instalações foram expandidas para fazer frente
ao crescimento dos negócios da Empresa a partir da primeira entrega do
jato regional ERJ 145, em dezembro de 1996. Em novembro de 2006 esta
Phenom 100 e Phenom 300
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
254
unidade empregava 234 pessoas e gerenciava um estoque de peças com mais
de 50 mil itens.
Como resultado do aumento de seus negócios e da base de clientes
estabelecida em território europeu, a Embraer decidiu reunir em uma única
sede, localizada em Villepinte, nas proximidades do aeroporto de Roissy-
Charles de Gaulle, em Paris, suas unidades de vendas e marketing e apoio
ao cliente, incluindo importante depósito de peças sobressalentes, até
então divididas entre a mesma localidade de Villepinte, e o aeroporto de
Le Bourget. As novas instalações, integradas, deverão proporcionar maior
ecácia operacional a um corpo de 194 empregados, responsáveis pela gestão
de € 172 milhões de ativos e servir mais de 37 clientes.
China e Ásia-Pacíco: mercados estratégicos
Pela importância de sua economia, que cresce ininterruptamente a taxas
elevadas há mais de duas décadas, somada ao valor estratégico do transporte
aéreo como elemento integrador e viabilizador do desenvolvimento em um
território dimensões continentais, a China foi eleita pela Embraer como
objetivo estratégico a alcançar, exigindo tratamento próprio e diferenciado,
em face de características culturais próprias, muito distantes do mundo
ocidental.
O estabelecimento da presença da Embraer em território chinês deu-
se inicialmente em maio de 2000, por meio da abertura de um escritório de
vendas e marketing, na cidade de Pequim, logo seguido da abertura de um
centro de distribuição de peças de reposição na mesma cidade.
Nos anos 2001 e 2002, a Embraer negociou com autoridades chinesas
um acordo que lhe permitisse instalar uma unidade industrial destinada à
fabricação de aviões da família ERJ 145 destinadas ao mercado chinês.
Finalmente, em dezembro de 2002, foi rmado um acordo com a
Aviation Industry of China II (AVIC II), que levou à criação da Harbin
Embraer Aircraft Industry (HEAI), “joint venture” da qual a Embraer detém
o controle, com 51% das ações com direito a voto.
Em fevereiro de 2004, a Embraer anunciou a sua primeira venda
na China por meio da HEAI seis jatos ERJ 145 para a empresa China
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
255
Southern. Seguiram-se outras importantes vendas, do mesmo modelo e na
mesma quantidade, para a China Eastern Jiangsu, março de 2005, e para a
China Eastern Wuhan, em janeiro de 2006.
Em agosto de 2006, a Embraer anunciou a venda de 50 aviões ERJ 145
e 50 jatos EMBRAER 190 ao Grupo HNA, quarta maior empresa aérea da
China. O negócio representou o primeiro contrato de venda de um E-Jet na
China continental. O valor total das encomendas rmes, ao preço de lista,
é de US$ 2,7 bilhões. As entregas dos ERJ 145 começarão em setembro de
2007. O jato, de 50 assentos, será produzido pela própria HEAI, na cidade de
Harbin, Província Heilongjiang.
Até o nal de 2006 a HEAI terá entregado 13 unidades do ERJ 145
que, somadas às cinco aeronaves vendidas em 2000, antes da implantação
de sua “joint venture”, para a Sichuan, totalizarão 18 jatos em operação por
empresas aéreas chinesas.
Vista aérea da sede da Embraer de São José dos Campos
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
256
Com respeito à região da Ásia Pacíco, desde dezembro de 2000, a
Embraer opera um escritório de vendas e marketing localizado em Cingapura,
com a responsabilidade de desenvolver a estratégia comercial da companhia
para os mercados da região, incluindo o subcontinente indiano.
O mercado aéreo indiano passa por processo de desregulamentação
e com interessantes perspectivas de crescimento. Nesse cenário, a empresa
Paramount, recentemente criada, anunciou o início de suas operações, com
base em dois jatos EMRAER 170 e três EMBRAER 175, sob o regime de
“leasing operacional”.
Foi também na Índia, com governo local, que a Embraer assinou
importante contrato de venda de cinco jatos Legacy 600, congurados
especialmente para atender a requisitos de conforto e segurança aplicáveis às
autoridades daquele país.
Expandindo a base de serviços e apoio ao cliente
A Embraer deverá continuar expandindo a área de serviços, não só no
que diz respeito a assegurar os excelentes índices de despachabilidade para a
frota de seus aviões, mas também servir seus clientes com outros serviços,
como a manutenção e o reparo de aviões, garantindo a sua plena satisfação,
condição essencial à geração dos nossos resultados e crescimento das nossas
operações.
Assim é que, além de consolidar sua base de atendimento no Brasil, com
a transferência de seu Centro de Serviços para a Unidade Gavião Peixoto,
foram expandidas sua participação nos Estados Unidos, com a adição de
novas instalações da Embraer Aircraft Maintenance Services (EAMS), em
Nashville, Estado do Tennessee, e também na Europa, com a aquisição da
OGMA Indústria Aeronáutica de Portugal S.A, em Alverca, Portugal,
anunciada em dezembro de 2004, ao nal do processo de privatização.
No início de 2005, a EAMS expandiu suas instalações no Aeroporto
Internacional de Nashville para aumentar a capacidade de realização de
serviços de manutenção, em vista da crescente frota de aviões da Embraer
em operação nos Estados Unidos. Como conseqüência dessa importante
decisão, a partir de 2005, novos empregados foram progressivamente
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
257
contratados pela EAMS, cujos quadros contavam, em novembro de 2006,
com 277 empregados.
A OGMA, fundada em 1918, tem desde então se dedicado à manutenção
aeronáutica, sendo hoje importante representante da indústria aeronáutica
européia, oferecendo serviços de manutenção e reparo de aeronaves civis e
militares, motores e componentes, modicações e montagens de componentes
estruturais e suporte de engenharia.
Seus principais clientes militares são a Força Aérea Portuguesa, a Força
Aérea Francesa, a Força Aérea e a Marinha dos Estados Unidos, a Agência de
Manutenção e Suprimento da OTAN e as Marinhas da Noruega e Holanda,
entre outros. No segmento comercial, a OGMA vem prestando serviços a
empresas aéreas como a TAP, Portugalia, British Midland e Luxair, e também
para companhias como a Embraer e a Rolls-Royce.
Além de trabalhos na área de manutenção, a OGMA fabrica componentes
estruturais e materiais compostos para a Boeing, Airbus, Lockheed Martin,
Dassault e Pilatus. Em novembro de 2006 contava com 1.606 empregados,
constituindo-se na maior das unidades e subsidiária da Embraer.
Família EMBRAER 170/190 em vôo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
258
A preservação da cultura, valores e atitude:
desao permanente
A velocidade da expansão da Embraer a partir de 1996, ano que marcou
a entrada em operação da aeronave ERJ 145, trouxe consigo enormes desaos
sob os enfoques da preservação da cultura, valores e atitudes que norteiam e
deverão continuar norteando suas ações.
Apenas para exemplicar a dimensão desse desao, basta citar que, em
abril de 1997, a Empresa contava com apenas 3.200 empregados distribuídos
em um total de cinco unidades operacionais, sendo três no Brasil e duas no
exterior. Hoje, decorridos nove anos, são 18.670 empregados distribuídos
em treze unidades operacionais, sendo cinco no Brasil e oito no exterior.
Em apenas uma de suas unidades, situada na França, existem cerca de 26
nacionalidades e 19 línguas distintas dentre 194 empregados.
Saber reconhecer a rica diversidade étnica e cultural de seus empregados
e os diferentes ambientes em que desenvolvem suas atividades, incluídas
as legislações trabalhistas especícas, e, ao mesmo tempo, desenvolver seu
máximo potencial criativo, canalizando suas energias para os objetivos
do negócio, em perfeito alinhamento com os valores éticos e morais da
companhia, constitui uma das grandes prioridades de seus administradores.
O principal elemento no alcance desse intento é a chamada Metodologia
de Gestão pelo Plano de Ação. Anualmente, a Embraer elabora um Plano de
Ação com uma visão de cinco anos e segue um modelo de planejamento
estratégico considerando mercados, competidores, competências da Empresa,
oportunidades e riscos, prioridades e resultados, dentre outros fatores.
O Plano de Ação da Companhia é resultante do desdobramento interno
de planos equivalentes para cada área corporativa, funcional e de negócio,
chegando ao nível de chão de fábrica, a partir da divulgação, na estrutura
organizacional, de diretrizes gerais emitidas pela administração superior para
a Empresa. A política de remuneração variável da Companhia, que se estende
a todos os seus empregados, leva em conta as metas pactuadas entre líderes
e liderados ao longo de toda a cadeia de comando. Em assim sendo, o Plano
de Ação passa a constituir o instrumento central de empresariamento do
negócio, alinhamento e comprometimento de todos os empregados com as
metas e resultados planejados.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
259
Juntamente com a Metodologia do Plano de Ação, a Embraer pratica
uma forte cultura de Comunicação Interna direcionada para a integração entre
empregados e seus familiares e para a disseminação dos principais valores e
conceitos Embraer.
A Comunicação Interna da Embraer atua de forma global e integrada,
lançando mão de ferramentas modernas e de grande atratividade junto aos
empregados:
O
Diretor-Presidente da Embraer dise de ferramenta própria
de comunicação com os empregados, denominado Em Tempo,
produzido simultaneamente nos idiomas português e inglês. Mais
recentemente, passaram a serem produzidas edições especiais do Em
Tempo gravadas em vídeo;
A
Intranet Embraer constitui hoje ferramenta de alcance corporativo
e a principal fonte de informações de nossos empregados, com uma
média de 24,5 mil acessos diários;
Cerca
de 600 comunicados internos são produzidos anualmente e
disponibilizados aos empregados via Intranet e em quadros de avisos,
sendo 25% destes comunicados de alcance corporativo;
O
informativo Embraer Notícias divulga temas essenciais à cultura
Embraer: a Metodologia de Gestão pelo Plano de Ação, a importância
do discernimento e contenção de custos, o combate ao desperdício, a
integração entre equipes em torno dos grandes objetivos empresariais
da Embraer, etc;
Entrevistas
concedidas pelos principais executivos da Empresa são
traduzidas e enviadas para as unidades situadas fora do país. Por
abordarem, invariavelmente, avaliões de mercado, assim como
estratégias e objetivos da Companhia, constituem objeto de grande
atenção por parte dos empregados;
A
rtigos publicados na mídia nacional e internacional, abordando
temas de interesse aos negócios da Embraer, são traduzidos e
disponibilizados aos empregados.
Com essa vio e determinação, centrada em valores éticos e morais, e
tendo a integridade como base do desenvolvimento das ões, a Embraer se
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
260
lança ao empresariamento de um negócio global, extremamente desaante
e competitivo. E o faz levando aos diversos mercados a imagem de uma
empresa brasileira eciente, ágil e com produtos de qualidade e atualidade
tecnogica.
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
261
D E P
DIPLOMACIA ESTRAGIA POTICA
Número 5 Janeiro / Mao 2007
Sumário
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
José Paradiso
A integração da infra-estrutura na América do Sul:
um impulso ao desenvolvimento sustentável e à
integração regional
Enrique García
Paciência e eleições
Antônio Delm Netto
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
Luis Maira
Fatores de força da Colômbia
Fernando Cepeda Ulloa
Política exterior e segurança democrática e humana
Diego Ribadeneira Espinosa
A nova ordem humana global de Cheddi Jagan
Ralph Ramkharan
5
26
36
40
56
78
86
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
262
92
108
128
144
182
191
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
Dionisio Borda
Visão estratégica regional da política externa
do Peru
José Antonio García Belaunde
Suriname por seus autores
Jerome Egger
Mercosul: quo vadis?
Gerardo Caetano
Plena Soberania Petrolífera
Rafael Ramírez
Silvano Cuéllar – Alegoria da Nação
María Victoria de Robayo
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
263
D E P
DIPLOMACIA ESTRAGIA POTICA
Número 4 Abril / Junho 2006
5
16
28
44
66
86
101
Sumário
Objetivos e desaos da política exterior argentina
Jorge Taiana
Bolívia, fator de integração
Evo Morales
Desaos e perspectivas da economia brasileira
Paulo Skaf
Programa de governo (2006-2010)
Michelle Bachelet
A armadilha do bilateralismo
Germán Umaña Mendoza
A Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica (Otca): um desao permanente
Rosalía Arteaga Serrano
A Guiana – vinculando o Brasil ao Caribe:
um potencial que encontra a sua oportunidade
Peter R. Ramsaroop
Eric M. Phillips
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
264
120
134
155
169
206
232
A encruzilhada política paraguaia
Pedro Fadul
A grande transformação
Ollanta Humala
Suriname, uma visão macroeconômica:
desaos e perspectivas
André E. Telting
A inserção externa do Uruguai:
uma visão política e estratégica
Sergio Abreu
“Há um outro mundo, e está neste”
José Vicente Rangel
Pedro Lira
Milan Ivelic
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
265
D E P
DIPLOMACIA ESTRAGIA POTICA
Ano I Número 3 Abril / Junho 2005
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
266
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
267
D E P
DIPLOMACIA ESTRAGIA POTICA
Ano I Número 2 Janeiro / Março 2005
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
268
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
269
D E P
DIPLOMACIA ESTRAGIA POTICA
Ano I Número 1 Outubro / Dezembro 2004
Diplomacia, Estratégia E políticaabril/Junho 2007
270
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