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ESTRATÉGIA POLÍTICA
D E P
DIPLOMACIA
Editor
Carlos Henrique Cardim
Endereço para correspondência:
Revista DEP
Caixa Postal 2431
Brasília, DF – Brasil
CEP 70842-970
revistadep@yahoo.com.br
www.funag.gov.br/dep
A revista DEP – Diplomacia, Estratégia e Política é um periódico trimestral,
editado em português, espanhol e inglês, sobre temas sul-americanos, publicado no
âmbito do Projeto Raúl Prebisch, com o apoio do Ministério das Relações
Exteriores (MRE/Funag – Fundacão Alexandre de Gusmão/Ipri – Instituto de
Pesquisa de Relações Internacionais), da Construtora Norberto Odebrecht S. A., da
Andrade Gutierrez S. A. e da Embraer – Empresa Brasileira de Aeronáutica S. A.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
DEP: Diplomacia, Estratégia e Política / Projeto Raúl Prebisch
no. 5 (janeiro/março 2007) – . Brasilia : Projeto Raúl Prebisch, 2007.
Trimestral
Editada em português, espanhol e inglês.
ISSN 1808-0480
1. América do Sul. 2. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,
Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela.
I. Projeto Raúl Prebisch.
CDU 327(05)
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D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 5 Janeiro / Março 2007
5
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40
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78
86
Sumário
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
José Paradiso
A integração da infra-estrutura na América do Sul:
um impulso ao desenvolvimento sustentável e à
integração regional
Enrique García
Paciência e eleições
Antônio Delfim Netto
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
Luis Maira
Fatores de força da Colômbia
Fernando Cepeda Ulloa
Política exterior e segurança democrática e humana
Diego Ribadeneira Espinosa
A nova ordem humana global de Cheddi Jagan
Ralph Ramkharan
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128
144
182
191
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
Dionisio Borda
Visão estratégica regional da política externa
do Peru
José Antonio García Belaunde
Suriname por seus autores
Jerome Egger
Mercosul: quo vadis?
Gerardo Caetano
Plena Soberania Petrolífera
Rafael Ramírez
Silvano Cuéllar – Alegoria da Nação
María Victoria de Robayo
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
5
os últimos tempos os estudiosos das relações internacionais parecem
ter redescoberto a importância das idéias e das crenças na formulação da política
exterior dos estados. Em franca controvérsia com as teorias mais tradicionais,
os adeptos do construtivismo tiveram um papel importante nesse sentido, e já
existe um bom número de pesquisas e de modelos analíticos que procuram analisar
essa vinculação para encontrar provas de influência ou causalidade.
1
Qualquer
que seja a esfera de política pública de que se trate, os agentes que tomam decisões
são guiados freqüentemente por um conjunto de idéias que especificam como
devem ser abordados os problemas a enfrentar. Esta premissa foi o ponto de
partida de um célebre estudo sobre a forma como na Inglaterra dos anos 1970,
as idéias keynesianas foram substituídas por outro paradigma. Curiosamente, o
próprio Keynes tinha afirmado que era sempre possível encontrar a marca das
idéias de economistas ou filósofos políticos por trás de qualquer estrutura de
Idéias, ideologias e
política exterior na
Argentina
José Paradiso
*
* Sociólogo e Professor da Universidade de Salvador, Buenos Aires, República Argentina.
1
Albert S.Yee. The causal effects of ideas on policies, International Organization 50/1, Winter, 1996.
N
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
6
decisão. Naturalmente, a questão se radica na entidade das mesmas, na distância
entre o tempo da ideação e o da decisão, e na consciência desse vínculo que têm
os autores.
A rigor, nada é fácil quando se trata de idéias e ideologias. Vale recordar
as muitas definições deste último conceito (dezesseis acepções, segundo Terry
Eagleton) e o surgimento permanente de novas contribuições e discussões sobre
o tema.
2
Talvez por essa razão grande parte dos livros sobre a história das idéias
avançam diretamente para a descrição, o registro seqüencial e as articulações
entre elas, antes de passar previamente pelo capítulo das definições. A natureza
muitas vezes heterogênea e complexa dessas representações da realidade,
construídas para conhecer as coisas e orientar a ação entre elas, as tornam
resistentes a fronteiras muito rígidas, saltam sobre valas, correm por leitos
distintos e se confundem em multiplicas combinações, perdendo-se por vezes a
pista das suas origens.
Para facilitar a ordem expositiva adotamos um critério bastante habitual,
que distingue no campo complexo da ideação dois componentes principais: de
um lado, os sistemas de pensamento que oferecem um conjunto amplo e
moderadamente coerente, disposto a responder pela maior parte das questões
relativas ao homem e ao mundo. É o caso do conservadorismo, do liberalismo,
do socialismo, etc. Cada tradição compõe uma ou várias referências filosóficas.
Por outro lado, temos as representações específicas circunscritas a um campo
determinado da realidade. Por exemplo, a idéia do progresso, do interesse
nacional, do desenvolvimento, etc., ou que refletem o pensamento surgido em
um determinado âmbito institucional. Naturalmente, entre umas e outras, entre
os sistemas ideológicos e os sujeitos ideacionais considerados individualmente
existem numerosas vinculações, pois estes últimos se referenciam em ordem aos
primeiros (prescindimos das teorias, embora se saiba bem que essas estruturas
conceituais elaboradas conforme pressupostos epistemológicos e metodológicos
precisos se comunicam com idéias e ideologias por meio de diferentes canais).
Neste trabalho, concebido como uma primeira abordagem ao tema da
gravitação das idéias e ideologias sobre a formulação da política exterior
argentina, adotamos uma perspectiva histórica, e para isso distinguimos quatro
grandes etapas: 1) da época da organização nacional até a primeira guerra
2
Terry Eagleton, Ideología: una introducción, Paidos Barcelona, 1997.
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mundial; 2) o período de entre-guerras, até fins da segunda guerra mundial;
3) o ciclo 1945-1990; 4) do fim da Guerra Fria em diante.
Uma Argentina seduzida pelo livre-cambismo
A chamada “república oligárquica” conciliava a disposição conservadora
da maioria dos seus dirigentes com convicções liberais de antigas raízes
históricas, que tinham sido o texto dos grandes líderes que sucederam a batalha
de Caseros (1852), que pôs fim ao poder de Rosas. A geração da organização
nacional – as três presidências constitucionais que se sucederam entre 1862 e
1880 – e seus herdeiros cultivaram um liberalismo tingido de formas
positivistas, cujo núcleo mais compacto era o constitucionalismo, o mercado
livre e um estado limitado, embora presente. Essas idéias formavam parte de
uma maneira de pensar dominante na qual coincidiam, com ligeiras variações,
a maioria dos dirigentes políticos – mesmo grande parte da vertente católica
que, opondo-se firmemente às leis leigas, interpretadas como uma política de
descristianização, rejeitava as formas absolutistas de governo e acreditava
sinceramente nas virtudes do livre câmbio. Valores que eram compartilhados
igualmente pela maioria do socialismo nascente e do partido radical em
ascenção. Em suma, o laissez faire era uma idéia tanto dos governistas como
dos seus opositores: pedra angular de um modo de inserção internacional
que, em troca das exportações agropecuárias, contemplava um fluxo generoso
de capitais, produtos elaborados, imigrantes e idéias. Houve também
manifestações de apoio a políticas protecionistas, mas mesmo os que as
defendiam não abjuravam a ortodoxia econômica.
Quando as questões de política exterior eram abordadas – relacionavam-
se principalmente com a dimensão territorial e os litígios fronteiriços – não
havia dúvida em sustentar os “justos títulos do país”, fossem reais ou não,
embora houvesse desacordo a respeito do modo de defendê-los e preservá-
los. Alguns acreditavam na política de poder e nos preparativos belicistas,
outros se inclinavam para as vias pacíficas, o diálogo e a prática da arbitragem.
O predomínio da inclinação no sentido da tramitação pacífica dos conflitos
entre os estados se ajustava a conveniências dos agentes econômicos internos
e externos, mas tinha também um forte apoio em idéias profundamente
arraigadas a respeito do papel do direito internacional como expressão de um
progresso da civilização do qual se aspirava a participar. “Paz e administração”
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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seria a fórmula de governo que refletia um esquema de prioridades e uma
relação de causa e efeito entre a ordem e o progresso material, que devia
materializar-se tanto no plano interno como na gestão diplomática.
Aqueles que aderiam à Realpolitik pensavam de outro modo. A linguagem
do poder, das alianças e dos equilíbrios era a que melhor se adaptava a suas
avaliações, e embora não conseguissem prevalecer, tiveram bastante êxito em
impor a idéia de que o país tratava com displicência as questões externas, o que
dava à sua diplomacia um caráter vacilante e errático. Sobre o seu modo de
interpretar o interesse nacional influíam circunstâncias próprias da época: as
corridas armamentistas, os jogos de aliança e contra-aliança, o auge das
construções geopolíticas (começando pelas idéias do Almirante Mahan sobre o
poder naval). De qualquer forma, depois da primeira década do século XX,
aqueles litígios que tinham alimentado as discussões estavam superados ou
pareciam bem encaminhados. Embora houvesse os que continuavam exigindo
maior atenção à importância do território, e uma democracia mais agressiva,
entre os políticos e os intelectuais ganhavam força outras idéias sobre a relação
do país com o mundo.
O temor com respeito aos Estados Unidos da América foi um
sentimento muito difundido entre as elites dirigentes, e teve conseqüências
sobre as orientações de política exterior e muitas iniciativas diplomáticas. Essa
atitude tem sido interpretada muitas vezes como a acomodação ao ditame
dos mercados, ou como uma conseqüência necessária da relação especial com
Londres, embora fosse bem mais do que isso. Dos que lideravam um país cuja
modernização e crescimento econômico eram cada vez mais considerados no
mundo não se podia esperar senão o cuidado em defender as expressões
formais de autodeterminação, de uma orgulhosa autopercepção e da vocação
para afirmar-se.
A rigor a percepção com respeito à potência do Norte misturava uma
admiração indisfarçada, e o desejo de emulação, com uma desconfiança que
aumentava paralelamente às práticas do expansionismo exercido por Washington
sobre territórios hispano-americanos. Refletia um conjunto de reações
sustentadas às vezes em um antiutilitarismo que lembrava Ariel, de José Enrique
Rodó (1900), o hispanismo e o antimonroísmo. Um dos testemunhos mais
eloqüentes é um trabalho de Roque Saenz Peña, o presidente do voto universal,
sobre a Doutrina Monroe. Defensor firme do princípio de não intervenção, que
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
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considerava a “grande conquista do direito de gentes, que defende a integridade
e inviolabilidade das nações”, o futuro mandatário argentino reconhecia que
“Os Estados Unidos não são muito dados a crer na igualdade política das nações
... seus atos e suas relações com os governos fracos se ressentem de uma certa
intemperança, demonstram em todo momento sua proximidade da força ...
Que significação atual, real, positiva, tem hoje a famosa doutrina? Simplesmente
a influência norte-americana em vez da européia.
3
Com o tempo, pelo menos
para um setor da classe dirigente, e de acordo com o que acontecia em outros
países da região, esse antimonroismo foi cedendo lugar a um latino-americanismo
de tom antiimperialista, crítico das práticas norte-americanas na América Central
e no Caribe.
Uma das idéias que não podiam deixar de influir sobre a forma como os
argentinos se relacionavam com o mundo era a certeza de que ao seu país estava
reservado um futuro de grandeza. Corroborada por um notável desempenho
econômico e alimentada pelos comentários de personalidades de todo o mundo,
que chegavam para comprovar com seus próprios olhos o milagre que acontecia
na longínqua periferia do Rio da Prata, essa imagem de si mesma sustentava
uma atitude diante dos outros países que mesclava o orgulho e a altivez com
demandas de reconhecimento, uma forte dose de autovalorização, uma atitude
imitativa e identificações equivocadas.
4
À medida que o crescimento econômico e a modernização do país
transformavam muito rapidamente sua fisionomia social e política, eram criados
os espaços necessários para que prosperassem novos sistemas de crenças. Se no
âmbito econômico, como resultado da vigência de um modelo de adequação
da divisão do trabalho que dava frutos evidentes, o laissez faire continuava
suscitando a maior adesão, a sociedade e a política ampliavam à direita e à esquerda
esquemas de refletiam as novidades ideológicas da época no mundo, em particular
o socialismo e o nacionalismo.
Na literatura, a imprensa e os imigrantes traziam as notícias e os discursos
socialistas que na Argentina não tardariam a reproduzir os matizes e as correntes,
3
Roque Saenz Peña. Estados Unidos en Sudamerica, La Biblioteca, Buenos Aires, 1897.
4
Diga-se de passagem que uma das hipóteses mais férteis de interpretação do que muitos chamam de “caso
argentino” parece apontar para esse tipo de mentalidade, fortemente arraigada na sociedade, cujos efeitos
“constitutivos” se fizeram sentir no momento da prosperidade e muito mais ainda quando declinou a influência
dos fatores que a sustentavam.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
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reformistas ou revolucionárias, que prosperavam na Europa. Em matéria de
política exterior, os socialistas não se afastavam das suas referências universais:
subscreviam as idéias de “arbitragem obrigatória, supressão da diplomacia
secreta, limitação dos armamentos, livre determinação das nações e facilidade
de circulação de homens, idéias e mercadorias”.
5
Ecoando aquele processo
europeu por meio de do qual a vertente de cunho liberal que tinha alimentado a
“era das nacionalidades” cedia lugar a uma corrente autoritária que reagia contra
as manifestações sociais e culturais da modernidade, prosperou também na
Argentina um nacionalismo à Charles Maurras – intolerante, agressivo, adversário
irredutível das tendências democráticas. Mesmo quando suas preocupações mais
importantes se voltavam para os assuntos internos, seus pressupostos ideológicos
tendiam para os que favoreciam uma política de poder, com preparativos
belicistas.
No entanto, a predominância da vontade popular se inclinava em favor
do republicanismo democrático, que tomaria corpo na importante reivindicação
do sufrágio universal e, graças a isso, provocaria uma mudança decisiva na vida
política argentina. O certo é que, além desse objetivo, apresentado com
tonalidades dramáticas e calculadamente ambíguas, o partido triunfante em 1916
não se apoiava em uma posição programática de grande consistência, embora,
graças ao peso da liderança de Hipólito Irigoyen, daria ao pensamento idealista
e principista do filósofo alemão Frederico Krause e seus seguidores espanhóis,
a oportunidade de exercer a sua influência. De qualquer forma, vale advertir que
em matéria de política exterior o programa do grupo de orientação conservadora
que competira pela presidência em 1916 não se afastava muito das posições
tradicionais assumidas pela diplomacia argentina.
O componente igualitário que rondava o pensamento de Irigoyen foi
responsável pela denúncia de uma das iniciativas mais importantes de tal política:
o acordo do ABC. Assim, o líder radical parecia ecoar a preocupação dos países
sul-americanos relativamente fracos, que viam com suspicácia uma entente entre
os três grandes, destinada a reger o conjunto do subcontinente, embora houvesse
outros motivos que não deveriam ser desprezados: diferenciar-se dos seus
antecessores ou fazer alguma concessão aos que temiam um bom relacionamento
com Santiago e o Rio de Janeiro.
5
Nicolas Repetto. Política Internacional, La Vanguardia, Buenos Aires, 1943.
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11
O certo é que, com respeito à questão mais sensível que dominou parte do
seu período de governo, a União Cívica Radical não se afastou das orientações
diplomáticas do que chamaria com desprezo de “el régimen”.
6
Conservadores,
liberais, radicais, socialistas e nacionalistas coincidiram – nem sempre pelas
mesmas razões – em respaldar a decisão de manter a neutralidade durante a
Primeira Guerra Mundial. Era a expressão de um sentimento pacifista
amplamente difundido entre a maioria das forças políticas. À margem da
conveniência comercial devia-se reconhecer nesse relativo consenso, marcado
por rivalidades políticas internas, a percepção de que se tratava de uma questão
alheia, de um choque pelo poder que confirmava o belicismo dos soberanos
europeus e as ambições imperialistas, fonte de grandes antagonismos entre as
nações
7
; por outro lado, contava em seu favor com posição similar adotada
pelo Presidente Wilson: este havia sustentado perante o Congresso dos Estados
Unidos que se tratava de um conflito no qual o seu país nada tinha a fazer.
A princípio o radicalismo manteve a neutralidade sem muitos sobressaltos.
No entanto, durante o primeiro trimestre de 1917 houve uma mudança. Reagindo
à intensificação da guerra submarina praticada pelos alemães, os Estados Unidos
passaram à beligerância, acompanhados por vários países latino-americanos,
que tiveram a mesma atitude. Paralelamente, os acontecimentos de Moscou, que
terminaram com a queda do csarismo e a paz em separado, negociada pelos
revolucionários, afastava a Rússia do conflito. Tudo isso redefinia o perfil político
e ideológico da guerra, dando argumentos aos que a viam como um choque
entre as democracias liberais e os governos autoritários. Nestas circunstâncias, e
embora o governo tenha mantido a neutralidade até o fim, ela contava com
cada vez menos consenso, suscitando grande controvérsia. Diante de
posicionamentos como os expostos por Joaquín V. Gonzáles – “Na presença
de uma luta de morte entre a autocracia e a democracia, cabe perguntar se a
República Argentina, um dos melhores expoentes da democracia americana,
deve permanecer impassível, com os braços cruzados, em atitude de indiferença”
a resposta do governo seria: “Por sua composição étnica nossa raça é solidamente
européia, mas a nossa nação está completamente afastada da órbita espacial
onde se desenvolve a guerra. Em sua composição social nosso povo provém da
6
Na simbologia da época, “el regimen” seria a expressão da imoralidade política dominante, que “la causa”,
representada pelos radicais, viria erradicar.
7
Enrique del Valle Imberlucea. La Guerra Europea y la Política Internacional, Buenos Aires, 1914.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
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Europa, mas na sua organização política e no seu espírito ele é diferente. Nasceu
uma nova cultura; estamos comovidos pela guerra mas não nos deixamos
envolver nela.
8
Um dos exemplos mais eloqüentes dos dilemas que a guerra impôs às
diferentes forças políticas do país foi a controvérsia dentro do Partido Socialista.
Neste caso pesavam sem dúvida elementos exclusivos desse grupo, vinculados
ao seu caráter internacionalista e com a experiência traumática dos seus pares
europeus, que viram suas concepções pacifistas e de solidariedade proletária
tombarem diante das forças do patriotismo nacionalista. O certo é que quando
o grupo de parlamentares desse partido, apoiados por alguns membros do
Comitê Nacional, defenderam o rompimento de relações com a Alemanha,
tiveram que enfrentar uma forte oposição, que obrigou à convocação de um
Congresso Extraordinário do partido, o qual, por pequena maioria, desautorizou
a posição favorável ao rompimento de relações, abrindo assim o caminho para
uma cisão entre os seus membros.
A atitude do governo de Buenos Aires com respeito à criação da Sociedade
das Nações foi pautada principalmente por conceitos idealistas e não pragmáticos.
Convidado para a conferência constitutiva da Sociedade, celebrada em Genebra,
o governo argentino impôs a seus delegados a diretriz de defender de forma
inflexível os princípios da universalidade e da igualdade de todos os estados
soberanos. Quando foi adiada a consideração desses critérios, ordenou a sua retirada
da Assembléia. Essa atitude revelava muitas coisas, inclusive o fato de que o caudilho
popular compartilhava a idéia das elites de que à Argentina, “a Providência
tinha reservado um lugar no cume do cenário internacional.” Vários anos depois
de haver tomado essas decisões, Irigoyen procurava explicá-las afirmando:
“Ninguém desenvolveu mais nem aplicou com maior empenho as doutrinas do
Evangelho, ou estendeu no horizonte universal ideais mais nobres e fraternais,
interpretando os mandados da Providência, nas horas mais difíceis de provação.
9
Quando os rumos são confundidos e tudo começa tornar-se
menos alentador
Como na maior parte da região, a crise que abriu a quarta década do século
vinte significou uma profunda ruptura. Na Argentina, porém – e isto talvez
8
Peter G.Snow. Radicalismo Argentino, Francisco de Aguirre, Buenos Aires, 1972.
9
Hipólito Yrigoyen. Pueblo y Gobierno, Tomo IV. La función de Argentina en el mundo, Raigal, Buenos Aires, 1953.
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represente a sua maior singularidade –, além do golpe militar que interrompeu a
continuidade constitucional e derrubou o partido majoritário, ela fez com que a
imagem de um país de prosperidade garantida, sempre crescente, começasse a
se desvanecer. Naturalmente, não se tratava de uma idéia precisa, mas de
sensações vagas, que estavam destinadas a fortalecer-se com o tempo, e que
exigiriam explicação sobre origens e responsabilidades, as quais se somariam ao
ajuste de perspectivas e a novas convergências por parte das grandes correntes
político-ideológicas.
Nessa busca, muitos olhos críticos focalizariam o modo de inserção na
economia atlântica,
10
e muito particularmente no imperialismo britânico,
indiciado como o causador de uma “nação não realizada”. Era previsível que
essa interpretação prosperasse entre as diversas vertentes de um nacionalismo
que ganhava o centro da cena, favorecido pelo recuo dos ideais liberal-
democráticos, assediados, como no resto do mundo, pela direita e pela esquerda.
A tendência era universal, embora em cada região se combinasse com
circunstâncias locais específicas. Na década anterior à Segunda Guerra Mundial
a forma como se desenvolveu a vida política argentina não contribuiu muito
para evitar o descrédito dos partidos políticos e da instituição parlamentar. Suas
práticas e o enfraquecimento da sua capacidade de refletir os interesses da
cidadania erodiram a credibilidade e a confiança na matriz ideológica que dava
sustentação e adeptos às correntes críticas da esquerda radical ou às diferentes
modalidades de nacionalismo, aos quais resultaria relativamente fácil definir
tonalidades e conteúdos do debate ideológico.
De qualquer forma, não deixa de ser paradoxal que nos mesmos anos em
que a política interna parecia perder o rumo, no meio de proscrições, fraudes,
negociatas, cisões partidárias e acordos questionados, e o auge do nacionalismo
refletia desencantos e rejeições, a diplomacia argentina alcançava os maiores
sucessos de toda a sua história, de certo modo sinalizados pela concessão do
Prêmio Nobel da Paz a quem atuara como Chanceler entre 1932 e 1938.
O reconhecimento de Carlos Saavedra Lamas pela célebre Academia sueca foi a
coroação de uma gestão importante, que além da intervenção no caso da Guerra
do Chaco contemplou outros desempenhos destacados, regionais e globais.
Saavedra Lamas foi um homem de idéias prestigioso, com amplos interesses e
10
T. Halperin Donghi. La Argentina y la Tormenta del Mundo. Ideas e ideologías entre 1930 y 1945, Siglo XXI,
Buenos Aires, 2003.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
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firmes convicções sobre o valor da juridicidade no campo internacional e da
cooperação entre os países latino-americanos.
11
Voltando à difusão das idéias nacionalistas, a ampla literatura dedicada à
descrição ou explicação do fenômeno pôs ênfase em acentuar a grande variedade
de suas manifestações, cada uma das quais se articulava sobre diferentes
combinações de interesses internos e referências externas. O fato de que fossem
idéias espanholas, italianas ou alemãs não era apenas uma questão formal, mas
refletia identidades ideológicas diferenciadas embora com denominadores
comuns, e desembocava em decisões políticas semelhantes.
Esse é o caso da neutralidade. Deve-se admitir que os julgamentos sobre
as conseqüências dessa “reincidência” argentina a respeito de um acontecimento
que emocionaria o mundo, levou a perspectivas bastante simplificadas a respeito
de idéias e ideologias que sustentaram aquela posição. De modo geral, menciona-
se a identificação com o autoritarismo europeu ou o interesse oportunista em
manter aberto o canal de comércio com a Grã-Bretanha. Não obstante, o que
aconteceu foi bem mais do que isso. Como é natural, o nacionalismo autoritário
da direita antiliberal aderia ao Eixo e imaginava uma Argentina somada à Nova
Ordem proposta pelo poder militar germânico. Outro segmento do nacionalismo,
mais antiliberal que antidemocrático e zeloso do imperialismo britânico, era
menos propenso às identificações ideológicas, e não via com maus olhos uma
eventual vitória do Eixo, de conformidade com a fórmula “simpatizar com o
inimigo do meu inimigo”. Finalmente, deveríamos mencionar aquele neutralismo
que respondia a uma espécie de “zelo soberanista”, à idéia da continuidade e
coerência diplomática ou o respeito de uma tradição partidária.
12
Certamente
em todos os casos a guerra era interpretada com uma mistura de realismo político
convencional que não atentava para a natureza perversa do regime nazista.
Durante dois anos o neutralismo teve um aliado na extrema esquerda do
espectro político ideológico. Fiel à sua filiação pró-soviética, enquanto se manteve
o pacto de não agressão entre Berlim e Moscou seus expoentes sustentaram a
idéia de que se tratava de uma guerra antiimperialista, da qual a Argentina devia
manter-se afastada. No entanto, logo que a Alemanha denunciou o acordo, e
lançou suas divisões contra o Ocidente, orientaram todos os seus esforços a
favor do alinhamento de Buenos Aires com as Nações Unidas.
11
Carlos Saavedra Lamas. Por la paz de las Américas, Gleizer, Buenos Aires, 1937.
12
Foi este o caso do neutralismo sustentado pelo setor da União Cívica Radical que respondia à liderança do
caudilho de Córdoba Amadeo Sabattini.
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Curiosamente, na Segunda Guerra Mundial se repetiram circunstâncias já
registradas em 1914: inicialmente os Estados Unidos favoreceram a neutralidade
do continente americano, e durante o transcurso das hostilidades, com a invasão
da União Soviética pela Alemanha e o ataque do Japão a Pearl Harbor, mudou
a composição das alianças e a interpretação ideológica dos interesses que estavam
em jogo. O isolacionismo de Washington foi acompanhado por gestões (iniciadas
antes do conflito) para compatibilizar as posições continentais e montar um
sistema defensivo conjunto, o que se chocou com as atitudes sempre reticentes
do governo argentino. Esse desencontro se aprofundou desde a Conferência do
Rio de Janeiro, do início de 1942. Já beligerante, os Estados Unidos pressionavam
em favor do rompimento com o Eixo, enquanto a diplomacia portenha resistia,
com base na sua “independência de critério, soberania e autodeterminação.
Há dois aspectos das expressões ideológicas da época aos quais não se
tem dado suficiente importância. De um lado, a referência latino-americanista
da maioria das forças políticas que competiam para fixar as orientações internas
e externas do país. Referência que estava tão presente no nacionalismo popular,
seguindo a tradição de Irigoyen, como no nacionalismo autoritário, embora
neste caso combinado com a filiação pró-hispânica de inspiração madrilenha ou
distorcidas pela inclinação em favor de políticas de poder, a confiança na força
e a prevenção com respeito ao Brasil e ao Chile. Mas era também um componente
principal das propostas dos setores liberal democráticos, inclusive o socialismo
reformista, sobretudo a partir do momento em que a quase totalidade do
continente fez causa comum com as Nações Unidas, contra o Eixo. Neste caso
o latino-americanismo aparecia como uma expressão da solidariedade
democrática.
13
De outro lado, há uma perspectiva ideológica a qual não tem sido
suficientemente estudada, a despeito da continuidade que encontrará no discurso
do movimento político que, formado nesses anos, dominaria amplamente toda
a segunda metade do século: é a denominada “terceira posição”. A rigor, essa
corrente contava com numerosos antecedentes qualificados em todo o mundo.
Pelo menos durante muitas décadas, mediante quatro afluentes principais – a
social democracia, o liberalismo social, o social cristianismo e o corporativismo
doutrinário – ela tinha encarnado a busca de uma alternativa intermediária entre
o capitalismo do laissez faire e o coletivismo soviético. Dessas quatro vertentes
13
Nicolas Repetto, op. cit.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
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as duas últimas foram as que mais influíram no terceirismo argentino, circunstância
que condicionou a sua projeção política.
A expressão mais conspícua desse terceirismo foi a do Movimento de
Renovação criado em 1941 por um grupo de jovens universitários. Seus membros
defendiam a neutralidade no quadro de uma doutrina e de um programa de
“recuperação nacional”, e proclamavam: “Nem liberalismo nem totalitarismo.
Democracia autêntica e verdadeira. Soluções argentinas para os problemas
argentinos.” Em política exterior a sua fórmula pretendia também ser
eqüidistante: “Nem anglófilos nem germanófilos. Nem neutros de circunstância.
Argentinos que só pensam na grandeza da sua pátria.” De todos os defensores
da neutralidade foi este grupo que sustentou sua posição recorrendo à literatura
mais atualizada da política mundial. Empregando todo o arcabouço intelectual
típico da escola realista, que coloca os interesses acima da moral e da ideologia,
desdenhava a tese de que o abandono da neutralidade era a defesa necessária da
democracia, e procura demonstrar a incongruência que havia em qualificar como
“democracias” uma coalizão que incluía a União Soviética e até mesmo a China.
Um dos principais dirigentes do Movimento sustentava: “Por doloroso que seja
esta afirmativa, nesta guerra não é o nacional socialismo que luta contra o
comunismo, nem o nazismo contra o liberalismo. Na guerra são sempre países
que lutam, cada um dos quais age conforme convém a seus próprios interesses
... trata-se de uma luta magna pelo predomínio do imperialismo anglo-americano,
de um lado, e de outro do imperialismo alemão com seus aliados italiano e
japonês ... a hecatombe mundial que se concretiza em uma luta de imperialismos e
de países que se movimentam no imenso tabuleiro de xadrez do mundo, buscando
a posição e a oportunidade mais convenientes a seus interesses particulares.”
14
Será desnecessário qualquer comentário adicional para notar a influência que
tinha este tipo de perspectiva nas representações do jovem oficial do Exército
que se preparava para inaugurar uma nova etapa da história política argentina.
A restauração peronista
Certamente não se pode dizer muito mais do que já se disse a respeito da
composição da coalizão que levou Juan Domingo Perón ao poder, em fevereiro
de 1946: forças armadas, agrupamentos partidários (alguns deles derivados de
14
Bonifacio del Carril. Movimiento de Renovación, Buenos Aires, 1943.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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17
partidos tradicionais, outros novos no panorama político argentino), setores
empresariais e sindicatos fortalecidos em função da onda industrial de uma
década. Supunha também a convergência de diferentes sistemas de crença (para
alguns sem muita coerência): além da versão mencionada do terceirismo, o
keynesianismo e o estado do bem-estar, o industrialismo protecionista, o
neocorporativismo, o cristianismo social, o democratismo popular, etc.
Naturalmente, no conjunto que conformaria o “Movimento”, cada tendência se
via refletida na prática e interpretaria o processo como a realização dos seus
valores e das suas expectativas.
O pragmatismo e a astúcia tática de Juan Perón ocultam o peso das idéias
na sua política. O criador do Justicialismo se nutria de diferentes tradições
ideológicas, sem prender-se dogmaticamente a nenhuma delas, embora o que
melhor refletisse sua posição ideológica era uma forma de nacionalismo afastado
de tons aristocráticos e com muito pouco afeto pela democracia liberal e suas
instituições, que no momento de procurar os perfis mais qualificados os
encontraria em uma forma específica de terceirismo. A formação profissional e
os hábitos intelectuais não só o predispunham a uma alta ponderação das
circunstâncias internacionais como também interpretá-las conforme os códigos
da Realpolik. Ao longo de toda a sua vida Perón pregou que toda ação política
devia contar com uma avaliação apropriada das relações de força no mundo.
Era precisamente essa matriz realista que sustentava a sua convicção de que a
guerra que terminava quando ele atingia o poder não seria o último conflito
mundial do século. Essa idéia de um choque previsível entre os então vencedores
guiaria os seus passos durante boa parte da primeira presidência, calculando
como uma nova intensificação da demanda de alimentos beneficiaria a Argentina.
Por outro lado, deve-se reparar no fato de que Perón se alistava naquela
corrente do realismo que tende a potencializar o valor da política, não a reduzi-
lo mediante adaptações passivas ou alinhamentos mais ou menos automáticos.
Isso teria conotações especiais para desenvolver-se tanto no âmbito interno como
no cenário internacional. Pensava que a política era a ferramenta mais apta para
construir novas realidades e para buscar que prevalecesse o interesse próprio
nas relações com os demais, especialmente com os mais fortes. Seria possível
dizer que se tratava de uma variante da política de poder característica de estados
de menor capacidade, orientada para equilibrar forças e melhorar as opções
diante das potências.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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Sua experiência com as atitudes de Washington durante os anos da guerra
e a hostilidade que mostrara com relação a ele mesmo e ao seu projeto político
certamente ajudaram a desenvolver essa perspectiva autonomista, mas ela se
alinhava com as idéias dominantes na maioria do corpo social. Afinal, o efeito
eleitoral de uma apresentação que o mostrava como a opção nacional diante
dos desejos de um funcionário norte-americano era mais do que uma prova
dessas disposições. Embora afetada pelas circunstâncias, a auto-estima dos
argentinos não tinha cedido nem prescindia da confiança em um futuro de
grandeza que se havia formado durante a primeira parte do século. Nem mesmo
aqueles que intuíam intimamente que os tempos de prosperidade tinham ficado
para trás estavam dispostos a abandonar as antigas aspirações. Praticamente
ninguém, fosse conservador ou radical, socialista ou nacionalista, acadêmico,
empresário ou simplesmente cidadão comum, veria com bons olhos dirigentes
que os conduzisse como se fossem habitantes de uma entidade periférica
irrelevante. Neste sentido, o peronismo se constituiria em uma restauração fugaz
da confiança na prosperidade e na grandeza, embora condicionada pela sensação
de uma sociedade dividida social e politicamente, como não o tinha sido no
passado recente.
No momento de ingressar na etapa decisiva da sua marcha para o poder,
Perón estava convencido de que o mundo entrava em uma “era social”, que ele
procuraria conduzir por um caminho diferente daquele proposto pelo marxismo
revolucionário. Embora falasse em uma “revolução nacional”, o que empreendia
era um roteiro reformista. A questão não estava nas suas intenções, mas nas
conseqüências das suas decisões. Sua inclinação natural em favor da ordem e da
unidade nacional o levaria a uma profunda divisão da sociedade, facilitada pela
reação experimentada pelas classes dominantes e por grande parte das classes
medias diante do levantamento das massas.
Como se disse, Perón encontraria na fórmula da “Terceira Posição” – à
qual chegou devido à sua inclinação para registrar tendências ideológicas
ocasionais em versões ecumênicas ou vernáculas – um instrumento qualificado
tanto para a política interna como para a ação diplomática. Desde 1946-1947
ela foi proclamada como base doutrinária do Movimento. Além do que significava
como posição “idiossincrática”, como crença na existência de um destino
providencial de um país ávido de grandeza, a Terceira Posição, uma fórmula que
“o gênio tutelar argentino oferece ao mundo como solução para seus problemas
mais agudos”, satisfazia a vários objetivos. Os principais eram proporcionar
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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um quadro doutrinário à força política que se estava formando, fortalecendo,
para dentro e para fora, a imagem do seu fundador, e reabilitar o prestígio do
país mostrando-o como uma sociedade regida por altos valores universais.
A rigor, o essencial da variante argentina do terceirismo que o peronismo
pretendia expressar era o seu programa alternativo de organização econômica e
social, diferente do capitalismo individualista e do coletivismo, que na prática se
traduziria por uma economia social muito menos radical do que aquele objetivo
evocava. Obviamente, não podia deixar de ter repercussões internacionais em
um momento em que os extremos dos que procurava diferenciar-se estavam
representados e liderados por duas superpotências empenhadas em uma Guerra
Fria que escalava perigosamente, e que exerciam – conforme uma interpretação
não muito afastada da realidade – formas de imperialismo caracterizado pela
penetração econômica e que apelava para a penetração política e ideológica.
La solución argentina”, à qual a propaganda oficial atribuía o mérito de haver
provado na prática a sua viabilidade e eficácia, era oferecida como uma alternativa
ecumênica: “Nosso campo de ação é o mundo, pois os grandes movimentos,
como o peronismo, não são acontecimentos nacionais, mas universais.” Nesse
sentido devia interpretar-se a idéia de que não se tratava de uma posição
isolacionista ou de neutralismo, mas de uma doutrina positiva.
O terceirismo aspirava a ser algo mais do que o instrumento de um realismo
que buscava fortalecer a posição relativa do país para melhorar as condições de
desempenho em um contexto hegemonizado pelos Estados Unidos, e para isso
se valia de colocações normativas e da referência a determinados valores. Na
mesma direção se orientava a afirmação latino-americanista conseqüente com
demandas econômicas e estratégias políticas, mas os seus objetivos podiam sofrer
a interferência de atitudes com que se materializava aquela “oferta” da solução
argentina, que os vizinhos não tinham dificuldade em perceber como formas
inaceitáveis de intervenção na sua vida interna.
Se desde o início as orientações macroeconômicas do governo contavam
com um forte apoio nas idéias e práticas keynesianas, seu industrialismo era
impulsionado por antigas posições protecionistas e a pressão de interesses
fortalecidos durante os anos da guerra. Só ao mediar a gestão peronista, as linhas
de um modelo de desenvolvimento industrial coerente começaram a encontrar
eco em toda a América Latina. As idéias da Cepal, tal como foram enunciadas
pelo seu Diretor no célebre “Manifesto de 1949”, não passaram despercebidas
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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aos funcionários e técnicos do peronismo, embora a sua assimilação não pudesse
formalizar-se com a Comissão Econômica para a América Latina, por uma
circunstância política especial: Raúl Prebisch era um exilado argentino que deixara
o país perseguido pelo governo.
Ademais dessa circunstância particular, e como aconteceria no resto da
região, a “nova ortodoxia econômica” lutaria contra a “velha ortodoxia clássica”,
e essa disputa, que seria dos interesses concretos identificados com uma e com a
outra, estaria presente como um substrato ideológico em toda a vida política e
econômica pelo menos durante um quarto de século.
15
Naturalmente, o
pensamento da Cepal não podia deixar de influir no modo de conceber e efetivar
a política exterior dos países periféricos. E o faria de forma direta e indiretamente:
ou estimulando orientações autônomas, como uma política exterior
independente, ou em virtude dos critérios sobre a inserção no mercado mundial
e o patrocínio da integração.
Durante o período de transição posterior à derrubada de Perón os
princípios da ortodoxia liberal voltaram a guiar precisamente a conduta das
autoridades argentinas, tanto no plano político e econômico interno como no
relacionado com a política exterior, despojada de qualquer traço de terceirismo
ou neutralismo diante da confrontação global. Não obstante, como o
demonstraria a ascensão da intransigente União Cívica Radical, liderada por
Arturo Frondizi, essas disposições não se podiam impor pelo simples fato de
representar o antípoda do governo deposto.
Entre o desenvolvimentismo e a ortodoxia econômica
Seguramente nenhum ciclo político argentino se apoiou em um conjunto
de idéias tão coerentes e bem articuladas como o presidido por Arturo Frondizi.
Até na sua fisionomia foi o político de maior sustentação intelectual; tanto assim
que na véspera das eleições que o consagrariam como presidente, essa condição
era um dos argumentos preferidos dos que auguravam ou desejavam a sua derrota.
Não se tratava só dele: boa parte dos seus colaboradores mais próximos, muitos
deles advindos de diferentes setores políticos-ideológicos – nacionalistas,
socialistas, etc. – podiam exibir entre os seus antecedentes uma sólida preparação
política e ideológica. Todos se formariam por trás da idéia do desenvolvimento
15
Albert Hirschman (comp.). Controversia sobre Latinoamerica, Editorial del Instituto Di Tella, Buenos
Aires, 1963.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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convertida em um programa, uma meta e lema de ação política. Idéia respaldada
em modelos econômicos com base teórica moderna, combinados com elementos
de diferente procedência ideológica.
Assim como Perón, os desenvolvimentistas presumiam ser os que melhor
conheciam a situação mundial, e mais atenção lhe davam. Sobre esses diagnósticos
fundamentavam sua política. Para eles, a revolução científica e tecnológica, o
fim da Guerra Fria, o ingresso em uma era de coexistência pacífica e o despertar
dos povos coloniais deslocavam os eixos dos conflitos mundiais, eclipsando a
clivagem Leste/Oeste em favor da hierarquização das relações Norte/Sul,
abrindo uma fase de cooperação entre as superpotências, e delas com o mundo
periférico. Um dos seus expoentes diria: “Surgia como fundamental não a divisão
do mundo entre capitalismo e socialismo, mas entre o mundo desenvolvido e o
subdesenvolvido.” Uma hipótese fundamental era a de que o fim da Guerra Fria
pelo empate nuclear liberaria enormes recursos, empregados na corrida
armamentista, os quais só poderiam ser aplicados na promoção das áreas mais
atrasadas dos países centrais e nas regiões subdesenvolvidas. Frondizi afirmaria
que “Obrigadas a conviver pacificamente, as grandes potências capitalistas e
socialistas devem transferir as suas contradições para o campo da competição
econômica e política.” Os fluxos comerciais e o movimento de capitais seriam
afetados por esse processo em favor do Sul.
16
O “frondizismo” representava uma variante do estruturalismo
desenvolvimentista, que coincidia com boa parte do diagnóstico da Cepal, mas
discrepava das suas recomendações e do modelo que propunha. Os seus
expoentes registravam as contribuições do que se consolidava como uma nova
economia do desenvolvimento, em particular com enfoques como o de Albert
Hirschman, que em 1958 tinha concluído a sua influente Estratégia do Desenvolvimento
Econômico. Um capítulo que ilustra a diferença com respeito à Comissão presidida
por Raúl Prebisch era a sua resistência à idéia da integração econômica tal como
ele a defendia. O desenvolvimentismo frondizista não se afastou da retórica
latino-americanista, que era parte da tradição radical, mas tendeu a circunscrevê-
la à esfera política, evitando comprometer-se com o processo de complementação
regional.
17
16
José Paradiso. La Política Exterior Durante el Gobierno de Arturo Frondizi, trabalho inédito.
17
Rogelio Frigerio. Estatuto del Subdesarrollo: las corrientes del pensamiento económico argentino, M. Guemes, Buenos
Aires, 1974.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
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Do deslocamento de Frondizi até fins da década dos oitenta a vida do
país esteve fortemente condicionada pela disputa entre dois sistemas de idéias:
desenvolvimentismo e estruturalismo/política exterior independente versus
ortodoxia econômica/alinhamento com o Ocidente. Certamente tudo se passava
em um cenário político muito complexo, dominado pela “questão peronista” e
as alternativas institucionais – a alternância civil/militar – a ela associadas.
Como se disse reiteradamente, os governos “partidários” se inclinavam
programaticamente pelo primeiro sistema de idéias, enquanto os de origem
militar, devido aos interesses que representavam, se inclinavam pelo segundo.
De qualquer forma, mesmo no caso dos regimes de facto, caracterizados por
intenso facciosismo, era difícil não levar em conta a hegemonia das idéias
nacionalistas em todo o universo periférico. Foi esse o caso, por exemplo, do
período da chamada Revolução Argentina (1966/1973), durante o qual houve
uma mudança da orientação política em conseqüência da modificação da relação
interideológica, em favor das idéias desenvolvimentistas e autonomistas.
Uma expressão da supremacia nacionalista, sobretudo no fim dos anos
sessenta e no princípio a década seguinte, foi o auge da chamada “teoria da
dependência”, assim como das formulações terceiro-mundistas. Essa
interpretação das causas do atraso econômico dos países do Sul e das formas
de superar esse atraso teve grande influência sobre o sistema de decisão dos
governos latino-americanos. Juan Domingo Perón voltou ao poder no
momento culminante desse “sistema de crenças”, e suas credenciais históricas
(o fato de que favoreceu o terceirismo e a neutralidade durante a década de
1940) contaram no momento de decidir a incorporação ao Movimento de
Países Não Alinhados, que gozava então do maior prestígio devido à atualidade
das suas reivindicações políticas e econômicas.
Uma idéia que rondava por trás das colocações do chamado Terceiro
Mundo, mas que transcendia esse âmbito, era a formação de uma nova ordem
econômica internacional. Idéia que mobilizou muitos líderes políticos e
funcionários governamentais, e encontrou suas manifestações mais qualificadas
na atividade de diversos centros de pesquisa, tanto nos países centrais como nos
da periferia. Todos expressavam uma preocupação sincera com as tensões
provocadas pelo hiato entre países ricos e pobres, e pelas conseqüências futuras
da crescente deterioração das circunstâncias ambientais. Na verdade, o chamado
preventivo”, o aviso prévio que procurava antecipar as tormentas, não foi ouvido
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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e a nova ordem que terminou por impor-se a partir dos anos oitenta foi totalmente
oposta à que se tinha imaginado. Aproveitando bem os erros dos modelos
estatizantes, as crises dos socialismos reais, a fratura da frente do Terceiro Mundo,
depois das crises do petróleo, e o curso “inesperado” de alguns países asiáticos,
a ortodoxia econômica recuperou sua posição e tomou o centro do cenário
ideológico, liderada pela Inglaterra de Margaret Thatcher.
Em certo sentido a Argentina do processo militar, assim como o Chile do
General Pinochet, se anteciparam à onda neoliberal e à ativação do ocidentalismo
anticomunista dirigido por Washington. As fissuras dentro do bloco de idéias e
decisões do regime militar foram o resultado das disputas internas para apropriar-
se da sucessão do regime, e do forte contencioso com a Casa Branca e o
Departamento de Estado, pelas cruentas práticas repressivas.
O retorno à democracia, depois de uma infeliz guerra contra os que
haviam inspirado boa parte da política econômica e social do Processo, foi
também o das idéias estrutural-desenvolvimentistas e autonomistas, que
formavam parte dos programas dos partidos majoritários. O governo Alfonsín
custou a descobrir que o mundo não era mais o dos anos setenta, e que as
ideologias hegemônicas, também tinham mudado. Não obstante, não se
resignou com facilidade às pressões ambientais: pressionado pela dívida externa
contraída pelos seus antecessores, procurou alternativas econômicas não
ortodoxas e sustentou com firmeza uma política exterior autônoma, no meio
da reativação da Guerra Fria, comandada por Reagan. De qualquer forma, o
que tinha começado com a certeza de pelo menos um segundo mandato
concluiu com o encerramento antecipado do primeiro período presidencial, e
o retorno ao governo dos herdeiros de Perón.
A “terceira encarnação do peronismo” (as duas primeiras tinham sido as
do seu próprio criador) transcorreria em um clima de idéias radicalmente diverso
do das fases anteriores. Estas tinham ocorrido em momentos de auge dos
conceitos e práticas do nacionalismo, assim como de temores a respeito das
virtudes do mercado e da livre empresa. Quando Menem chegou à Casa Rosada,
contudo, os ventos liberais sopravam com toda a sua fúria, arrasando as já
debilitadas estruturas do Estado de Bem-Estar e da economia mista. Ademais,
a experiência hiperinflacionária que obrigara Raul Alfonsín a antecipar a sua
retirada do governo, inclinava a sociedade em favor das fórmulas ortodoxas
articuladas no célebre Consenso de Washington.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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O Presidente Menem era suficientemente astuto para compreender que o
modo mais seguro de permanecer no cargo o mais longamente possível era
acomodar-se à corrente e converter-se em mais uma prova de que o peronismo
se caracterizava pela acomodação pragmática a todas as circunstâncias. Se essa
adaptação facilitava a sua permanência no poder, agir como o discípulo mais
aplicado dos professores ortodoxos dominantes seria um resseguro: em poucos
lugares do mundo as regras foram seguidas de forma tão literal, e o alinhamento
com as potências foi tão firme.
Houve quem falasse de “políticas de estado”, acreditando ver no compromisso
com o Mercosul uma prova da continuidade da orientação integradora iniciada
por Alfonsín. Sem descartar a possibilidade de que essa idéia pudesse estar
presente entre alguns dos que participaram daquela iniciativa, não era difícil
perceber que existia uma clara incompatibilidade entre o conceito de integração
associado ao paradigma desenvolvimentismo/autonomismo e o que provinha
das concepções neoliberais, e por essa brecha se filtraram muitas dificuldades.
Não se deve deixar de observar que no caso da Argentina circunstâncias
internas singulares se somaram aos fatores de alcance global que promoveram a
contra-ofensiva neoliberal e a mudança de hegemonias ideológicas. Em primeiro
lugar, é preciso reconhecer os efeitos traumáticos do mencionado processo
hiperinflacionário sobre a economia, as atitudes pessoais e os padrões de
sociabilidade. Por outro lado, e de forma não independente do anterior, havia
as conseqüências da “idéia do declínio” que pesava cada vez mais sobre o ânimo
e a disposição dos cidadãos. Já vimos que, pelo menos desde os anos 1930, essa
idéia rondava os argentinos. Durante algumas décadas competiu com a idéia
oposta, ou seja, a convicção a grandeza nacional e de uma potencialidade que
era necessário restaurar. O que foi claro com Perón, com Frondizi e também
durante a fase da Revolução Argentina. No entanto, cada nova crise institucional
afastava tal ilusão, e contribuía para a sensação de decadência. No caso dos
representantes do liberalismo renovado, o caminho da restauração passava pelo
oposto do que se havia tentado com as políticas desenvolvimentistas. Se uma
economia aberta ao mundo e a relação especial com a potência hegemônica da
época tinham sido a fórmula de êxito no princípio do século XX, era preciso
repeti-la no fim do século, abandonando o caminho seguido pela influência das
idéias que haviam apoiado aquelas políticas. Esses já tinham sido os termos do
discurso – difundido por comunicadores midiáticos influentes e por muitos
intelectuais de um liberalismo antigo ou recentemente convertidos – que
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
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acompanhou as práticas repressivas do regime militar instaurado em 1976, e
deu apoio à gestão de “abertura” do Ministro Martinez de Hoz.
Em suma, esta mistura de idéias, sensações e experiências traumáticas
sustentou a política interna e exterior de toda uma década, e continuou a exercer
sua influência depois da derrota do peronismo frente a uma coalizão que conduziu
ao governo um prócer do radicalismo. No fundo, a fórmula “modelo dos anos
noventa, com ligeiros ajustes e controle da corrupção” não podia garantir a
consolidação de um novo ciclo político. É verdade que a famosa paridade entre
o dólar e o peso, reforçada pela memória hiperinflacionária, não deixava muito
espaço de manobra a um governo por demais vacilante, que nem sequer podia
manter coesa a sua base política. Concluída de forma traumática a gestão da
Aliança, seguiram-se dias que voltaram a instalar a imagem de uma Argentina
ingovernável, pronta a caminhar rumo a novos abismos. Se foi possível evitá-lo
isso se deve em larga medida a Eduardo Duhalde. Tendo apoiado Menem durante
os primeiros anos noventa, aos poucos se distanciara dele, vocalizando valores
e práticas do peronismo histórico. Auxiliado por um ministro da economia
afastado do fundamentalismo ortodoxo, foi suficientemente hábil para conduzir
a situação e evitar o caos prognosticado por muitos. Duhalde “completou a sua
obra” bloqueando o retorno de Menem e tornando possível a chegada de outra
carta do baralho peronista.
Tão “peronista” quanto Menem, no que respeita a concepção do poder,
Nestor Kirschner começou sua gestão em um terreno não muito firme, minado
pelo default. Beneficiou-se porém de uma atmosfera mais propícia às fórmulas
desenvolvimentistas. Embora não se possa falar de um novo sistema de crenças
ou de mudanças nas hegemonias ideológicas, um retrocesso da ortodoxia liberal
parece evidente. Os efeitos sociais e econômicos das políticas que ela inspirou
atualizaram as demandas de justiça social, desenvolvimento produtivo e
autonomia, convidando a retomar o caminho interrompido há trinta anos,
embora em um mundo muito diferente, que por isso precisa encontrar
modalidades renovadas e criativas de adaptação.
Tradução: Sérgio Bath.
Revisão: Regina Furquim.
DEP
A integração da infra-estrutura na América do Sul: um impulso ao desenvolvimento [...]
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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integração regional é um processo complexo, que se desenvolve de
muitas maneiras diferentes, utilizando as oportunidades que se apresentam e
adaptando-se pragmaticamente às restrições e obstáculos que vão surgindo.
É, portanto, um processo que apresenta muitas exigências aos líderes
regionais, com profundas implicações nos campos econômico, social, político
e cultural.
A
* Presidente Executivo da CAF – Corporación Andina de Fomento (Corporação Andina de Desenvolvimento)
A integração da infra-
estrutura na América do
Sul: um impulso ao
desenvolvimento
sustentável e à
integração regional
Enrique García
*
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Enrique García
27
Esse processo não deve ser considerado um luxo, e sim uma necessidade
imperiosa de nossa região para poder enfrentar os enormes desafios da realidade
social de nossos países. Com efeito, a conjuntura macroeconômica favorável em
que nos encontramos e as expectativas positivas não devem levar-nos a concluir
que a América do Sul encontrou o caminho do desenvolvimento sustentável. O
crescimento econômico recentemente conseguido foi em grande parte induzido
pelas condições extremamente favoráveis do entorno internacional
(principalmente a recuperação da economia norte-americana e os elevados
investimentos e crescimento da China), apesar de que vários dentre os temas
estruturais críticos que têm limitado a consecução de um modelo eficiente e
socialmente eqüitativo ainda não foram resolvidos de maneira eficaz.
Em direção a uma agenda renovada de desenvolvimento
A América Latina deve promover uma agenda de desenvolvimento cujo
objetivo seja alcançar um crescimento elevado e sustentável que melhore as
condições de vida da maioria da população. Para este fim, a nova agenda de
desenvolvimento deve promover de maneira integral os elementos de
Estabilidade Macroeconômica, Eficiência e Eqüidade e Solidariedade, num
esforço compartilhado entre os governos, o setor privado, a sociedade civil e a
comunidade internacional.
Para obter um crescimento econômico de boa qualidade, a região deve
manter harmonia entre a consecução dos equilíbrios macroeconômicos básicos;
expansão constante das diversas formas de capital, isto é, o capital físico,
financeiro, natural, humano e principalmente o social; fazer um esforço
importante que conduza à evolução da produtividade; e buscar a incorporação
explícita de critérios de melhoria social, inclusão e luta contra a pobreza.
Da mesma forma, deve-se caminhar para i) a busca de um equilíbrio
adequado entre Estado e mercado em função das realidades, restrições e
competências relativas do setor público e do setor privado; ii) estímulo à
transição de uma estratégia de vantagens comparativas baseada em recursos
naturais e salários baixos a outra que confira ênfase crescente a vantagens
comparativas impulsionadas pelo conhecimento, inovação e geração de valor
agregado; iii) o reconhecimento de que o êxito depende em grande parte do
esforço interno, e que o apoio externo não deve ser visto como substituto e sim
A integração da infra-estrutura na América do Sul: um impulso ao desenvolvimento [...]
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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como complemento do esforço próprio; iv) decisão de encarar a integração
regional não como um fim em si mesmo, mas como instrumento para lograr
uma inserção internacional melhor e mais eqüitativa e maior coesão social em
nível regional.
O desafio da integração regional
A América do Sul vive hoje uma etapa decisiva de sua história, na qual os
países que a constituem têm o desafio de avançar em direção a uma convergência
regional, com uma clara tomada de consciência sobre as virtudes de uma
integração com identidade própria. As diversas lideranças nacionais estão
caminhando para a construção dessa nova realidade, que deriva da compreensão
– em toda a sua dimensão – da importância estratégica que a integração
sul-americana representa para a materialização do bem-estar e prosperidade da
região.
Nesse contexto, é particularmente relevante o tema da infra-estrutura física
da região. A infra-estrutura é a chave da integração econômica e comercial, pois
afeta o acesso aos mercados através de duas vias: o transporte de matérias primas
aos centros de produção e posteriormente a distribuição dessa produção aos
centros de consumo nacionais e internacionais.
Na América Latina a realização da infra-estrutura se complica devido à
existência de importantes obstáculos geográficos: grandes áreas e distâncias com
baixa densidade demográfica, barreiras naturais complexas e forte
vulnerabilidade aos desastres naturais. Estes obstáculos, além de uma dotação
inadequada de infra-estrutura e serviços logísticos, acarretam um aumento dos
custos de transporte, baixa competitividade e produtividade. Tais custos podem
ser quantitativamente maiores do que até mesmo as barreiras protecionistas dos
diferentes parceiros comerciais.
Á guisa de exemplo, nossa região apresenta índices de comércio
intraregional muito abaixo do de outras regiões do mundo. Enquanto a
Comunidade Andina comercia entre seus membros cerca de 10% do total
de suas trocas, e o Mercosul aproximadamente 25%, os indicadores de
comércio intraregional são de 55% no Nafta, 60% na União Européia e 68%
na Ásia.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Enrique García
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A CAF e a integração regional
Desde sua criação, uma das prioridades da CAF tem sido fortalecer os
esquemas de integração regional, como consta de seu Ato Constitutivo. Este
compromisso, que nas primeiras décadas de funcionamento da CAF se orientou
principalmente ao espaço andino, estendeu-se a partir do início da década de 90
com a ampliação do número de países membros da Corporação, que hoje em
dia chegam a 17, inclusive todos os da Comunidade Andina de Nações (CAN)
e do Mercosul ampliado, um grupo importante de países da América Central e
do Caribe e a Espanha.
Mais recentemente, com a formação da Comunidade Sul-Americana de
Nações, que engloba os países membros da CAN e do Mercosul, que por sua
vez são membros da CAF, apresenta-se uma oportunidade sem par para a
consolidação de ações que desde há alguns anos temos liderado no contexto
regional.
Embora uma das ênfases em matéria de integração tenha sido a infra-
estrutura física, nossa visão é integral e multidimensional porque inclui os
objetivos de integração comercial, integração social e cultural, a integração dos
mercados de capital, a integração dos mercados de trabalho, a convergência
macroeconômica e a integração política. Por meio de sua ação creditícia, seus
diversos programas estratégicos e seus fundos especiais de cooperação, a CAF
impulsiona ativamente estes objetivos.
Do ponto de vista do financiamento, o esforço mais importante que vem
sendo realizado pela CAF, nos últimos quinze anos, se orienta para a construção
da infra-estrutura trans-sul-americana – articuladora do território e da integração
regional – fato que se reflete no significativo e contínuo crescimento de nossa
carteira de projetos de infra-estrutura física em toda a região, que no final de
2006 atingiu cerca de 4 bilhões de dólares. Estes projetos foram estrategicamente
selecionados em aliança com os governos e o setor privado, e sua execução tem
permitido ir reduzindo os gargalos e lacunas na plataforma logística sul-americana.
Nos últimos dez anos, a CAF deu apoio financeiro à execução de 49
projetos de integração física sul-americana, num montante total de investimento
de mais de 11 bilhões de dólares, dos quais a CAF aportou cerca de 3,5 bilhões.
Entre esses projetos se incluem os de interconexão terrestre e fluvial, energia e
comunicações.
A integração da infra-estrutura na América do Sul: um impulso ao desenvolvimento [...]
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
30
A experiência em infra-estrutura que a CAF acumulou ao longo desses
anos se nutre de uma história de alianças bem sucedidas com os setores
público e privado e de vinculação entre interesses nacionais e regionais.
Desenvolveram-se através dos anos estruturas financeiras inovadoras, entre
as quais se destacam as estruturas de Parcerias Público-Privadas (PPP),
mecanismos de Garantias Parciais, participação dos mercados de capital
domésticos no financiamento dos projetos, concessões e outras formas de
assessoria financeira.
Também é importante destacar a criação, por parte da CAF, de diversos
fundos cujo objetivo é reduzir algumas das dificuldades inerentes aos grandes
projetos de infra-estrutura. O Fundo de Promoção de Projetos de Infra-
estrutura Sustentável (Proinfra) tem por objetivo financiar a preparação
adequada, a estruturação financeira e a avaliação de projetos de infra-
estrutura sustentável que tenham alto impacto para as economias regionais,
nacionais ou locais e contribuam de forma consistente para a integração
entre os países acionistas da CAF.
Os recursos do Proinfra financiam a elaboração de estudos setoriais
de infra-estrutura, opções de investimento ou estudos de pré-factibilidade,
factibilidade e engenharia de detalhe e impacto ambiental e social de projetos
de infra-estrutura. Financia igualmente assessorias para a estruturação do
financiamento de projetos ou assessorias e a processos de concessão e
convocação a licitação e obras, e assistência técnica para a criação ou
fortalecimento de sistemas de planejamento do investimento público e
esquemas de participação público-privada (PPP).
Por outro lado, é importante destacar a cuidadosa análise dos
impactos ambientais e sociais dos projetos de infra-estrutura financiados
pela Corporação. A CAF conta com instrumentos e metodologias
inovadoras que evoluíramos nos últimos anos e que nos permitiram
promover a conservação e o melhor aproveitamento dos recursos naturais
e ecossistemas. Da mesma forma, contribui para prevenir e reduzir os riscos
causados por desastres naturais, apoiando os investimentos orientados para
a diminuição das vulnerabilidades geológicas nos projetos de infra-
estrutura. Desta maneira, valorizamos e preservamos o capital natural e a
diversidade cultural da região em benefício de um desenvolvimento
sustentável e inclusivo.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Enrique García
31
A iniciativa IIRSA
IIRSA é uma iniciativa multinacional, multissetorial e multidisciplinar que
envolve os doze países da América do Sul e da qual participam os setores de
transportes, energia e telecomunicações, abrangendo aspectos econômicos,
jurídicos, políticos, sociais, culturais e ambientais.
O objetivo principal da “Iniciativa” é o desenvolvimento da infra-estrutura
regional num quadro de competitividade e sustentabilidade crescentes de forma
a gerar as condições necessárias para alcançar um modelo de desenvolvimento
estável, eficiente e eqüitativo na região, identificando os requisitos de ordem
física, normativa e institucional necessários e procurando mecanismos de
implementação que fomentem a integração física em nível continental nos
próximos dez anos.
Deve sua origem à Reunião de Presidentes da América do Sul realizada
em agosto de 2000 na cidade de Brasília, República Federativa do Brasil, na qual
os mandatários da região concordaram em realizar ações conjuntas para avançar
na modernização da infra-estrutura regional e na adoção de ações específicas
para promover sua integração e desenvolvimento econômico e social.
Tal compromisso se traduziu em um Plano de Ação, formulado na reunião
de Ministros de Transporte, Energia e Telecomunicações da América do Sul,
em Montevidéu, dezembro de 2000, que se constituiu como o marco de referência
para o desenvolvimento das atividades da IIRSA. A partir de então, seus
objetivos, âmbitos e mecanismos de implementação têm sido sucessivamente
revalidados e fortalecidos em reuniões setoriais e por parte dos Presidentes dos
países pertencentes à “Iniciativa”.
Princípios orientadores da IIRSA
Neste início do século XXI, a integração física e a modernização-
desenvolvimento da infra-estrutura regional são concebidas como elementos
centrais para estimular a organização do espaço sul-americano e o crescimento
econômico sustentável de seus países. Com efeito, a perda da importância relativa
da região no contexto econômico mundial permitiu avançar na percepção de
que ela precisa adotar políticas de integração progressivas que permitam articular
A integração da infra-estrutura na América do Sul: um impulso ao desenvolvimento [...]
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
32
as vantagens comparativas e competitivas de nossos países, para dessa forma
inserir-se estrategicamente no comércio internacional.
Assim, destaca-se hoje em dia a concepção generalizada de que uma região
mais forte e coesa do ponto de vista econômico, social e físico, poderá avançar
de maneira eficaz na superação dos obstáculos para seu desenvolvimento. Em
um contexto de assimetrias internacionais diversas, a integração se transforma
em chave para a consecução de ganhos comerciais e financeiros dos países sul-
americanos, para a articulação física e econômica do continente sul-americano e
para conseguir uma inserção adequada no contexto internacional.
A visão da infra-estrutura como elemento-chave da integração se baseia
na noção de que o desenvolvimento sinérgico do transporte, da energia e das
telecomunicações pode gerar um impulso definitivo para a superação de barreiras
geográficas, aproximação de mercados e promoção de novas oportunidades
econômicas , desde que se desenvolva em um contexto de abertura comercial e
de investimentos, de harmonização e convergência regulatória e de coesão
política crescente.
O tema não deve ser visto, no entanto, de maneira isolada e independente.
Implica não apenas na melhoria da infra-estrutura em si mesma (viária, portuária,
aeroportuária, fluvial, etc.) mas também em conceber um processo logístico
integral, que inclua o aperfeiçoamento dos sistemas e regulamentação aduaneiros,
de telecomunicações, dos mercados energéticos, da tecnologia da informação,
dos mercados de serviços de logística (fretes, seguros, armazenamento e
processamento de licenças, entre outros), e o desenvolvimento sustentável em
nível local.
Uma rápida revisão de alguns dos princípios orientadores dá uma idéia
clara dos objetivos e alcance da “Iniciativa”:
1. Regionalismo aberto: é preciso reduzir ao mínimo as barreiras
internas ao comércio e os gargalos da infra-estrutura nos sistemas de regulação-
operação que sustentam as atividades produtivas em escala regional. Ao
mesmo tempo em que a abertura comercial facilita a identificação de setores
produtivos de alta competitividade global, a visão da América do Sul como
uma única economia permite conservar e distribuir uma parte maior dos
benefícios do comércio na região e proteger a economia regional das flutuações
nos mercados globais.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Enrique García
33
2. Eixos de Integração e desenvolvimento: representam uma referência
territorial para o amplo desenvolvimento sustentável da região. Esse
ordenamento e desenvolvimento harmônico do espaço facilitará o acesso a
zonas de alto potencial produtivo que atualmente se encontrem isoladas ou
subutilizadas devido à dotação deficiente de serviços básicos de transporte,
energia ou telecomunicações. Os Eixos de Integração e desenvolvimento
representam uma referência territorial para o desenvolvimento sustentável
amplo da região.
3. Sustentabilidade econômica, social e ambiental e política: o processo
de integração econômica do espaço sul-americano será sustentável se conseguir
alcançar tal objetivo nos quatro âmbitos mencionados.
4. Aumento do valor agregado da produção: formar cadeias produtivas
em setores de alta competitividade global, capitalizando as vantagens
comparativas dos países e fortalecendo a complementaridade de suas economias.
5. Convergência normativa: outro requisito para viabilizar os
investimentos em infra-estrutura regional é lograr uma convergência normativa,
inclusive a convergência de visões e programas dos países.
6. Coordenação público-privada: os desafios do desenvolvimento da
região colocam a necessidade de coordenação e lideranças compartilhadas
entre os governos (em seus diferentes níveis) e o setor empresarial privado,
inclusive tanto a promoção de associações estratégicas público-privadas para
o financiamento de projetos de investimento quanto consultas e cooperação
para o desenvolvimento de um ambiente regulatório adequado para a
participação significativa do setor privado nas iniciativas de desenvolvimento
e integração regional.
Em suma, a integração da infra-estrutura física da América do Sul busca
estabelecer mecanismos para superar os obstáculos ao crescimento e impulsionar
o desenvolvimento e a integração da região mediante inovações metodológicas
e financeiras para o estabelecimento de conexões de transporte, energia e
telecomunicações entre mercados e áreas de alto potencial de crescimento ou
zonas isoladas que ofereçam vantagens comparativas de ordem social, natural
e/ou cultural.
A integração da infra-estrutura na América do Sul: um impulso ao desenvolvimento [...]
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
34
Projetos de integração física financiados pela CAF
Contribuição CAF Investimento total
(US$ Milhões) (US$ Milhões)
Eixo Andino
1. Colômbia: Corredor Buenaventurar – Bogotá (Túnel La Linea) 32.0 278.6
2. Equador: Ligação Amazônia com Colômbia e Peru (Rodovia Tronco oriental) 93.8 152.7
3. Peru: Reabilitação ferrovia Huancayo-Hunacavelica 14.9 20.0
4. Venezuela: Ligação ferroviária Caracas – RedeNacional 360.0 1.932.0
5. Venezuela: Apoio a navegação comercial no eixo fluvial Orinoco-Apure 10.0 14.3
Eixo do Escudo Guianense
6. Brasil: Ligação rodoviária Venezuela-Brasil 86.0 168.0
7. Brasil: Conexão Elétrica Venezuela-Brasil 86.0 210.9
8. Venezuela: Estudo ferrovia Ciudad Guayana-Maturin (Estado Sucre) 2.6 2.6
9. Venezuela: Estudo rodovia Ciudad Guayana (Ven.) – Georgetown (Guiana) 0.8 0.8
Eixo Amazônico
10. Equador: Ligação transandina central 33.7 54.5
11. Equador: Ligação transandina sul 70.0 110.2
12. Peru: Corredor rodoviário amazônico norte 110.0 328.0
14. Peru: Pré-investmento região fronteira com Equador 5.3 8.7
14. Peru: Corredor Amazônico central (trecho Tingo Maria-Aguaytia-Pucalpa) 3.5 13.6
Eixo Peru-Brasil-Bolivia
15. Bolívia: Rodovia Guayaramerin-Riberalta 42.0 45.5
16. Brazil: Programa de Integração Rodoviária (Estado de Rondônia) 56.4 134.2
17. Peru: Corredor Rodoviário Interoceânico (trechos 2, 3 and 4) 203.5 1.073.5
Eixo Central Interoceânico
18. Bolívia: Corredor Integração Rodoviária Bolívia-Chile 138.9 246.0
19. Bolívia: Corredor Integração Rodoviária Santa Cruz-Puerto Suarez (trechos 3, 4 and 5) 280.0 585.5
20. Bolívia: Corredor Integração Rodoviária Bolívia-Argentina 314.0 642.0
21. Bolívia: Corredor Integração Rodiviária Bolívia-Paraguai 60.0 182.6
22. Bolívia-Brasil: Gasoduto Bolívia-Brasil 215.0 2.055.0
23. Bolívia: Gasoduto Transredes 88.0 262.8
24. Paraguai: Rodovia Concepción-Puerto Vallemi 38.5 70.0
25. Peru: Corredor Integração Rodoviária Bolívia-Peru 48.9 176.6
Eixo Mercosul-Chile
26. Argentina-Brasil: Centro de Fronteira Paso de los Libres-Uruguaiana 10.0 10.0
27. Argentina: Corredor Buenos Aires-Santiago (variante Laguna La Picasa) 10.0 10.0
28. Argentina: Corredor Buenos Aires Santiago (variante ferrovia Laguna La Picasa) 35.0 50.0
29. Argentina: Corredor Buenos Aires-Santiago (access ao Paso Pehuenche, RN 40 e RN 145) 106.7 188.1
30. Argentina: Conexão Elétrica Rincón Santa Maria 300.0 623.0
31. Argentina: Conexão Elétrica Comahue-Cuyo 200.0 414.0
32. Argentina: Programa Rodoviário para integração Argentina-Paraguai 110.0 182.0
33. Brasil: Programa Integração Regional – Fase I (Estado Santa Catarina) 32.0 50.0
34. Uruguai: Megaconcessão das principais vias de conexão com Argentina e Brasil 25.0 136.5
35. Uruguai: Programa Infraestrutura Rodoviária Fase II 70.0 295.4
Eixo Capricornio
36. Argentina: Pavimentação RN 81 90.2 126.2
37. Argentina: Acesso ao Passo Jama (Argentina-Chile) 54.0 54.0
38. Argentina: Estudo para reabilitação ferrovia Jujuy-La Quiaca 1.0 1.0
39. Bolívia: Programa RodoviaTarija-Bermejo 74.8 200.0
40. Paraguai: Reabilitação e pavimentação Corredores de Integração RN 10 e RN 11
e obras complementares 19.5 41.9
Hidrovia Paraguai-Paraná
41. Estudos para melhoria da navegação, gestão institucional e esquema financeiro para
operação da hidrovia Argentina, Bolivia, Brasil, Paraguai and Uruguai Hydroway) 0.9 1.1
Total 3.532.9 11. 081.8
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Enrique García
35
Tradução: Sérgio Duarte.
Legenda
Estradas existentes
Projetos CAF para estradas
Projetos CAF para gasodutos
Projetos CAF para ferrovias
Projetos CAF para conexões elétricas
Projetos CAF de passos de fronteiras
Hidrovias
Central hidrelétrica
Capital de país
Outras cidades
Porto
Projetos de integração física financiados
pela CAF na última década.
Paciência e eleições
36 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
36
ada um de nós vive em dois universos distintos: o econômico e o político.
O universo econômico – no qual o cidadão espera encontrar emprego, ganhar a
vida, sustentar sua família, formar a expectativa de aumentar seu bem-estar e,
no final, gozar uma honesta aposentadoria – é controlado basicamente pelo
mercado, mas o mercado só existe e funciona adequadamente dentro de certas
condições e com instituições especiais: respeito à propriedade privada,
compulsão legal para o respeito aos contratos, livre estabelecimento dos preços
etc. Ele precisa, além do mais, que o Estado garanta alguns bens públicos que só
este pode fornecer: razoável e expedita justiça, segurança e estabilidade do valor
da moeda. O universo econômico é definido e sustentado pelas disposições
constitucionais que em algum momento a sociedade convencionou estabelecer.
Obviamente, o mercado não é uma emanação da Constituição, mas ele só funciona
como instrumento eficiente quando ela o vê com olhos amistosos.
O universo político é definido pela Constituição, mas é sujeito aos humores
do sufrágio universal. Em períodos regulares e certos, cada habitante do universo
Paciência e eleições
Antônio Delfim Netto*
C
*
Deputado Federal, Câmara dos Deputados, República Federativa do Brasil.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Antônio Delfim Netto
37
econômico é chamado a dizer como vê a sua vida e o que espera do futuro. Se
no universo econômico as condições da maioria são precárias e a perspectiva
do futuro é sombria, cada cidadão vai tentar modificá-lo pelo voto na urna.
Como? Escolhendo o Poder Executivo e o Poder Legislativo mais comprometidos
com as mudanças que deseja. Tal escolha não leva, necessariamente, aos resultados
esperados.
É importante compreender que o resultado do sufrágio universal depende
da situação percebida pelos cidadãos: pode ser progressista, se o anterior
produziu as mudanças esperadas ou gerou a esperança de realizá-las dentro de
um prazo visível; ou regressivo, quando se esgota a paciência do cidadão. Este,
então, apela para o curto-circuito prometido por um líder que explicita o
inconformismo da sociedade, exprime a sua indignação e, assim, assume o poder
pelas urnas.
A experiência histórica mostra que a segunda solução freqüentemente leva
a uma maior frustração. Depois de algum tempo, a sociedade percebe que a
rápida salvação prometida produz, depois do entusiasmo inicial, mais males do
que benefícios. A razão disso é simples: os curtos-circuitos são oferecidos à
sociedade (agoniada e cansada) por líderes iluminados, fanfarrões ou ignorantes
que ignoram a própria ignorância. Eles têm sucesso nas urnas porque a sociedade
perdeu as esperanças nas soluções dos seus problemas diante da política
econômica utilizada. Esta sugere que, depois de obtida a estabilidade monetária,
o mercado vai resolver os problemas sociais, o que, obviamente, está longe de
ser garantido.
O que está acontecendo na maioria dos países da América do Sul deveria
sugerir cuidado para aqueles que pretendem impor uma política econômica que
vise apenas à eficiência e à estabilidade, acreditando que basta isso para que o
mercado acabe produzindo a ilusória justiça social. Uma economia pode ter
equilíbrio e uma situação de máxima eficiência produtiva, mesmo com a pior
distribuição de renda imaginável. O papel do sufrágio universal é exatamente o
de relativizar essa busca da eficiência econômica produzida pelo mercado, porque
este não vê problema moral em alugar o portador da força de trabalho como se
fosse um parafuso descartável ou se tratasse do arrendamento de um pedaço de
terra. Acontece que o “parafuso” pensa, vê as injustiças do mundo que o cerca,
tem família, tem esperança e vota! É na urna que capital e trabalho nivelam o seu
poder: ela é o instrumento que pode conduzir à realização do desenvolvimento
econômico com relativa eqüidade.
Paciência e eleições
38 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
38
No mercado, cada um “vota” de acordo com sua renda ou seu patrimônio.
Quem está sem renda (o desempregado) não vota e, se não receber um auxílio,
não come; quem tem 100 reais, tem 100 “votos” para distribuir na compra dos
bens de sua preferência e quem tem 1 milhão de reais tem um milhão de “votos”
para o mesmo efeito. Cada qual procura usar sua renda da melhor forma possível.
O problema é convencer as pessoas diante da urna que o desemprego não existe,
que “é fruto da vagabundagem” de alguns e que cada um recebe “com justiça”
o retorno pelo que produz, como garante a teoria neoclássica... No Brasil, uma
vez a cada 4 anos (depois da reeleição sem desincompatibilização de FHC, a
cada oito anos), os três valem na urna exatamente a mesma coisa: 1 voto! É este
voto que constrói o poder político do qual depende o funcionamento do próprio
mercado. Quando, eqüivocadamente (do ponto de vista da teoria e da prática),
o poder político submete tudo ao mercado, como se ele tivesse a capacidade de
resolver todos os problemas da sociedade (liberdade, igualdade, eficiência),
corre-se o risco de obter um retorno complicado do sufrágio universal: elege-se
um farsante ou um “messiânico”!
O caso da Bolívia é paradigmático. Ela realizou um plano de estabilização
neoliberal em 1985, reconhecido como bem sucedido. Depois disso, os
bolivianos vêm lutando contra todas as vicissitudes. Esperaram durante 20 anos
que os líderes conhecidos, que se alternaram no poder, produzissem uma melhoria
das suas condições de vida. Evo Morales pode até ser um lamentável resultado
das urnas, mas sua legitimidade não pode ser contestada. Ele é o produto do
sufrágio universal de um povo sofrido que perdeu a paciência e a esperança nas
políticas tradicionais.
O caso brasileiro é diferente, Lula é uma liderança carismática, plena de
pragmatismo, mas nas origens as causas não diferem tanto. Depois dos oito
anos de crescimento medíocre de FHC (uma espécie de “estagflação”, a
combinação maligna de estagnação e precária estabilidade), o povo, cansado e
esgotado, começou a desconfiar de que o velho “nhem, nhem, nhem”, que
assegurava que “depois viria o crescimento e o emprego”, era apenas promessa.
O eleitor exigiu um aprofundamento da construção de uma política de
solidariedade que cuidasse dos mais pobres: uma política assistencialista
provisória, de proteção aos menos favorecidos, enquanto o emprego não vem...
Não devemos nos iludir imaginando que nossa paciência é muito maior
do que a dos demais povos. Além de reforçar a instituição de redes de amparo
aos mais necessitados, temos de cuidar do desenvolvimento da economia, porque,
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Antônio Delfim Netto
39
sem crescimento mais rápido da produção, sem reanimar o espírito selvagem
dos empresários para que voltem a investir pesado no setor exportador, nós
não vamos dar emprego à nossa gente. Nunca é demais insistir que sem o
crescimento mais rápido do PIB não haverá oferta de emprego suficiente para
todos que precisam trabalhar. E que o trabalho ainda é o meio mais eficiente de
melhorar a distribuição da riqueza nacional. É preciso derrubar o mito de que o
Brasil não pode crescer mais do que 3,5% ao ano sem que a inflação retorne.
Isso é uma grande bobagem construída pelos economistas que se julgam
“cientistas”, quando não passam de servidores cativos dos mercados financeiros
que nunca pisaram um “chão de fábrica”, onde os homens comuns procuram se
realizar no seu trabalho. Não existe também nenhuma contradição entre o objetivo
de equilíbrio fiscal e a ampliação do investimento público, que precisa apenas
ser bem administrado. Se insistirmos na “pureza neoliberal” que entrega os
homens à antropofagia mercadista, um dia sairão das urnas os “morales” que já
nos espreitam atrás das esquinas...
Keynes disse que “a economia e os economistas não são os depositários
da civilização, mas a possibilidade de civilização”. Em outras palavras, o
conhecimento dos condicionamentos da realidade econômica e do
comportamento dos homens deve ajudar na construção de uma sociedade em
que os cidadãos possam empregar os seus esforços livremente em atividades
lícitas e se apropriar dos resultados; em que percebam a possibilidade de
aumentar o seu bem-estar dentro de um quadro de justiça e relativa igualdade,
com os níveis do PIB e do emprego crescentes.
A atividade do economista deve ser ajudar a sociedade a construir
mecanismos que possibilitem a liberdade individual, que reduzam as
desigualdades e tenham alta eficiência produtiva, três objetivos que não são
inteiramente compatíveis.
É por isso que não se pode deixar ao mercado a tarefa de harmonizá-los,
como pretendiam os economistas neoliberais. Ou eles introduzem a urna como
condicionante da política econômica, ou correm o risco de vê-la fracassar
miseravelmente. Como dizia um slogan fabiano da minha mocidade: “os empregos
estão fechados, mas as urnas estão abertas”!
Revisão: Regina Furquim.
DEP
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
40
Perspectivas das
relações entre o Chile
e a Bolívia
Luis Maira*
* Embaixador da República do Chile na República Argentina.
1
Exposição realizada no grupo de análise sobre as relações Chile-Bolivia da Fundação Friedrich Ebert,
Santiago.
clima em torno das conversações sobre o relacionamento entre o Chile
e a Bolívia parece estar melhor nos últimos tempos. Não obstante, isto não me
desperta grandes esperanças, pois a história dessas relações está marcada por
breves períodos positivos e longos hiatos de disparidades e conflitos.
Com relação a este momento em particular, cabe assinalar três dados
conjunturais que dão como resultado um bom ponto de partida.
A eleição chilena deu lugar a um quarto governo da Concertación, que é o
primeiro da etapa pós-transição. Os três primeiros governos da Concertación
estavam presos a uma agenda muito estreita e muito complicada, que procurava
pôr fim à herança, lúcida e perversa, do regime autoritário –, o que chamávamos
de “processo de amarração”. Os governos democráticos receberam no Chile –
– isso impressiona como exercício de política, se comparado com outros países
O
1
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Luis Maira
41
latino-americanos que também saíram de ditaduras da segurança nacional – um
campo minado, repleto de armadilhas e construções jurídicas e políticas muito
eficazes, que reduziam a margem da soberania popular e das suas autoridades.
A Constituição de 1980 situava na cúpula do poder entidades de origem
não-democrática, com as prerrogativas exercidas pelas instituições mais próximas
do regime militar: o Conselho de Segurança Nacional, que encarnava a tutela
democrática das Forças Armadas sobre o Parlamento e o Governo, e a
manutenção de Pinochet como Comandante em Chefe do Exército nos oito
primeiros anos. Isso fez da transição chilena um processo mais estreito, mais
difícil e complicado do que qualquer outro na América do Sul. Com as reformas
constitucionais de agosto de 2005, chegamos ao fim do caminho que atravessava
esse desfiladeiro e, em termos gerais, homologamos a situação institucional
própria de um país democrático.
Portanto, o governo de Michelle Bachelet é o primeiro pós-transição, o
que significa que é o primeiro governo que não vai precisar gastar boa parte das
suas energias para desfazer o que o regime militar deixou “atado, e bem atado”.
Vai poder lançar outro olhar sobre o uso do tempo e dos espaços que tem
disponíveis, com maior liberdade para elaborar seus objetivos políticos. O que
é muito positivo, se além de tudo acrescentamos o fato de que a eleição
parlamentar que acompanhou a eleição presidencial de 11 de dezembro melhorou
substantivamente a margem de manobra que teve nestes anos a coalizão
majoritária, dentro do sistema binominal.
Em segundo lugar, de seu lado, a eleição presidencial na Bolívia enterrou
muitos fantasmas que tendiam para a ingovernabilidade do país. Com 54% de
apoio, o presidente Evo Morales pôde articular o seu governo no contexto de
um quadro político menos fragmentado. Essa era a situação boliviana desde
que, no princípio desta década, perdeu força o velho triângulo partidário – MIR,
ADN, MNR –, que administrou a situação depois do fim da crise de 1985 e
permitiu as alianças e acordos que geraram estabilidade nas duas décadas finais
do século XX.
Contudo, quando comparamos a situação dos dois países, o quarto governo
da Concertación chilena mostra maior segurança programática, com margens
políticas mais amplas.
Um terceiro elemento que considero fundamental é o fato de que o tema
da relação bilateral mostra uma assimetria das percepções nacionais na opinião
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
42
pública dos nossos dois países. Este é um tema decisivo, emblemático para o
povo e a opinião na Bolívia, mas quase inexistente no Chile, por duas razões: em
primeiro lugar, porque a aspiração marítima impõe aos bolivianos uma conduta
ativa, enquanto ao Chile nada obriga, pois naquele país a simples manutenção
do estado de coisas existente parece razoável à maior parte das pessoas não
familiarizadas com os temas internacionais. Em segundo lugar, não se conseguiu
formar no público chileno a sensação de que se trata de algo prioritário, que
exige uma solução, ou de que se trata de assunto que afeta a nossa imagem
internacional, mais do que uma demanda feita por outro país. Isto implica um
desafio importante com respeito ao ponto a que queremos chegar, em termos
de pedagogia política e de construção de consensos internos no nosso país.
Neste sentido, francamente, as múltiplas apresentações feitas periodicamente
pelo Partido Socialista, por meio da sua direção ou dos seus parlamentares, não
conseguiu, até o momento, melhorar esta atitude de distanciamento por parte
da opinião pública chilena, que não vê o tema como parte da sua agenda.
Neste contexto, gostaria de concentrar-me agora no detalhamento de
alguns aspectos dos caminhos que podem ser abertos daqui em diante.
Como ponto de partida, assinalaria que no Chile a adoção de uma política
consistente e detalhada com relação aos assuntos bolivianos ainda está pendente.
Não existe esse consenso, o que se deve, em certa medida, ao fato de que para as
pessoas que administram as relações bilaterais com a Bolívia, elas parecem um
tema complexo, mas que se regula por si mesmo. Assim, por exemplo, na
Chancelaria os diplomatas mais bem informados pensam que os problemas
levantados pela aspiração marítima da Bolívia nunca devem causar muita
preocupação. Dessa perspectiva, explicam que a Bolívia só é capaz de ter políticas
fortes e coerentes quando consegue resolver suas crises políticas mais graves. É
nessas fases que elabora esquemas de governabilidade em torno de administrações
que iniciam seu trabalho; e esses governos, por razões que os diplomatas associam
com a legitimidade do próprio trabalho, colocam muito acima, nos foros
internacionais e na relação bilateral, a demanda marítima do país. A percepção
dos diplomatas é que uma postura ativa por parte do Chile dinamiza esse
processo, enquanto a desatenção permite que o assunto se dissolva de acordo
com as mudanças da conjuntura interna boliviana. Assim, não responder à
solicitações aparece como uma política inteligente para neutralizar o conflito.
Como é evidente, esse enfoque não leva a priorizar a necessidade de uma política
mais estável e proativa em médio e longo prazo, mas simplesmente a reiterar o
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Luis Maira
43
manejo tático já conhecido, o qual normalmente dá resultados, devido à forma
como têm funcionado as coisas em La Paz, pelo menos nos últimos anos.
Apesar disso, consideramos fundamental insistir na necessidade de contar,
do lado chileno, com uma política consistente e estável, que priorize os assuntos
de definição da política de vizinhança do país, vinculando as políticas a serem
desenvolvidas com a Bolívia às que aspiramos desenvolver com o Peru e a
Argentina, nossos outros dois vizinhos territoriais. Adotar essa política e avançar
nesse sentido é um grande tema que se encontra pendente, embora considere
que as boas relações geradas na fase final da gestão do presidente Lagos criam
boas condições para abordar a questão no governo atual, da Presidente Bachelet.
O primeiro ponto que considero ser necessário expressar com clareza é
que precisamos entender que bolivianos e chilenos temos a que, provavelmente,
é a pior vizinhança dos países latino-americanos. Afirmativa que pode ser
sustentada com este dado duro e concreto: só mantivemos relações diplomáticas
– o mínimo que podem ter dois países – em dez dos últimos cinqüenta anos.
Aliás, neste momento, parece uma questão difícil a perspectiva de restabelecer
esse nexo essencial entre estados modernos: a existência de Embaixadas e canais
regulares do relacionamento bilateral.
Ao mesmo tempo, esses dois países que têm uma relação tão má, que
explode periodicamente e quase desestabiliza os vínculos binacionais, enfrentam
um dos conflitos mais prolongados da América Latina, que já dura 121 anos.
A disputa tem um único grande núcleo, que é a aspiração da Bolívia a ter uma
saída soberana para o Pacífico. Se deixarmos de lado a demanda argentina com
respeito às Malvinas, muito poucos assuntos que datam do século XIX persistem
na agenda internacional dos países da América Latina no começo do século
XXI. O outro conflito antigo – o de Belize como demanda da Guatemala – foi
resolvido há muitos anos com a criação de um país independente, associado à
Comunidade do Caribe. Isso implica a permanência de apenas dois assuntos
antigos: a aspiração marítima boliviana e a demanda argentina com relação às
Malvinas. Não existe nenhum outro problema dessa envergadura. A diferença
está em que a questão das Malvinas não é um conflito com outro país latino-
americano. Portanto, entre países latino-americanos, esta é a questão mais antiga,
e mais quente. Por isso é urgente nos voltarmos para ela.
Na minha opinião, um dos grandes problemas dos bons momentos nas
nossas relações tem sido a sugestão de soluções instantâneas. De repente, os
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
44
líderes políticos acreditam que em prazo muito curto podem resolver um
contencioso tão antigo e tão complicado. O que, normalmente, é uma má
expectativa, que termina em situações de desencanto.
Cabe esclarecer que a minha geração acreditava que resolveríamos esse
assunto com muita rapidez. Antes do golpe de 1973, estava no Chile boa parte
dos dirigentes juvenis bolivianos, estudando em universidades chilenas. Nossas
relações humanas eram magníficas: nós nos conhecíamos, discutíamos juntos
a respeito da América Latina e não tínhamos qualquer dúvida de que seríamos
nós a resolver, com relativa presteza, os assuntos pendentes da nossa história.
Mas a vida nos ensinou que isso não é fácil, e a história mostra o mesmo,
porque quatro vezes, desde o fim da Guerra do Pacífico, estivemos perto de
encontrar a solução para um porto soberano da Bolívia no Pacífico. Antes do
Tratado de 1904; em 1895, no contexto da disputa argentino-chilena-boliviana
pela Puna de Atacama; em 1926, com a chamada “Proposta Kellog”, feita
pelo secretário de Estado norte-americano, que, dada a pendência da situação
de Arica e Tacna com o Peru, convidou os dois países a ceder o porto de
Arica à Bolívia, como uma solução que evitasse o referendum. O Chile expressou
sua disposição de acolher tal possibilidade, embora internamente a opinião
pública fosse muito cética, mas o Peru a descartou de forma incisiva, afastando
assim a iniciativa dos Estados Unidos.
Em 1950, o ex-Chanceler Albert Ostria Gutiérrez, na época Embaixador
no Chile, e o então Chanceler chileno Horacio Walker, sob as presidências de
Mamerto Urriolagoitia na Bolívia e Gabriel Gonzáles Videla no Chile, avançaram
no sentido de uma solução mais durável: o corredor boliviano, uma franja ao
Sul da linha da Concórdia e ao Norte de Arica. Ostria Gutiérrez (e isso também
se percebe nos detalhes das Memórias de Gonzáles Videla) promoveu uma lúcida
e extraordinária gestão diplomática para atingir essa possibilidade, concretizada
finalmente como uma solução técnica, elaborada por engenheiros e expertos
em limites. No momento dessa tramitação, ocorreu uma situação infeliz, que
tirou a força da negociação: Gonzáles Videla, que deixara de ser um mandatário
popular e tinha posto o Partido Comunista fora da lei, provocando o exílio de
Pablo Neruda e outros problemas bem conhecidos, visitou o Presidente Truman
em Washington, no princípio de 1950, falando-lhe desse assunto em uma conversa
privada. Semanas depois, no Conselho de Relações Exteriores, em Chicago,
Truman conversou com jornalistas e especialistas nas relações internacionais
norte-americanas, que comentaram a inutilidade das visitas de chefes de Estado
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Luis Maira
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a Washington, qualificando como perda de tempo o fato de ele ter recebido,
naqueles anos da Guerra Fria, governantes da Ásia, África e América Latina.
Truman retorquiu assinalando as conseqüências positivas que podiam resultar
desse processo, e contou todas as negociações que Gonzales Videla conduzia
reservadamente com o governo boliviano – o que deu origem a denúncias
simultâneas na imprensa chilena e na boliviana. Em questão de semanas, os dois
Chanceleres haviam perdido seu posto, e o tema estava completamente afastado.
A quarta tentativa foi feita por Pinochet e Banzer – o abraço de Charaña,
em 1975. Parecia estarmos diante da possibilidade real de uma solução, por
serem dois ditadores a negociar, sem opinião pública a quem dar muitas
explicações, e por estarem comprometendo diretamente as Forças Armadas
dos seus países. A solução técnica foi a mesma de 1950 – tratava-se quase do
mesmo corredor. O fracasso se deveu a numerosas razões, principalmente pelo
impacto psicológico negativo havido na Bolívia e no Peru, devido à proximidade
do centenário da Guerra do Pacífico. O diálogo foi retomado entre 1986 e 1987,
com negociações patrocinadas pelos Presidentes Belisario Betancourt e Julio
Sanguinetti, respectivamente da Colômbia e do Uruguai, mas que também não
prosperaram devido ao veto do Almirante Merino, do Chile. A dupla gestão da
fase final de Pinochet também não logrou êxito.
Nos dezesseis anos que temos de transição, também não conseguimos
consolidar nenhuma situação próxima das quatro anteriores. A explicação dada
pelos encarregados da política exterior chilena, especialmente na época do
presidente Lagos, é a seqüência dos governos com que foi mantido esse diálogo:
seis diferentes (primeiro o presidente Banzer; depois, devido à sua doença,
Quiroga; em seguida, Sánchez de Losada; mais tarde Mesa e o Presidente
Rodríguez; por último, Evo Morales), o que impediu uma continuidade, a soma
de esforços positivos. Isso se deve também ao fato de que os diálogos foram
realizados reservadamente, e este é um ponto que deveria ser examinado: Será
conveniente manter conversações secretas, ou poderia contribuir mais para o
êxito do processo um certo grau de publicidade e comunicação dos diálogos e
dos seus progressos, para deixar marcos que permitissem progredir na retomada
dos entendimentos?
A partir deste ponto, temos que assumir o tempo e as complexidades
dessa relação bilateral, e trabalhar pensando no que vai acontecer futuramente.
A meu ver, a partir do ano de 2006, esses processos deveriam ser explorados e
desenvolvidos em um duplo cenário: o da integração, que é multilateral, e ao
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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qual atribuo extraordinária importância para construir medidas de confiança
mútua, que permitam fazer progredir o tema bilateral; e o assunto propriamente
bilateral, o que se conhece na Chancelaria chilena como “aspiração marítima
boliviana”.
Neste contexto, vale a pena pensar em um horizonte de tempo de
aproximadamente cinco anos. O ano passado, falamos da época do bicentenário.
A Bolívia foi um país muito precursor; sua rebelião teve início em 1809: uma
manifestação muito precoce, que precedeu em um ano os distúrbios que levaram
à Independência na maioria dos países da América Latina. No entanto, pensando
no ano emblemático que é 2010 como bicentenário do México, da Colômbia,
da Argentina, do Chile, e do início dos processos que levaram à emancipação de
outros países da região, podemos situar em 1809 o marco cronológico desse
esforço que, além de tudo, coincide com tempo do mandato dos novos governos
chileno e boliviano. Precisamos procurar torná-lo uma ocasião fértil para
progredir nos dois planos: o da integração no quadro multilateral e o campo
próprio das negociações bilaterais.
Sobre este primeiro tema, o da integração sul-americana, temos tido
progressos muito importantes em um contexto muito maior do que tínhamos
até há pouco tempo – por exemplo, em 2003. Na minha opinião, esta mudança
está associada à maturação desta nova fase histórica do pós-Guerra Fria e da
globalização, iniciada com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e com o fim da
União Soviética, em 1991. A integração como processo latino-americano e, em
particular, sul-americano, registra alcances muito mais concretos; perdeu o caráter
retórico e, de certo modo, utópico que teve desde o nascimento dos países da
América Latina. Se precisássemos explicar o que nos aconteceu a alguém de
fora da região, caberia assinalar que tivemos alguns construtores nacionais, os
pais das nossas pátrias, muito lúcidos, que entenderam que seria necessário
contrapor ao predomínio dos Estados Unidos, na América do Norte, uma
integração política dos países da América do Sul. Essa foi a percepção de Bolívar
e de San Martín – ou seja, das duas maiores figuras do Congresso Anfictiônico
do Panamá, de 1826, onde ficou evidente que essa perspectiva não era possível.
O sonho bolivariano, como o chamávamos, passou então a ser uma
construção utópica, o ideal de uma associação política dos estados sul-americanos
que poderia servir como contrapeso ao crescente impacto e crescimento da
hegemonia norte-americana na parte setentrional do hemisfério. Isso deu origem
a algumas iniciativas importantes e generosas, mas até hoje nunca pôde construir
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Luis Maira
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um projeto político. Não obstante, nos movemos no século XIX, e também no
século XX, com essa aspiração viva nas elites e nos grupos mais progressistas.
A essa primeira expressão utópica da integração veio somar-se uma
segunda, no século XX, tendo por meta a integração econômica. Foi assim que
surgiu a idéia do Mercado Comum Latino-Americano, depois da Segunda Guerra
Mundial, cuja manifestação orgânica ocorre no pensamento da Cepal e no seu
documento de 1959 sobre o Mercado Comum Latino-Americano. Passamos
então à proposta, não de uma América Latina unida politicamente, mas vinculada
economicamente pelo comércio e por projetos de produção. No entanto, assim
como no caso bolivariano, no campo político, o projeto de Raúl Prebisch e dos
fundadores da Cepal comprometia toda a região, pois se tratava de uma área
que ia literalmente do rio Bravo, no Norte do México, até a Terra do Fogo.
Assim como o anterior, esse projeto também não prosperou, convertendo-se
sempre em um horizonte móvel no cenário distante da América Latina – na
direção do qual não foi possível crescer.
Por outro lado, o mundo atual e o novo sistema internacional nos
apresentaram o tema da integração de um modo mais urgente e mais concreto,
fazendo-nos queimar etapas e progredir – e, nos próximos anos, este será
provavelmente um fato à margem da vontade dos governos – de um modo
efetivo neste processo da integração da América Latina.
Estamos hoje diante de uma variedade de acordos múltiplos –
econômicos, comerciais e também políticos – que precisam ser entrecruzados e
coordenados. A realidade da América Latina compõe-se mais de sub-regiões e
de grandes países do que de um espaço homogêneo, como o víamos no século
XIX e na primeira metade do século XX. A verdadeira América Latina do
começo do século XXI são seus dois grandes países, no Norte e no Sul – o
México e o Brasil –, que constituem sub-regiões por si mesmos, e quatro espaços
sub-regionais bastante integrados: a América Latina centro-americana, a
heterogênea zona do Caribe, a América Latina andina e a América Latina do
Cone Sul, basicamente em torno do Mercosul, no qual o Brasil não só é um ator,
mas também uma potência emergente grande o bastante para administrar a sua
política exterior independentemente das decisões tomadas pelos outros países
da região. Podemos ficar, assim, com esses seis atores, que entre si mantêm muitos
entendimentos. É extensa a elaboração de tratados e acordos de livre comércio,
sejam de Complementação Econômica, no quadro da Aladi, sejam Tratados de
Livre Comércio, bilaterais ou multilaterais. Mostrar em gráficos as formas de
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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associação e entendimento dos países da América Latina é bastante
impressionante, porque é uma rede de acordos de diferente qualidade, entre
diferentes atores e sobre temas distintos. Trata-se de um processo que tem
avançado de forma consistente nos últimos anos.
No contexto de um mundo de grandes regiões, a América Latina precisa
procurar ser uma região de peso na reconfiguração do sistema internacional, e
trabalhar consistentemente nesse sentido.
Essas duas dinâmicas, a dos acordos parciais e a da necessidade de ter
uma presença mais ativa no cenário internacional, determinaram que o avanço
no processo de integração fosse cada vez mais consistente. À medida que a
globalização passa da sua primeira fase – antes de 11 de setembro de 2001 –
para a segunda, tendo os Estados Unidos como gendarme global, com uma
nova doutrina de segurança e com intervenções militares unilaterais,
acompanhadas por um descuido simultâneo das suas políticas regionais,
percebemos um vazio e uma ausência de política dos Estados Unidos com
respeito à América Latina. Isso torna ainda mais importante a associação e o
apoio mútuo entre nossos países.
Esse quadro obrigou-nos a tomar mais iniciativas do que o anterior, o que
deu lugar a uma proposta formalizada, com todas as suas limitações e os desafios
pendentes, no Acordo de Cuzco de dezembro de 2004, e na constituição definitiva
de uma Comunidade Sul-Americana de Nações, que se está reunindo para ver
que passos pode dar.
Sabemos que o processo iniciado em dezembro de 2004 é só em parte
auspicioso. Está claro que, devido à sua crise interna, o Brasil perdeu boa parte
da iniciativa internacional do governo de Lula. Sabemos também que há
rivalidades reativadas dentro do Mercosul, em particular entre a Argentina e o
Brasil, e que existem numerosos problemas pendentes. Não obstante, apesar de
tudo, esse processo é uma realidade, e tem possibilidades de avançar.
O ciclo eleitoral que bolivianos e chilenos iniciamos em 2005 terá uma
enorme projeção no ano de 2006 e na primeira metade de 2007, já que
praticamente todos os países relevantes da região vão renovar seus governos.
Teremos eleições no México (julho de 2006), e se as pesquisas não mentem, com
uma provável mudança de orientação substancial do PAN ao PRD; haverá
eleições no Brasil, que esperamos não signifiquem uma involução na política
exterior que o país tem seguido nos últimos anos; teremos eleições também na
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Luis Maira
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Colômbia, no Peru e na Nicarágua – esta última pode ter resultados drásticos se
ganham os sandinistas nesse novo contexto. Em vários outros países – como
Costa Rica, Haiti, Venezuela, Equador –, o cenário se irá normalizando e
atualizando. Por último, em 2007 teremos eleições na Argentina.
Isso significa que devemos enquadrar o processo de integração nessa
perspectiva, que não é desfavorável. Considero que, levando-se em conta os
prós e os contras das mudanças que vamos ter na América Latina, é provável
que, no começo de 2007, tenhamos governos ainda mais favoráveis ao processo
de integração, comparativamente à situação atual. Isso poderia significar
progressos nesse campo, se trabalharmos bem. Este é o contexto em que nos
encontramos.
Contudo, como se trata de um contexto múltiplo, e não de um impulso
único, contrariamente ao que acontecia quando buscamos a integração política
ou econômica, nos séculos XIX e XX, temos uma boa oportunidade para pensar
em nossos movimentos mais imediatos. Creio que quando falamos em colocar
os problemas da Bolívia e do Chile em um contexto mais amplo, referimo-nos
ao coração da parte central da América do Sul: o Sul peruano, o grande Norte
chileno, o Noroeste argentino, o Sudoeste brasileiro, mais o Paraguai e a Bolívia,
que são os países mediterrâneos da região.
Isso nos leva a outro exercício igualmente interessante, embora complicado,
que nos obriga a inovar os enfoques e a coordenação das tarefas. O nível
subnacional, e suas autoridades, deverão merecer importância especial. No
mundo do pós-Guerra Fria, a política exterior de um país é a soma dos impulsos
nacionais e subnacionais. Não depende apenas do que se resolve em La Paz,
Buenos Aires, Brasília ou Santiago, mas vincula-se muitas vezes com os acordos
e entendimentos avançados pelos atores regionais nesses países. Assim, no impulso
de muitos projetos, a dinâmica é novamente dupla, de política exterior nacional
e subnacional, assim como da para-diplomacia. Isso é exatamente o que é preciso
organizar no segmento central da América do Sul, no eixo que contém o Trópico
de Capricórnio e que forma o Corredor Bioceânico Santos–Antofagasta.
Ora, se observamos o processo de integração de carne e osso, tal como
surge da reunião de Cuzco e dos encontros de líderes políticos, administradores
de políticas públicas e sobretudo de Chefes de Estado, a integração sul-americana
resulta da soma de três questões: pelo menos em princípio, apresenta três pontos
substanciais na sua agenda:
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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1. Integração física;
2. Integração social, no sentido de considerar as políticas sociais e os
problemas de pobreza e desigualdade na América do Sul; e
3. Integração energética e, em particular, o projeto do gasoduto sul-
americano.
É possível que muitos outros aspectos importantes entrem neste quadro,
mas se tivéssemos hoje de fazer uma descrição rigorosa desse esforço de
integração e dos seus temas prioritários, esses seriam os três principais.
Isso significa que um primeiro exercício que, na minha opinião, precisa ser
feito para colocar a relação chileno-boliviana dinamicamente nesse contexto, é
ver de que modo esses assuntos podem favorecer avanços positivos na nossa
relação bilateral.
Considero que, nos três campos citados, podemos encontrar temas
decisivos e importantes para promover tal relacionamento. Primeiro, porque,
em cada reunião dos grupos de fronteira, estamos aprendendo e progredindo
nos projetos e na metodologia. No ano passado, por exemplo, participei em
Salta da reunião da Zicosur, a Zona de Integração do Centro-Oeste da América
do Sul, que já tinha promovido oito reuniões anuais. Ali se encontram os chefes
dos governos regionais, que os argentinos chamam de “governadores” e, no
Chile, chamamos de “intendentes”. Participam também os chefes de governos
municipais e, juntamente com esses atores públicos, participam a sociedade civil,
os reitores de universidades, os empresários, os líderes sociais. Em outras palavras,
ali se entrecruzam o impulso dos atores do setor privado e o do setor público.
É um tipo de diálogo cada vez mais freqüente na América Latina, em torno de
projetos concretos.
Ao mesmo tempo, os países estão trabalhando esses temas em um nível
mais oficial nos chamados “Comitês de Fronteira” e reforçam, assim, os temas
próprios da relação bilateral entre chancelarias e governos. É aí que devemos
instalar os dilemas e os caminhos principais propostos atualmente para os nossos
dois países, que abrangem também o conjunto dos países do segmento central
da América do Sul. Diria que, com um olhar prospectivo, esses esforços vão
determinar em que medida podemos nos situar, de um modo dinâmico, na
economia do século XXI, no comércio internacional das duas bacias mais
importantes do mundo, que são a do Atlântico e a do Pacífico. Isto, entendendo-
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Luis Maira
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se que, à medida que avance o século XXI, ganhará força a tendência já
consolidada nas últimas décadas do século passado, a qual demonstra que a
Bacia do Pacífico está superando o antigo dinamismo da Bacia do Atlântico na
realização comercial das capacidades produtivas e tecnológicas. Hoje em dia, a
Bacia do Pacífico já realiza 57% do comércio mundial. Além disso, cabe
considerar, com relação a esse espaço, que os países da parte central da América
do Sul sentem uma viva necessidade de comerciar cada vez mais com a China, o
Japão e a Índia – que, embora não seja parte do Pacífico, é o país que abre o
acesso ao Oceano Índico.
Para os maiores países da região, esse desafio surge como uma demanda
quase impostergável, por isso considero relevante fazer uma breve referência
aos projetos brasileiros e argentinos com relação ao Pacífico.
Em junho de 2004, Lula viajou a Beijing com 450 empresários brasileiros
e procurou fazer acordos para gerar uma saída da soja brasileira pelo Pacífico.
O Brasil é um dos maiores produtores mundiais de soja, e nos próximos anos
precisará transportá-la pelos portos sul-americanos do Pacífico – peruanos e
chilenos – para ter condições de competitividade e tempo de transporte nessa
commodity.
Simultaneamente, a China encontrou uma boa oportunidade para se livrar
das incertezas de disponibilidade e a tendência à alta de preços registrada pelas
matérias- primas em função da própria demanda. Assim, propôs ao Brasil um
crédito por meio da importante empresa pública chinesa, a Covec (Corporação
de Venda de Obras no Exterior), para garantir, no médio prazo, o abastecimento
de soja brasileira, entregando, em troca, projetos de infra-estrutura que
permitiriam construir um dos três projetos de engenharia que os brasileiros
haviam concebido para transportar soja do Mato Grosso até o litoral do Pacífico.
Uma opção seria pela hidrovia do Mercosul ou algum dos outros projetos que
implicavam trechos ferroviários que atravessavam a Bolívia e, finalmente, levavam
a soja brasileira até portos chilenos, por Salta, e daí à Ásia do Pacífico, com
grandes vantagens do ponto de vista da economia e da competitividade do
Brasil. O país tem-se inclinado a considerar essa troca da soja, ao longo de doze
anos, pela infra-estrutura ferroviária que lhe permita completar essa obra sem
novas inversões públicas que comprometam o apertado orçamento brasileiro.
Dois meses depois, por sugestão de Lula, com quem tinha naquele
momento um bom relacionamento, o Presidente Kirchner foi à China com
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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trezentos empresários e com boa parte do seu ministério. O mandatário argentino
teve a mesma conversação com o governo chinês e com as autoridades da Covec,
agora, porém, com relação a outro corredor bioceânico, que não era Santos–
Antofagasta, mas sim Porto Alegre–Coquimbo. Esse projeto prevê a construção
de um túnel na passagem de Água Negra, entre San Juan e Coquimbo, levando a
reduzir a distância – e sobretudo a altitude – da estrada internacional e permitindo,
assim, o trânsito durante quase todo o ano. A Argentina poderia transportar a
soja, proveniente basicamente das províncias do centro, em particular de Santa
Fé, por uma linha reta até o Pacífico, levando-a dali até o mercado chinês. A
exploração argentina incluiria também um projeto de construção a cargo da
Covec, com apoio do sistema bancário chinês, que a financiaria – obra que o
governo chinês se encarregaria também de projetar. A Argentina receberia a
obra pronta, pagando-a com o envio de matéria-prima nos anos vindouros.
Esse projeto ficou igualmente em aberto, e várias missões técnicas chinesas têm
trabalhado no campo, em San Juan.
Tenho acompanhado de perto a concretização e o aprofundamento desse
e de outros tipos de experiência. Há algum tempo, quero mostrar que a idéia
de projetos concretos de infra-estrutura na parte central da América do Sul
deixou de ser uma idéia retórica. Com os projetos do Iirsa e os conduzidos
pelos governos, haveria possibilidades importantes de um comprometimento
dos seus orçamentos com o desenvolvimento da Bolívia, assim como nas
instituições financeiras internacionais como Cepal e Aladi (no campo do estudo
e prospecção) até o trabalho mais concreto do Banco Interamericano de
Desenvolvimento ou da CAF, que pode contribuir de forma mais específica
na dimensão do financiamento, de forma a dar viabilidade específica às
iniciativas que interessem prioritariamente à Bolívia e contribuam para o
progresso daquele país.
Concretamente, na parte central da América do Sul há, hoje, um grande
dinamismo de infra-estrutura em torno do tema dos corredores bioceânicos e
pode-se progredir no rumo da multiplicação desses projetos, de forma
conveniente e desejável para os seis países interessados. Sem dúvida alguma, a
idéia de que haja ferrovias e rodovias partindo de Cuiabá, no Brasil, até o
Oceano Pacífico, tendo como cenário uma parte importante do território
boliviano (ou a vinculação do mesmo tipo, pela Argentina), é um elemento de
importante projeção e potencialidade para a economia boliviana e o seu
desenvolvimento produtivo.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Luis Maira
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Penso, assim, que este é um tema concreto, no qual os governos poderiam
trabalhar mais de perto, mantendo um diálogo com as instituições e os organismos
internacionais e adotando um relacionamento que combine o nacional com o
subnacional, de acordo com as prioridades que as autoridades possam definir.
O tema das políticas sociais e da luta contra a pobreza e a desigualdade é
também de grande importância, e não detalharei aqui. Não obstante, creio ser
necessário assinalar que a focalização territorial de projetos e recursos se converte
em um critério central, porque os problemas da pobreza nos países da América
Latina, inclusive os maiores, estão concentrados em espaços territoriais
específicos e, em muitos casos, podem ser mais bem administrados mediante
projetos que cubram os dois lados da fronteira, em vez de serem abordados
individualmente, por um dos países. Isso também se aplica, em termos concretos,
à situação do Chile. Os problemas relativos à pobreza que temos em Tarapacá
ou Antofagasta, nas regiões I e II do Norte Grande chileno, serão muito mais
bem resolvidos em associação com a Argentina, a Bolívia e o Sul do Peru, se
não os virmos apenas como mais um assunto da agenda social chilena. Algo
semelhante ocorre com o Sudoeste brasileiro ou o Noroeste argentino, regiões
nas quais estão concentradas importantes manifestações de pobreza e
desigualdade.
Finalmente, o tema relativo à energia é um campo aberto que, certamente,
passa muito pela sensibilidade e pela decisão soberana dos países, mas não
podemos esquecer o dado de um relatório da Olade (Organização Latino-
Americana de Energia), de dois anos atrás: na América do Sul, dispomos de
capacidade energética que dobra a demanda do momento de peak da soma das
economias nacionais. Os problemas fundamentais são de coordenação,
interconexão e uso inteligente desses recursos. Todos os países sul-americanos
têm algo que colocar nos dois pratos dessa balança e algo que retirar,
naturalmente, nos termos justos dos preços internacionais crescentes do mercado
energético com os quais trabalhamos atualmente. E, neste particular, o projeto
do Gasoduto Sul-Americano, a partir de Camisea, no Peru, é uma proposta
importante, que pode ser combinada com a contribuição do gás boliviano, desde
que o novo governo desse país defina o quadro jurídico para a sua comercialização
no exterior.
Concluo agora com o tema do manejo bilateral da aspiração boliviana a
uma saída marítima no Pacífico. Tenho a impressão de que, se somos capazes de
Perspectivas das relações entre o Chile e a Bolívia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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concertar acordos sólidos no processo de integração da área que nos abrange, a
bolivianos e chilenos (no nosso caso, não se trata do conjunto do território do
Chile, mas vitalmente o espaço do chamado Norte Grande), e se pudermos
ativar esses projetos, vamos desenvolver medidas de confiança recíproca,
conhecimento mais direto entre os responsáveis pelas políticas públicas, que
nos permitam avançar, simultaneamente e sem exclusões, no espírito da
Declaração que fizemos no Algarve, durante a Cúpula Ibero-Americana de 2000,
para examinar os temas próprios da relação bilateral sem excluir o da aspiração
marítima boliviana de ter um porto útil e soberano no Pacífico. Em todas essas
questões precisamos fazer as coisas progredirem desde as suas raízes, como um
artefato com dois motores que encontra na realização de interesses
complementares e na agenda de integração motivo de reforço e legitimidade
dessas conversações bilaterais e dos acordos a que podemos chegar.
Em termos práticos, creio que um esforço substancial precisaria orientar-
se para alcançar uma relação construtiva com o Peru, porque tudo parece indicar
que, quando se chegar a alguma solução, será nos termos previstos no Tratado
de 1929 – e isso exigirá o consentimento do Peru, como o que foi preciso
explorar em 1950 e 1975. E o único dado positivo das fracassadas negociações
de 1986 e 1987, encerradas pelo Chile, foi o fato de que, naquele momento, o
Peru demonstrou um grau de flexibilidade e disposição muito maior que nas
conversações anteriores. Precisamos fixar isso como um elemento de cooperação
disponível para levar à conclusão e à concretização os acordos que possamos ir
construindo juntos.
Além disso, acredito que esse trabalho vai exigir acordos consistentes e
sólidos, semelhantes a uma política de Estado na Bolívia e no Chile. Descartaria
de antemão a possibilidade de que um governo chileno possa, com uma simples
negociação, firmar um acordo que implique cessão territorial. De modo geral,
nenhum governo, em nenhuma parte do mundo, pode fazer isso. O processo
que estou imaginando deveria culminar, nos dois países, com um referendum ou
alguma resolução parlamentar que sancionasse os acordos, dando-lhes a
legitimidade e a estabilidade que só a cidadania pode outorgar à solução
alcançada. De outra forma, será virtualmente impossível obter um acordo interno
que possamos sancionar pelo Congresso dos dois países como um estatuto
internacional complementar ao de 1904. Somente esse itinerário complexo dará
respeitabilidade, estabilidade e um alto grau de legitimidade ao acordo que possa
ser alcançado pelas equipes técnicas do Chile e da Bolívia.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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Em termos práticos, não creio que esse assunto tenha um custo elevado
para o Chile, se considerarmos as vantagens de pôr fim a um diferendo de mais
de um século, o qual, objetivamente, prejudica a nossa imagem na América Latina.
O Chile é um país que tem 4.300 quilômetros de costa, e a verdade é que se,
pensarmos em termos de “generosidade nacional”, tal como a revista The
Economist nos pedia há dois anos, em um editorial de muito impacto –, os chilenos
seriam vistos como pessoas muito mesquinhas por não favorecerem uma solução
desse tipo.
A questão é que isso está relacionado com a legitimidade de uma decisão
tomada em função do manejo midiático dos temas da relação bilateral entre
Chile e Bolívia. E, quando bandeiras chilenas são queimadas em La Paz, ou os
jornais bolivianos publicam editoriais exaltados, reproduzidos imediatamente
pela imprensa chilena, e às vezes pela televisão, isso gera uma situação maciça de
recusa de qualquer solução das pretensões bolivianas pela maior parte da opinião
pública chilena. Aos grupos mais nacionalistas, é muito fácil projetar as idéias, o
que leva à involução dos posicionamentos que vêem na solução do conflito algo
favorável ao interesse nacional chileno e reduz a margem de manobra dos que
querem encontrar uma solução mais positiva. O cuidado e a prudência são,
assim, atitudes fundamentais para a abordagem desses acordos.
Da minha perspectiva, trata-se, portanto, de criar, por meio das relações
econômicas multilaterais, um contexto que permita conduzir o relacionamento
bilateral a um ponto tal que encontre finalmente a solução jurídico-institucional
que permita fazer da aspiração boliviana um assunto do passado, resolvendo-o
no início do século XXI. Assim, trabalhando juntos, bolivianos e chilenos
poderemos retirar da lista de conflitos esse tema, que representa uma pedra no
caminho da solidariedade, da amizade e da integração da América do Sul, para
alcançar paz e amizade duradouras.
Tradução: Sérgio Bath.
Revisão: Regina Furquim.
DEP
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
56
or que a Colômbia foi capaz de se manter como um Estado democrático,
com um apreciável desenvolvimento econômico e social, apesar do desafio de
guerrilhas, terroristas, cartéis armados dedicados ao tráfico de drogas ilícitas,
prática da justiça pelas próprias mãos, corrupção e altos níveis de injustiça social
e de concentração da riqueza?
Essa a pergunta que freqüentemente me fazia o então presidente do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), Enrique Iglesias. Ele considerava
indispensável desvendar o segredo. E foi assim que decidi convocar um grupo
de acadêmicos e empresários para que, a partir de diferentes perspectivas e com
base em suas pesquisas e experiências, respondessem a tal questão.
Esse esforço levou à publicação de dois volumes que contêm, ao todo,
trinta e oito capítulos
1
. A edição do primeiro volume já está esgotada e a segunda
Fatores de força da
Colômbia
Fernando Cepeda Ulloa*
P
* Ex-Ministro de Governo da República da Colômbia e Professor da Universidade dos Andes, Bogotá,
Colômbia.
1
Fortalezas de Colômbia I, Ariel, BID, 2004. Fortalezas de Colômbia II, Cuellar Editores, Colciencias, 2006. Já
existe uma edição em inglês do primeiro volume, patrocinada pelo BID. Este ensaio recolhe, em boa parte, o
conteúdo de duas apresentações do autor que introduzem os dois volumes de Fortalezas de Colômbia.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
57
não circulará nas livrarias. Por esse motivo, este ensaio recolhe, de forma muito
resumida, as principais teses dos diversos capítulos, numa tentativa de lhes dar
maior difusão.
Os capítulos que integram esses livros procuram mostrar como foi a
evolução histórica de uma nação que, como outras, lutou denodadamente para
estabelecer instituições, criar uma identidade nacional, proteger as minorias,
promover a mulher, introduzir procedimentos democráticos, fortalecê-los,
consolidá-los, para tornar a reformulá-los. Uma sociedade que, no meio de
inúmeras adversidades e precariedades, procurou crescer economicamente e
distribuir esse crescimento entre os diferentes setores da sociedade. Houve avanços,
retrocessos, recuperações e – como negá-lo? – injustiças e iniqüidades ancestrais.
Incorporam-se fatores de força que vão desde a criatividade em diferentes
campos do saber até as façanhas de colombianos nos esportes ou a originalidade
de sua música, passando pelo que foi o compromisso histórico com a educação
pública, a persistência e a significação da imprensa regional, bem como reações
civilizadas e civilizadoras frente à violência: a rede de bibliotecas públicas ou os
importantes exemplos de resistência civil contra a violência ou a contribuição
da força pública para o fortalecimento das nossas instituições democráticas.
Um breve repasso do rico conteúdo dessas contribuições originais
permitirá ao leitor familiarizar-se com reflexões e dados que deveriam estar
muito mais presentes na mente dos próprios interessados ou de estranhos. É
que a Colômbia retratada nesses dois volumes é muito mais atraente, interessante
e merecedora de justa admiração do que aquela que normalmente se nos
apresenta. E não é que esteja destituída de grandes falhas, injustiças e iniqüidades.
O que ocorre é que essas contribuições intelectuais nos permitem ver agora um
quadro muito mais complexo e, em conseqüência, mais ricamente matizado. E,
assim, sobressaem perfis positivos e admiráveis da realidade colombiana, que
não têm merecido um lugar proeminente na narrativa de nosso desenvolvimento
histórico.
É claro que não se examinam aqui todos os aspectos do fenômeno, mas
cada um dos autores chama a atenção para alguns fatores que não têm recebido
toda a consideração que merecem, para que se consiga melhor entendimento da
nossa realidade. A verdade é que a Colômbia teve a capacidade de manter uma
governabilidade democrática, apesar das notórias debilidades do Estado, do
governo, da sociedade civil e dos seus cidadãos.
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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Trata-se de mostrar que a situação crítica que a Colômbia tem vivido,
particularmente aguda durante o último quartel de século, tem sido enfrentada
– com êxitos e fracassos – graças a tradições e instituições que não têm apenas
sobrevivido ao duro desafio de muitas ameaças, mas que também, nesse processo,
transformaram-se e fortaleceram-se em virtude de reformas democráticas que
têm sido uma das respostas à crise.
O melhor exemplo, apesar da controvérsia que ainda existe em torno do
seu impacto e significado, foi a elaboração e aplicação da Constituição de 1991.
É certo que ela foi produto de uma profunda crise, mas, também, de um amplo
processo de autocrítica, de vontade de mudança e de participação popular
(Cepeda, 2003)
2
. Contribuíram para sua gestação o poder executivo, o poder
judiciário, a sociedade civil em suas mais diversas manifestações e vários grupos
de ex-guerrilheiros que se reintegraram à sociedade civil e aproveitaram essa
oportunidade para participarem do projeto de novas instituições. Sua aplicação
e desenvolvimento – a que não faltaram retrocessos, falhas e inconsistências –
foi um processo caracterizado por vigoroso debate e ampla participação. Embora
produto de um consenso em 1991, não há unanimidade em torno dela. Ainda
conta com opositores, alguns deles, implacáveis.
Recordando uma reflexão que apresentei no Primeiro Congresso do
Pensamento Político Latino-Americano (29 de junho-2 de julho de 1983), diria
que a Constituição de 91 respondeu àquilo que então se denominava o desafio
do futuro. Ali se traçou uma institucionalidade que conciliou eficácia e
responsabilidade, participação e institucionalização. Ou seja, um esquema político
diferente porque incorporou novas tendências políticas, estabeleceu novas regras
de jogo para uma participação ampliada. Procurou abrir o processo político a
um jogo mais conflituoso, porém sem violência. Tentou um caminho que
permitisse superar o conflito armado sem eliminar uma vida política pluralista,
que ao mesmo tempo fortalecia. Em poucas palavras, maximizou o consenso,
ao mesmo tempo em que propiciava um conflito político civilizado e pluralista.
Apostou na inclusão política, econômica e social.
Isso explica porque, ainda hoje, são as novas forças políticas, como o Pólo
Democrático Independente, que defendem a Constituição de 91 e denunciam as
2
Cepeda, Fernando (2003). Colômbia: The Governability Crisis, em Jorge I. Dominguez e Michael Shifter,
Constructing Democratic Governance in Latin América, second edition, The John Hopkins University Press,
Baltimore, p. 193 e segs.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
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tentativas de deformá-la. Outros setores a abominam. Pessoalmente, creio que
o precário desenvolvimento legislativo que recebeu nos anos posteriores
dificultou a aplicação plena da Constituição de 91. Alguns ajustes eram
indispensáveis. O Tribunal Constitucional foi o guardião do seu espírito e da sua
vigência (Cepeda, 1984)
3
.
A tradição civilista e eclética
Tradição civilista na Colômbia? Porventura não houve, no primeiro século
de vida independente, nove guerras gerais e cinqüenta e quatro revoluções locais?
O distinto historiador da Universidade de Oxford, Malcolm Deas, responde a
essas perguntas em um trabalho que, numa síntese concisa, resume o percurso
histórico da colônia até os nossos dias. Para ele, uma das chaves da singularidade
colombiana é a ausência de guerras com os países vizinhos ou de intervenções
imperialistas. Para o historiador Deas, essa circunstância contribui para a
persistente tendência para conflitos internos e a debilidade histórica da força
pública. Sem vacilação, afirma: “o país teve, sim, uma tradição civilista. É um
fator de força, e deve constituir um capítulo de qualquer livro...” Porém, aqui
vem o grande caveat: é preciso examinar como, quando e onde essa tradição
civilista falhou e se mostrou incompleta, adverte Deas. O predomínio de civis,
afirma, não implica necessariamente tolerância. E aí está o problema que tem
atormentado a Colômbia. Depois de percorrer quase dois séculos de história,
Malcolm Deas recorda que “um civilista verdadeiro sabe que tem de colocar
limites a seus ódios e a suas ambições em benefício da preservação da civilidade”.
O que nem sempre ocorreu. E a isso juntou-se outra deficiência dos civis:
“e essa foi sua miopia frente às estruturas das forças da ordem de que o país
precisou”. Para Deas, houve alguns civis mais civilistas do que outros, dentro de
uma cultura política em que o elemento militar era política e socialmente
subordinado. A revelação que nos faz Deas é a seguinte: “a tolerância talvez seja
uma virtude menos comum entre políticos civis do que entre militares. O aspecto
mais perigoso do sistema colombiano foi a politização sectária do povo que
alcançou uma profundidade e uma abrangência que me parece sem rival na
3
Cepeda, Fernando (1984). Pensamiento Político Colombiano Contemporáneo en Congreso de la República,
Primer Congreso del Pensamiento Político Latinoamericano, Tomo II, Volumen V, Caracas, p. 561. Ver também
Cepeda, 2003.
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
60
América Latina”. É forçoso concluir que o problema não foi o militarismo, mas
o sectarismo.
O professor Malcolm Deas, com base em seu extenso e invejável
conhecimento da história colombiana e da de outros países da região, faz
também algumas reflexões sobre o ecletismo colombiano. Afirma:
“O afã de ter acesso a uma cultura ampla foi uma constante na história
cultural da nação. Tenho lembrança de uma carta do general Santander na qual
creio que enfatizou estarem ele e seu correspondente em Cundinamarca e não
na Dinamarca e, em seguida, questionou a utilidade da leitura dos economistas
da época, de Filangieri, de Say, de Adam Smith. Se bem recordo, seu tom era
pragmático, de dúvida, não de rejeição, e se bem me lembro, assim mencionou
um italiano, um francês e um escocês. Um exemplo admirável do ecletismo
que considero como uma força”.
E que para o professor Deas é, às vezes, “o caminho da sabedoria”. Esse
ecletismo intelectual quanto às influências externas no pensamento nacional,
sustenta M. Deas, persiste em muitos campos. Ele procura mostrar como a
geografia cultural contribui para essa característica e faz comparações com outros
países. A Colômbia é um país “sem teoria”, sem essas teses oficiais sobre sua
essência, que, no México, são mais notórias, conclui Malcolm Deas em alguma
parte do seu ensaio.
A tradição eleitoral
Desde a independência, houve um intenso e prolongado calendário
eleitoral, que deveria ser uma indicação suficiente do papel central que o
sufrágio ocupou na formação do poder na Colômbia. Essa é a afirmação
contundente do historiador Eduardo Posada Carbó. Trata-se – são as suas
palavras – de uma tradição “longeva e persistente”. O sistema foi competitivo
desde as origens mesmas da república, e isso se manifestou no estabelecimento
de diversas organizações políticas para lutar pelo poder. A narrativa histórica
não deixa dúvidas a respeito. A transferência pacífica do poder é parte da
notável história democrática colombiana. O sufrágio masculino foi adotado
precocemente, em 1853. As normas eleitorais têm um caráter inclusivo. É
claro, porém, que essa história de inclusão tem altos e baixos, é um “curso
acidentado”. Em 1936, eliminaram-se todas as restrições ao sufrágio masculino.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
61
Em 1957, introduziu-se o feminino, embora, já em 1853, ele houvesse sido
adotado fugazmente na província de Vélez. O bipartidarismo foi desafiado por
terceiros partidos – e aí há um repertório de triunfos e fracassos. Para Posada
Carbó, existe uma cultura de litígio eleitoral.
A tradição da liberdade de expressão
O historiador Jorge Orlando Melo afirma que já desde a primeira
Constituição, a de Cundinamarca, em 1811, reconheceu-se a liberdade de
imprensa como um dos direitos civis, ainda que com algumas restrições referentes
ao dogma e a questões obscenas. Na história colombiana, conclui Melo, os
esforços dos diversos governos para reduzir a crítica ou submeter os periódicos
fracassaram consistentemente. Ao mesmo tempo, mostra como, nos anos
recentes, os maiores e mais dramáticos esforços para restringir as liberdades
dos meios de comunicação provêm de grupos sociais e não do governo, e recorda
como a verdadeira tragédia do jornalismo colombiano produziu-se pela violência
direta contra os jornalistas por parte de organismos sociais não estatais: os cartéis
da droga, as guerrilhas, os paramilitares e outras formas de delinqüência. Em
termos gerais, acha, entretanto, que, em matéria de liberdade de expressão, a
situação não foi muito diferente do que ocorreu nas democracias européias.
A tradição partidária
Os partidos colombianos não se têm caracterizado por serem os mais
disciplinados da região. São produto de um dos sistemas mais personalistas do
mundo. A existência de competição interpartidária e intrapartidária não criou
ineficiência na produção legislativa. O Congresso tem sido importante na
manutenção das instituições democráticas e é um dos mais institucionalizados
da região, e junto com os partidos em nível nacional, representa uma das forças
institucionais mais importantes: a civilidade e a tradição de instituições
democráticas. Essas são as conclusões de Mônica Pachón ao examinar, de forma
comparada, os partidos políticos e o Congresso colombianos.
A sociedade civil
A sociedade civil colombiana teve um papel determinante em momentos-
chave de nossa história. Um caso paradigmático é o que relata Fernando Carrillo.
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
62
A crise da ordem pública vivida pela Colômbia em razão do narcoterrorismo
encontrou uma saída política – quem o creria? – pelo caminho da participação
popular estimulada por um movimento estudantil ad hoc em um país onde as
federações de estudantes tinham deixado de ter vigência. O trabalho de Carrillo
mostra como se puderam superar formidáveis obstáculos, até mesmo de
ordem jurídica, para finalmente encontrar uma resposta legal à crise. Esse
processo político enquadra-se nos fenômenos de mobilização popular que
derrubaram o bloco soviético em 1989-1991. Na Colômbia, esse movimento
estudantil imaginativo, movido por um espírito gerador de mudança, derrubou
o muro que o artigo 13 do plebiscito de 1957 tinha erigido quando proibiu
para sempre a realização de um referendo na Colômbia. O próprio presidente
Barco – não obstante o apoio de mais de 90% da opinião à sua iniciativa – não
conseguiu derrubá-lo. Contudo, sua tentativa inicial serviu como um
antecedente importante para esse movimento gerador que procurava
promover novas instituições políticas.
A tradição jurídica
Se alguma instituição revela o que tem sido o apego histórico dos
colombianos ao império da lei – apesar das precariedades e de comportamentos
que às vezes podem sugerir o contrário – é a “revisão judicial” denominada
entre nós de controle da constitucionalidade. Isso fica bem claro no erudito
trabalho do Magistrado Manuel José Cepeda, que apresenta cem anos da prática
e do desenvolvimento dessa garantia de juridicidade na Colômbia.
Aqui, apenas quero recolher suas principais conclusões a respeito do
papel do Tribunal Constitucional na tarefa de assegurar a supremacia da
Constituição de 1991:
O Tribunal exerceu uma influência substancial no fortalecimento do
Estado de Direito e na transformação do ordenamento jurídico como
um todo.
O Tribunal teve um impacto visível no campo político. Contribuiu para
a conversão de conflitos sociais em problemas constitucionais e, dessa
forma, para a solução pacífica de conflitos dentro da sociedade.
Os debates constitucionais mais significativos foram enfrentados pelo
Tribunal, particularmente em quatro áreas:
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
63
o multiculturalismo e o direito à diferença coletiva;
a exigibilidade dos direitos sociais;
a proteção da parte mais fraca na aplicação dos direitos fundamentais
nas relações entre particulares; e
a afirmação dos direitos fundamentais.
O Magistrado Cepeda conclui afirmando que a Colômbia gozou de uma
tradição de defesa judicial da supremacia da Constituição não apenas centenária,
mas ininterrupta. Não ignora que houve períodos durante os quais esse poder
se exerceu timidamente. Tampouco esconde que houve sentenças que procuraram
mais legitimar o poder do que controlá-lo ou limitá-lo. Afirma, porém, que o
essencial é que, durante um século, o controle constitucional foi exercido com
independência, maior ou menor conforme a época. E que o século XX mostra
um processo de ascendência do constitucionalismo e que o controle
constitucional, originalmente voltado para a superação do conflito entre órgãos
do poder, chegou a converter-se em uma garantia da efetividade dos direitos
constitucionais. Assim, diz o Magistrado Cepeda, contribui-se para a manutenção
da democracia e para a solução pacífica dos conflitos.
Fernando Carrillo mostra o novo modelo econômico contemplado na
Constituição, que tem como norma cardeal o artigo 13, referente ao princípio
da igualdade, e que serviu de base para jurisprudências importantes e
controvertidas. Assinala como a Constituição obriga o Estado a dar prioridade
ao gasto público social como outra expressão do Estado social de direito, que
permeia o espírito desse novo estatuto.
Carrillo afirma que uma das forças da Constituição foi a inclusão dos
serviços públicos como uma finalidade social do Estado. A definição dos
organismos de controle (Ministério Público, Departamento Nacional de
Tributação, Defensoria Pública, Controladoria Geral da República) como
poderes independentes e autônomos. E observa que a eficácia do trabalho dessas
instituições depende de trabalharem como uma “rede de poderes relativamente
autônomos”. Destaca o significado e o alcance do Tribunal Constitucional e
descreve os mecanismos adotados para racionalizar o funcionamento do
executivo e o fortalecimento do poder legislativo. Para Carrillo, é “muito fácil
demonstrar como os grandes êxitos e forças da Constituição colombiana de
1991 são apregoados por aqueles que antes não tinham voz nem direitos, por
estarem excluídos e marginalizados do sistema”. Para ele, puseram-se em marcha
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
64
na Colômbia instrumentos inovadores que são a expressão de um moderno
Estado social de direito.
As minorias étnicas e sociais colombianas constituem, particularmente
a partir da Constituição de 1991, uma parte muito cara e essencial da nossa
nacionalidade. A cientista política Mala Htun faz uma contribuição significativa
para o melhor entendimento do que foi a posição dessas minorias em nossa
história e na atualidade. Ela se coloca indagações muito sugestivas sobre o
tratamento desigual recebido por cada uma delas e trata de encontrar
explicações. Ela assinala as fraquezas que caracterizaram as políticas públicas
referentes a essas minorias e ressalta a fortaleza que a Colômbia poderia tirar
de uma melhor orientação destas. Mala Htun conclui seu trabalho com esta
afirmação: “defender os direitos dos cidadãos mais marginalizados e em
situação desvantajosa não é responsabilidade apenas dos legisladores que
representam as minorias. É um imperativo ético que compromete todos os
membros da sociedade política”.
Mala Htun reconhece que em nenhum outro país os grupos étnicos e
raciais tiveram mais êxito em obter representação no Congresso. E coloca
uma questão interessante: por que os indígenas tiveram mais êxito do que os
negros? Ela reconhece a diferença que há entre uns e outros e as soluções
diferentes que requerem. Registra como é mais fácil para um governo outorgar
direitos a grupos pequenos do que a grupos mais significativos, e acha que as
reformas políticas que melhoram a representação das minorias podem
prejudicar um país como um todo.
A política externa colombiana também é permeada por uma longa
tradição jurídica. Por isso “baseia-se na defesa do Direito Internacional”, afirma
Rodrigo Pardo. E como mostra este autor ao longo do seu trabalho, “outro
grande fio condutor da política internacional, o de procurar que suas relações
com o resto do mundo contribuam para o fortalecimento do sistema
democrático”. O débil Estado colombiano não procurou reforço por meio
do incremento da sua força pública. Procurou alianças internacionais que o
ajudassem a enfrentar aqueles que foram os seus grandes inimigos. É o que o
estudo de Pardo revela com lucidez: combater o comunismo nos anos 60 e
70; o problema das drogas nos 80 e 90; o terrorismo, no século XXI. Outra
conclusão de Pardo é que a Colômbia manteve uma preferência pela solução
de conflitos de maneira pacífica, de acordo com o Direito Internacional.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
65
A sobrevivência da extradição diante de poderosos inimigos, delinqüentes
mafiosos – é a colocação de Rodrigo Pardo – indica até que ponto a Colômbia,
no meio de seus sobressaltos e desafios, manteve o apego ao direito e o respeito
aos compromissos internacionais.
Com esses antecedentes, ninguém pode surpreender-se da outra conclusão
de Rodrigo Pardo: “Os Estados Unidos foram a coluna vertebral da política
externa colombiana”. É que as três grandes ameaças históricas à democracia
colombiana – o comunismo, o problema das drogas e o terrorismo – foram
eixos importantes, senão fundamentais, da política externa dos Estados Unidos.
Meio ambiente
Diversos estudos identificam a capacidade do Estado colombiano de
proteger o meio ambiente como uma das mais fortes na América Latina e no
Caribe. É o que declara redondamente o reconhecido especialista Manuel
Rodriguez Becerra. Segundo ele, na década de 90, a Colômbia fortaleceu suas
instituições e suas políticas ambientais. Só é compreensível num país que ocupa
o 36
o
. lugar entre 122 países representativos por sua importância econômica e
ecológica. A Colômbia ocupa o segundo lugar entre os doze países com maior
diversidade biológica depois do Brasil e possui uma enorme riqueza hídrica e
uma não menos importante em biodiversidade e em florestas. Do país, 46% são
cobertos de florestas.
Rodriguez Becerra adverte que, apesar dos pontos fortes assinalados, eles
se desenvolvem num cenário caracterizado por um aumento da degradação e
da destruição ambiental, fenômeno este compartilhado com todos os países do
globo. Os avanços registrados, conclui Rodriguez, ainda não foram suficientes
para reverter tendências inerciais de destruição do capital natural, determinadas,
em grande parte, pelo crescimento populacional e pelos estilos de desenvolvimento
prevalecentes. Além disso, acrescenta, o conflito armado impõe limitações e
desafios singulares à proteção ambiental.
Desenvolvimento econômico e social
Durante a década de 80, em matéria de desenvolvimento econômico, o
caso colombiano foi único na América Latina. Na Colômbia, esse período,
denominado de “década perdida”, foi um no qual se registrou a mais alta taxa
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
66
de crescimento em comparação com os demais países latino-americanos.
Indicadores tão positivos como este são os que traz Carlos Caballero, e que se
podem resumir nesta afirmação sua: “a economia colombiana cresceu de
maneira sustentada, a uma taxa média de 4,5% ao ano, entre os anos 30 e fins
do século XX”.
A Colômbia comparte com o Brasil e a Argentina a posição de um dos
países que contam com o maior número de profissionais competentes,
principalmente nos níveis corporativos mais elevados, afirma Caballero. A tal
ponto, acrescenta, que o país se converteu em um exportador de capital humano
qualificado. A cobertura no campo da saúde passou de 23% a 55% da população
em 2002, em virtude da Lei 100, de 1993. Contudo, Caballero assinala que há
deficiências no controle e na vigilância e que há limitações à sustentabilidade
financeira do sistema. A urbanização acelerada (39% de população urbana em
1951, 72% em 2002) criou uma forte pressão sobre a demanda por habitações,
estimando-se um deficit de dois milhões de unidades. As famílias urbanas que
não têm casa própria elevam-se a 3.228.751. O Programa de Habitação de
Interesse Social da administração Uribe está procurando atender à demanda de
vivendas deste setor, com não poucas dificuldades.
A tendência para a redução da pobreza, explica Caballero, indica uma
melhora sustentada em longo prazo, com um retrocesso forte em função da
crise econômica de fins dos anos da década de 90. Entre 1980 e a primeira
metade dos anos desse decênio de 90, recorda Caballero, o progresso foi notório,
mas os indicadores mostram que, em 1999, devido à contração da economia e
ao aumento do desemprego, a situação havia voltado aos níveis de 1988. Novas
pesquisas permitiram a Caballero verificar uma evolução encorajadora. Por
exemplo, a percentagem de famílias na pobreza e na miséria reduziu-se entre
1973 e 2003, tanto nas áreas urbanas como nas rurais. O índice de qualidade de
vida entre 1993 e 2003 melhorou em todo o país.
Para Caballero, “uma economia que no passado teve a capacidade de
crescer e criar progresso social com estabilidade tem a fortaleza para enfrentar
os desafios dos próximos anos”. Com maior razão se forem superadas as diversas
manifestações de violência e a Colômbia se inserir apropriadamente no contexto
internacional.
Convém complementar esse diagnóstico com a apresentação de dois casos
de organização empresarial. O primeiro deles é descrito pelo próprio gerente-
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
67
geral da Federação Nacional de Cafeicultores da Colômbia, Gabriel Silva. Mostra
como o setor cafeeiro foi um motor de crescimento e desenvolvimento
econômico, social, político e institucional, além de integrador de regiões.
É sabido que o café foi o principal produto de exportação colombiano.
Em 1925, representou 75% das exportações totais. Na década de 80, ainda
respondia por mais de 40%. Hoje se situa perto dos 7%. Um resultado do
processo de diversificação. O que é importante ressaltar é a capacidade que teve
o setor cafeeiro para criar uma institucionalidade que, como diz o título do
trabalho de Gabriel Silva, é um modelo de eqüidade e de estabilidade para o
setor rural colombiano. “Na institucionalidade cafeeira reside uma das maiores
forças do país (...) a Federação dos Cafeicultores é uma organização que foi
capaz de aproveitar seu caráter privado, democrático e participativo para associar-
se eficazmente com o Estado, para criar níveis de bem-estar coletivo que não
teriam sido possíveis (...)”, conclui Silva. É que o café é o produto que teve o
maior impacto distributivo nas zonas rurais, em virtude de uma economia baseada
em pequenos e médios produtores, com níveis de interação cívica, participação
política e qualidade de vida superiores ao resto do agro colombiano e ao de
outras economias cafeeiras comparáveis, afirma Silva sem vacilação. O modelo
de organização institucional, política e social dos cafeicultores merece a maior
atenção, até mesmo dos próprios colombianos, porque ali pode estar o paradigma
capaz de inspirar muitos projetos produtivos de envergadura, que ajudem na
fase pós-conflito que já começou na Colômbia.
O segundo modelo refere-se a uma organização mais recente, que é a da
exploração da palma africana. O empresário Rubén Darío Lizarralde mostra
como camponeses, Estado, empresários e banqueiros podem fazer alianças
efetivas que, ao mesmo tempo em que criam convivência e paz, resultam em
produtividade e competitividade. Esta é a experiência notória e original de
Indupalma, um projeto realizado numa zona de conflito e que tem como aspecto
inovador não tanto distribuir a pouca riqueza que existe quanto criar nova
riqueza e distribuí-la eqüitativamente. Essa aliança de paz e desenvolvimento
equivale a uma reforma agrária realizada a partir do setor privado, que criou
trezentos novos proprietários de terra e de culturas de palma de óleo e
novecentos novos trabalhadores, todos eles com um caráter empresarial. Assim
se criou capital social, construiu-se um cenário produtivo sustentável em uma
zona onde o clima de violência não propiciava a integração das comunidades.
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
68
Esse modelo pode ser aplicado a outras zonas da Colômbia e a outras
culturas. Surge assim uma oportunidade de criar projetos produtivos que
ofereçam uma saída atraente no pós-conflito que o país já está vivendo. É uma
oportunidade tanto para os investidores colombianos como para os
estrangeiros. E também para a cooperação internacional. É que na Colômbia,
70% da terra apta para o cultivo não está em produção. E como muito bem
diz Rubén Darío Lizarralde, podem-se criar eixos de desenvolvimento
econômico sustentável no setor rural com economia de escala e produção
competitiva, promovendo culturas como a palma, o cacau, a borracha, o café,
as madeiras, a banana e outras frutas. Os modelos de gestão e de eqüidade
estão à vista e foram provados. E com êxito.
O papel dos empresários
Carlos Dávila e Roberto Gutiérrez abordam o tema do papel dos
empresários e do que eles significaram em nossa história. O primeiro deles aborda
uma visão histórica do que significou o empresariado colombiano, para afirmar
que não são nem heróis nem vilões. Parte da base de que a história empresarial é
parte da história da sociedade. Revê a noção da Colômbia como um país cafeeiro,
para assinalar que houve uma notória atividade empresarial antes do café. Da
mesma forma, discute a teoria que apresentava o espírito empresarial como
uma virtude quase exclusiva da região de Antioquia. E assim, reafirma a tese de
que uma das características do empresariado colombiano é sua marcada base e
identidade regionais. Assinala igualmente o papel dos imigrantes sírio-libaneses.
E em seguida se ocupa de outras características que distinguem o empresariado
colombiano em seus cento e cinqüenta anos de história e que se podem sintetizar
assim: alta diversificação de investimentos – “não pôr todos os ovos na mesma
cesta”; estreitas relações com a política e o Estado; poucos imigrantes, mas entre
eles, destacados empresários; e a importância e durabilidade da família como
ator empresarial.
Recorda – para responder assim à pergunta que deu origem a esses dois
volumes sobre as fortalezas da Colômbia – “que o desempenho econômico
colombiano sobressai no contexto latino-americano pelo controle prudencial
da economia por parte de um grupo de empresários e tecnocratas colombianos
bem qualificados que, ao longo do século XX, evitaram as hiperinflações, os
profundos deficit fiscais e o excessivo endividamento externo”. Carlos Dávila
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
69
refere-se a alguns comportamentos que se desenvolvem dentro do que denomina
“malabarismo entre o legal e o ilegal” como um lastro que afeta as regras do
jogo. Destaca a tenacidade do empresariado para adaptar-se às condições do
conflito armado interno e assinala “a conformação de novos setores empresariais
provenientes de diversas origens, setores econômicos que permitem falar hoje
em dia de um empresariado médio que irrompeu com força em muitos setores
econômicos e praticamente em todas as regiões do país”.
Roberto Gutierrez e Hugo Enrique Navarro mostram os progressos que
os empresários conseguiram ao conceber novas formas destinadas a aliviar
situações de pobreza e de falta de eqüidade. Assinalam as contribuições do setor
privado colombiano, tanto as que têm objetivos de lucro como aquelas com
propósitos meramente filantrópicos. Depois de explicar o moderno conceito
de empresa social, apresentam quatro casos exemplares para destacar os fatores
que contribuíram para a sua consolidação e os resultados obtidos. Começam
com o caso da Fundação Social, criada em 1911. Assinalam que essa fundação é
proprietária de empresas, e não o contrário, que sua razão de ser é “modificar as
causas estruturais da pobreza na Colômbia”. Embora não descrevam em detalhe
as características dessa interessantíssima instituição, mencionam quatro
experiências: Profamília, organização sem fins lucrativos, dedicada à saúde sexual
e reprodutiva; Finamérica, empresa com objetivos de lucro, que se dedica a dar
apoio financeiro à micro e pequena empresa; A Eqüidade Seguros, cooperativa
que trabalha nesse campo; e Colsubsídio, organização sem fins lucrativos, uma
caixa de compensação familiar, que trabalha em programas de saúde, educação,
recreação, mercado social, crédito e habitação. Mostram como “a configuração
dessas organizações como empresas sociais conseguiu transformar a sociedade
colombiana”.
O papel que empresários e empresárias têm desempenhado na construção
de uma sociedade mais eqüitativa na Colômbia ficaria incompleto se não se
fizesse uma referência a sua atividade filantrópica. Infelizmente, os empresários
parecem ter levado muito a sério a determinação evangélica que determina que,
em matéria de generosidade, sua mão direita não saiba o faz a esquerda. Assim,
não existe, pois, um registro adequado do número de fundações, de seus recursos
e uma história apropriada destas. Beatriz Castro trabalhou o tema e, não obstante
as escassas pesquisas, apresenta uma avaliação desta atividade que remonta ao
período colonial para chegar ao momento atual.
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
70
A Colômbia tem mais de 5.400 ONGs cujo financiamento assim se divide:
39,5% provêm de fundos próprios; 23,3%, de ajuda governamental e 24%, de
doações. A Colômbia se distingue porque a maior proporção dos recursos das
ONGs provêm de corporações e fundações empresariais. Enquanto na América
Latina esta contribuição é de 10,4%, na Colômbia é de 14,9%. Estes são alguns
dos dados que nos traz o capítulo de Beatriz Castro. Ela sustenta que, nos últimos
anos, na medida em que o conflito colombiano recrudesceu, a presença de
organizações filantrópicas, sobretudo as de caráter humanitário, aumentou. A
essa atividade acrescentam-se agora gastos de generosidade tão notáveis como
o do pintor Fernando Botero, que fez várias doações, tanto ao Museu de
Antioquia como ao Museu Nacional e ao Banco da República. Contudo, este é
um tema que tem custado ao empresariado dar relevo porque tanta discrição
não ajuda, particularmente quando se lêem análises que nem sempre fazem justiça
a este setor.
Diversidade cultural e surgimento de uma nova cultura de
“accountability”
O historiador Gustavo Bell refere-se a outro notório paradoxo
colombiano: a persistência e a riqueza de diversas manifestações culturais, que
vão desde a música folclórica, passando pelo teatro e a leitura, até extraordinários
eventos de massa que expressam a sensibilidade poética dos colombianos, apesar
da dureza da realidade imposta por tantas expressões de violência.
Os colombianos – assim considera – jamais fraquejaram em seu empenho
de construir um país mais amável e culto, como evidencia a intensa e variada
agenda cultural que se desenvolve tanto na capital como nas regiões. Alguns
exemplos não-ordenados dessa atividade, tomados sem preocupação de
seletividade, corroboram sua afirmação: os festivais de teatro de Manizales e de
Bogotá converteram-se em uma festa da cultura; a nona versão do de Manizales,
com grupos teatrais de cinco continentes, contou com uma assistência de mais
de dois milhões e meio de espectadores. Participaram do Festival Internacional
de Poesia poetas de mais de setenta países de todos os continentes. A próxima
versão deste festival, em Bogotá, contará com setenta e dois poetas de cinqüenta
e dois países. Em matéria de leitura, os dados são impressionantes: no ano 2000,
cerca de cinco milhões de pessoas visitaram as diferentes salas das bibliotecas
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
71
públicas. Esta cifra dobrou em 2003. A Luís Angel Arango, de Bogotá, é a
biblioteca pública mais visitada do mundo e tem a página de Internet mais variada
e ampla em língua espanhola.
Em matéria de música, o vallenato
4
foi adquirindo um caráter nacional com
repercussões internacionais. Bell recorda que Garcia Márquez, o Nobel
colombiano de literatura, afirma que sua célebre novela Cem Anos de Solidão era
um vallenato escrito e que esse gênero havia sido a principal fonte de inspiração
da sua prosa. Os músicos colombianos Carlos Vives, Shakira, Juanes e outros
mais obtiveram reconhecimentos internacionais que tanto se materializam em
prêmios apreciados mundialmente como na venda de milhões de cópias de suas
produções. O mesmo pode-se dizer da dança e de outros gêneros que já
transpuseram as fronteiras nacionais.
Bell acha também que o ponto de partida de toda política estatal de apoio
à cultura foi a diversidade de suas manifestações nas regiões. E a atribui a um
dos princípios fundamentais da nova Constituição de 1991: o reconhecimento e
a proteção à diversidade étnica da nação colombiana. Apesar de essa diversidade
já ser um fato consolidado. Bell conclui dizendo que a Colômbia está apenas se
descobrindo a si mesma em sua rica diversidade cultural, perturbada por um
contexto de violência. Por adverso que pareça tal ambiente, as manifestações
culturais gozam, segundo Bell, de um saudável vigor.
O historiador Adolfo Meisel afirma sem rodeios, no primeiro parágrafo
do seu ensaio, que a existência de várias regiões econômicas claramente
diferenciadas entre si é um dos fatores de força com que conta a Colômbia na
atualidade. Por um lado, a presença dessas regiões conferiu às relações políticas
inter-regionais uma dinâmica mais fluida do que aquela que existiria no caso de
uma divisão mais bipolar. Outra vantagem é que as crises que afetam a base
econômica de uma zona não se refletem necessariamente de forma severa no
conjunto da economia. Ademais, isso permitiu que as elites econômicas regionais
tivessem múltiplos interesses, contribuindo assim para que nos grupos de pressão
(...) estivessem presentes divisões entrecruzadas, que contribuem para a
moderação nas posições que defendem.
Para Meisel, o caudilhismo não se enraizou na Colômbia precisamente
por causa dessa fragmentação física. Mapas e dados estatísticos facilitam o
4
O vallenato ou “música de acordeão” é parte do folclore musical da região norte da Colômbia, sendo o gênero
de música popular daquele país que alcançou maior difusão nacional e internacional (N. T.)
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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entendimento dessa característica peculiar colombiana. O autor acredita que
“a força econômica das regiões é, a longo prazo, uma fortaleza da Colômbia”.
Patrícia Londoño Vega realizou uma pesquisa histórica que lhe permitiu
descobrir as características da sociedade antioquense, que tantos autores
procuraram desentranhar. E à maneira de Putman, mostra como uma intrincada
rede de organizações, associações e sociedades constituíram a complexa trama
social que fez de Antioquia a região mais pujante e empreendedora da Colômbia.
E, para surpresa de muitos, mostra como a religião católica foi um fator de
modernização nessa sociedade, para concluir assinalando como se poderia
encontrar nesses antecedentes sócio-históricos uma explicação para a capacidade
que teve essa região colombiana não só de resistir ao embate de guerrilhas,
paramilitares e cartéis criminosos, mas também de mostrar sua capacidade de
recuperação, como ilustram agora indicadores econômicos, políticos, sociais e
culturais. Em suas palavras, “talvez seu passado, sua compacta sociabilidade e
os canais relativamente fluidos que comunicavam a iniciativa privada, o governo
e uma instituição da importância da igreja católica na região durante aquela
época (...) tenham desempenhado um papel mais importante do que hoje se
reconhece, na tarefa de responder aos desafios colocados pelas dificuldades
recentes. Talvez seja hora de lhes fazer justiça: piores níveis de desintegração
social teriam podido resultar de uma história diferente.
No caso de Antioquia, é evidente o papel das associações, do alto valor
atribuído à educação, ao papel da mulher e à influência de congregações religiosas
européias.
As tradições anteriores e outras que não se consideraram contribuem para
explicar o surgimento de uma cultura política moderna, de cidadania ampliada,
de maior espírito cívico e de exigência de prestação de contas às autoridades e
de busca de solução pacífica dos conflitos. É a tese que apresenta David Spencer.
Para ele, as mudanças culturais devem acompanhar as mudanças estruturais,
caso se pretenda que o sistema seja funcional. A Colômbia, afirma Spencer, é na
América Latina, o lugar onde está surgindo o exemplo mais extraordinário de
uma nova cultura política, que pode contribuir para o melhor funcionamento de
sua estrutura democrática de tão longa tradição.
Spencer descreve o surgimento deste fenômeno e o compara com o que
ocorre em outros países e regiões. Enquadra essa situação nas possibilidades
abertas pela Constituição de 1991. Para ele, os ex-combatentes do M-19, ao
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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assumirem posições de governantes municipais, fizeram uma valiosa contribuição
porque aplicaram a visão que eles mesmos tinham ajudado a introduzir na nova
Constituição. Os mais bem sucedidos, diz ele, foram Antonio Navarro Wolf,
como prefeito de Pasto, e Rosenberg Pabón, como prefeito de Yumbo, nas
proximidades de Cali. Ambos foram prefeitos que prestaram contas à cidadania,
que deram poderes aos cidadãos e que contribuíram significativamente para a
melhoria de suas comunidades. Seguem-se políticos independentes como Antanas
Mockus, filho de imigrantes lituanos e ex-reitor da Universidade Nacional da
Colômbia, que fez da integridade, da honestidade e da austeridade, assim como
da formação da cidadania, uma preocupação genuína de todos os cidadãos.
Para Spencer, Enrique Peñalosa, outro prefeito bem sucedido em Bogotá, e
Álvaro Uribe são continuadores dos esforços que estão criando esta nova cultura
política. É um êxito admirável, inédito, num país que vive as circunstâncias de
violência que afligiram a Colômbia durante os últimos lustros.
Os conceitos teóricos e os mecanismos de que se utilizaram para propiciar
a construção de uma nova cidadania apresenta-os, no caso de Bogotá, John
Sudarsky, que foi entre nós um pioneiro dos trabalhos acadêmicos que têm a ver
com o desenvolvimento do capital social. Ele traz os exemplos concretos: a
campanha de conservação da água; o respeito à lei e sua aplicação universal; o
respeito à vida; a comunicação apreciativa, ou seja, aquela que reconhece os
avanços realizados e não tanto as deficiências. Frases-chave serviram, diz Sudarsky,
para codificar coletivamente estes temas: “construir sobre o construído”, “não
pedir em particular aquilo que não possas pedir em público” etc. Estas batalhas
em favor de uma nova sociedade exigem – assim Sudarsky termina seu texto –
mais comunicação apreciativa e menos “fracassomania”.
Em 1940, três professores de geografia estadunidenses qualificaram Bogotá
como a capital mais inacessível do novo mundo. O jornal francês Le Monde editou
(1980) um livro que continha perfis de uma dezena de cidades. O capítulo sobre
a capital colombiana intitulava-se “Bogotá: La Peur” (o medo). Nessa mesma época,
uma arquiteta francesa publicou uma breve novela seguida de um ensaio com o
seguinte título “Bogotá: Jungle” (selva). Descreveu um mundo sórdido de crianças
de rua, vítimas das drogas. Júlio Dávila recorda esses diagnósticos e, em seguida,
compara-os com aqueles que, duas décadas mais tarde, publicou o
correspondente do The New York Times para dizer que Bogotá nunca tinha estado
melhor. The Washington Post, um ano depois, qualificaria Bogotá como “uma
agradável anomalia” em um continente “cujas cidades capitais são com freqüência
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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histórias de horror”. Tudo isso serve a Dávila como pano de fundo para explicar
a transformação de Bogotá.
Júlio Dávila se pergunta: que aconteceu na capital colombiana para que
ocorresse uma reviravolta tão radical na percepção de seus cidadãos e de visitantes
ocasionais? Que deu origem – pergunta-se este professor da Universidade de
Londres – às mudanças que levaram Bogotá a merecer recentemente prêmios
internacionais que dão origem a comentários tão favoráveis por parte de
especialistas? Seu trabalho procura ir além das avaliações conjunturais. Sem
ignorar o papel desempenhado por diferentes administrações distritais, ele mostra
que essa transformação se apóia em uma série de profundas mudanças sociais e
materiais que se vinham sucedendo desde décadas anteriores. Assinala também
que houve bases institucionais nacionais, mas principalmente locais, que esses
governantes municipais souberam aproveitar de forma inovadora, com o apoio
fundamental da sociedade. É uma perspectiva que enriquece as colocações de
Spencer e de Sudarsky e que faz justiça a outras dimensões do processo.
Promoção da mulher
Cada dia mais se reconhecem os inegáveis avanços obtidos pela Colômbia
na promoção da mulher. São particularmente relevantes os trabalhos realizados
por The Women’s Leaderships Conference of the Americas, especialmente os referentes
a sua incorporação ao exercício do poder político e à administração pública.
O capítulo escrito por Maria Consuelo Cárdenas concentra-se principalmente
no papel que as mulheres estão desempenhando no setor empresarial colombiano
e na forma tão particular como estão harmonizando esse trabalho com outras
esferas de sua atividade vital. Para ela, esse comportamento se enquadra na
concepção que o filósofo francês Gilles Lipovetsky denomina “a terceira mulher”.
A Colômbia, afirma, é o país com a maior proporção de mulheres executivas
de toda a América Latina. Elas ocupam essas posições por sua preparação
profissional e seu excelente desempenho, acrescenta. Diz sem rodeios que a
Colômbia é claramente um país exemplar neste campo. A particularidade que
Consuelo Cárdenas ressalta é a rejeição a uma ética do trabalho alienante, que
perde de vista outros valores da pessoa e da família. Nossas executivas, diz,
estão questionando, com suas práticas na vida quotidiana, esta “ética do
trabalho”. Várias estão dispostas até a “renunciar e sair do trabalho”, se esta for
a única forma de proteger a própria vida e as relações familiares. Assim, questiona
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
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a importância absoluta do trabalho, seu horário e suas exigências. Uma das forças
do nosso país, diz ela, é o equilíbrio que as colombianas foram estabelecendo
entre o estilo de liderança e o equilíbrio lar–trabalho.
Respostas a algumas ameaças à governabilidade
democrática
Ricardo Santamaría descreve as características das manifestações de
violências sofridas pela Colômbia e mostra como, durante sete administrações
(desde 1981), o governo e a sociedade têm mantido aberta uma opção de
reconciliação que se tem caracterizado pela generosidade. Explica como, durante
as administrações Barco e Gaviria, vários grupos insurgentes (M-19, Quintín
Lame, EPL, etc.) reintegraram-se à vida civil e à luta política e as dificuldades
que bloquearam saídas políticas negociadas com as FARC e o ELN e as
Autodefesas. Assinala como o negócio das drogas ilícitas catapultou o poder
dos grupos armados ilegais, ao mesmo tempo em que exacerbou outros
problemas, para logo descrever os mais recentes processos de paz e indicar
aquilo que poderia ocorrer no futuro. “O que os colombianos sabemos hoje –
diz Santamaría – é que nunca, por maior que seja o desafio, o terrorismo será
capaz de dobrar a sociedade e suas instituições” e “(...) também sabemos que os
processos de paz na Colômbia foram a melhor pedagogia para a democracia.
Tornaram-se fiadores da tolerância e ampliaram o espaço político. Os que deles
participaram demonstraram que a força de suas idéias é superior à de suas armas.
Assim, o que fez a sociedade colombiana foi aprofundar a democracia para
construir a paz e, ao construir essa paz, encontrou o caminho para continuar
aperfeiçoando sua democracia.
O analista espanhol Román D. Ortiz, que viveu na Colômbia durante
2003–2004, faz uma cuidadosa reflexão pessoal acerca dos fatores que
converteram a Colômbia, na década dos anos 90, em um “país problema”.
E ao fazê-lo, estende sua análise comparativa aos demais países da América
Latina, mas em particular à região andina. Para o professor Ortiz, os problemas
de segurança interna na Colômbia estão associados a processos de
modernização avançados, porém inconclusos.
A década dos 90 – diz Ortiz – é o período durante o qual se alcança “o
máximo grau de crise”, e logo vem o processo de recuperação. Román Ortiz
Fatores de força da Colômbia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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explica em detalhe como ocorreu o fortalecimento dos grupos armados ilegais.
Em essência, um processo de internacionalização do seu financiamento, do
tipo de armamento que obteve e da assessoria que recebeu de redes ilegais
internacionais etc. Da mesma forma, examina como a violência adquiriu maior
visibilidade, como esta circunstância afetou a vida interna e as relações
exteriores. O processo de modernização que se realizou tanto em matéria
constitucional, institucional, comercial e financeira criou, segundo ele, uma
transição que contribuiu para aumentar a percepção de instabilidade. “A
consolidação do novo arranjo constitucional e o paulatino encerramento do
processo de descentralização administrativa devolveram a estabilidade ao
aparelho estatal e tornaram possível um funcionamento eficaz e mais ordenado
da burocracia”. Essas circunstâncias, somadas ao fortalecimento dos
instrumentos de segurança, combinaram-se para criar um círculo virtuoso que
se traduziu em melhorias da ordem pública e da vida quotidiana dos cidadãos.
Finalmente, essa é a conclusão. A administração Uribe “obteve resultados
rapidamente”, a tal ponto que “a Colômbia poderia chegar a converter-se em
um pilar estratégico” para o resto da região. Isso não está assegurado e sua
materialização dependerá de outros fatores.
A resistência civil
É de todos sabido que a Colômbia sofreu um prolongado calvário. Não
creio que exista na América Latina um país que tenha suportado maior
adversidade. O que aconteceu nos últimos quarenta anos é realmente uma
história de horror. Os diversos capítulos de Fortalezas da Colômbia I e II
visaram a precisamente mostrar como o país superou essa terrível circunstância
e a explicar quais são as tradições, as instituições, os fatos políticos, econômicos
e sociais que mantiveram nossa democracia e permitiram um apreciável
desenvolvimento econômico e social. O capítulo de Juanita León é realmente
impressionante. Com base em pesquisas muito judiciosas que realizou, não
tanto em bibliotecas como no próprio campo de batalha, publicou livros sobre
o tema e, com base nesses trabalhos, elaborou este capítulo: “A resistência
civil diante de grupos armados ilegais”.
Juanita León transmite uma sensação de tudo o que houve de coragem e
de heroísmo no comportamento de muitas comunidades colombianas. Dir-se-
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Fernando Cepeda Ulloa
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ia que todo o comportamento dos colombianos foi de resistência civil. De outra
maneira não se entende que o ritmo de trabalho, de criatividade empresarial e
artística e o entusiasmo, que em todos os momentos caracterizam os colombianos,
não haja sofrido arrefecimento, não obstante mais de vinte e cinco mil seqüestros
e incontáveis genocídios, assassinatos e abusos grotescos, que violam os direitos
humanos e as normas mais elementares do Direito Internacional Humanitário.
Juanita León o diz com beleza ao começar o seu capítulo, recordando a
deslumbrante conclusão do Barômetro Mundial da Felicidade, um projeto da
Universidade de Erasmus de Roterdam, na Holanda, que mede quão contentes
as pessoas se sentem com sua vida em diversas partes do mundo. “Alguns”, diz
Juanita León, “interpretam esta circunstância como uma dolorosa e crua
indiferença ante o sofrimento de tantos colombianos vítimas da guerra. É possível
que em alguns casos seja assim. No entanto, estou convencida de que ser feliz,
apesar do conflito armado, é a principal forma de resistência dos colombianos”.
Conclusão
É impossível recolher em um texto breve o conteúdo de dois livros que
somam quase mil páginas. Creio que se conseguiu o objetivo: explicar os fatores
que contribuíram para manter a democracia colombiana e para obter taxas de
crescimento sustentadas em meio a ameaças tão graves e tão persistentes à
institucionalidade. Deixaram-se de lado, para não abundar em argumentos, outros
elementos tão significativos, como a criatividade artística, científica, musical; o
papel tradicionalmente desempenhado pelo amor dos colombianos pelas
bibliotecas, pela educação, pelos museus, pelo esporte, que são fontes de força
que contribuem para alimentar a auto-estima. É este repertório de virtudes, se
assim se pode dizer, que hoje se está revivendo e que dão uma nova aparência e
impulso à sociedade colombiana para obter os impressionantes indicadores de
progresso que levaram à reeleição imediata do presidente Uribe. Um fato político
de grande significação, que não encontra antecedentes em nossa história. Sem
dúvida, os fatores de força da Colômbia cumpriram, uma vez mais, a tarefa de
conduzir o país pelo caminho certo.
Tradução: Luiz A. P. Souto Maior
Revisão: Regina Furquim
DEP
Política exterior e segurança democrática e humana
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
78
definição de uma política de Estado em matéria de relações
internacionais é um imperativo para o estado equatoriano e para todos os
setores da sociedade. Essa política de Estado, que, como tal, deve transcender
a governos, ideologias, grupos de poder e interesses políticos e partidários,
deverá ser formulada com base em ampla consulta nacional e ser fruto do
consenso de todos os setores do país.
Os problemas de desenvolvimento, a angustiante situação de pobreza,
abandono e desatenção sofridos por amplos setores da população; a crescente
instabilidade da fronteira norte, a permanente instabilidade política, os graves
problemas de governabilidade, a crise institucional que o país atravessa, a
corrupção, a perda de valores de nossa sociedade; e no âmbito externo, a
situação da segurança regional, configuram um panorama de grave risco para
Política exterior e
segurança democrática
e humana
Diego Ribadeneira Espinosa
*
A
* Vice-Ministro de Relações Exteriores da República do Equador.
gabviceministro@mmrree.gov.ec
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Diego Ribadeneira Espinosa
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a segurança do Equador, que poderia igualmente aplicar-se a muitos países da
região e que exige a urgente definição de uma política de Estado coerente,
consensual e centrada nos altos interesses nacionais. Para que sua eficácia esteja
assegurada, essa política precisa ser eminentemente democrática e, por isso,
sua execução deverá contar com a participação ativa dos mais amplos setores
da sociedade civil.
Os graves problemas gerados nos últimos anos pela vulnerabilidade
humana tornam imperativo o planejamento de uma política exterior para o século
XXI que confira ênfase especial aos conceitos de segurança humana, segurança
cidadã e sua conseqüência, a segurança democrática.
O conceito de segurança é uma das questões que tiveram rápida evolução
nos anos recentes e deve avançar de maneira decidida, passando da ênfase
preeminente e exclusiva nos temas de segurança territorial e estatal para uma
ênfase muito maior na segurança da população.
A segurança democrática está intimamente relacionada com a eficiência
das instituições, que necessariamente devem estar a serviço das pessoas. Dessa
maneira os seres humanos, sujeitos de direitos e obrigações, ficam colocados
como finalidade última do Estado e das instituições democráticas. Segundo essa
concepção, a questão da segurança democrática serviria também de ponte entre
a segurança interna e a segurança internacional.
A fim de delimitar o tema, convém recordar que o primeiro documento
em que o termo “segurança humana” foi cunhado é o Relatório sobre
Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), relativo ao ano de 1994. O conceito foi reforçado
durante a Cúpula do Milênio das Nações Unidas.
Embora no plano internacional a idéia de segurança – em geral – se
encontre restringida ao Estado, nos últimos anos passaram a ter importância
cada vez maior, devido à vulnerabilidade humana, aos conceitos de segurança
humana, segurança cidadã e sua conseqüência, a segurança democrática. Uma
concepção moderna dessa natureza preenche um vácuo fundamental na
orientação do Estado e na colaboração internacional.
Se concordamos com essa reflexão, podemos também concordar que um
conceito atual de segurança internacional poderia basear-se na idéia de uma
segurança interna e internacional baseada no ser humano, de preferência na
enteléquia exclusiva do Estado.
Política exterior e segurança democrática e humana
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
80
Pelo que ficou dito, podemos reconhecer o caráter multidimensional da
segurança, dentro de um critério amplo e integrador, focado na vida e na
dignidade das pessoas, o que, visto dessa perspectiva, produz efeitos e
conseqüências tais como uma autêntica projeção que zele pelo acesso real de
todos os seres humanos a todos os direitos humanos, tanto civis quanto políticos
e econômicos, inclusive os benefícios oferecidos pelo desenvolvimento. Isso
implica também novos compromissos e responsabilidades da sociedade
internacional a fim de rever suas práticas, reconhecendo a vulnerabilidade do
ser humano, de forma a poder protegê-lo e oferecer-lhe segurança diante das
antigas e novas ameaças domésticas e globais, crônicas e inesperadas.
É perfeitamente factível a construção de um sistema justo de segurança,
que torne os valores e princípios superiores compatíveis com interesses práticos
dos países. A paz e a segurança são bens públicos internacionais, cuja vigência e
praticabilidade criam novas opções de ação e cooperação, as quais, sem debilitar
a soberania dos Estados, permitem aproximação e cooperação em termos de
co-responsabilidade, pois o direito de cada Estado termina onde se inicia o
exercício do direito de outro Estado.
Uma manifestação intimamente ligada às atuais vulnerabilidades do ser
humano, sobretudo na América Latina e em muitos países africanos, é o
fenômeno das migrações, que fazem parte da evolução humana e adquiriram
vigor inusitado em conseqüência da globalização, das desigualdades nos níveis
de desenvolvimento, das disparidades nos salários recebidos pelos trabalhadores
nos países desenvolvidos e em desenvolvimento e, principalmente, do incremento
da pobreza que afeta uma elevada porcentagem da população latino-americana.
No Equador, nos últimos oito anos, ocorreu uma emigração maciça sem
precedentes na história do país. Aproximadamente três milhões de equatorianos
residem no exterior, o que equivale a cerca de 25% da população nacional. O
Equador se converteu, em proporções crescentes, em exportador de mão-de-
obra qualificada e não-qualificada aos Estados Unidos, à Espanha e à Itália, e em
menor medida a novos destinos como o Canadá, o Reino Unido, a Holanda e a
Alemanha.
No caso equatoriano, as causas que impeliram essa maciça emigração
derivam da instabilidade política e das crises políticas e econômicas vividas pelo
país e principalmente a que desaguou na crise financeira de 1999, ano em que o
PIB se reduziu em 30% e a inflação chegou a cerca de 300%. A tudo isso,
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Diego Ribadeneira Espinosa
81
acrescentaram-se a dolarização e desastres naturais como o fenômeno El Niño,
resultando em um empobrecimento drástico da população.
O profundo significado humano da emigração e a necessidade de
estabelecer as bases de um tratamento integral de sua problemática tornam
necessário desenvolver uma política tendente a fortalecer a presença do Estado
nas tarefas de defesa dos direitos humanos e liberdades dos emigrantes – em
busca de sua plena organização no estrangeiro em condições de regularidade,
de sua integração nos países de destino e de sua vinculação com o Equador –, e
a promover a atenção a suas famílias por meio de programas de assistência
social, apoio à reunião familiar e reinserção no Equador, além de procurar o
fortalecimento das relações entre o Estado equatoriano e os países receptores
de emigrantes, com a finalidade de realizar ações coordenadas e conjuntas para
a execução de programas em benefício dos emigrantes.
A enorme transcendência social, econômica e política do fenômeno da
emigração exige a concertação de uma política migratória sul-americana, cujas
linhas principais deveriam ser: livre mobilidade das pessoas, incentivos e ações
para o retorno dos emigrantes, assistência e proteção dos direitos humanos dos
emigrantes, remessas e mecanismos para o desenvolvimento e migrações e
negociações internacionais.
Os grandes objetivos práticos dessa política sul-americana de migrações
seriam: velar pelo respeito dos direitos dos emigrantes em conformidade com as
convenções e instrumentos internacionais em vigor; proporcionar-lhes assistência
no quadro das leis e regulamentos dos países receptores; buscar a regularização
dos emigrantes não- documentados; proteger suas famílias e propiciar sua
reunião; combater a exploração trabalhista, o tráfico de pessoas, o tráfico de
emigrantes e delitos conexos (urge ampliar as penas pelos delitos praticados
pelos coyotes); apoiar o fortalecimento das associações de emigrantes no exterior;
estimular a aplicação do princípio de responsabilidade compartilhada nas
relações internacionais em matéria migratória, particularmente por meio de
projetos de co-desenvolvimento; concertar acordos bilaterais ou regionais para a
regulamentação e organização dos fluxos migratórios; propiciar cooperação
internacional eficaz em matéria de repatriações; impulsionar a contribuição da
migração para o desenvolvimento; amenizar os problemas internos que dão
origem à emigração irregular, e, finalmente, fortalecer as relações com os Estados
receptores com o objetivo de coordenar ações conjuntas para a elaboração e a
execução de planos, programas e projetos em benefício dos emigrantes.
Política exterior e segurança democrática e humana
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
82
Além disso, é extremamente necessário que após a concertação e
aprovação dessa política regional sobre migrações, o Equador e todos os países
sul-americanos executem uma ação sistemática e coordenada a fim de incluir a
problemática das migrações nos foros internacionais pertinentes, fortalecendo
ao mesmo tempo a moldura jurídica internacional para a defesa dos direitos
dos emigrantes. Nesse contexto, será importante que os países-membros da
Comunidade Sul-americana de Nações atuem no sentido de assegurar sua
participação nos seguintes instrumentos internacionais que garantam os direitos
dos emigrantes, dos quais o Equador é parte: Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos, Convenção Internacional contra a Delinqüência Organizada
Transnacional e seus Protocolos contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Terra,
Mar e Ar, e para Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de Pessoas; as
Convenções contra a Tortura, a Discriminação contra a Mulher, a Discriminação
racial; a Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de todos os
Trabalhadores Migrantes e suas Famílias e vários convênios referentes aos
trabalhadores migrantes acordados no âmbito da Organização Internacional
do Trabalho.
Outro elemento essencial de uma política exterior com ênfase na segurança
democrática e humana é a promoção dos direitos humanos. A esse respeito,
cabe recordar que a Constituição Política do Equador consagra como o mais
elevado dever do Estado o respeito, a defesa e a promoção dos direitos humanos.
Nesse contexto, o governo do Equador expediu em junho de 1998 o “Plano
Nacional de Direitos Humanos do Equador”, documento promovido
permanentemente e desde suas origens pelo Ministério das Relações Exteriores,
que se destina a prevenir, erradicar e punir a violação dos direitos humanos no
país. Dessa forma, a Chancelaria equatoriana não apenas zela pelo respeito aos
direitos humanos no país, mas também mantém a comunidade internacional e
os organismos internacionais competentes na matéria informados acerca das
ações adotadas pelo Equador para assegurar o respeito a esses direitos.
Ao Plano Nacional dos Direitos Humanos acrescentou-se um Plano
Operacional sobre os Direitos dos Migrantes, Estrangeiros, Refugiados,
Deslocados e Apátridas, para cuja execução as entidades governamentais, em
conjunto com a sociedade civil e com a cooperação técnica internacional,
encontram-se realizando estudos destinados à elaboração de reformas da
regulamentação referente a migrantes em harmonia com as normas
constitucionais e os instrumentos internacionais.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Diego Ribadeneira Espinosa
83
O Serviço Exterior Equatoriano, como instituição profissional e
permanente da República, que sofreu com menos severidade os efeitos da grave
crise institucional que o país atravessa, tem, por esses motivos, uma dupla
responsabilidade perante a sociedade e está sendo chamado a cooperar com as
demais instituições nacionais a fim de suprir suas debilidades, sem descurar, por
sua vez, de suas obrigações de executor das políticas estabelecidas pelo Chefe
do Executivo, no exterior.
Nesse sentido, a Chancelaria deve converter-se – e de muitas formas já
iniciou esse processo – em um canal de comunicação entre o governo central e
a comunidade nacional, a fim de que, por meio de sua prática no diálogo, sua
visão de conjunto e sua experiência de vivências no exterior, além da percepção
que tem a sociedade de sua neutralidade diante das disputas domésticas, possa
constituir uma ponte para ajudar a suprir as grandes necessidades e resolver os
problemas que afetam o desenvolvimento e o bem-estar da população.
Nesse esforço, o Ministério das Relações Exteriores deve buscar permanente
coordenação e concertação com outro órgão profissional e permanente, de
importância vital para o país, como são as Forças Armadas. Assim juntos, o
setor externo e a frente militar aplicarão uma estratégia de cooperação com a
população, a fim de conseguir do governo central e dos diversos ministérios
atenção para as necessidades e solução para os graves problemas do país.
Para o cumprimento dessas tarefas, a Chancelaria deve perseguir, além
disso, uma crescente aproximação com todos os setores da população do país e
especialmente com os menos favorecidos. A credibilidade das ações que venham
a ser empreendidas pelo Ministério das Relações Exteriores dependerá do grau
de envolvimento de seus funcionários com os setores mais amplos da população
equatoriana. Nesse sentido, consideramos de extrema importância estender a
representação da Chancelaria ao maior número possível de províncias, em todo
o território equatoriano.
Para esse mister, o Equador deverá buscar a ajuda de países amigos, a fim
de que a gestão da cooperação internacional, tema do qual o Ministério das
Relações Exteriores se encarrega por intermédio do Instituto Equatoriano de
Cooperação Internacional (Ineci), se converta em instrumento essencial, que lhe
permitirá, por um lado, canalizar os esforços para atender às necessidades de
amplos setores da população e, por outro, interagir com a sociedade civil, as
organizações sociais e fundamentalmente com os governos seccionais, que
Política exterior e segurança democrática e humana
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
84
felizmente constituem uma garantia de eficiência, continuidade e estabilidade.
Nesse contexto, a Chancelaria deverá buscar uma aliança, que de certa maneira
já existe em muitos temas, com a Associação de Municipalidades do Equador
(AME), a Corporação de Conselhos Provinciais (Concope) e o Conselho
Nacional de Juntas Paroquiais do Equador (Conajupare).
Outro setor sumamente importante na estrutura de uma política de
segurança são os comunicadores sociais, que, como orientadores da opinião
pública, têm uma grande responsabilidade perante a sociedade. A Chancelaria
deverá adotar uma política de grande abertura junto aos meios de comunicação
para assegurar não somente a difusão das ações empreendidas no apoio à
população, mas também a afirmação da identidade nacional e a recuperação da
auto-estima do cidadão equatoriano, que lamentavelmente, por tudo que
aconteceu na última década, perdeu a confiança nas instituições da democracia.
Paralelamente, o Equador deverá participar ativamente dos processos
bilaterais e regionais que procuram reforçar a segurança das zonas de integração
fronteiriça e, ao mesmo tempo, dar forma a uma política de segurança andina,
amazônica e sul-americana.
Nessa ordem de idéias, a política exterior, cujo principal órgão definidor
e executor é o Ministério das Relações Exteriores, perseguirá os seguintes grandes
objetivos gerais:
Aplicação de uma política exterior a serviço da paz, da democracia,
do desenvolvimento e da integração, que reafirme os princípios de
soberania, garanta a independência e integridade territorial e promova
a inserção do Equador em todos os continentes e mercados
internacionais, por meio de uma estreita vinculação entre a ação externa
e as prioridades nacionais de desenvolvimento, com ênfase especial nos
direitos humanos e sobretudo na defesa dos direitos dos emigrantes.
Promoção e fomento de uma cultura de diálogo, de concertação e de
participação cidadã, que contribua para o melhor exercício das funções
do Estado para superação dos problemas de governabilidade.
Promoção de um clima de paz e segurança de âmbito mundial,
hemisférico, andino, sul-americano e fundamentalmente nacional, a fim
de criar um ambiente de estabilidade política e de fomento da confiança,
indispensável para o desenvolvimento, a erradicação da pobreza e a
segurança do país.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Diego Ribadeneira Espinosa
85
Promoção do respeito aos direitos humanos, dos valores da democracia
e do estado de direito.
Estímulo à luta contra a corrupção e o narcotráfico, tanto na perspectiva
nacional quanto no plano das relações internacionais.
Participação ativa nos processos de integração física, política, econômica
e social, particularmente no âmbito andino e sul-americano.
Desenvolvimento de uma política preferencial com os países vizinhos,
com o objetivo de promover o desenvolvimento harmônico das áreas
fronteiriças e criar capacidades de iniciativa, negociação e diálogo.
Estímulo ativo ao desenvolvimento sustentável das regiões situadas na
faixa de fronteiras norte e sul e sua integração com os espaços similares
dos países vizinhos.
Estímulo ao processo de formação das novas gerações diplomáticas, a
fim de assegurar a ação eficiente de uma diplomacia nacional que promova
e defenda os interesses permanentes do Estado, proteja e apoie as
comunidades e empresas equatorianas no exterior e cumpra devidamente
os objetivos de promoção comercial, captação de investimentos e de
recursos de cooperação internacional, convertendo-se, assim, em
instrumento para o desenvolvimento e a segurança do país.
Estímulo às políticas migratórias globais que incorporem a promoção
de oportunidades de trabalho e o devido aproveitamento das remessas
dos emigrantes, mediante a formação de pequenas e médias empresas
de tipo familiar que assegurem o retorno dos emigrantes e o bem-estar
e o desenvolvimento das próximas gerações.
Colaboração, de forma sistemática, com todos os setores do Estado e
da sociedade nas políticas de afirmação da identidade nacional, a fim
de consolidar uma nação equatoriana integrada, não-regionalista,
respeitosa de seus valores, de seu patrimônio histórico e de sua
diversidade étnica e cultural.
Preservação da estreita colaboração entre a política exterior e a frente
militar e o sistema de defesa nacional, para a definição e a proteção dos
interesses permanentes do Estado.
Tradução: Sérgio Duarte
Revisão: Regina Furquim
DEP
A nova ordem humana global de Cheddi Jagan
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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Nova Ordem Humana Global de Cheddi Jagan surgiu em um momento
peculiar no curso dos acontecimentos na Guiana e no resto do mundo. A pobreza
era imensa; o peso da dívida dos países em desenvolvimento crescia e sua
administração se tornara impossível; a dívida da Guiana, de 2 bilhões de dólares,
consumia 94 centavos de cada dólar ganho, as prescrições do FMI haviam
reduzido drasticamente o nível de vida de todos os guianenses, porém com
maior impacto sobre os pobres e os menos favorecidos, intensificando assim a
pobreza e o desemprego. Cada vez mais essas prescrições eram consideradas
“um paliativo, e não uma cura”. Ao mesmo tempo, a ideologia da globalização
tornara-se a nova panacéia para os males do mundo, tanto para os países
desenvolvidos quanto para os em desenvolvimento.
Na Guiana, as prescrições do FMI haviam começado a tornar-se
dominantes, entre as quais o fim dos subsídios, a redução dos incentivos
governamentais, o equilíbrio orçamentário, o congelamento dos salários, altas
taxas de juros e privatizações. As devastadoras conseqüências foram reveladas
A nova ordem humana
global de Cheddi Jagan
Ralph Ramkharan*
* Ex-Presidente da Assembléia Nacional da República Cooperativista da Guiana.
A
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Ralph Ramkharan
87
no relatório McIntyre e no discurso do ministro das Finanças sobre o
orçamento, em 1991. McIntyre mostrou que a Guiana era o país mais pobre
do Caribe depois do Haiti, e Greenidge disse que a nação se encontrava em
bancarrota. Em 1992 o governo mudou, e Cheddi Jagan aproveitou a
oportunidade para apresentar, em um documento, as idéias que vinha
desenvolvendo havia vários anos.
Como se sabe, a principal ambição de Cheddi Jagan era a eliminação da
pobreza. Considerava ele, com razão, que esse flagelo constitui uma afronta e
uma enfermidade no mundo em desenvolvimento e que poderia ser eliminado
mesmo no contexto da existência dos estados capitalistas desenvolvidos. Em
sua opinião, a pobreza destrói “o vigor e a iniciativa do indivíduo e priva a
sociedade de incalculáveis recursos humanos num momento crítico. Sua
eliminação trará riqueza à comunidade e proporcionará uma colheita de energia
e capacidades. Se não tratarmos de evitar sua expansão, a pobreza e a fome
minarão o tecido e a segurança do Estado democrático”.
Jagan compreendeu que políticas realistas e racionais, aceitáveis para o
mundo desenvolvido e por ele apoiadas, poderiam eliminar a pobreza. Afirmou
que “nosso tempo exige idéias claras a fim de diagnosticar os males do mundo,
verificar as causas profundas dos crescentes problemas da sociedade e formular
as medidas a serem tomadas – um conjunto de princípios orientadores e um
programa de ação”.
A visão de Cheddi Jagan era abrangente e ousada. Ele havia passado
cinqüenta anos estudando os problemas econômicos e escreveu muitos livros
sobre o assunto. Sempre entendera e reconhecera que a Guiana não poderia por
si só obter o apoio e os recursos necessários para convencer os países
desenvolvidos a mudarem de rumo. Sabia da importância de desenvolver uma
estratégia capaz de granjear ampla aceitação. Afirmou: “uma estratégia de
desenvolvimento para a erradicação da pobreza tem de ser global e positiva.”
Em discurso perante a Assembléia Geral das Nações Unidas, Jagan disse
que considerava “crucial” a época atual, caracterizada pela globalização e
liberalização dirigidas pelas empresas transnacionais, com uma ideologia
dominante, desemprego e subemprego inaceitavelmente elevados, pobreza
crescente e hiato cada vez maior entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento, deficits crônicos nos orçamentos e balanços de pagamentos,
desintegração social, até mesmo no seio da família, distúrbios e convulsões por
A nova ordem humana global de Cheddi Jagan
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
88
motivos de raça, etnia, cultura e religião tribal, demagogia e confusão que geram
aumento do fascismo e do racismo.
Foi uma das primeiras vozes a argumentar que a dívida do Terceiro Mundo,
tema de seus estudos e obras escritas desde 1970, era impagável e devia ser
anulada, pois asfixiava os esforços de reconstrução e desenvolvimento humano.
Calculou, na época, em 500 bilhões de dólares as perdas decorrentes do
comércio internacional injusto e não eqüitativo, importância igual a dez vezes
o total da assistência oficial para o desenvolvimento, vinda dos países
desenvolvidos. Concluiu que “esses fatores representam uma grave ameaça
para a paz e segurança individual e internacional. Conseqüentemente, é urgente
uma Nova Ordem Humana Global, como complemento da Agenda das Nações
Unidas para o Desenvolvimento. Uma Nova Ordem Humana Global deve ter
como o objetivo o desenvolvimento humano: atender às necessidades básicas
das pessoas, a elevação cultural e um meio-ambiente saudável seguro”.
A Nova Ordem Humana Global propõe mudanças que levem a:
1. Estabelecer instituições globais consentâneas com as dimensões globais
da sociedade humana existente.
2. Lograr, para o sistema das Nações Unidas, um papel mais central na
gestão econômica global e o acesso a recursos financeiros amplos.
3. Direcionar o foco do FMI e do Banco Mundial no desenvolvimento
humano, diferentemente dos outros meios de desenvolvimento,
retornando a suas atribuições originais.
4. Estabelecer uma nova Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD)
a fim de canalizar, para os países mais pobres, dois terços da AOD em
vez de um quarto.
5. Aceitar o desenvolvimento humano sustentável como objetivo atingível.
6. Destinar um papel mais amplo para as organizações não-governamentais
nas instituições internacionais.
7. Reduzir as despesas militares e utilizar o “dividendo da paz” para alívio
da dívida; introduzir o “imposto Tobin” de 0,5% sobre as transferências
especulativas de moeda.
8. Proporcionar comércio internacional eqüitativo tanto em bens quanto
em serviços, a fim de acelerar o crescimento global e permitir
distribuição equânime dos benefícios.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Ralph Ramkharan
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Dez anos já se passaram desde o lançamento da Nova Ordem Humana
Global. Essa foi a contribuição da Guiana e de Cheddi Jagan à luta contra a pobreza,
um combate que durou toda a sua vida. Que conseguimos fazer até agora?
Apesar da trágica situação internacional hoje prevalecente, vimos algumas
iniciativas durante o ano passado, mas há uma quantidade imensa de coisas que
precisam ser feitas.
As Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDM), adotadas pelas Nações
Unidas em setembro de 2005, estabeleceram uma agenda de dez anos com
objetivos claros, que se espera orientem as estratégias tanto dos países
desenvolvidos quanto dos em desenvolvimento no planejamento do combate à
pobreza. As MDM propõem erradicar a pobreza e a fome; proporcionar
educação primária universal; promover a igualdade entre os sexos e dar maior
poder às mulheres; reduzir a mortalidade infantil; aperfeiçoar a saúde materna;
combater HIV/Aids, malária e outras enfermidades; assegurar a preservação
do meio ambiente e fazer progredir uma parceria global para o desenvolvimento
– tudo isso até a data-alvo de 2015.
Embora essas metas sejam ambiciosas e os recursos para atingi-las não
tenham sido identificados, durante o ano passado os países do G-8 concordaram
em cancelar as dívidas de 18 dos países mais pobres do mundo, num total de 40
bilhões de dólares. A Guiana já vinha se beneficiando dessa providência. É um
início, mas sua implementação tem sido severamente criticada.
Em seu livro O fim da pobreza (The End of Poverty), Jeffrey Sachs diz:
“infelizmente, a abordagem da comunidade internacional continua a ser
incoerente na prática. Por um lado, anuncia objetivos ousados, e até mesmo os
meios de atingi-los, como a promessa de maior assistência de parte dos doadores,
feita no Consenso de Monterey. Mas quando se trata da prática propriamente
dita, quando se põe o pé na estrada, nos planos de redução da pobreza, as Metas
de Desenvolvimento do Milênio são expressas apenas em vagas aspirações, e
não em objetivos operacionais. Os países recebem instruções para tratar de seus
interesses sem qualquer esperança de cumprir as MDM. O FMI e o Banco Mundial
mostram ter dupla personalidade, promovendo as MDM nos discursos públicos,
aprovando programas que não as realizarão e reconhecendo em privado que, se
as coisas permanecerem como estão, elas não poderão ser cumpridas”.
Jeffrey Sachs é um famoso economista especializado em estratégias de
desenvolvimento e está absolutamente convencido de que a pobreza e os
A nova ordem humana global de Cheddi Jagan
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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problemas do desenvolvimento podem ser resolvidos com as estratégias
corretas e com o comprometimento do mundo desenvolvido.
Por insistência de países doadores, foram preparadas Estratégias de
Redução da Pobreza para a Guiana. Eis o que disse o professor Sachs a respeito
delas: “sabendo que provavelmente haverá certa importância para a ajuda,
espera-se que o país recebedor se empenhe numa ampla consulta pública, a
fim de preparar o plano de redução da pobreza, inclusive a forma de utilização
da ajuda. A insistência da comunidade internacional na ampla participação na
preparação desses planos pretende atingir quatro objetivos principais: 1) melhor
priorização dos planos de investimentos; 2) melhor conhecimento dos planos
de redução de pobreza por parte do público; 3) mobilização das ONGs e
grupos comunitários no combate à pobreza; e 4) fomento de mais
“anticorpos” políticos contra a corrupção. Tudo isso está realmente muito
bem, e tem êxito razoável em suscitar a participação do público. O que falta
no processo são os laços práticos entre os arranjos atuais: o país defronta-se
com um fait accompli – ‘Esta é a importância que vocês receberão para
assistência’. Em vez disso, o processo deveria ser virado ao contrário. O
primeiro passo deveria ser saber do que o país realmente necessita em termos
de assistência externa. Depois disso, o FMI e o Banco Mundial deveriam tratar
de levantar a importância necessária com os doadores”.
O professor Sachs recomenda uma estratégia de redução da pobreza
baseada nas Metas de Desenvolvimento do Milênio. Deveria constar de cinco
partes, a saber, 1) um diagnóstico diferencial, indicando as políticas e
estratégias necessárias para que o país atinja as MDM; 2) um plano de
desenvolvimento, mostrando as dimensões, prazos e custos dos investimentos
necessários; 3) um plano financeiro, para custear o plano de investimento;
4) um plano para os doadores, que especifique seus compromissos multianuais,
a fim de cobrir os hiatos de financiamento das Metas do Milênio; 5) um plano
de gestão pública, que defina os instrumentos de governança e administração
pública que auxiliarão a implementação da ampla estratégia de investimento.
Existe, evidentemente, de parte de peritos de renome mundial, como o
professor Sachs, e de personagens públicos como Bono, o cantor pop, que
escreveu o prefácio do livro, um crescente reconhecimento da convicção que
Cheddi Jagan acalentou durante toda a sua vida: de que é possível eliminar a
pobreza com os recursos atualmente disponíveis e com as políticas corretas.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Ralph Ramkharan
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Ainda que tenha havido mínimo sucesso, ocorreram falhas graves. O recente
fracasso da Rodada Doha de negociações comerciais representou grande
decepção para os países em desenvolvimento, que esperavam que a redução das
barreiras comerciais contribuísse em ampla medida para o próprio crescimento
econômico e para o desenvolvimento da economia mundial.
Apesar dos muitos motivos de desalento, inclusive a guerra no Iraque e a
continuação das hostilidades em Israel e no Líbano, tem havido algum movimento,
embora pouco significativo, da situação em que a pobreza era considerada o
destino de países “inferiores” para o ponto em que hoje se reconhece a
responsabilidade e o dever dos países desenvolvidos de fazer muito mais para
eliminar esse flagelo. Os países em desenvolvimento têm idêntica responsabilidade
de arrumar a própria casa e devem exercer essa responsabilidade.
As esperanças de Cheddi Jagan, tais como vislumbradas na Nova Ordem
Humana Global, ajudaram a apontar o caminho, quando muitos não estavam
olhando, ou não queriam ver. Esperemos que seus sonhos para a Guiana se
realizem em breve.
Tradução: Sérgio Duarte
Revisão: Regina Furquim
DEP
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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ntrodução
O Paraguai, ao contrário dos demais países do continente, sofre o peso de
duas décadas perdidas, a dos anos 80 e a dos anos 90, sem reformas e sem
experiência democrática. Sua economia é fundamentalmente agropecuária, com
pouca diversificação da produção, baixa produtividade, alto grau de
desigualdade, fraco desenvolvimento do mercado e do Estado. Desde o advento
da democracia (1989), a aplicação das medidas reformistas tem sido sempre
parcial, descontínua e reversível. Essa situação resulta das limitações – por
incapacidade e por interesses particulares – do estamento político e da burocracia
estatal para traçar uma nova estratégia, capaz de romper com o antigo modelo
econômico e político.
Situação econômica e
perspectivas do Paraguai
Dionisio Borda
*
I
* Ex-Ministro da Fazenda da República do Paraguai e Diretor do Centro de Análise e Difusão da Economia
Paraguaia (Cadep).
Os resultados atuais (2003-2005) permitiram restabelecer o equilíbrio
macroeconômico, pôr em ordem as finanças públicas e iniciar uma reativação
econômica incipientes, depois de uma longa crise econômico-política (1982-2002);
apesar disso, não se vislumbra uma estratégia de crescimento econômico sobre
novas bases produtivas nem políticas sociais consistentes para reduzir a pobreza
e a desigualdade. Desde a transição para a democracia, iniciada em 1989, o
divórcio entre resultados econômicos e resultados eleitorais bloqueia o surgimento
de um novo modelo de desenvolvimento e de um novo modelo político para criar
um crescimento duradouro e uma verdadeira democracia.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Dionisio Borda
93
Com uma renda individual de US$1.300, uma população próxima dos 6
milhões de habitantes, um PIB de US$7.500 milhões gerado no setor
agropecuário (30%) e uma população basicamente rural (49%), continua sendo
o país com o menor desenvolvimento relativo do Mercosul. A economia
paraguaia sofre de vários problemas estruturais que têm impedido seu
crescimento econômico, principalmente durante o período 1982-2002, com uma
crise bancária (1995-1998), uma crescente expansão do deficit fiscal (1999-2002)
e atrasos no pagamento da dívida pública (2002).
A nova administração enfrenta uma pesada herança, mas inicia seu mandato
(2003-2008) com uma legitimidade de origem com a qual não contavam os dois
últimos governos; dispunha de um bom diagnóstico da situação econômica e de
um programa de governo, com os resultados esperados no imediato, no curto e
no médio prazos.
Crise econômica e política (1982-2002)
O Paraguai iniciou o processo de reformas econômicas e de transição
para a democracia depois do golpe de Estado de fevereiro de 1989. Com esta
ação militar, abrem-se as portas para a democracia no país, depois de trinta e
cinco anos de ditadura, mas, até agora, sem inverter a situação de baixo
crescimento econômico e estabelecer uma nova forma de fazer política.
A atual administração (2003-2008) foi precedida por três presidentes eleitos
(em 1989-1993; 1993-1998 e 1998-2003). O último, antes de completar um ano
do seu mandato, foi substituído por um governo designado pelo Parlamento
(1999-2003), diante de sua iminente destituição por julgamento político pelo
assassinato do vice-presidente (março de 1999). Nesse período de dezesseis
anos de democracia, deram-se, além disso, três tentativas fracassadas de golpe
de Estado (dezembro de 1995, abril de 1996 e dezembro de 2001) que denotam
a escassa tradição democrática da sociedade, particularmente da classe política,
e o fraco desenvolvimento do Estado.
A primeira fase da crise econômica (1982-1988) identifica-se pela forte
queda da taxa de crescimento econômico e pela deterioração do regime político
autoritário. O crescimento médio anual do PIB e do PIB por habitante foi de
2% e de –1,1%, respectivamente.
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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A segunda etapa (1989-1998) começa com uma ligeira recuperação
econômica, crescimento econômico de 2,9% e de 0,1% per capita, com o início
da transição para a democracia (1989). Este foi um período de importantes
mudanças na política econômica e institucional do país. Abandonou-se o regime
de taxas múltiplas de câmbio e o controle de preços; liberaram-se os mercados
financeiros e reduziram-se os depósitos compulsórios; simplificaram-se os
impostos; promulgaram-se novas leis sobre reformas econômicas institucionais.
Nessa etapa ocorreram, porém, as maiores crises bancárias do país; de 34
bancos e 63 empresas financeiras, permaneceram na praça apenas 18 bancos e
22 financeiras, fechados principalmente entre 1995-1998, com um custo estimado
de 10% do PIB.
Finalmente, a terceira fase (1999-2002) caracteriza-se por uma retração
econômica e por uma crise de governabilidade. É um período marcado por três
anos de recessão (1998, 2000 e 2002), um crescimento anual médio do PIB de
0,1% e uma taxa de crescimento econômico anual médio de –2,9% por habitante.
Durante esses ciclos ou etapas, a estrutura produtiva baseada no setor
agrícola mudou pouco; seu crescimento foi desigual e esteve exposto a fatores
exógenos adversos (clima e preço internacional). As duas décadas (1982-2002)
marcadas pela queda da ditadura e pela transição democrática distinguiram-se
pelo baixo crescimento econômico, com uma média anual de 2% e uma taxa do
PIB de –0,8% por habitante. Essa estagnação econômica obedece, em parte, à
fragilidade do modelo de desenvolvimento – baseado na agricultura de pouca
diversificação dos produtos para exportação, no predomínio da criação de
emprego e contratos do Estado e na triangulação de produtos de importação e
reexportação – e, em parte, à vulnerabilidade própria dessa economia pequena
e exposta à volatilidade interna e externa.
Além disso, com a transição, surgem dois fenômenos que criam
instabilidade política. O primeiro é a permanente mudança de ministros,
presidentes ou diretores de empresas e entidades públicas. Essas mudanças
contribuem para criar incerteza, dados o baixo desenvolvimento institucional
do Estado e a alta dependência das instituições em relação ao desempenho da
liderança pessoal, para enfrentar uma determinada política. O segundo é o
surgimento de problemas de governabilidade; estes últimos decorrem da
duvidosa legitimidade dos governantes eleitos. As duas situações têm erodido a
confiança e impedido o aumento dos níveis de inversão de capital.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Dionisio Borda
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Nem as dívidas públicas nem a hiperinflação, tipicamente observadas em
outros países da região, explicam a estagnação econômica paraguaia de 1982-
1998, devida antes à fragilidade da estrutura produtiva, à vulnerabilidade aos
fatores exógenos e à instabilidade política. A deterioração da situação econômica
e política ganha mais força em 1999-2002, quando o país sofre uma desaceleração
econômica significativa, em parte como conseqüência da crise das economias
da região e, em parte, pelos escassos resultados de algumas das reformas
realizadas desde 1989, pela corrupção e pelos sinais de enfraquecimento da
governabilidade.
Ponto de partida para a nova administração (2003-2008)
Em agosto de 2003, a situação política e econômica refletia sérios
problemas de curto e médio prazos. Esse crescimento lento da economia
acarretou uma piora da situação de emprego e um aumento da pobreza e da
desigualdade. A taxa de desemprego em 2002 chegava a 17,1% e o subemprego,
a 22,5% do total da força de trabalho; a pobreza se elevava a 46,4%, com um
aumento significativo da pobreza extrema, de 17% para 21,7% no conjunto do
país e uma incidência maior na área rural.
A estabilidade macroeconômica também entrou em uma fase de
deterioração e rápido desequilíbrio. Em primeiro lugar, a taxa de inflação e o
deficit fiscal registraram uma considerável elevação. A inflação média anual em
1998-2002 foi de 10,3%, chegando a um pico de 14,6% em 2002. Da mesma
forma, o déficit fiscal teve um crescimento explosivo, de –1,0% do PIB em
1998 para –3,3% em 2002. Uma das causas do rápido crescimento do deficit
fiscal foi o deficit operacional das aposentadorias e pensões dos funcionários
públicos, responsável por 75% do saldo fiscal negativo (2002). Ao mesmo tempo
em que as receitas tributárias não aumentavam, o gasto com salários e o
pagamento do serviço da dívida subiam, pressionando negativamente as contas
fiscais.
Contrariamente à tendência dos últimos quinze anos, a dívida externa
também aumentou e o pagamento da dívida sofria atrasos, sobretudo as dívidas
internas e algumas dívidas externas com organismos bilaterais. As dívidas vencidas
em agosto de 2003 totalizavam US$64 milhões e, em 2002, o coeficiente da
dívida pública chegava a 50,3%.
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
96
As variáveis macroeconômicas vinculadas ao sistema financeiro mostravam
igualmente uma deterioração crescente em 2002: aumento no atraso dos
pagamentos (13,5%), aumento da taxa de intermediação financeira (71,7%) e
dolarização dos depósitos (69%) e créditos (60%).
Diante de tal situação, o novo governo (2003-2008) definiu quatro pilares
no quadro de sua estratégia de desenvolvimento para os próximos cinco anos:
1. Recuperar a confiança nas instituições do Estado por meio da luta contra
a corrupção, a evasão fiscal e a ineficiência da administração pública;
2. Promover a participação da sociedade civil na formulação das políticas
públicas e no controle da gestão pública;
3. Promover o crescimento econômico com criação de emprego, com
base em um novo modelo de desenvolvimento agroindustrial, com
responsabilidade social, fiscal e ambiental; e
4. Reduzir a pobreza e a desigualdade com ações diretas e focalizadas,
que permitam o acesso à saúde, à educação e aos serviços básicos, e
políticas de eqüidade.
Êxitos e progressos
A tarefa fundamental do novo governo centrava-se em recuperar a confiança
interna e externa, enfrentar um conjunto de reformas, resolver os atrasos da
dívida pública, restabelecer o equilíbrio fiscal, criar condições para a estabilidade
macroeconômica e a reativação econômica e traçar as bases para um crescimento
sustentado.
Governabilidade, transparência e confiança
Para enfrentar os problemas imediatos e de curto prazo, um passo
importante dado pelo governo foi a construção do consenso para restabelecer
a governabilidade e dar sinais de uma gestão mais transparente. Um fato sem
precedentes foi a assinatura (outubro de 2003) da “agenda interinstitucional entre
os poderes Executivo e Legislativo” acerca dos principais projetos de lei que
deveriam ser tratados para evitar a cessação de pagamentos, a crise fiscal e a
vulnerabilidade financeira, e para promover a reativação econômica. Outro
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Dionisio Borda
97
acordo relevante para construir a confiança foi a assinatura (novembro de 2003)
do “Acordo entre o Ministério da Fazenda e os membros da Associação de
Bancos” para renegociar os vencimentos da dívida interna (títulos do Tesouro)
de US$138,1 milhões, inicialmente com três anos de prazo e uma taxa de juros
de 9,5%. De acordo com as possibilidades financeiras reais do Estado paraguaio,
o cumprimento de tal obrigação implicava estender para cinco anos o prazo de
vencimento dos títulos, a uma taxa de juros menor, que fosse aumentando
gradualmente.
O governo também firmou (novembro de 2003) com o setor empresarial
o “Acordo para fomentar a formalidade, a competitividade, a eqüidade e a
responsabilidade fiscal”. O governo se comprometeu a realizar uma série de
reformas.
Por último, realizou-se um seminário, com a participação do gabinete
presidido pelo Presidente da República, empresários e representantes da
sociedade civil, para examinar os desafios do crescimento com eqüidade. Esse
evento (26 de novembro de 2004) serviu para assinalar os problemas, as metas
e as possíveis medidas em quatro áreas de interesse para o crescimento sustentável:
1. Competitividade e ambiente de negócios.
2. Diversificação da produção e exportação com maior valor agregado.
3. Produção agrícola e posse da terra.
4. Pobreza e desigualdade.
Esse plano econômico visa a objetivos intermediários, 2008, e a outros de
médio prazo, 2011, bicentenário da independência nacional.
Outra atuação rápida do governo foi melhorar a transparência e a
participação da sociedade. Os governos da fase de transição foram criticados
por descuidar desses temas. Um primeiro passo do governo para garantir o
esforço na luta contra a corrupção foi o acordo firmado (agosto de 2005) pelo
Ministério da Fazenda com o Conselho Promotor do Sistema Nacional de
Integridade e Transparência Internacional. Esses acordos serviriam para o
Programa de Contratações Públicas, a administração fiscal, inclusive a alfândega,
e para estabelecer a prática de prestar contas da gestão pública.
Depois de quarenta e três anos e de duas tentativas recentes (2001 e 2002),
o governo conseguiu um acordo com o FMI (15 de dezembro de 2003). O
Stand by Agreement estabelece dois objetivos: criar as condições para o crescimento
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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sustentado e a redução da pobreza, e resolver os problemas de gestão do governo,
melhorando a eficiência e a transparência da função pública; conseguiu dois
empréstimos internacionais de livre disponibilidade para evitar atrasos com os
organismos multilaterais.
Reformas do sistema de aposentadorias e pensões
do setor público
O início da reforma marca a promulgação da Lei n. 2.345 da Caixa Fiscal
(dezembro de 2003). Esta reforma enfrentada pelo governo foi a modificação
do sistema de aposentadorias e pensões do setor público, que criava um deficit
operacional crescente, do qual o Governo Central assumia o encargo. Além do
problema anual de transferência para cobrir o deficit operacional, o sistema exigia
mudanças imediatas para: i) evitar a insustentabilidade no curto prazo; ii) diminuir
a heterogeneidade dos diferentes caixas, com grave falta de eqüidade no sistema;
e iii) corrigir a falta de portabilidade do sistema, que impede a um segurado
mudar de um setor para outro dentro do governo.
A repercussão imediata da reforma foi a redução do deficit operacional de
caixa pelo aumento, de 14% a 16%, do aporte do funcionário público em serviço
ativo. Da mesma forma, melhorou a sustentabilidade de longo prazo do caixa e
a divisão em duas direções independentes – aposentadorias e pensões – permitiu
melhorar a gestão e diminuir o tráfico de influência e a corrupção.
Reforma tributária
A reforma contemplava a formalização da economia e a correção da carga
tributária, muito reduzida (10% do PIB), mantendo alíquotas baixas; ampliar a
base tributária e incorporar novos impostos. A norma tributária (Lei n. 125/
91) continha demasiadas possibilidades legais de evasão (quarenta e seis isenções),
que dificultavam a administração; sofria de inexplicáveis ausências de outros
impostos universais, como o imposto sobre rendimentos pessoais ou sobre
ganhos de capital ou sobre a renda de empreendimentos pecuários e agrícolas.
A nova reforma simplificava o sistema com uma fórmula de 10-10-10; isto é,
10% de IVA (Imposto de Valor Agregado) para todos os produtos e serviços;
10% de impostos sobre os rendimentos pessoais superiores a dez salários
mínimos legais e 10% sobre a renda de todas as empresas. A receita estimada
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Dionisio Borda
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com a vigência plena da reforma era da ordem de 1,5% do PIB. Essa proposta,
convertida na Lei n. 2.421 (julho de 2004), introduziu pela primeira vez o imposto
de renda pessoal e o imposto sobre os ganhos das empresas agropecuárias e
reduziu o IVA dos artigos da cesta familiar.
Existia forte resistência à Lei de Adequação Fiscal porque os impostos
não se traduziam em melhores serviços. Este círculo vicioso – baixa carga
tributária (10% do PIB) e maus serviços públicos – justificou não enfrentar os
dois problemas: baixa competitividade e exíguos recursos fiscais. Por um lado,
melhorar a competitividade não implica apenas ter taxas impositivas marginais
baixas. Se assim fosse, o Paraguai teria estado em melhor situação, com um
regime de isenções (legais), evasões (ilegais) e baixas taxas tributárias, já
contempladas na lei anterior, e outras concessões: um IVA de 10% e imposto de
renda sobre a empresa de 30%, subsídios ao óleo diesel e tarifas públicas não-
atualizadas. Mesmo com esses privilégios, a competitividade do país não melhorou.
Os altos deficit nos serviços públicos e a baixa qualidade do gasto público
constituem dois problemas sérios para o desenvolvimento. Uma restrição é não
destinar corretamente os recursos insuficientes para aplicação em pessoal e nos
serviços e a outra é a baixa arrecadação em decorrência de corrupção e privilégios.
O de que se tratava então era de romper essa inconsistência histórica: maior
necessidade de recursos para obras de infra-estrutura e investimento em capital
humano para melhorar a competitividade do país, porém fazê-lo com menor
carga tributária. O Paraguai é o país com a dotação de infra-estrutura e a
qualificação de recursos humanos mais baixos da região e, paradoxalmente,
aquele com a menor carga tributária.
Reforma do Código Alfandegário
O novo Código Alfandegário atualiza as normas de acordo com os padrões
internacionais e permite a modernização administrativa de uma instituição
símbolo dos arranjos políticos e abre a possibilidade de profissionalização dos
recursos humanos. A resistência à mudança não foi menor do que às outras
reformas.
Uma primeira pressão criou-se no interior da instituição, o que reduziu a
velocidade da mudança e sua entrada em vigor. A segunda originou-se dentro
do próprio governo, fundamentalmente na fase de aplicação da lei que converte
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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a alfândega em uma entidade autônoma e cujo primeiro objetivo é a
profissionalização dos funcionários.
Reforma das finanças públicas e equilíbrio fiscal
As reformas na gestão do Ministério da Fazenda visavam a resultados
imediatos em vários campos: reverter a situação do hiato financeiro; eliminar os
atrasos da dívida; conter o deficit fiscal crescente para diminuir a evasão e a falta
de transparência na arrecadação e melhorar a distribuição dos recursos; fazer
inovações para aperfeiçoar o funcionamento institucional, fundamentalmente
para planificar e fazer o acompanhamento das transferências, da execução dos
empréstimos externos e do cumprimento das metas sociais e econômicas do
setor público.
A estratégia traçada pelo Ministério da Fazenda, e alguns dos resultados
mais importantes, estão centrados em quatro componentes: i) fortalecimento
das entidades existentes para melhorar a gestão; ii) criação de novas unidades
para fortalecer a administração e o controle; iii) desenvolvimento do governo
eletrônico para ganhar eficiência e transparência; e iv) melhora da coordenação
interinstitucional.
Depois de vários anos, reduz-se de forma significativa o deficit fiscal de –
0,4% do PIB em 2003. Em 2004, consegue-se 1,6% de superavit global e de 2,8%
de superavit primário; e, em 2005, mantém-se o duplo superavit, global e primário,
ainda que abaixo das cifras alcançadas anteriormente.
Do lado da receita, a carga tributária, que nos últimos anos (2000-2002) se
mantinha abaixo dos 10% do PIB, deu um salto inicial para 10,3% em 2003, um
aumento sem precedentes em 2004, alcançando 12,2% do PIB, e 0,84% em
2005. Esta carga tributária historicamente baixa é, em certa medida,
contrabalançada pela contribuição dos royalties e compensações das duas empresas
binacionais do Paraguai com o Brasil (Itaipu) e Argentina (Yaciretá). Ambas,
mas principalmente Itaipu, contribuíram 4,1% e 3,2% do PIB em 2004 e 2005
(carga tributária ajustada).
A estrutura da receita tributária anterior à reforma permitiu um aumento
de coeficiente da carga tributária, atribuível apenas à melhora da administração
do setor. O imposto sobre o valor agregado (IVA) é o tributo de maior
contribuição. Entre 2003 e 2005, superou os níveis anteriores, alcançando uma
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Dionisio Borda
101
participação de 4,4% e 5,2% do PIB, respectivamente. O IVA, que é de 10%,
ainda mostra um alto nível de evasão e de isenções.
Como resultado da melhora na gestão e da vigência da nova Lei de
Adequação Fiscal, aumentaram o número de contribuintes e a arrecadação. Entre
2002-2003, registraram-se 10,6% de contribuintes a mais; nos anos seguintes, os
incrementos foram de 7,6% (2003-2004) e 9,7% (2004-2005), respectivamente.
O mesmo movimento de alta observou-se na arrecadação: entre 2002-2003, o
aumento foi de 12,3%, em seguida, 40,9% (2003-2004) e 14,1 (2004-2005).
Do lado da distribuição de recursos, chama a atenção a crescente rigidez
dos gastos. Existe um forte desequilíbrio entre gastos correntes e de capital
(inversão); nos últimos anos essa relação foi de 80:20. Em parte, deve-se este
desequilíbrio à baixa execução dos investimentos, que atua como variável de
ajustamento, quando os recursos são insuficientes. Ele não reflete, entretanto,
apenas a insuficiência de fundos de contrapartida, mas também problemas de
gestão.
Outra característica da rigidez dos gastos é a alta participação dos
pagamentos de pessoal: soldos, salários e outros benefícios. Em 2003, essa
participação no total dos gastos mantinha-se em torno de 43,9%, devido a alguns
ajustes de salários na área de seguridade, porém em 2004 e 2005, graças a um
maior controle nas contratações, a percentagem representada pelo pagamento
de serviços pessoais baixou para 42,7% e 41,3%, respectivamente, sem ter
enfrentado ainda a reforma do serviço civil, que é o verdadeiro gargalo.
Excluindo as amortizações, o pagamento de juros de empréstimos do
setor da administração central, o pagamento de serviços pessoais e as transferências
para cobrir os gastos operacionais com aposentadorias e pensões, são, em
conjunto, maiores do que a carga tributária; ou seja, a arrecadação se destina a
pagar soldos e a cobrir o deficit operacional do sistema de aposentadorias dos
servidores públicos. Recentemente, em 2004, o gasto rígido com esses três itens
(10,9%) manteve-se abaixo da carga tributária em quase dois pontos percentuais.
Recuperação econômica e equilíbrio macroeconômico
Depois de um período de forte recessão, o crescimento do PIB inicia uma
etapa de lenta recuperação, de 3,8% em 2003, de 4,1% em 2004 e uma nova
retração, 3,4%, em 2005. Em dólares correntes, os níveis alcançados nos anos
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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2003-2005 foram de US$5.616 milhões, 6.929 e 7.479 milhões, respectivamente.
O PIB por habitante teve um crescimento positivo de 1,8% em 2003, de 2,1%
em 2004 e uma expansão de apenas 0,8% em 2005. Os níveis do PIB per capita
em dólares correntes foram de US$978 em 2003, US$1.205 em 2004 e US$1.301
em 2005.
Um dos maiores êxitos dos primeiros dois anos da nova administração
foi o controle da inflação. Em 2003, a taxa de inflação cai para 9,3% e, em 2004,
para 2,8%. Essa taxa histórica – e a mais baixa da região nesse ano – foi o
resultado, sem deixar de levar em conta a situação internacional favorável, da
melhor coordenação da política econômica, principalmente do papel ativo da
política fiscal, mediante o aumento da arrecadação e a recuperação da disciplina
do lado dos gastos. Em 2005, a inflação voltou a subir, terminando em 9,9%.
Esse aumento de preços foi decorrência da elevação das cotações do
petróleo – embora o ajuste dos preços domésticos tenha estado defasado em
relação ao comportamento internacional do petróleo – e de maior flexibilização
da política fiscal, principalmente pelo aumento dos gastos. Outro fator que
contribuiu para o baixo nível dos preços foi o congelamento das tarifas públicas,
particularmente da água. Depois dos ajustes de 2001, observa-se uma queda
das tarifas em termos reais; nos últimos anos (2003-2005), a variação dos preços
reais de eletricidade, água e telefone foi negativa.
Do lado do crédito, a relação entre a moeda nacional e a estrangeira evoluiu
de 39:61, em 2002, para 52:47, em 2005. A redução da dolarização dos créditos
coincide com um incremento do crédito em moeda nacional de 22,7% em 2004
e de 21,0% em 2005. Assim como os depósitos, os empréstimos também são
de curto prazo, sendo este um dos fatores limitativos sérios para recuperar a
demanda de investimentos privados. As taxas ativas de juro tiveram uma queda
nos últimos dois anos. A taxa ponderada em moeda nacional baixou de 30%
(em 2003) para 15,5% (2005). A taxa de crédito para o desenvolvimento lidera
essa tendência para a baixa, por influência dos bancos públicos.
No tocante ao comércio internacional, o Paraguai é uma economia aberta,
com um coeficiente de abertura, em 2003, de 55%. A exportação, como parcela
do PIB, teve um incremento importante em 2000-2002 e 2003-2005, com valores
de 14% e 22%, respectivamente, em decorrência da recuperação da economia
regional, especialmente a do Brasil, principal mercado das exportações do
Paraguai. As exportações cresceram de forma notável em 2003 e 2004, cerca de
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Dionisio Borda
103
23,5%, e 3,6% em 2005. A participação das importações também aumentou
para 34,8% do PIB em 2003-2005, em comparação com 27,5% nos anos 2000-
2002. A variação do saldo comercial negativo tem sido relativamente constante,
de 15,5% do PIB.
Um fato marcante do comércio exterior do país é o fenômeno da
reexportação; registram-se como importação para o Paraguai produtos que logo
saem como exportação. Este tipo de transação veio caindo de 1995 até 2002. O
comportamento da reexportação voltou a ganhar força em 2003 e 2004, mas
sempre abaixo das exportações registradas.
Obstáculos e restrições
As reformas iniciais perderam impulso. Reaparecem sinais de
ingovernabilidade e de incerteza no curto prazo e há um enfraquecimento do
compromisso de prosseguir com as reformas pendentes, assim como falta um
rumo claro na construção de um novo modelo de desenvolvimento que permita
crescimento econômico sustentado, redução da pobreza e diminuição da
desigualdade. O eleitoreirismo precoce, primeiro para as internas do partido
do governo (fevereiro e julho), em seguida para as eleições municipais
(novembro) de 2006 e uma possível Assembléia Nacional Constituinte (2007),
para modificar a Constituição no sentido de permitir a reeleição, são ameaças
potenciais à manutenção de uma política econômica previsível para 2006-2008
e à garantia da governabilidade.
Debilitamento da governabilidade
A incerteza com relação às regras do jogo recobra forças além das instâncias
estritamente econômicas. A percepção de risco da sociedade e do setor privado
cresce ante a insegurança das pessoas e dos bens. Apesar das mudanças dos
membros do Supremo Tribunal de Justiça (sete novos ministros, de um total de
nove membros em 2003), o Poder Judiciário não conseguiu oferecer garantias
para a agilização dos processos e o cumprimento imparcial da lei. As repartições
do fisco, os organismos de segurança, os efetivos policiais envolvidos em fatos
delituosos, bem como legisladores acusados de corrupção, sem sanção do
colegiado, tiram a credibilidade no funcionamento das instituições para criar
um ambiente propício à atração de investimentos.
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
104
Observa-se o enfraquecimento crescente dos partidos políticos tradicionais
como instâncias para a formulação de propostas e o debate de políticas públicas,
e crescem as práticas de cooptação (concessão de prebendas e clientelismo) em
detrimento da construção de instituições que promovam lideranças renovadoras.
As eleições internas do partido oficialista põem em risco os êxitos e avanços
alcançados nesses dois anos.
Reversibilidade da reforma e paralisação das mudanças
Adicionalmente, os grupos setoriais e políticos de pressão defendem a
flexibilização das leis aprovadas – Adequação Fiscal, Reformas de Pensões, Código
Alfandegário, entre outras – pela modificação destas ou por meio de decretos
de regulamentação, como sucedera nos anos 90 com as leis financeiras. A
reversibilidade das reformas nem sempre responde a princípios de retificação
por erros de elaboração ou equívocos na sua implantação, mas a concessões
políticas para satisfazer interesses setoriais. Este é um dos círculos viciosos que
explicam a baixa carga tributária e a debilidade do sistema financeiro na relação
Estado-empresa.
Outro fato significativo é a paralisação das mudanças da norma legal (Lei
1.626) da Função Pública, que sofre de sérias deficiências para criar um serviço
civil baseado nos méritos de eficiência e integridade da pessoa e da falta de um
plano em execução sobre a profissionalização da burocracia do Estado. Nos
orçamentos fiscais de 2003-2006, o aumento de cargos foi significativo.
São vários os problemas do serviço público. O primeiro é a sua falta de
profissionalização, expressa no procedimento de ingresso e de promoção dos
funcionários que não ocupam cargos de confiança; a ausência de competição e a
meritocracia converteram o emprego público em parte do sistema de prebendas
e de clientelismo político. Isso não só tem conseqüências sobre a eficiência da
gestão, mas também coloca problemas de disciplina interna e de resistência à
mudança, seja a capacitação ou o mecanismo de incentivo com base em
resultados. O segundo, vinculado ao primeiro, é uma desproporção entre o
número de cargos de menor hierarquia e o número de posições de nível médio
e superior. A terceira limitação consiste nos baixos níveis salariais para cargos
técnicos e de maior responsabilidade, comparados com a remuneração no setor
privado. Essa situação é um caldo de cultura para a corrupção, as redes de
tráfico de influência com as quais se reforçam os vínculos políticos.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Dionisio Borda
105
Nas condições atuais, não se percebe um compromisso sério do governo
com a reforma do Estado, principalmente das empresas públicas e entidades autárquicas.
Com exceção da empresa pública de eletricidade, Ande, as empresas de água,
petróleo e cimento têm excesso de funcionários, dívidas atrasadas com
fornecedores ou a serem pagas pelo Tesouro Nacional e uma deterioração do
seu serviço. Essas reformas faziam parte dos acordos não cumpridos com a
sociedade civil e com os partidos políticos de oposição.
Tampouco se avança na melhora dos mecanismos de controle da administração
dos recursos do Estado e continua insuficiente o controle do Estado no manejo
dos recursos financeiros transferidos aos governos infranacionais, o que pode
prejudicar os êxitos fiscais assinalados no futuro imediato. A doação de Itaipu
para gastos sociais não faz parte do orçamento fiscal e está sendo questionada
pela falta de transparência na aplicação desses recursos para os programas sociais.
Por um lado, a entidade que deve ocupar-se da política energética dedica-se a
realizar programas sociais e, por outro, as entidades que devem ocupar-se da
estratégia para a luta contra a pobreza não têm recursos domésticos suficientes
para fazer face aos seus programas. O pouco esforço na reforma do serviço
público e no fortalecimento do mecanismo de controle – especialmente a
Auditoria Geral da Nação, dependente da Presidência da República, sobretudo
do lado das despesas – subtrai credibilidade à luta contra a corrupção quando
esta se restringe unicamente à melhora da arrecadação e a alguns êxitos nas
contratações públicas.
Melhora da competitividade
Estabelecer um novo modelo de desenvolvimento – baseado na agroindústria, na
maior produtividade da unidade agrícola familiar, no aumento da inversão em
capital humano e físico para conseguir vantagens da integração e maiores
oportunidades para que os pobres tenham acesso aos serviços e aos recursos –
é algo que foi afastado da atual agenda de governo.
O Paraguai precisa criar incentivos, oferecer garantia e aplicar uma política
de crescimento econômico sustentável baseado no uso intensivo da mão-de-
obra e dos recursos naturais. Esse desafio implica acompanhar o setor privado
inovador para utilizar plenamente sua capacidade instalada e incrementar a
inversão. Além do crédito de médio prazo, que se espera dinamizar por
intermédio da nova Agência Financeira de Desenvolvimento, é necessário
Situação econômica e perspectivas do Paraguai
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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destinar recursos para melhorar a infra-estrutura física e investir em capital
humano.
Desafio na área social
No campo social, continuam os altos níveis de desocupação, enquanto a
pobreza e a pobreza extrema não recuam com a retomada econômica dos últimos
anos. Cresce a tensão social no setor rural e no empresariado agrícola dedicado
à produção de soja e à pecuária. Trata-se de empresas que usam a terra e a
tecnologia de forma extensiva, e o conflito gira em torno de: i) uso intensivo de
agroquímicos, sem nenhuma capacidade de regulamentação por parte do Estado
para evitar danos à saúde e ao meio ambiente; ii) criação de um mercado dinâmico
da terra, que eleve o seu preço e provoque uma crescente migração campo-
cidade.
A falta de oportunidade de inserção da mão-de-obra rural na área urbana
provocou uma migração crescente para o exterior. Calcula-se em torno de US$500
milhões as remessas de residentes paraguaios em países como Espanha, Itália,
Estados Unidos, Japão, Alemanha e outros. Essas remessas ocupam hoje o quarto
ou o quinto lugares como geradoras de divisas na economia paraguaia.
Além do atraso das reformas programadas – ligadas às empresas públicas,
aos bancos de primeira linha, ao desenvolvimento das agências reguladoras e ao
fortalecimento do sistema financeiros –, a prioridade do governo é dar sinais
claros e passos firmes de mudança do modelo de desenvolvimento. A alta
dependência de alguns poucos produtos agrícolas de baixo valor agregado, do
comércio de triangulação, bem como a ação discricionária e a ineficiência do
Estado como principal agente na demanda de bens e na criação de emprego não
são os pilares para alcançar o crescimento sustentado.
Conclusões
Em conclusão, os progressos feitos nesses dois anos permitiram
restabelecer o equilíbrio fiscal, eliminar os atrasos da dívida externa, iniciar uma
recuperação econômica, com a ajuda das condições favoráveis da região, e
recuperar, tanto interna como externamente, a confiança no governo. Essa
confiança permitiu manter as condições de governabilidade e uma reativação
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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econômica incipiente. No entanto, essas mudanças não se refletem em uma
modificação das regras do jogo.
Os que buscam rendimentos (rent seeking), no âmbito público ou no
mercado, ou empresas ligadas ao Estado, ainda têm forças suficientes para impor-
se aos setores inovadores, quer no campo econômico, quer no político. A disputa
pelo controle do Estado continua sendo uma luta pelo controle da renda
econômica. Essa concepção do poder entrava o desenvolvimento do mercado,
do Estado e do exercício da democracia, além do ato eleitoral e das tentativas
de reformas econômicas.
Esse círculo vicioso de atraso político-econômico e sua desvinculação do
incentivo eleitoral constituem algumas das causas da longa estagnação e do
isolamento do Paraguai, e continuam retardando o surgimento de um novo
modelo de desenvolvimento competitivo, baseado em distribuição mais
eqüitativa das oportunidades e dos recursos e de um sistema de incentivos que
rompa com o niilismo cristalizado na transição democrática. O índice de
percepção da corrupção da Transparência Internacional mostra que o Paraguai
está entre os países mais corruptos, em 144
o
lugar entre 158 países. Segundo o
índice de competitividade, informe do Foro Econômico Mundial, a economia
paraguaia é uma das menos competitivas; sua colocação é a 113
a
entre 117. E é
o país com o mais baixo índice de apreço pela democracia; só 13% da população
estão satisfeitos com ela, segundo o Latinobarômetro. Esses números mostram
que ainda faltam tempo e espaço para a transição econômica e política no Paraguai
ver a luz no fim do túnel.
Tradução: Luiz A. P. Souto Maior
Revisão: Regina Furquim
DEP
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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Visão estratégica
regional da política
externa do Peru
José Antonio García Belaunde*
A
té o final da década de 1960, a política exterior peruana caracterizou-se
pelo enfoque jurídico em defesa do patrimônio territorial do Estado,
desenvolvido por meio das numerosas gestões e negociações executadas para
resolver as disputas de fronteiras com os países vizinhos. Deve-se recordar que,
no início do século XX, não estavam completamente demarcados os limites do
Peru com nenhum de seus cinco vizinhos. Além disso, o extremo meridional do
território continuava ocupado pelo Chile. Em tais circunstâncias, o Estado carecia
de um perfil territorial preciso, e a defesa patrimonial constituía, logicamente, a
principal tarefa da diplomacia peruana.
No decorrer das quatro décadas entre 1902 e 1942, graças aos nobres
esforços de internacionalistas reconhecidos como Alberto Ulloa, Víctor M.
Maúrtua, Víctor Andrés Belaunde e Raúl Porras Barrenechea, entre outros, foi
possível chegar a arranjos limítrofes definitivos com todos os países vizinhos,
* Ministro das Relações Exteriores da República do Peru.
informes@rree.gob.pe
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Antonio García Belaunde
109
recorrendo-se a uma série de mecanismos de solução de controvérsias, inclusive
negociações diretas, arbitragem, bons ofícios e mediações. Não obstante, em
alguns casos, a assinatura de tratados de limites não foi suficiente para que se
considerassem concluídas as polêmicas bilaterais, devido a problemas gerados
pela execução de tais instrumentos.
A demarcação acordada entre o Peru e a Colômbia em 1922 exigiu
negociações complementares em 1933 e 1934 para que fosse formalmente
sancionada, após o incidente militar ocorrido na localidade amazônica de Leticia.
A questão do cumprimento das obrigações não-territoriais acordadas pelo Chile
no tratado de limites de 1929 somente foi resolvido recentemente, em 1999,
com a assinatura da Ata de Lima. O caso da fronteira entre o Peru e o Equador
é bem mais conhecido. Embora tenha sido delimitada em 1942 com a assinatura
do Protocolo do Rio de Janeiro, divergências substantivas sobre a demarcação
da fronteira permaneceram sem solução durante décadas e provocaram graves
conflitos militares em 1981 e 1995. A solução definitiva do problema exigiu
uma complexa e prolongada negociação plurilateral, com o concurso ativo dos
quatro países garantes do Protocolo, que culminou em 1998 com a assinatura
dos Acordos de Brasília.
Levando em consideração o contexto histórico apresentado de forma
resumida, não é surpreendente que durante o século XX o enfoque jurídico
baseado na defesa do patrimônio territorial tenha predominado no Peru.
Somente no final da década de 60 houve condições para que fosse aceita uma
nova visão da gestão externa peruana, em função das características e dos
interesses do país e de sua projeção internacional. Como resultado de frutífera
reflexão alimentada pela escola de sociologia política francesa, foram identificados
objetivos de política externa que continuam em vigor nesta data, com os ajustes
e reajustes logicamente necessários diante de um contexto mundial mutável e
incerto.
Essa reflexão, inspirada e dirigida pela ação e pensamento de Carlos García
Bedoya, figura-chave da diplomacia peruana, definiu caminhos para consolidar
a projeção internacional do Peru, à base das continuidades históricas e dos
componentes geográficos que convergem em seu território nacional. Uma
geração de jovens diplomatas peruanos, à qual pertenço, teve a sorte e o privilégio
de ser testemunha e de colaborar de alguma forma na gestação da nova visão
política organizada e executada a partir do início dos anos do decênio de 70.
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
110
Hoje, décadas depois, nós, herdeiros dessa enriquecedora experiência prática e
teórica, temos o dever de forjar a consecução dos objetivos cuja consolidação
continua a corresponder aos interesses vitais do Peru.
As condições impostas pelo atual panorama internacional não debilitam
e, pelo contrário, reforçam a validade dos objetivos centrais de política exterior
claramente identificados há trinta anos. Exemplo claro disso é a constatação de
que a integração regional é a forma inelutável de permitir o desenvolvimento de
estados individualmente débeis. O desaparecimento do mundo bipolar e a
globalização da economia, fenômenos imprevisíveis em meados dos anos da
década de 70, confirmam que é indispensável consolidar a integração. Este é o
único caminho para assegurar a melhor inserção possível no mundo global. A
competição no mundo globalizado, tanto em termos de intercâmbio de bens e
serviços quanto em termos de presença política, tem por condição necessária a
conformação de unidades políticas e econômicas regionais.
No decênio de 70, discutia-se a possibilidade de estabelecer uma nova
ordem econômica mundial, à base de um diálogo Norte–Sul. Surgiu, com efeito,
uma nova ordem, a globalização, e modificou de maneira radical o sistema
econômico internacional, ainda que de forma completamente diferente em
relação às aspirações de eqüidade e justiça que alimentavam o diálogo Norte–
Sul, hoje defunto. O hiato entre países ricos e pobres aumentou e o papel da
produção e manufatura de matérias primas cedeu lugar, no comércio
internacional, ao crescente intercâmbio de serviços, informação, instrumentos
financeiros e alta tecnologia. A tradicional divisão internacional do trabalho foi
reestruturada e agora prevalece a divisão regional entre blocos de países que
concentram o fluxo comercial e financeiro. No atual contexto global, a formação
de espaços econômicos plurinacionais já não é uma noção abstrata, e sim um
imperativo muito concreto que emana da realidade internacional.
Até 1990, tinha validade a perspectiva não-alinhada diante de blocos de
países antagônicos que se enfrentavam por motivações ideológicas e razões de
segurança. O vácuo produzido pelo rápido desaparecimento do bloco de países
socialistas foi preenchido pela unipolaridade estratégica e militar dos Estados
Unidos, sem maior contrapeso ou equilíbrio. Não obstante, os desafios e ameaças
globais exigem concertação política e modalidades de gestão transversal que
fogem aos limites de uma perspectiva alinhada à visão unipolar nascida nos
Estados Unidos. Isso pressupõe que a unidade regional adquire importância
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Antonio García Belaunde
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ainda maior para concretizar e defender políticas que permitam o
desenvolvimento de nossos países, dentro de um panorama internacional
caracterizado pela presença de uma superpotência e pela interação de blocos
políticos e econômicos. Nossa capacidade de interlocução nesse cenário, como
atores isolados, é mínima, talvez nula.
Conseqüentemente, a América do Sul enfrenta hoje o desafio de conseguir
a melhor inserção possível no panorama global, fortalecida por meio de uma
atuação projetada e executada de maneira conjunta e integrada. Esse desafio,
comum a todos os Estados sul-americanos, cria a necessidade de entrelaçar nossos
países por meio de vínculos que enriqueçam efetiva e qualitativamente a fluidez
das comunicações e os laços e intercâmbios entre nossos territórios nacionais,
assim como entre os mecanismos de integração que coexistem na região. Isso
exige a convergência negociada de interesses e políticas nacionais para identificar
as modalidades de vinculação cujo fortalecimento facilite nosso desenvolvimento.
A integração constitui, em última instância, uma responsabilidade
compartilhada, um dever que nasce da semelhança das demandas sociais
colocadas pelos cidadãos dos países sul-americanos. A percepção da região como
um conjunto convergente de mecanismos de integração e de estados nacionais
repousa sobre a base da semelhança de nossos contextos sociais. Em outras
palavras, a noção de comunidade inerente ao conceito de integração regional
responde à conjunção de agendas governamentais que enfrentam desafios comuns,
tanto provenientes das demandas dos cidadãos quanto impostos pelo cenário
internacional.
Esse conceito foi expressamente recolhido na Declaração de Cusco, de
dezembro de 2004, que deu origem à Comunidade Sul-americana de Nações. A
convergência das políticas nacionais foi definida como fator potencial de
fortalecimento e desenvolvimento das capacidades internas de nossos países,
para melhorar sua inserção internacional e o acesso a melhores níveis de vida
para seus cidadãos. Nossa identidade compartilhada foi caracterizada como
resultado de uma história de lutas contra desafios internos e externos comuns,
assim como expressão de uma visão comum do desenvolvimento que se baseia
essencialmente no compromisso de atender às mesmas exigências sociais: a luta
contra a pobreza, a eliminação da fome, a geração de empregos e o acesso
universal à saúde e à educação. Assim, a política externa do novo governo do
Peru ajusta-se aos objetivos da Declaração de Cusco.
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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O Peru e o novo governo de Alan García
Os objetivos do governo se dirigem concretamente a enfrentar a fratura
social peruana, em que a metade da população é pobre e um quinto dela sobrevive
em condições de extrema pobreza. Como resposta a essa situação, a luta contra
a pobreza é a prioridade central do governo peruano. Isso leva sua gestão externa
a unir esforços com os países da região a fim de impulsionar uma agenda de
desenvolvimento orientada à consecução de crescimento estável, com eqüidade
e inclusão social.
O governo do Peru busca também consolidar internamente a governabilidade
sustentada na participação dos cidadãos e na transparência na condução da
administração pública. O objetivo governamental é combater o descrédito do
Estado por meio de uma administração com sentido de responsabilidade e por
sua aproximação à população que reside tanto no território nacional quanto no
estrangeiro. Nessa perspectiva, uma das linhas básicas da política externa é dar
atenção privilegiada aos direitos dos compatriotas no exterior e facilitar sua
integração no país que os acolhe.
Com essa orientação, o governo assume também a tarefa de aprofundar
uma cultura do dever, como um dos pilares para recompor a relação entre a
sociedade e o Estado. O objetivo que se busca com essa tarefa tem alcance
interno e externo. No plano interno, sua meta é que os cidadãos participem cada
vez mais na elaboração das políticas públicas. No plano interno, o objetivo é
incentivar a população a assumir progressivamente papel de protagonista a fim
de dotar de conteúdo social a integração regional, mediante a intensificação
qualitativa da comunicação e do intercâmbio por meio de nossas fronteiras. O
governo do Peru concorda plenamente que a crescente interação entre as
empresas e a sociedade civil precisa ser impulsionada a partir do Estado, como
fator-chave da dinâmica de integração do espaço sul-americano.
O esquema conceitual contemporâneo da política exterior peruana parte
da noção de cenários nos quais se desenvolve a ação externa do país, conforme
a projeção de seus espaços oceânico, andino e amazônico. Isso não pressupõe
um conjunto de círculos concêntricos com influência decrescente a partir do centro,
e sim a concorrência simultânea dos diferentes cenários, conferindo-se a cada um
a prioridade e o peso específico correspondentes a cada conjuntura determinada.
O primeiro cenário da ação externa é definido pelo entorno geográfico
imediato formado pelos países vizinhos. O segundo gira em volta da sub-região
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Antonio García Belaunde
113
andina e da região sul-americana, por meio da consolidação dos processos de
integração. O terceiro cenário é definido pelas relações com a potência dominante
ou hegemônica mundial, os Estados Unidos, e o conjunto de potências ou blocos
do restante do mundo.
Cabe notar que na concepção original do esquema esboçado, inicialmente
projetado num contexto bipolar, as aproximações do Peru com o resto do
mundo eram influenciadas pelo papel dos atores diante dos Estados Unidos,
como poder hegemônico continental. Hoje as relações com o resto do mundo
são definidas com vistas a melhorar a inserção do Peru, por meio de sua
integração aos blocos que correspondem a sua projeção internacional.
Paralelamente, o plano multilateral, entendido como um campo de ação
externa próprio, é definido pela convergência das características específicas do
poder crescente conferido às organizações internacionais. Por um lado, o âmbito
multilateral tem a capacidade de impor certas decisões aos estados e isso
condiciona a margem de ação estatal quanto às alternativas políticas efetivamente
disponíveis. Por outro lado, o âmbito multilateral constitui, por si mesmo, um
cenário no qual entra em jogo a negociação de interesses e aspirações nacionais,
com vistas a impor ou evitar a imposição das decisões multilaterais. Em
conseqüência disso, o multilateralismo é o cenário propício para que os países
de média e baixa renda possamos participar da formulação e aprovação de
normas internacionais, num quadro internacional no qual a legislação multilateral
adquire novos e mais amplos âmbitos de competência.
Não obstante, é preciso destacar que a ampliação do campo de ação
multilateral tem-se traduzido pela supremacia do direito internacional. A
constrição multilateral dos impulsos unilaterais da superpotência restante é uma
tarefa pendente. Coexistem no sistema internacional tenências opostas à
globalização e à fragmentação, que geram ameaças globais, criam insegurança e
instabilidade internacionais e debilitam a governabilidade dos estados. A extensão
mundial da pobreza, a exclusão social e a degradação ambiental são grandes
desafios enfrentados pelo multilateralismo. A ação multilateral exige uma visão
integral dos mencionados fatores de desintegração e instabilidade para assegurar
a paz e a segurança internacionais.
Voltando ao plano interestatal, o papel central desempenhado pelas
relações com os países vizinhos é uma característica perfeitamente relevante para
o caso peruano, devido à localização do país no mapa físico sul-americano e ao
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
114
número elevado de suas fronteiras internacionais. A transferência do foco da
política externa peruana, da problemática tradicional dos limites para a
problemática da relação política com os países vizinhos, dirigia-se ao fomento
do aproveitamento conjunto de elementos territoriais que compõem interesses
conjugados com os dos países vizinhos, mesmo em situações nas quais possam
persistir divergências remanescentes de caráter limítrofe. Interessa-nos estabelecer
políticas de cooperação, antes que de confrontação.
O eixo da integração
Dentro dessa perspectiva, a geração e aprofundamento dos processos de
integração fronteiriça e a cooperação bilateral continuam a ser uma tarefa política
prioritária no entorno geográfico imediato. Isso significa que a gestão das diversas
variáveis com cada país vizinho deve estar orientada a enriquecer a fluidez do
relacionamento em seu conjunto, mantendo em canais separados a administração
dos temas nos quais os interesses em jogo não coincidam ou divirjam. O objetivo
político específico consiste em liberar os óbices à projeção internacional e evitar
que divergências bilaterais passem a constituir fatores de paralisação. Com esse
enfoque é possível preservar a mobilidade da ação externa e impedir que o
conjunto da relação bilateral fique subordinado a temas discordantes.
No caso peruano, o entorno imediato não se esgota com as relações de
vizinhança, pois está superposto ao cenário regional, dada a localização geográfica
do país. Esta estabelece, por conseguinte, uma estreita inter-relação do cenário
vizinho com o regional. Tudo isso significa que a integração fronteiriça do Peru
constitui campo adequado para encontrar sinergias com a cooperação
desenvolvida por meio dos mecanismos de integração. O fortalecimento de
nossos esquemas de integração fronteiriça será, portanto, conducente ao
aprofundamento da dinâmica de integração regional e vice-versa.
No território peruano convergem o maciço central da coluna vertebral
continental formada pelos Andes e pelo nascimento da principal bacia fluvial
sul-americana: a bacia amazônica. Conseqüentemente, o Peru desempenha o
papel de pivô do eixo natural que percorre verticalmente a América do Sul e
que por sua vez forma, com o Brasil, o núcleo do horizonte transversal amazônico,
assim como a saída natural da produção do mencionado espaço geográfico em
direção ao Pacífico. Devido a isso, a perspectiva peruana de integração regional
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Antonio García Belaunde
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ampliou-se segundo uma seqüência que abarca os espaços andino, amazônico,
sul-americano, inclusive a projeção transpacífica.
A identificação da integração andina como eixo da ação externa peruana
foi uma decisão eminentemente política. De acordo com sua concepção original,
conforme os paradigmas vigentes no final da década de 60, o objetivo imediato
foi ampliar os mercados nacionais a fim de permitir a industrialização por meio
da substituição de importações. Os países andinos haviam coexistido até então
sem engajar-se em comércio mais significativo entre si e sem concertar medidas
em conjunto. Não obstante, o modelo integrador foi concebido como um
processo que, sobre a base de um mercado comum, conduzisse à concertação
política para realçar a presença internacional do conjunto.
Os signatários originais do Acordo de Cartagena de 1969 – Bolívia,
Colômbia, Chile, Equador e Peru – desenvolveram uma dinâmica ativa que se
consubstanciou na adoção de um vasto conjunto de normas e regulamentos e
no significativo aumento do comércio entre os membros do pacto. A entrada
da Venezuela em 1973 provocou a renegociação dos programas industriais e,
pouco depois, o governo militar instaurado naquele ano no Chile exigiu a revisão
do regime comum adotado para o tratamento do capital estrangeiro. O debate
desse tema motivou a retirada do Chile do grupo andino, em setembro de 1976.
A saída do Chile representou um questionamento substantivo do modelo de
desenvolvimento andino e isso retardou a integração econômica dos membros
restantes.
A dimensão política do processo de integração adquiriu impulso em 1979,
quando o chanceler do Peru, na época Carlos García Bedoya, promoveu a criação
do Conselho Andino de Ministros das Relações Exteriores. Essa iniciativa
correspondeu ao propósito de articular uma resposta política comum diante da
crise na Nicarágua. A ação política andina evitou a intervenção militar e permitiu
encontrar uma solução para o conflito, com a queda da ditadura somozista. No
final daquele ano, a ação do Conselho Andino impediu a consolidação de um
golpe militar na Bolívia e assegurou o retorno da institucionalidade democrática
naquele país.
Mediante a mencionada experiência de ação política conjunta, a integração
andina vinculou-se à defesa da democracia e dos direitos humanos. No ano
seguinte, 1980, com a presença dos governos democráticos de todos os países
andinos, seus Chefes de Estado subscreveram o compromisso de defender
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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obrigatoriamente os direitos individuais e acordaram expressamente que a ação
conjunta na proteção desses direitos não constitui violação do princípio de não-
intervenção. A identificação da democracia com a integração sub-regional levou
finalmente à assinatura, em 1998, da Declaração sobre o Compromisso da
Comunidade Andina para a Democracia, instrumento que facilitou a
incorporação, no ano seguinte, de uma cláusula democrática ao Protocolo
Adicional do Acordo de Cartagena.
Embora o âmbito andino tenha sido o caminho privilegiado pelo Peru
para estimular a integração, o componente territorial amazônico projeta
inelutavelmente sua ação externa para o espaço físico central da América do Sul,
com vistas a assegurar o desenvolvimento coerente, eficaz e sustentável da
Amazônia. A formulação inicial, na década de 70, desse fator condicionante da
política externa peruana, despertou certo ceticismo. Não obstante, o tema da
Amazônia encontra-se agora no centro do debate internacional e adquirirá
fatalmente relevância crescente, na medida em que esse espaço concentra um
quarto da biodiversidade mundial e conta com oito milhões de quilômetros
quadrados de florestas compartilhadas pelos oito países amazônicos.
A assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) em 1978
correspondeu precisamente à necessidade de articular esforços conjuntos para
preservar e utilizar de modo racional o espaço natural que compartilhamos.
Nesse sentido, o aprofundamento do TCA com a criação da Organização do
Tratado de Cooperação Amazônica (Otca) constituiu uma aposta estratégica
para cada um de seus membros e para a região em seu conjunto. A crucial
importância ecológica do espaço amazônico em escala mundial não fará senão
aumentar, com o tempo, o papel político que essa organização terá de
desempenhar – perspectiva essa cuja dimensão real ainda nos é difícil
compreender completamente.
Cabe sublinhar que o interesse peruano em impulsionar a cooperação
amazônica, além de derivar da importância natural inerente à bacia,
complementou significativamente as relações com os países vizinhos, concertadas
por meio do trabalho das comissões mistas bilaterais, de tal maneira que, no
âmbito amazônico, as ações adotadas nos cenários vicinal e regional se tornem
mutuamente enriquecedoras.
A composição andina e amazônica do Peru é compartilhada por cinco
membros da Comunidade Andina de Nações (CAN). Isso fez que a CAN e a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Antonio García Belaunde
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Otca subscrevessem, em 2004, o memorando de entendimento para colaborar
no cumprimento de interesses e objetivos comuns no que toca à integração
regional e à conservação da biodiversidade e dos recursos naturais, com vistas à
aplicação das medidas necessárias para assegurar o desenvolvimento sustentável
da região. De comum acordo, decidiu-se que a coordenação e a cooperação se
concentrariam nas áreas de recursos hídricos, florestas, solos, zonas protegidas
e no conjunto de temas relacionados com a biodiversidade, entre outros.
O entendimento alcançado entre a CAN e a Otca é uma demonstração
concreta da vinculação entre os mecanismos regionais em que se baseia a
construção da integração sul-americana.
O Peru promoveu a intensificação desse tipo de vinculação desde o final
do decênio de 70, procurando facilitar o desenvolvimento da ação conjunta
regional. A concertação política andina alcançada em 1979, por exemplo, serviu
de modelo para o grupo de Contadora, criado para mediar a crise centro-
americana ocorrida na década de 80. O governo peruano resolveu, em 1985,
fortalecer essa gestão mediadora com a criação do Grupo de Apoio a Contadora,
composto pela Argentina, pelo Brasil, Peru e Uruguai.
Com base na vinculação entre ambos os grupos, desenvolveu-se o
mecanismo de consulta e concertação política denominado Grupo dos Oito, o
qual, uma vez ampliado, converteu-se mais tarde em Grupo do Rio, uma instância
que abarca o conjunto dos países latino-americanos sob um esquema informal
sem apoio institucional. A amplitude do Grupo do Rio acarretou, no entanto, a
redução da força da ação do mecanismo, na medida em que a consecução dos
objetivos comuns diminuiu significativamente com o aumento dos membros.
Os indícios demonstram que o aumento de sua representatividade coincidiu
com o enfraquecimento de sua projeção internacional e de sua ação política.
Durante o primeiro governo do presidente Alan García (1985-1990), o
Peru procurou também incorporar ao Sistema Econômico Latino-Americano
(Sela) uma instância de diálogo político, com vistas a converter o mencionado
organismo em um Sistema de Estados Latino-Americanos que abarcasse os
interesses políticos e econômicos da região. Segundo o projeto original, a
experiência política conjunta do Grupo dos Oito seria incorporada ao novo
sistema latino-americano, sob um modelo de concertação política e integração
econômica que incluiria os 26 membros do Sela. O projeto político, entretanto,
não se solidificou e o próprio organismo perdeu validade ao longo da década
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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de 90 diante das negociações para a criação da Área de Livre Comércio das
Américas (Alca).
Cabe assinalar que, na formulação das iniciativas latino-americanas
impulsionadas pelo Peru durante o período 1985-1990, objetivos permanentes
de política exterior e premissas ideológicas do Partido Aprista Peruano
coincidiram no governo da época. Não é por acaso que o nome dessa
agremiação política deriva da Aliança Popular Revolucionária Americana
(Apra), propugnada desde a década de 20 pelo fundador e ideólogo do partido,
Victor Raúl Haya de la Torre. A doutrina originária do aprismo surgiu da
defesa continental contra o imperialismo. Segundo o pensamento primígeno
de Haya da la Torre, a unidade política da América Latina, ou Indo-América
segundo ele, era uma necessidade para conservar a liberdade e opor-se aos
interesses imperialistas. O nacionalismo indo-americano, conforme seu ponto
de vista, ultrapassava as fronteiras políticas e abarcava a grande nação formada
por todos os países latino-americanos.
Não obstante, as limitações dos modelos integradores de alcance latino-
americano plasmados no Grupo do Rio e no Sela, assim como a Associação
Latino-Americana de Integração (Aladi), levam-nos à conclusão de que é mais
viável construir a unidade com base no somatório dos processos de integração
existentes no interior da região. A dinâmica de integração com maior
capacidade de concretização parte da conjugação da ação conjunta em espaços
mais reduzidos e com número menor de membros, como o CAN e o Mercado
Comum do Sul (Mercosul), para ligá-la escalonadamente a esquemas de maior
envergadura. Esse enfoque implica intensificar de maneira paralela a integração
física, energética, comercial e cultural, sem subordinar a agenda de interesses
comuns à coincidência de ideologias políticas.
A integração, no caso sul-americano, necessita de que o Brasil desempenhe
o papel de animador do projeto de articulação regional. Nesse sentido, o Brasil
assumiu, a partir do ano 2000, a liderança regional que lhe cabe, quando propôs
a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações e promoveu a adoção da
Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (Iirsa),
concebida como pilar físico do projeto comunitário. A integração da infra-estrutura
regional orienta-se para o reordenamento do espaço sul-americano a fim de
inseri-lo de maneira mais competitiva no contexto globalizado e criar condições
viáveis para o desenvolvimento descentralizado no interior de cada Estado.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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O Brasil demonstrou também seu compromisso com o projeto
comunitário ao remover os empecilhos para as negociações comerciais CAN–
Mercosul tendentes a estabelecer uma zona sul-americana de livre comércio.
Em 2003, chegou-se a um acordo Peru–Mercosul e, no ano seguinte, a
Colômbia, o Equador e a Venezuela fizeram o mesmo, já que a Bolívia contava
desde 1996 com um Acordo de Complementação Econômica com o
Mercosul.
A colaboração entre o Brasil e o Peru para organizar a criação da
Comunidade Sul-americana de Nações ativou-se a partir da aliança estratégica
estabelecida entre ambos em 2003. Essa medida permitiu a conclusão do
acordo comercial Peru–Mercosul e isso facilitou a assinatura dos acordos
semelhantes com os países andinos restantes, de tal maneira que em 2004 já se
pudesse contar com os instrumentos de integração física e de livre comércio
propícios para a consecução do lançamento do projeto comunitário sul-
americano, decisão política executada no final daquele ano com a assinatura
da Declaração de Cusco.
A tarefa que resta, não obstante, continua a ser ampla para assegurar a
concretização do projeto comunitário regional, ainda que este tenha a vantagem
de contar com a densa trama integradora tecida na América do Sul. Seu
aprofundamento exige ampliar o livre comércio para além dos bens e serviços
e fortalecer a segurança, assim como desenvolver sua moldura normativa e
mecanismos financeiros. O caminho aberto em relação à integração física por
meio da Iirsa deve ser imitado pelos setores energéticos e pelos do campo
ambiental, de tal forma que sejam reforçadas a complementaridade e a
comunidade de critérios para o desenvolvimento sustentável.
Finalmente, o grande desafio continua a ser consolidar uma coordenação
política que nos permita adquirir projeção internacional significativa e eficaz.
A globalização em si mesma não facilita a luta contra a pobreza e a exclusão,
exigida por nossas sociedades. A inserção inadequada ou desvantajosa no
mundo global afeta as condições de coesão social dos Estados mais débeis,
sejam eles de rendas médias, sejam de rendas baixas. Conseqüentemente, a
ação política conjunta da América do Sul exige uma visão comum clara do
modelo de desenvolvimento sustentável com inclusão social necessária, assim
como uma capacidade real de promover e defender a mencionada visão
comum no cenário internacional.
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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A orientação regional da política externa
O primeiro cenário da ação externa peruana, tal como assinalamos, é o
entorno da vizinhança imediata. No caso peruano, esse entorno coincide com
os âmbitos físicos da integração andina e da cooperação amazônica. Nossos
vizinhos são nossos sócios, ou associados, no CAN. Por sua vez, todos os nossos
vizinhos, com exceção do Chile, são países amazônicos. Com o Brasil
compartilhamos, além disso, a principal via fluvial amazônica e sua projeção
bioceânica. Isso significa que a política peruana de vizinhança tem papel
preponderante na complementação das medidas de cooperação bilateral com
as iniciativas de cooperação andina e amazônica. Em conseqüência, a
intensificação de nossas relações com os países vizinhos estimula a integração
regional. Em caso contrário, a política exterior peruana desempenharia um papel
dissociador na região.
A primeira prioridade externa do governo peruano tem sido conduzir
uma política ativa de estreitamento de vínculos no entorno vicinal imediato,
com vistas a concertar agendas bilaterais construtivas, sobretudo nas zonas
fronteiriças que são de menor desenvolvimento relativo. Na execução dessa
política é que foi levada a cabo uma espécie de ofensiva de visitas presidenciais
e ministeriais aos países vizinhos. O dr. Alan García visitou, na qualidade de
presidente eleito, o Brasil, o Chile, a Colômbia e o Equador. Uma vez nomeado
Ministro das Relações Exteriores, durante os primeiros sessenta dias de governo,
realizei visitas de trabalho ao Brasil, ao Equador, à Bolívia e ao Chile e recebi,
em Lima, os chanceleres do Chile e da Colômbia.
A meta que nos anima é concentrar as ações, com nossos vizinhos, em
concertar e desenvolver interesses comuns, muito conscientes da projeção
regional de nossa política vicinal e de sua influência na facilitação das vinculações
integradoras andinas, amazônicas e sul-americanas.
Brasil
A interação com o Brasil desempenha papel chave e privilegiado no marco
das relações vicinais do Peru. O excelente estado das relações bilaterais alimenta
positivamente a prioridade política conferida ao aprofundamento da aliança
estratégica entre os dois países.
A nutrida agenda bilateral contém ainda a ampliação substancial do
intercâmbio, o início da interconexão física e econômica no quadro da Iirsa,
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através dos eixos binacionais Multimodal do Amazonas, Transoceânico, Central
e Interoceânico do Sul, a cooperação no sistema de vigilância e proteção da
Amazônia (Sivam/Sipam), a cooperação energética e a ampliação das freqüências
aéreas, assim como a concretização do aproveitamento conjunto das facilidades
portuárias peruanas no Pacífico.
O objetivo imediato desta etapa da relação bilateral é concretizar a
integração física entre os dois países. O início da construção da Ponte da
Integração entre Iñapari, no Peru, e Assis Brasil, no Brasil, e da estrada
Interoceânica, inaugura a interconexão de vastas zonas amazônicas fronteiriças
que compartilhamos, que são aquelas que exigem maiores esforços conjuntos
para superar seu menor grau de desenvolvimento relativo. As iniciativas para
consolidar a administração conjunta da bacia trinacional do rio Acre constituem
uma experiência adicional do enfoque transfronteiriço amazônico e
descentralizador que é preciso aprofundar.
A dimensão social do relacionamento peruano-brasileiro também não foi
descurada. Em setembro de 2005, entrou em vigor o Acordo sobre Facilidades
para Ingresso e Trânsito, que exclui o uso de passaporte e a exigência de visto
entre ambos os países. Posteriormente, no início deste ano, por ocasião da visita
do chanceler brasileiro ao Peru, foram assinados acordos para evitar a dupla
tributação e a evasão fiscal, promover o comércio e os investimentos, cooperar
em ciência e tecnologia espacial e intercambiar métodos de gestão em pesquisa e
desenvolvimento agrícola. Esse conjunto de acordos permitiu incrementar o fluxo
turístico bilateral e facilitar a execução de transações comerciais, financeiras e de
investimento, criando assim as condições para que a sociedade civil e as empresas
privadas assumam a tarefa de proporcionar conteúdo social à integração física.
Em resumo, a relação entre o Peru e o Brasil constitui um exemplo de
sinergia, na qual os avanços alcançados no campo bilateral concordam com os
objetivos perseguidos no plano da integração regional, com ênfase especial no
desenvolvimento descentralizado das zonas fronteiriças amazônicas. A ativa
relação bilateral mantida com o Brasil é uma amostra do modelo de interação
dinâmica que o Peru pretende consolidar com seus demais vizinhos.
Chile
A relação peruano-chilena foi significativamente reforçada com a inclusão
do Chile como membro associado da CAN a partir de setembro deste ano,
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
122
marcando assim seu retorno ao âmbito andino após 30 anos de ausência.
Previamente, no transcurso da visita do chanceler chileno a Lima, foi assinado o
Acordo de Livre Comércio que aprofunda o Acordo de Complementação
Econômica assinado em 1998. O Chile, por sua vez, tomou a iniciativa de
convidar o Peru para fazer parte do Acordo Transpacífico de Associação
Econômica Estratégica (P4), esquema que atualmente liga o Chile com o Brunei,
a Nova Zelândia e Cingapura.
A recomposição do relacionamento com o Chile está sendo executada
mediante a reativação da ampla arquitetura bilateral existente. Nesse sentido,
deve-se entender a retomada das reuniões “2 + 2”, facilitadas pelas consultas e
pela coordenação entre os ministérios das Relações Exteriores e de Defesa de
ambos os países. Paralelamente, a Comissão de Fronteiras está encarregada de
prosseguir com os avanços do sistema de controle integrado de fronteiras e do
conjunto de temas de interesse comum das populações da mencionada zona.
Também está prevista a convocação de novas reuniões das comissões binacionais
de cooperação técnica e de limites.
O relacionamento bilateral com o Chile é uma demonstração palpável das
vantagens de desenvolver ações conjuntas nas áreas de interesse comum e
progredir por meio de canais separados na solução dos temas controvertidos.
Ambos os países contam, além disso, com condições que facilitam a intensificação
da relação devido ao alto nível de investimentos chilenos no Peru, à numerosa
comunidade peruana residente no Chile e ao constante crescimento do
intercâmbio comercial.
Equador
O relacionamento com o Equador foi redefinido qualitativamente em 1998
com a assinatura dos Acordos de Brasília, um conjunto de convênios alcançados
graças à generosa e ativa mediação do Brasil, entre outros países. Dentro desse
quadro, a assinatura do Acordo Amplo de Integração Fronteiriça, Desenvolvimento
e Vizinhança e do Convênio para Aceleração e Aprofundamento do Livre
Comércio ativou uma intensa rede de interação bilateral, em diversos campos,
que se mantém em pleno vigor. O governo peruano, conseqüentemente,
comprometeu-se a assegurar o cumprimento dos pontos pendentes dos Acordos
de Brasília, a fim de facilitar o aprofundamento e a intensificação do
relacionamento bilateral.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Antonio García Belaunde
123
No caso particular da renovada relação peruano-equatoriana, a Comissão
de Vizinhança criada em 1998 constitui a instância política e representativa
encarregada da execução dos programas e dos projetos que atendem à
comunidade de interesses entre os dois países. Paralelamente, o Plano Binacional
de Desenvolvimento da Região Fronteiriça compreende um conjunto de projetos
de integração viária, fluvial e administrativa, inédito por sua envergadura, que
objetiva converter a zona de fronteira em um espaço de intercâmbio de bens e
serviços e de concertação de políticas locais entre as populações de ambos os países.
Cabe assinalar que os projetos de integração física contemplados no âmbito
da execução do Plano Binacional complementam as decisões e as medidas
adotadas no quadro da Iirsa. Os projetos aprovados observam, também, critérios
preestabelecidos de sustentabilidade ambiental, impacto de desenvolvimento
social e de inclusão. O emprego desses critérios contribui para a manutenção da
presença significativa da cooperação internacional não-reembolsável nos
esquemas de financiamento do Plano Binacional.
As características da atual relação peruano-equatoriana tornam evidente
que os acordos de 1998 desencadearam a intensa dinâmica bilateral que havia
permanecido constrangida até então devido ao peso atribuído aos interesses
em contraposição.
Bolívia
O Tratado Geral de Integração e Cooperação Econômica e Social assinado
com a Bolívia e recentemente ratificado pelo Peru é a moldura acordada para
intensificar e afirmar o amplo conjunto de vínculos que tradicionalmente ambos
os países mantiveram. Esse acordo procura, em essência, a formação de um
mercado comum peruano-boliviano.
O desenvolvimento fronteiriço constitui área temática de particular
importância no interior da nutrida agenda bilateral. Em vista disso, desde 2001
entrou em vigor o Acordo para Criação e Estabelecimento da Zona de Integração
Fronteiriça, adotado no quadro da Decisão 501 do CAN. Como medidas
complementares, nos dois anos seguintes, foram assinados acordos de supervisão
fronteiriça conjunta, regularização migratória e cooperação aduaneira.
Por outro lado, o uso em condomínio das águas do lago Titicaca, sob a
responsabilidade de uma entidade autônoma encarregada da gestão integrada
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
124
da bacia lacustre, constitui um exemplo de cooperação bilateral nesse campo
reconhecido internacionalmente. O Peru proporcionou à Bolívia, igualmente,
todas as facilidades para a utilização do porto marítimo de Ilo, inclusive o
aproveitamento de uma zona franca e o desenvolvimento de um projeto turístico
no litoral peruano.
Por último, o Convênio de Integração e Complementação Mineira realizado
em 2003 e a Carta de Intenção para a Complementação Energética subscrita em
2004 formam a moldura jurídica vinculante adotada para aprofundar a
cooperação bilateral produtiva.
A trama de instrumentos bilaterais descrita reflete com nitidez o vasto
alcance da tradicional vinculação histórica, social e cultural que une o Peru e a
Bolívia, e sua rica projeção.
Colômbia
As relações peruano-colombianas enquadram-se no conceito de uma
associação preferencial que busca a integração em função da concertação
política, do desenvolvimento fronteiriço, da cooperação social e técnica e da
segurança e defesa.
A cooperação em matéria de segurança e defesa é o eixo central da relação
bilateral e é um dos campos em que mais se avançou nos últimos anos. A política
de segurança e defesa comum foi impulsionada em 2002 com a criação de
instâncias de coordenação ministerial e com a assinatura de convênios de
interdição aérea e fluvial. O objetivo comum é assegurar a fluidez e o dinamismo
da cooperação e o intercâmbio de informação e inteligência entre as forças
armadas e policiais de ambos os países. O interesse conjunto de manter uma
luta eficaz contra o narcotráfico motivou, igualmente, o fortalecimento da
assistência judicial bilateral e a assinatura de novo tratado de extradição.
No campo do desenvolvimento fronteiriço, a Comissão de Vizinhança e
Integração tem a responsabilidade de adotar as medidas para melhorar as
condições de vida das populações da fronteira. Sua atividade principal consiste
na preparação e na execução de projetos de saúde, segurança alimentar e
educação. O intercâmbio de experiências em programas orientados para a atenção
a problemas sociais se desenvolve ativamente de maneira paralela, por meio da
comissão mista de cooperação técnica.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Antonio García Belaunde
125
Finalmente, o Plano Binacional para o Desenvolvimento Integrado da Bacia
do rio Putumayo está encarregado de assegurar a gestão sustentável dos recursos
naturais compartilhados na zona fronteiriça amazônica, em estreita coordenação
de medidas adotadas pela Otca.
Linhas regionais da política externa
As condições atuais dão motivo a que o governo peruano concentre sua
atenção na consolidação das duas comunidades regionais, a andina e a sul-
americana, e no fortalecimento de suas relações inter-regionais. Estas últimas
constituem o núcleo das agendas da V Cúpula de Chefes de Estado da América
Latina e Caribe–União Européia (ALC–UE) e da XVI Cúpula do Fórum
Econômico Ásia–Pacífico (Apec), que se realizarão em Lima durante o ano
de 2008.
Há quase quarenta anos, o Peru identificou o âmbito andino como o
caminho natural para projetar-se internacionalmente. Apesar das marchas e
contramarchas do processo de integração andina, esse continua a ser nosso espaço
imediato de ação conjunta. Por isso, o governo peruano e seus sócios andinos
têm negociado intensa e prolongadamente para resgatar, normalizar e modernizar
o processo de integração sub-regional. A possibilidade de que, em 1997, o Peru
se retirasse do grupo andino demonstrou que o processo perderia sentido com
a ausência de seu nexo e pivô histórico, político e geográfico. Por esse motivo, o
Peru mantém em vigência sua aposta no fortalecimento e na projeção
internacional da CAN, com vistas a aperfeiçoar o espaço econômico comum
com um arcabouço institucional que sirva de plataforma para facilitar a integração
com outros blocos comerciais e países no quadro da economia global.
Paralelamente, como última etapa do conjunto de experiências
integracionistas acumuladas na região, o Peru e o Brasil promoveram a formação,
em 2004, da Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa), baseada na
convergência CAN–Mercosul, junto com o Chile, e a incorporação da Guiana e
do Suriname na dinâmica integradora regional. O projeto se assenta, também,
no caminho inovador de articulação e integração da infra-estrutura regional a
fim de reordenar estrategicamente o espaço físico que compartilhamos, com
vistas à criação das condições necessárias para fomentar o desenvolvimento
sustentável descentralizado e a inserção global competitiva.
Visão estratégica regional da política externa do Peru
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
126
A construção da Casa, tarefa pendente que exige perseverança e clareza
de objetivos, constitui a prioridade sul-americana, na medida em que tal projeto
político e comercial, assim como de integração física e social, se dirige a assegurar
a inserção eficiente da região no sistema internacional. Sua concretização
significará, em dúvida, a formação de um ator político e econômico regional
qualitativamente superior, inscrito em uma noção de modernidade.
Não obstante, ainda que se mantenha em vigor o objetivo central de
conseguir a consolidação da Casa, a prioridade imediata, do ponto de vista dos
países andinos, é a conclusão do Acordo de Associação CAN–UE, que inclua
diálogo político, programas de cooperação e um acordo comercial, tal como
foi acordado em maio passado na IV Cúpula ALC–UE, em conformidade com
os objetivos estratégicos inter-regionais. A consecução do acordo de associação
CAN–UE consistirá, em si mesma, em experiência que fortalecerá a ação
concertada entre os países andinos, devido ao tipo de negociação em bloco que
implica. O processo de avaliação conjunta do estado da integração andina
terminou satisfatoriamente em julho passado e a definição das bases de
negociação se encontra em fase final.
A meta traçada é que a assinatura do acordo ocorra em março de 2008,
por ocasião da realização, em Lima, da Cúpula ALC–UE, encontro que tem
por objetivo primordial aprofundar a inter-relação regional, a fim de concertar
medidas de equilíbrio diante do preponderante papel político, comercial,
econômico e cultural dos Estados Unidos no continente americano.
O Peru demonstrou também interesse crescente em participar de forma
ativa no desenvolvimento econômico e comercial que vem se acelerando desde
o final do século passado na região Ásia-Pacífico. Isso fez que o país ingressasse
na Apec em 1988, adotando, para esse fim, uma inserção consentânea com o
modelo de economia aberta. Como reflexo do interesse peruano em fortalecer
sua projeção transoceânica, concordou-se em realizar, em Lima, a XVI Cúpula
da Apec. O objetivo central perseguido pelo Peru é transformar a oportunidade
política da organização da cúpula em vantagens competitivas concretas para os
países latino-americanos que são membros desse fórum. Um objetivo
complementar é apressar gestões tendentes a facilitar a incorporação de mais
países sul-americanos à Apec.
Sobre a base de nossa projeção transoceânica, o governo peruano
contempla propor a criação de uma Associação Latino-americana do Pacífico.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Antonio García Belaunde
127
A iniciativa busca incluir a CAN e o Chile como membro associado em um
mecanismo econômico que abarque os países da América Central e o México. A
proposta tem também por objetivo facilitar o ingresso da Colômbia e do
Equador no foro da Apec. Sua finalidade estratégica é fortalecer o
posicionamento comercial do conjunto dos países nos mercados da Ásia–
Pacífico.
Finalmente, a realização da Cúpula da Apec, em Lima, proporciona uma
oportunidade propícia para explorar medidas por meio das quais os países sul-
americanos possam se articular de maneira mais ampla e proveitosa com a
dinâmica economia chinesa, tendo em vista sua agressiva expansão comercial.
O importante papel que a China desempenha atualmente na economia mundial
e sobretudo as projeções de seu crescimento exigem a concertação de uma
resposta regional dada a poderosa dimensão da economia desse país. A inserção
positiva do Peru e da América do Sul na Ásia impõe reavaliação da relação com
a China, em função do fortalecimento qualitativo do intercâmbio com seu
mercado em acelerado crescimento.
Em forma de conclusão
As linhas mestras da diplomacia peruana adaptam-se às novas realidades
e aos desafios. Uma dinâmica de concertação e de construção de cenários que
conduza a renovadas estruturas de cooperação é o que define a diplomacia
peruana no governo do Presidente García.
Essa diplomacia busca uma inserção internacional que seja competitiva
no campo econômico e, na área política, aposte na prevalência do multilateralismo
e do Direito Internacional; que, no campo social, afirme a governabilidade
democrática e a defesa e promoção dos direitos humanos, com um programa
eficiente de combate à pobreza e à exclusão social; e que, finalmente, no domínio
cultural, resgate e valorize internacionalmente o rico acervo cultural da nação
peruana.
O projeto não é tarefa que o Peru pretenda abordar sozinho. Será mais
bem realizado com a adesão de nossos vizinhos da região.
Tradução: Sérgio Duarte
Revisão: Regina Furquim
DEP
Suriname por seus autores
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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Suriname por seus
autores
Jerome Egger*
* Presidente do Banco Central do Suriname
o decorrer dos anos, travaram-se várias discussões a respeito da questão
sobre qual seria a literatura surinamesa. Não somente no próprio país, mas tal
pergunta também é feita fora de suas fronteiras. Principalmente no antigo país-
mãe, os Países Baixos, isso também veio à baila e até agora ainda se faz esta
pergunta. Isso demonstra que ainda existem incertezas num país que já é
independente há trinta anos. A herança de um passado colonial nem sempre é
bem assimilada, o que também vale particularmente para muitas colônias que
nem sempre sabem muito bem como lidar com esta parte da história. Será que
isso deve ser relegado sem justificativa alguma ou será que é tão essencial que
realmente merece ser discutido?
Neste artigo, dar-se-á uma visão global da a literatura surinamesa. Também
serão feitas breves considerações sobre obras escritas durante o período colonial.
Em seguida, serão relembrados os anos que se seguiram à Segunda Guerra
Mundial. Nessa época, a produção dos trabalhos literários começou a crescer,
principalmente nos anos da década de setenta, quando o país se tornou
independente e houve, então, um enorme período de florescimento nessa área.
N
* Professor da Universidade Anton de Kom da República do Suriname.
jlegger@yahoo.com
Jerome Egger
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
129
Não serão abordados somente autores que foram muito ativos no próprio
Suriname ou que ainda o são, mas também escritores que publicaram obras
principalmente nos Países Baixos e que ali residem, mas possuem origem
surinamesa.
Uma orientação
Uma discussão que ocorreu há mais de dez anos nos Países Baixos
destacou alguns pontos que são pauta de debates sobre a literatura surinamesa.
Na ocasião, Anil Ramdas alegou que, na realidade, a literatura surinamesa
fracassou. Fundamentou tal provocação com exemplos de alguns romances
conhecidos de autores surinameses que nem podem ser comparados com
outros escritores caribenhos. Disse, ainda, que os escritores do seu país nativo
não podem observar a realidade. Da mesma forma, alegou que os escritores
nem sempre se devem sentir obrigados a ajudar a construir uma nação.
Ele desejava justamente que os autores descrevessem e pesquisassem o
comportamento das pessoas, expusessem as razões de seus atos e que
revelassem os seus motivos secretos. Também deveriam estar em condições
de refletir desespero. No entanto, observou ainda que Ramdas se apresentou
muito ríspido porque a sua peça tinha o objetivo de servir como ponto de
partida para discussões sobre a literatura surinamesa.
Geralmente esse tipo de introdução causa uma onda de reações. Uma dessas
reações partiu de Michiel van Kempen. Ele apontou, por um aldo, que é fácil
procurar exemplos na literatura surinamesa para comprovar algumas alegações
feitas por Ramdas, mas que, por outro lado, esses exemplos estavam muitas
vezes reunidos nos trabalhos completos do citado autor. Apontou também que
existem suficientes poemas em que se nota uma série de emoções e sentimentos
que expressam susto, perplexidade, repúdio e desespero. Chamou também a
atenção para um ponto importante, que é a pequena comunidade de convivência
surinamesa. Isso influencia de forma natural aquilo que um escritor quer escrever
e o que ele prefere manter para si mesmo. Mas disso não se pode concluir que a
qualidade também seja prejudicada. Os escritores estão preocupados com o
Suriname e, com certeza, tentam organizar, o que ocorre ao seu redor. Esperança
é um anseio legítimo, alegou van Kempen.
A segunda reação contra a peça de Ramdas veio da escritora Thea Doelwijt.
Em um artigo irônico e sarcástico, na forma de uma curta peça teatral, ela
Suriname por seus autores
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
130
mostrou o absurdo de algumas das referidas alegações. Para dar uma tonalidade
extraforte, a peça se desenrolou parcialmente em Casablanca, Marrocos, que
poderia remeter ao famoso e conhecido filme de Hollywood, como também a
uma diáspora dupla: fora do país nativo, fora da antiga colonizadora.
Tais discussões demonstraram que a literatura surinamesa causou reações
muito variadas e que todas encontraram dificuldades para chegar a um consenso
sobre o que realmente e precisamente deverá ser considerado como pertencente
a tal categoria. Quase na mesma época, também houve um congresso no
Suriname sobre as perspectivas da arte surinamesa, em que as letras também
foram abordadas. O escritor Robby Parabirsing deu a sua visão sobre o assunto,
dizendo que um aspecto importante da literatura no Suriname era a falta de
crítica. De acordo com a sua opinião, os “escritores e poetas não conseguem
ajustar e melhorar os seus trabalhos sem o bom desempenho de uma crítica
literária”. Quando, nos anos da década de oitenta, houve melhor desempenho
na crítica literária, infelizmente uma geração inteira, que esteve ativa nos anos
dos decênios de sessenta e setenta, partiu para os Países Baixos ou algumas
pessoas dessa geração já faleceram, acrescentou. De fato, pode-se começar
tudo de novo. Do mesmo modo, advertiu que não se estabelecessem exigências
exageradas nas críticas, porque isso poderia causar um efeito contrário. Deixou
claro que a crítica dos anos da década de oitenta exigiu demais dos trabalhos
feitos naquela época. E, o resultado disso foi o fato de os escritores não terem
tido mais coragem de publicar seus trabalhos. Parabirsing também assinalou
em seu artigo um outro aspecto na discussão sobre a literatura surinamesa: a
falta de crítica aos próprios produtos. Somente na segunda metade da década
de oitenta apareceram as críticas de forma regular.
Se se observam esses dois momentos no início do decênio de noventa do
século passado, pode-se chegar a algumas conclusões. A primeira delas é a de
que as discussões sobre a literatura surinamesa não são conduzidas apenas
localmente, mas com certeza também na antiga pátria. O vínculo de muitos
surinameses com a sua pátria, que, na década de sessenta e principalmente por
volta do período de independência em 1975, partiram para os Países Baixos,
continua sendo muito forte e isso determinou que eles se envolvessem
irrevogavelmente nas discussões sobre qualquer assunto de qualquer natureza
de sua pátria, inclusive a literatura. A segunda conclusão é de que os escritores,
sem dúvida alguma, levaram em consideração as coisas de que estavam tratando.
Isto foi demonstrado nos artigos de van Kempen e de Parabirsing. Uma terceira
Jerome Egger
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
131
conclusão é a de que ainda faltam uma e outra coisa no Suriname para que se
possa falar em literatura madura.
Foi essa a discussão no início da década de noventa do século passado. O
tempo não parou e aqui e acolá foram feitas alterações. Existe um grupo de
escritores, constituído no ano de 1977, que está ficando cada vez mais ativo. A
página literária semanal dedicou atenção à literatura local, mas também a trabalhos
de escritores caribenhos e latino-americanos. Editoras no Suriname e nos Países
Baixos estão cada vez mais dispostas a colocar livros à disposição para ativar
discussões a esse respeito. No passado, foi bem diferente.
Outro grande avanço é a possibilidade de poder participar de seminários
e congressos além das fronteiras do país. Os escritores estabelecidos no Suriname
recebem cada vez mais convites para expor os seus trabalhos em outros lugares.
Finalmente, durante os últimos dez anos, foram realizados alguns congressos
internacionais no próprio Suriname.
O primeiro congresso que pode ser mencionado realizou-se no ano de
1997, quando o Grupo de Escritores de 1977 (“Schrijversgroep’77” ) comemorou
os vinte anos de sua existência. Vários convidados participaram do evento, vindo
das Guianas, das Antilhas Holandesas, de Trinidad Tobago e dos Países Baixos.
O antigo presidente do grupo, Frits Wols, disse “o grupo faz esforços na tentativa
de que o escritor/poeta surinamês mantenha ou descubra a sua dignidade e que
ele se expresse sem restrições de natureza lingüística”. Apontou as limitações
que a redação na língua neerlandesa impõe em um continente onde esse idioma
não é falado em nenhum outro país. Esse encontro, realizado com êxito e com
um grande público, de qualquer forma, permitiu que os interessados fossem
confrontados com os vários aspectos da empresa literária, tanto local como
internacional, e que muita atenção se dispensasse à literatura, em geral pelos
diversos meios de comunicação, também fora das fronteiras.
O segundo congresso ocorreu em 2002, quando se realizou um festival
literário, em novembro, intitulado “Het Woud der Verwachting” (A Floresta da
Esperança), em nível internacional, com grande participação de instituições e
escritores holandeses. Isso também causou alguma perturbação, quando alguns
escritores surinameses, por diversos motivos, se recusaram a participar do evento.
As noites do festival receberam um número extraordinário de visitas e houve
várias apresentações, não somente na capital, Paramaribo, mas também nos
distritos. Os surinameses de diversos segmentos, mas principalmente estudantes
Suriname por seus autores
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de instituições de ensino, foram confrontados com trabalhos de autores de outros
países. Cuidou-se também de apresentar vários debates que, de qualquer forma,
induziriam as pessoas a pensar. Um empurrão de vez em quando na literatura
não faz mal nenhum. E isso aconteceu.
Resumindo, as discussões que deveriam ser conduzidas para se estabelecer
uma orientação sobre a literatura surinamesa foram feitas, mas não resultaram
em resposta unânime. As divergências da primeira década do século 21 ainda
não emudeceram. De vez em quando, elas ainda vêm à tona. Agora já existem
mais escritores que moram e trabalham no Suriname e que publicam os seus
trabalhos aqui. Eles irradiam um certo orgulho e se sentem surinameses, mais
nada. Diferem dos poetas dos anos sessenta e setenta, que muitas vezes
assimilaram o nacionalismo nos seus trabalhos. A qualidade do trabalho melhorou
e contatos internacionais possibilitaram que suas obras sejam avaliadas além das
fronteiras.
Vitalidade existe na literatura do Suriname, havendo ou não havendo uma
orientação clara de sua literatura.
O período inicial
Agora será oferecida uma imagem global, em ordem cronológica, sobre
o desenvolvimento interno da literatura surinamesa. Um bom início é a tradição
oral entre os habitantes originais do Suriname, os nativos. Eles expressaram
muitos de seus sentimentos e conhecimentos sobre o próprio passado em canções.
Na canção gravada em Callaloo, contam sobre o grande navio que traz canibais
para comê-los. Será que isso se refere aos brancos que chegaram às Américas e
que, não literalmente, mas em sentido figurado, consumiram os povos e os
levaram a viver na marginalidade de várias comunidades? Atualmente existe
muito interesse com relação ao ponto de vista desses nativos que, a sua maneira,
criaram uma literatura que agora, cada vez mais, é expressa em trabalhos escritos.
Uma outra cultura (na realidade, são mais culturas) que possui forte tradição
oral e chama a atenção são os diversos grupos que descendem de escravos
fugitivos e que constituíram, no interior do Suriname, a própria comunidade e
que, a seu modo, expressaram o que lhes aconteceu. Portanto, assim, a sua maneira,
também deram vida a uma literatura não escrita para o Suriname. Seus contos,
suas canções e outras maneiras de estabelecer a própria cultura chamaram, no
Jerome Egger
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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decorrer dos anos, a atenção de cientistas de diversos países. Dessa forma, mais
se ficou conhecendo desse grupo que também pertence à comunidade
multicultural do Suriname.
Apesar de haver vários livros escritos sobre o Suriname, a rigor, não podem
ser considerados como literatura desse país. Mesmo assim, é interessante tecer
algumas considerações sobre um romance que se desenrolou nessa região. Aphra
Behn escreveu o seu romance “Oroonoko or the History of the Royal Slave”
(Oroonoko ou a História do Escravo Real ) em 1688. O escritor das Antilhas,
Frank Martinus Arion, menciona que esse talvez seja um dos primeiros romances
surinameses e que a imagem tradicional que se formou sobre o surgimento do
romance na primeira metade do século 18 pode não ser verdadeira. Arion
informou que Behn usou a situação do Suriname para expor a luta política na
Inglaterra no século 17, igualando-a às diversas lutas em torno da casa real. A
traição é, especialmente, um tema importante. De acordo com Arion, Behn
deve ter estado no Suriname, porque algumas de suas descrições sobre a natureza
parecem bem autênticas. No entanto, isso ainda é um ponto de discussão. Porém,
o mais interessante disso tudo é claro: como pano de fundo, o país Suriname
desempenhou um papel no desenrolar do romance.
No período colonial, foram escritos diversos livros cujo tema foi o
Suriname. Foram viajantes, plantadores ou outras pessoas que, durante um
curto ou um longo período, visitaram o país. Tais escritos, de modo geral,
possuem mais valor histórico do que literário. Alguns são atualmente
considerados clássicos porque criaram uma imagem importante da sociedade
durante um período específico. Também havia sociedades que estimularam a
leitura e que foram responsáveis pela publicação de poemas e de outros
trabalhos literários. Sua qualidade é variável.
No final do século 19, apareceram alguns escritores locais que publicaram
livros de melhor qualidade e que foram relevantes para o desenvolvimento
literário do país. Alguns romances do padre da Igreja Católica Romana, François
Henry Rikken (1863-1908) merecem um lugar na lingüística surinamesa.
Principalmente, Codjo o Incendiário (“Codjo de Brandstichter”) ficou muito
conhecido. Este romance histórico conta a história de Codjo, que em setembro
do ano de 1832, provocou um incêndio na capital e, por causa disso, uma grande
quantidade de casas virou cinzas. Ele foi preso com alguns outros e, em janeiro
de 1833, foi queimado vivo. Rikken conta a história e sabe fazer uma boa
Suriname por seus autores
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reconstrução dela porque utilizou, no que foi possível, fontes autênticas, para
proporcionar ao leitor “um esboço fiel de Paramaribo, como também uma
história detalhada do incêndio de 1832”. Isso tudo faz que valha a pena ler o
livro. No entanto, o leitor do século 21 deve sentir-se menos encantado ao saber
que Rikken deu muita importância ao fato de que Codjo se converteu no último
momento e que, ao caminhar para a fogueira, pede perdão. Isto não significa
que o livro perdeu o seu valor para a literatura surinamesa, porque oferece a
oportunidade de se ter uma imagem da sociedade daquela época.
Na primeira metade do século 20, alguns livros foram publicados e havia
jornais que divulgaram algum trabalho literário. Era o período do aumento do
sentimento a respeito do negro, o que determinou que cada vez mais surinameses
de origem africana e de outras misturas se tornassem ativos e dessem forma à
literatura. Anton de Kom (1898–1945) publicou um livro que teve muita influência
entre a geração de surinameses que, nas décadas de sessenta e setenta, foi estudar
nos Países Baixos. Alguns de seus poemas também são conhecidos.
Um outro nome relevante é Julius Koenders (1886–1957). Foi ele que
estimulou o uso do idioma sranan, uma língua que a maioria dos surinameses
falava e ainda fala, e que não início, foi usada como língua de contato entre os
eslavos e brancos e, mais tarde, entre os diversos grupos étnicos. É considerada,
pelos descendentes dos escravos na região litorânea, em grande parte, como a
sua língua nativa. Como editor de um jornal que somente publicava nesse idioma,
o Foetoeboi, Koenders contribuiu para a emancipação desse grupo e para o
uso dessa língua.
Finalmente, há o representante de um grupo de contratantes que, em 1873,
chegou ao Suriname, vindo da atual Índia. Rahman Khan (1875–1972) nasceu
na Índia e chegou em 1898 ao Suriname. Ele escreveu poesias que talvez não
possam ser consideradas como de alto padrão, mas que possuem valor histórico.
Além disso, recentemente apareceu uma tradução de sua autobiografia. Por isso,
ele se tornou importante para a literatura surinamesa.
Albert Helman
Albert Helman, pseudônimo de Lodewijk (Lou) Lichtveld, nasceu no ano
de 1903 no Suriname. É um escritor que certamente deve ser tratado à parte,
porque ele esteve em atividade durante muitas décadas, deixou um grande volume
Jerome Egger
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de trabalhos e também porque escreveu uma certa quantidade de livros que,
sem maiores comentários, podem ser considerados como clássicos. Também
compôs músicas, colaborou trabalhando na produção do primeiro filme sonoro
nos Países Baixos e realizou trabalhos jornalísticos. Faleceu em 1996. Significa
que ele passou por vários períodos na história da literatura surinamesa. Deve-se
dizer, enfim, que também era uma figura de destaque nas letras surinamesas.
Escritores jovens, que surgiram nas décadas de sessenta e setenta, já fizeram
uma crítica contra Lodewijk e perguntaram se eles poderiam considerá-lo como
um autor surinamês. Nos anos oitenta e noventa, ele foi mais reconhecido e
estimado e, atualmente, já não se discute se ele é ou não é surinamês.
Lodewijk ficou fora de seu país durante um logo período de sua vida. Os
Países Baixos, Espanha, México, Tobago e Itália são apenas alguns dos países
onde ele permaneceu durante um período menor ou maior. Mesmo assim, pode-
se dizer que o seu vínculo com o Suriname – às vezes positivo, mas às vezes
também negativo, principalmente depois do golpe militar em 1980, quando ele
se comportou muito negativamente diante dos acontecimentos no seu país nativo
– continua ainda muito forte, o que sempre ficou patente nos seus trabalhos.
Além disso, ele também poderá ser considerado como um dos conhecedores
da cultura e sociedade surinamesa. Escreveu sobre estudos antropológicos e
históricos. Aqui ele se refere de forma resumida a sua ficção e a alguns trabalhos
importantes para a história da literatura do país.
Em 1926, apareceu o livro “Zuid-Zuid-West” (Sul–Sul–Oeste). Neste livro,
o Suriname foi descrito de forma muito espirituosa. Um homem solitário que
vive nos Países Baixos olha para trás, para o seu país nativo. É notável que, já em
1926, Helman, no prefácio, tenha feito uma apresentação na língua sranan. Isso,
na época, não era aceitável. Tal idioma não foi visto como uma língua completa.
Partia-se até do ponto de vista que falar tal idioma somente poderia conduzir ao
subdesenvolvimento porque frearia o bom conhecimento da língua neerlandesa.
O que também pode ser considerado típico do livro é que ele, de fato, acusou os
Países Baixos de que estavam deixando a sua colônia “murchar... até um deserto
árido”. Além disso, apontou que os Países Baixos estavam somente interessados
nos lucros e não, em investir. Ele chegou até ao ponto de dizer que os holandeses,
há muitos séculos, são ladrões. E ainda acrescentou, de forma sarcástica, que
esperava que eles fossem pelo menos “ladrões carinhosos e não vilões”. Até
hoje ainda vale a pena ler este livro, que já foi reeditado várias vezes.
Suriname por seus autores
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Um dos romances mais conhecidos de Helman é “De Stille Plantage” (A
Plantação Silenciosa). Este livro ainda é lido nas escolas no Suriname.
Provavelmente, este livro lhe deu mais reputação. O romance histórico descreve
a vida em uma plantação quando a escravidão ainda não fora abolida. A frase de
abertura já leva a reconhecer como algumas descrições são muito inteligentes:
“Lembranças são como pássaros sobressaltados que batem as asas de telhado
em telhado, que mal tocam os seus topos e novamente deslizam no ar”. As
descrições da natureza e do meio ambiente da época são os pontos altos do
livro. O romance conta a história de um casal francês que partiu para a Índia
Ocidental para construir uma vida nova. Mas idealismo numa sociedade de
escravidão pode conduzir à ruína, e isso ocorreu. Morte e destruição, em tal
conjuntura, sempre fazem com que se lançe um olhar para trás, e a volta à Europa
geralmente surge como a única opção. Isso realmente ocorreu com parte da
família.
Na idade mais avançada, Helman escreveu “Hoofden van de Aoyapok!”
(Cabeças de Aoyapok, 1984). O tema versa sobre um expatriado que partiu do
seu próprio ambiente e que não se encontrava mais em condição de se adaptar
em nenhum lugar. No final, o seu retorno ao lugar de nascimento se tornou um
fiasco. O livro foi construído com base em alguns discursos do nativo Malisi.
Deste romance, fez se uma peça teatral já apresentada nos Países Baixos, como
também no Suriname.
Finalmente, também se faz uma ligeira pausa na grande obra histórica de
Helman, “De Foltering van Eldorado” (O Tormento de Eldorado). Este livro
apareceu em 1983. Trata-se de uma descrição detalhada das Guianas, onde ele
não se limita às partes que foram colonizadas pelos ingleses, holandeses e franceses,
mas também às partes da Venezuela e do Brasil, e para isso também se baseia
em acordos ecológicos e no fato de que os nativos dessas regiões possuem muitas
afinidades. De um lado é um pedaço de história extraordinariamente interessante,
em que ele fez maravilhosas descrições da natureza com as possibilidades e
impossibilidades dessa região, e em que ele descreve, em grandes linhas, os
antecedentes históricos de uma região consideravelmente grande. Mas também
se deve encarar de forma crítica, principalmente a sua análise sobre século 20.
Nisso, ele não se acanhou em fazer alguns pronunciamentos duros que deixaram
uma imagem errônea do desenvolvimento de diversos países. Tanto os talentos
positivos como os negativos de Helman aparecem no livro. Apesar das restrições,
as obras de Helman continuam sendo as únicas que nunca foram igualadas por
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alguém no Suriname e é provável que não se encontre mais que um punhado de
pessoas fora das fronteiras deste país que o igualem.
O ano de 1957
O ano de 1957 muitas vezes é considerado na literatura surinamesa como
ponto de partida. Por quê? Naquele ano, apareceu a coletânea de poemas de
Trotji (Aanhef) van Trefossa, pseudônimo de Henry de Ziel (1916–1975). Por
que esta coletânea se tornou tão importante? Em primeiro lugar, porque a
qualidade dos poemas é muito elevada. Além disso, foram escritos em sranan.
Isso também é um dado importante, porque pela primeira vez foi oferecida
uma prova – no que diz respeito aos olhos das pessoas que não consideravam
esse idioma uma língua madura – de que pensamentos sensíveis podem ser
expressos em palavras nesse idioma. Assim, foi dado o primeiro passo para a
publicação, cada vez maior, de poemas em sranan. Também é notável que a
coletânea foi dedicada a Koenders, a pessoa que estimulou o idioma sranan.
Mas também se deve dizer que muitas dos poemas que apareceram mais tarde,
nessa língua, não atingiram o nível das de Ziel.
Na coletânea de Trotji, foram compendiados 19 poemas. Ele conseguiu
expressar e despertar sentimentos, costumes culturais e imagens que muitos
acharam que não seria possível expressar no idioma sranan.
Uma das mais bonitas associações é o poema Kopenhagen. Lá, na
Dinamarca, ele vê no porto a estátua de uma sereia que o povo do país e outras
pessoas talvez somente associem à lenda de Anderson. Trefossa enxerga isso de
outra forma. Para ele, é a watramama que ele conhece de histórias sobre o
Suriname. Alguém talvez simplesmente passasse pela estátua, mas Trefossa
conseguiu fazer uma ligação com um pedaço de cultura do seu país de
nascimento. A exclamação de surpresa “eh-eh” também foi assimilada na poesia
e dá um toque diferente para o leitor. Ainda mais: ele também diz “Watramama
mi sabi ju” (Watramama, eu te conheço), porque ele realmente a conhece na
prática, mas de uma outra maneira que os dinamarqueses.
Para outros, o poema “Bro” é um poema importante e crucial na coletânea.
O Eersel alega que, nesse poema, Trefossa demonstra que “ele sente, bem no
fundo, que o mundo em que nasceu não é o mundo de seus sonhos e jamais
poderá se tornar isso”. Mas Eersel disse que, entre a realidade e o sonho, fica o
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espaço onde a poesia floresce. Para ele, esse poema é a chave para a arte poética
de Trefossa.
A década de sessenta e setenta
Na década de sessenta e setenta, a literatura surinamesa floresceu. Diversas
pessoas pegaram a caneta e começaram a fazer poemas, mas também começaram
a escrever contos e, de vez em quando, um romance. Nas escolas, cresceu o
interesse pela própria literatura. Eventos e outros personagens conhecidos que
atraem o público cuidaram para que os escritores pudessem ser vistos. Além
disso, a maneira como os próprios escritores se apresentaram e chegaram “ao
homem ou à mulher”, também contribuiu de forma direta. Havia pouquíssimas
editoras formais e, portanto, os próprios autores eram obrigados a imprimir e
a vender os seus livros. Principalmente Dobru (pseudônimo de Robin Raveles,
1935–1983) era muito bom nisso. Ele estava presente em tudo e cuidava de
carregar sempre consigo alguns livrinhos do seu próprio trabalho, às vezes
poemas, mas também pequenos contos. Mais tarde, diversos autores fizeram a
mesma coisa. Acontecia freqüentemente que fossem para as escolas, onde
apresentavam e vendiam as suas obras. Dessa forma, houve uma distribuição
delas para todas as camadas do povo.
Um bom início para a produção em ascensão foi a revista literária Soela,
que apareceu pela primeira vez em 1962. Na redação, encontravam-se vários
poetas e escritores que já lideravam o setor, tais como Trefossa, ou que, mais
tarde, se tornariam autoridades no assunto como Corly Verlooghen (1932).
Também a obra de Bea Vianen, que mais tarde irá escrever alguns romances
bastante discutidos, aparece aqui. Intelectuais importantes, como Jnan Adhin e
Hein Eersel também estavam envolvidos com a revista. As ilustrações e a capa
foram feitas por Stuart Robles de Medina, um artista que pertencia ao grupo
dos melhores no Suriname. A revista circulou por dois anos, até 1964, e, no
total, foram publicados sete números, sendo dois números duplos. Em resumo,
foi um ótimo início e esta revista se tornou um item de colecionador, não somente
pelo seu conteúdo, mas também pela forma como foi projetada.
No primeiro número de Soela (que significa aceleração na corrente de
energia), alguns interessantes pontos de vista se mostraram e foram muito
significativos para o espírito da época. O Suriname, na sua totalidade, realmente
entrou numa aceleração na corrente de energia. Projetos econômicos de grande
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escala brotaram; cada vez mais surinameses ganharam a oportunidade de estudar
no exterior – principalmente nos Países Baixos –, e a porta para o mundo foi se
abrindo cada vez mais. Soela foi além das fronteiras e a política do idioma se
encarregou de que todas as línguas faladas fossem apresentadas nas páginas desta
revista. E realmente, já no primeiro número, constava um poema de Shrinvási,
na língua Sarnami, um idioma que os antigos contratantes da Índia falavam, com
uma tradução para a língua holandesa. Também havia poemas em holandês,
inglês e sranan. Um dos poemas versava sobre a crise no Congo, África. Havia
também muito interesse pelos acontecimentos fora das próprias fronteiras.
Também pequenos contos, e fragmentos de prosa foram publicados. A
mutiplicidade de línguas do país começou a ser expressa.
Alguns outros poetas que encontraram um lugar na Soela são Bhai
(pseudônimo de James Ramlall, 1935) e Jozef Slagveer (1940–1982). Bhai, na
realidade, somente iria publicar uma coletânea de poemas, Vindu, em 1982, com
que imediatamente ganhou um prêmio. Os seus poemas são filosóficos e com
uma clara influência de filósofos ocidentais e orientais.
Ao contrário, Jozef Slagveer pertencia à corrente nacionalista da década
de sessenta. Como jornalista, ele entrou diversas vezes em choque com as
autoridades do poder. Tornou públicos escândalos que não foram recebidos
com agradecimentos. Escreveu poemas e publicou um pequeno romance.
Na década de sessenta, apareceram alguns romances que agora estão sendo
considerados com clássicos no Suriname. Dois desses romances, sem dúvida
alguma, podem ser apresentados em qualquer fórum internacional. Leo Ferrier
publicou Atman, e Bea Vianen, Sarnami, Hai. Ferrier descreve, no seu livro, como
um homem, que retornou da Europa para o seu país de nascimento, tenta entrar
em harmonia com os variados valores culturais do seu país e da própria origem
multicultural. Por um lado, é um livro otimista porque tal harmonia é tangível.
Por outro lado, o mesmo autor publicou, um ano depois, um segundo romance
que é exatamente o contrário do primeiro. Nesse livro foi apresentado justamente
o conflito interno do seu país de nascimento. Portanto, é tudo, exceto um livro
otimista.
Os livros de Bea Vianen nunca foram muito otimistas. Sarnami, Hai
(Suriname, eu sou) descreve o processo da personagem principal de se tornar
adulto, a Sita. A sociedade surinamesa não é uma sociedade ordenada, mas nela
encontram-se contrastes nas mais variadas áreas. No fim, Sita teve de deixar seu
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filho quando ela quis partir da terra onde nasceu. Este livro ainda é uma das
obras bastante lidas nas escolas no Suriname. Outros romances posteriores
também se tornaram conhecidos.
Na década de sessenta e setenta, muitos escritores foram bastante ativos.
Citar os nomes de todos seria extenso demais. Dos muitos, serão mencionados
ainda três: os já citados Dobru e Shrinivasie, e Michael Slory. Dobru,
indubitavelmente, tornou-se um dos mais conhecidos. Podia ser encontrado em
qualquer lugar, era muito fácil entrar em contato com ele, que era ativo na vida
política, principalmente no movimento nacional. O seu poema Wan Bon (Uma
Árvore) é um dos mais apreciados no Suriname. No poema, ele deu ênfase à
uniformidade das variadas culturas que podem ser encontradas no Suriname.
A sua descrição autobiográfica em Wan Monki Fri é muito interessante porque
Dobru deixou evidenciar claramente a sua origem e como se formou por
meio da religião, da sua origem social e do crescimento do nacionalismo no
decênio de cinqüenta. Além disso, foi muito honesto em opinar e condenar
situações sociais.
Shrinivasie publicou, no decorrer dos anos, diferentes coletâneas de poemas.
Trata de diversos temas nas suas obras. Alguns concordam que a uniformidade
seja possível no Suriname, enquanto outros apresentam uma aproximação mais
filosófica a respeito. Ele louvou o seu país nativo, mas também se posicionou de
forma crítica perante desenvolvimentos que limitaram a liberdade durante o
decorrer dos anos. Uma coletânea sobre a visão dos poemas fornece os diferentes
temas nas obras de Shrinvasi. Ele se refere aos distritos onde cresceu e se tornou
adulto, mas também cita as Antilhas Holandesas onde já morou e trabalhou.
Viajava pela América Latina e viu muita injustiça; escreveu a esse respeito muitos
poemas fervorosos. No entanto, em Sangham, predominou o aspecto filosófico
de um homem já mais velho, que agora podia escrever sobre a morte. Ele é
considerado um dos mais importantes poetas ainda em atividade no século 21.
O último dos poetas é Michael Slory (1935), um dos escritores mais
produtivos de sua geração. Há mais de quarenta anos, escreve poemas em
diversos idiomas: holandês, sranan, espanhol e, nos últimos anos, em inglês.
Atualmente, seus poemas ainda aparecem em um dos jornais do país, onde ele
geralmente tem a atualidade como assunto principal. No compêndio de sua
obra Ik zal zingen om de zon te laten opkomen (Vou cantar para fazer o sol nascer),
não somente se pode observar os temas que o mantêm ocupado, mas também
sua capacidade de se expressar em diversos idiomas. Demonstra solidariedade
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com povos subjugados. O distrito onde nasceu é o assunto de alguns de seus
poemas. Neles, demonstra surpresa quando enxerga alguma coisa na natureza
que o mantém ocupado. Às vezes, é um incidente que ele quis captar no seu
poema. A beleza da mulher o fascina. Na sua – até agora – última coletânea, há
poemas sobre a liberdade em que ele menciona a escravidão e exclama “Povo,
jamais se esqueça disso!”.
As últimas três décadas
O Suriname tornou-se independente em novembro do ano de 1975. Isso
levou a um estupendo crescimento de produções literárias que todos – mais, ou
menos – desenvolveram e que deram continuidade aos temas dos decênios
anteriores. Essa independência aconteceu em conjunto com uma enorme
imigração em direção aos Países Baixos. Após a independência, cerca de metade
dos surinameses moravam lá. Além disso, no Suriname surgiu um regime militar
que, em fevereiro do ano de 1980, assumiu o poder. Mesmo assim, tal fato não
freou a produção literária de forma alguma. Mas é verdade que ficou sendo
muito difícil publicar livros. Havia falta de papel, os custos de impressão
aumentaram muito e o crescimento da pobreza da população também podia
ser sentido nas livrarias.
Como está a situação atualmente na área de literatura surinamesa? Olhando
para trás, para a primeira metade da primeira década do século 21, algumas
tendências podem ser observadas. É muito bom que a literatura para jovens
mereça muita atenção dos autores. Gerrit Barron (1951) e Ismene Krishnadat
(1956) são apenas alguns dos nomes de escritores que escreveram vários livros
para a juventude e que conseguiram uma tiragem considerável. Robby Parabirsing
(pseudônimo Rappa, 1954), escreveu livros para a juventude de idade um pouco
mais avançada, em que o humor e um pouco de erotismo foram bem apreciados
pelo público. Dessa forma, educou-se um novo público, com a idéia de que ler
pode ser muito agradável. Somente isso já seria um ponto a favor dele.
Todos esses escritores continuam com a tradição de ir às escolas para a
leitura de suas obras. Por meio desse sistema, foi formado um vínculo direto
com o público de leitores. Gerrit Barron distribuía os seus livros por meio de
escolas, conseguindo assim uma tiragem bastante elevada. Apesar dos problemas
já mencionados acima, nos anos da década de oitenta, foi vendida uma
considerável quantidade desses livros. Esses escritores tentaram lançar as suas
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obras nos Países Baixos. Barron conseguiu atingir o mercado literário das
Antilhas Holandesas.
Dos poetas que estiveram ativos nesse período, um que se destacou é
Surianto (pseudônimo de Ramin Hardjoprajitmo, 1937). Ele é um dos poucos
javaneses ativos na literatura. A sua poesia teve influência de Shrinvasie. Mesmo
assim, foi só uma de suas publicações que se destacou, porque ele escreveu
poemas tanto na língua de seus pais originários de Java, como também na
língua holandesa. A influência da cultura se encontra fortemente presente nessa
obra. Em um poema, “Een Bos” (Uma Floresta), ele se dedica a contradições
entre os javaneses muçulmanos que mantêm uma certa direção nas suas orações
porque fazem isso tradicionalmente no seu país de nascimento e, portanto,
também no Suriname, e os outros que conservam a direção correta para Meca.
Tais poemas são um enriquecimento para a convivência multicultural.
Finalmente, o nome de Cynthia McLeod Ferrier (1936) certamente não
poderá ser deixado de lado. É a irmã mais velha de L. H. Ferrier. Em 1987,
uma das poucas editoras no Suriname publicou o romance “Hoe duur was de
Suiker ?” (Quanto custa o açúcar?). É um romance histórico que se desenrolou
no século 18. Para os padrões do Suriname, este livro se tornou um sucesso
fenomenal. Em curto tempo, foram feitas novas tiragens e, no total foram
vendidos mais de 10.000 exemplares. Nos Países Baixos, o livro também se
tornou uma obra-prima. Este romance histórico tem como assunto principal
a sociedade da escravatura no século 18. O título já diz que a produção do
açúcar consumido na Europa tinha um preço alto. Escravos foram necessários
e o sofrimento desse grupo foi muito grande. Para muitos leitores, este pedaço
da história tornou-se vivo graças a este romance. Qualquer outro que surgiu
depois, publicado por essa autora, obteve grande publicidade e conseguiu
alcançar um grande público de leitores.
Encerrando, pode-se concluir que a literatura surinamesa se desenvolveu
de uma ocupação de autores coloniais para outra em que escritores de diversos
grupos étnicos se fizeram valer e agora contribuem para a abertura do potencial
criativo do país. A literatura oral, livrinhos impressos de forma independente
e, ainda, uma literatura de poucas editoras que têm coragem para editar e
publicar alguns livros mais abrangentes – isso tudo acontece no Suriname. A
influência exercida pelos Países Baixos continua sendo grande e cada vez mais
autores tentam operar naquele mercado.
Jerome Egger
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
143
DEP
Os surinameses, nos Países Baixos, escrevem cada vez mais e conseguem
ficar na lista de livros bem-vendidos. De vez em quando, aparecem alguns
livros traduzidos por meio dos quais o público internacional também consegue
conhecer escritores surinameses. Em resumo, existem problemas, mas, com
certeza, a literatura não vai mal no Suriname. Agora existem mais livrarias que
estão tomando providências para que o público possa adquirir livros locais e
de outros países.
Tradução: Bunny Persijn
Revisão: Regina Furquim
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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s tempos atuais apresentam contextos especialmente desafiadores para
os sistemas políticos nacionais da região, para as instituições regionais e, de modo
geral, para o Mercosul como um todo, como esquema de cooperação e integração
regional. Há mais de quinze anos da sua fundação, o Mercosul mostra hoje todo
um acúmulo de problemas não resolvidos: algumas das suas últimas presidências
– em maior ou menor medida, conforme o caso – precisaram enfrentar situações
de forte debilidade e descrença; nos últimos anos, os acordos e compromissos
firmados muitas vezes não foram inteiramente respeitados (especialmente depois
da desvalorização brasileira de 1999 e da crise argentina de 2001). Os últimos
contextos de crescimento começaram a gerar situações favoráveis à recuperação
das economias e das sociedades nacionais, mas, além dos discursos e de algumas
ações relevantes, o processo de integração ainda não conseguiu alcançar o
esperado e tantas vezes invocado “relançamento”. Não obstante, logo depois
do seu pior momento, o Mercosul encontra hoje uma oportunidade de
revitalização inusitada e muito discutida. Tem diante de si, por exemplo, uma
Mercosul: quo vadis?
Gerardo Caetano
*
O
* Historiador e cientista político. Professor da Universidade da República, Uruguai.
Correspondência entre filosofias e instituições
integracionistas
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
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agenda externa como nunca teve antes, repleta de oportunidades (em relação à
possibilidade de acordos comerciais e de diversos tipos com a União Européia,
a China, o Japão, a Rússia, a África do Sul, no seio da OMC etc.). A despeito de
todos os seus problemas e das suas fraquezas, em um contexto internacional
ameaçado pela hegemonia unipolar, o Mercosul mantém sua personalidade
internacional como bloco interlocutor de outros blocos. Apesar disso, ainda
não encontrou os caminhos apropriados para a adoção efetiva de posições
comuns e consistentes de forma que pudesse negociar em bloco com terceiros.
Todo debate em torno de filosofias integracionistas implica um confronto
de propostas sobre como conceber a institucionalidade do bloco em formação.
A opção por um modelo corresponde à preferência por um determinado
formato institucional.
1
Pensar “outro Mercosul, diferente, mais compacto e
eficiente do que o atual, capaz de assumir uma efetiva personalidade internacional
em um mundo de blocos e tensões multilaterais como o do nosso tempo, significa
discutir profundamente os limites e alcances políticos do processo de integração.
Neste quadro, as exigências de uma nova institucionalidade para o Mercosul
desperta polêmicas na região. Bem-vindas sejam essas exigências, se a sua
tramitação rigorosa nos permitir transcender uma conjuntura muitas vezes difícil
e nos levar a enfrentar com ânimo o risco e também as oportunidades de pensar
em horizontes de desenvolvimento de mais longo prazo para a região.
A perspectiva atual de uma nova discussão a fundo sobre a institucionalidade
do Mercosul tem múltiplas implicações, de diferente índole. Nessa perspectiva,
as novidades e propostas vinculam-se diretamente à renovação de modelos, de
agendas, ritmos e profundidade no projeto integracionista. Por isso, não pode
causar surpresa o fato de as questões internacionais provocarem confrontos
duros e simplificações desqualificadoras. Por trás do debate sobre a
institucionalidade de um processo integrador, os atores apresentam suas
divergências mais básicas, de caráter estratégico e estrutural. Em suma, como
indica o Quadro 1, à pergunta sobre o que estamos discutindo no Mercosul
quando debatemos instituições, respondemos, em primeiro lugar, que o que
1
Mariana Vazquez, “Sobre la dimensión parlamentaria de los procesos de integración regional. El Mercosur y la Unión
Europea en perspectiva comparada a la luz de los desafíos del Area de Libre Comercio de las Américas”, Revista
Argentina de Ciência Política, Nº Especial 5-6, Editorial Universitária de Buenos Aires, 2002, é uma análise
comparativa útil e atualizada da dimensão parlamentar nos processos de integração regional no Mercosul e na
União Européia.
Mercosul: quo vadis?
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aparece aí sob tensão são os modelos e as projeções mais gerais sobre os limites
e os alcances do processo de integração, no seu conjunto. Em resumo, propor
“outro” Mercosul requer uma nova institucionalidade.
Um Mercosul alternativo impõe uma nova agenda de propostas e iniciativas.
Qual poderia ser a lista sucinta dos títulos dessa nova agenda?
Façamos uma breve resenha: coordenação macroeconômica, em
particular das políticas cambiais; complementação da produção, por meio de
Foros de Competitividade e do surgimento de “cadeias produtivas” próprias;
complementação de políticas (energética, educativa, cultural, de direitos humanos
etc.); complementação das infra-estruturas; consolidação e aplicação efetiva da
Carta Sócio-Trabalhista; tratamento sério da proposta, já aceita, de livre
circulação de pessoas; reconhecimento de assimetrias e flexibilidades, em
particular com relação ao Paraguai e ao Uruguai; implementação plena e
incremental dos Fundos para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem);
negociação internacional como bloco econômico-comercial e também político,
com terceiros e em foros internacionais; estratégia comercial conjunta; estratégias
de financiamento intra-zona; incorporação de novos sócios; nova institucionalidade.
Um recente documento da Presidência da Comissão de Representantes
Permanentes do Mercosul (CRPM), datado de 13 de julho de 2006 e intitulado
“Desafios da Integração Regional. Iniciativas e Propostas”, identificava uma
agenda de “eixos de caráter estratégico na formulação de políticas públicas”,
muito semelhante à anteriormente mencionada: “mecanismos para corrigir as
assimetrias entre os países; impulso à articulação produtiva em escala regional;
ampliação da agenda externa comum; desenvolvimento de instrumentos para
integrar zonas fronteiriças; aprofundamento da cooperação e da integração
energéticas; maior impulso às políticas comuns para o meio ambiente; criação
de um Conselho Regional de Políticas Sociais; definição de uma estratégia de
comunicação; participação da cidadania.”
2
Em suma, não se trata de uma ausência de idéias ou propostas que possam
convergir em um programa comum orientado para a realização de “outro”
Mercosul. Idéias semelhantes podem ser encontradas em muitos outros
documentos, como, por exemplo, as incorporadas à proposta “Somos Mercosul.
2
Presidencia de la Comisión de Representantes Permanentes del Mercosur, Desafíos de la integración regional.
Iniciativas y Propuestas. Montevideu, 13 de julho de 2006.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
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Conceito e Plano de Trabalho”, adotada inicialmente no segundo semestre de
2005 pela Presidência Pro Tempore do Uruguai e depois assumida como própria
e comum ao conjunto do bloco pelos outros Estados-Partes. Se há efetivamente
uma agenda, o que tem faltado tem sido a vontade política efetiva de dar uma
resposta, o que, entre outras coisas, pressupõe o estabelecimento de uma nova
institucionalidade, capaz de oferecer instrumentos eficazes para viabilizar e
concretizar resultados palpáveis em cada um dos temas referidos. Nessa direção,
a criação do Parlamento do Mercosul pode ser um sinal auspicioso, com a
condição de que não seja uma iniciativa isolada, distante de um enfoque de reforma
institucional integral e sistemática
3
.
Nenhum dos temas dessa nova agenda está desprovido de problemas e
contradições, e todos eles exigem muita negociação política, não se esperando
um processo vertiginoso de mudança, isento de conflitos. Os obstáculos nesse
sentido não são menores: o imperativo das exigências acrescentadas de
sociedades nacionais feridas profundamente pela crise; a tentação sempre
presente de acordos bilaterais por parte de um país associado, com resultados
conjunturais e movido pela lentidão (quando não pelas agressões) dos outros
sócios; as diferenças nos padrões de comercialização entre as economias
nacionais; o enfraquecimento esboçado pelos governos nacionais; os poucos
progressos obtidos no âmbito da negociação internacional de comércio; o caráter
heterogêneo das economias e sociedades; o surgimento de conflitos bilaterais
de gravidade incremental e solução incerta (o tema das indústrias de celulose no
rio Uruguai é um exemplo paradigmático) etc. No entanto, sem voluntarismo
ou visões ingênuas, a atual conjuntura parece perfilar-se, uma vez mais, como
oportunidade que não deve ser desperdiçada. No entanto, mais do que em outras
ocasiões, não aproveitá-la parece gerar conseqüências muito mais negativas e
profundas que no passado, com relação à solidez da aposta estratégica sobre o
futuro do bloco.
Nestas condições, qual pode ser o rumo a tomar? De qual Mercosul
começamos a falar? É o Mercosul da complementação produtiva, dos foros de
complementação da produção. É o Mercosul que, desde a assunção plena da
sua condição de projeto político, precisa articular políticas ativas e setoriais –
3
Gerardo Caetano. Los retos de una nueva institucionalidad para el Mercosu, Montevideu, Fesur, 2005; ou Fesur,
Desafíos Institucionales para el Mercosur. Las relaciones entre Estados, Instituciones Comunes y Organizaciones de la
Sociedad. Documento Preparatorio, Montevideu, Fesur, 2005; entre outros.
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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por exemplo, no campo das políticas energéticas, fitossanitárias; na área agrícola
e na pecuária; na coordenação da infra-estrutura de uso comum; na adoção de
políticas de fronteira. Um Mercosul que discute com seriedade a livre circulação
de pessoas, incorporando, contudo, na agenda a necessidade de projetar, divulgar
e consolidar um grande acordo com relação à Carta Sócio-Trabalhista, que
aprovou como documento e que reconhece direitos, mas que, nas condições
atuais, apresenta-se como de duvidosa aplicabilidade. É o Mercosul que, por
muitos motivos, deve contribuir, com outros blocos do mundo, para contestar
o esquema de globalização unipolar consolidado depois de 11 de setembro de
2001; que tem de atuar como bloco em âmbito internacional e multilateral, na
busca de acesso efetivo a mercados externos sob condições favoráveis, a partir
do reconhecimento externo da sua personalidade internacional – como um bloco
que pode falar com outros blocos. E em um contexto de disputa assimétrica
entre unilateralismo imposto e a difícil possibilidade de um multilateralismo
alternativo, a emergência de um novo bloco, que se projeta, por outro lado,
para a América do Sul e a América Latina, adquire uma dimensão vigorosa de
presença internacional. É a necessidade de agir diante de terceiros, na negociação
internacional, como um bloco unificado, sem prejuízo das condições em parte
distintas, mas que não impedem a concretização negociada de posicionamentos
efetivos comuns.
É a idéia de defender a busca de mercados, ratificando a filosofia do
regionalismo aberto, mas debatendo agendas, discutindo, por exemplo, a agenda
da OMC em Cingapura; discutindo com seriedade temas que comprometem
nossas economias, como a nova articulação dos organismos internacionais e
suas intervenções no plano das políticas nacionais, como o tema da propriedade
intelectual, ou das compras governamentais e serviços, ou ainda, a rediscussão
dos subsídios com relação à produção agrícola. É o Mercosul que começa a
falar em estratégias comerciais conjuntas, que busca a interlocução com outros
blocos, não só a triangulação clássica com os Estados Unidos e a União Européia,
mas que almeja também negociações mais firmes com a China, o Japão, a África
do Sul, a Rússia, os países árabes. É o Mercosul em busca de estratégias de
financiamento intrazona, pensadas a partir da eventualidade de bancos – tanto
de fomento ou investimentos como de um Banco Central no estilo europeu.
Mesmo com uma agenda imediata mais curta e viável, que abranja com
lógica mais moderada e incremental os múltiplos temas que surgem, há a
convicção, que começa a se generalizar e que devemos reiterar mais uma vez, de
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que: “a atual institucionalidade, mesmo com as importantes mudanças e criações
recentemente incorporadas, não está apta para alcançar os resultados efetivos
em vários desses novos planos que constam da agenda mais atual.” Trata-se, em
suma, de um Mercosul orientado para uma nova institucionalidade, que supere
as deficiências do Mercosul original, de 1991; que aprofunde os seus progressos
e supere as omissões do Protocolo de Ouro Preto, de 1994; que consolide o
caminho iniciado (com altos e baixos) com as recentes criações institucionais.
Nesse quadro, não pode deixar de ter sentido o fato de que o tema que se começa
a discutir é a necessidade de um novo Mercosul, que questione o
interpresidencialismo extremado e incorpore o tema da evolução (não imposta,
sem hegemonismos, com ampla negociação política), rumo a uma tensão mais
equilibrada entre intergovernamentalismo e supranacionalidade, tão temidos
como mal compreendidos nos seus alcances e conseqüências. Trata-se de um
Mercosul que ratifica e aprofunda sua indisfarçável natureza de projeto político.
É o Mercosul que consolida a necessária transformação da simples Secretaria
Administrativa em uma Secretaria Técnica com projeção política, o que exige
assessoramentos técnico e acadêmico efetivos, como os que começou a ter, e
que seja capaz de atuar como uma usina, um grande think tank regional, para
alimentar – sem subordinar-se a ciúmes ou a falta de transparência – o
funcionamento dos demais órgãos do organograma. É o Mercosul que começa
a discutir a criação de um Instituto Monetário que viabilize cada vez mais a
indispensável convergência cambial, embrião de um Banco Central regional.
Trata-se de discutir seriamente não só a constituição já alcançada de um
Parlamento do Mercosul, mas as suas possíveis projeções na primeira etapa de
transição, na qual (com bastante vento soprando contra) tenha de passar pela
prova de que pode de fato ser um foro político que promova de forma eficaz
progressos concretos na agenda do bloco.
Trata-se não só de pôr em pleno funcionamento o disposto no Protocolo
de Olivos, mas também de seguir marchando no rumo da criação de um
verdadeiro Tribunal Permanente de Justiça Regional. É um Mercosul que começa
a reformular as relações entre os próprios órgãos decisórios do seu formato
institucional, exigindo-lhes um funcionamento mais sistemático, menos episódico,
uma condução quotidiana e mais transparente. Um Mercosul que consolida a
fundação, já havida, da Comissão de Representantes Permanentes, com
embaixadores dos quatro países associados plenos, mas também com um
Presidente que pode atuar como porta-voz da vontade regional. É o Mercosul
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150
que adquire outra presença, e outro peso, nos debates dentro de instituições
como a OMC; que negocia em conjunto, e não solitariamente, acordos com os
Estados Unidos da América ou com a Europa, a partir de outras posições; que
pode encarar com responsabilidade, mas sem sujeição, seu relacionamento com
os organismos internacionais de crédito.
Nessa perspectiva, que alguns poderiam qualificar de utópica diante das
dificuldades atuais do bloco, a nova institucionalidade responderia também aos
deficits democráticos” que têm marcado amiúde a história do processo. No
entanto, será preciso evitar equívocos e tentações preguiçosas que não levam a
nada. Não se deve conceber o Mercosul a partir da identidade conjuntural de
governos que ideologicamente possam ter alguma afinidade: isto seria um grave
erro, pois não é a experiência dos processos de integração exitosos. Certamente,
o fato de que haja governos com afinidades ideológicas pode ajudar a avançar
em certos tipos de acordos, mas o que se deseja é progredir com profundidade,
e a acumulação de matéria institucional é a melhor garantia e o instrumento mais
apto para alcançar os resultados econômicos de que os nossos povos necessitam,
sempre com maior urgência. Não há dúvida de que não existe um modelo
institucional neutro, e que as conjunturas de afinidade ideológica entre os
governos associados ajudam a avançar. Mas, precisamente para aproveitar ao
máximo essas oportunidades, devemos pensar em termos institucionais e não
ideológicos, com base na premissa de que é preciso criar instituições que
consolidem, mediante negociação política, avanços que sejam muito difíceis de
abandonar. Devemos aprender (sem copiar, por certo) com os que tiveram êxito:
a União Européia não foi formada para governos social-democráticos, para
governos da democracia cristã, para governos liberais. Não existe um processo
de integração de governos democráticos, cuja vida natural é o da rotatividade
do poder e o da incerteza dos resultados eleitorais; não há integração vinculada
rigidamente a uma proposta ideológica fechada do bloco regional de que os
países participam.
Por isso, se queremos aproveitar a oportunidade que temos hoje à nossa
frente, que surge como uma demanda efetiva a partir dos nossos países que não
têm uma saída solitária (é certo que não a tem o Uruguai, mas não creio também
que a tenham solitariamente o Brasil ou a Argentina; nossos países não podem
salvar-se solitariamente, precisam lutar por um lugar no mundo a partir de
uma posição no bloco), será necessário afirmar uma nova institucionalidade,
que supere o “deficit democrático” que teve o processo; que supere esse
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151
interpresidencialismo que gerou uma espécie de “superexecutivismo”
absolutamente “inexecutivo”; que vincule a legitimidade do Mercosul à nossa
sociedade, mas que, ao mesmo tempo, lhe dê a possibilidade de responder de
forma efetiva a outra agenda, à que reage melhor a essa nova conjuntura que está
exigindo formas de pensar diferentes, não só em chave nacional, mas também
regional e internacional.
As etapas da evolução institucional do Mercosul
Conforme vimos, na agenda e também nas diferentes resoluções emanadas
dos diversos organismos integracionais, seja no quadro das suas atividades
rotineiras seja no das cúpulas do Mercosul, há muitos anos aparecem
reiteradamente apelos à necessidade de um fortalecimento institucional do bloco.
Isso é testemunhado por dezenas de resoluções, recomendações e
pronunciamentos,
4
mencionando incidentalmente a necessidade de atualizar a
aprofundar o organograma criado pelo Protocolo de Ouro Preto.
5
Não obstante,
além dessas declarações persistentes e de um certo progresso substantivo, mas
parcial, como veremos mais adiante, não parecem ter havido os consensos ou a
vontade política necessários para atender com seriedade essa demanda. De outro
lado, ela foi bastante enfática no caso dos organismos (como a Comissão
Parlamentar Conjunta e o Foro Consultivo Econômico e Social)
6
que emanaram
do citado Protocolo com faculdades limitadas ou apenas consultivas.
Observamos anteriormente neste texto que, quando são discutidos
diferentes formatos de institucionalidade em um processo de integração, na
realidade, estão sendo debatidos, de forma simultânea, diversos modelos de
4
Cfr. por exemplo, com especial atenção aos pronunciamentos referidos à CPC, Mercosul: Legislação e Textos
Básicos, (3ª edição), Brasília, Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul – Seção Brasileira, Ministério das
Relações Exteriores, Senado Federal, 2000, 545 pp.
5
Cfr. “Protocolo de Ouro Preto – Protocolo Adicional al Tratado de Asunción sobre la estructura institucional del
Mercosur”. Este Protocolo era assinado para cumprir o Artigo 18 do Tratado de Assunção de 26 de março de
1991, que determinava textualmente: “Antes do estabelecimento do Mercado Comum, em 31 de dezembro de
1994, os Estados-Partes convocarão uma reunião extraordinária com o objetivo de determinar uma estrutura
institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercado Comum, bem como as atribuições específicas
de cada uma delas e do seu sistema de tomada de decisões”. O Anexo do Protocolo foi também assinado esse
dia: “Procedimennto Geral para Reclamações à Comissão de Comércio do Mercosul”.
6
O atual vice-presidente uruguaio e ex-presidente Pro Tempore da CPC, Luis Antonio Hierro López, assinalou
em dezembro de 1997 que via “la relación entre el FCES y la CPC como de primos-hermanos”. Cfr. “Voces,
Parlamentos, Mercosur”, Cuadernos del CLAEH Nº 81-82, 1998, p. 136.
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152
integração regional. Acredito que isso se confirma claramente na própria
história do Mercosul. Naturalmente, existe uma história do Mercosul que
precede o Tratado Fundacional de 1991: ela esta sintetizada na Ata de Foz de
Iguaçu de novembro de 1985, assinada pelos Presidentes Sarney e Alfonsín –
corolário de um conjunto de ações e negociações com que se procurou
prefigurar um Mercosul bem diferente daquele que depois se concretizou no
Tratado de Assunção de março de 1991. Esse “outro” Mercosul, que sob
vários aspectos não pôde se materializar, é muito mais semelhante com o que
parecia surgir com as propostas de transformação integral do bloco entre
2002 e 2003, e que, a partir de 2004, começaram pouco a pouco a empalidecer,
pelo menos no que concerne a alguns aspectos substantivos, na sua vocação
de reforma integral. O acordo Sarney–Alfonsín visava a uma institucionalidade
e a uma agenda integracionista muito mais globais e profundas que as criadas
em 1990 e 1991.
Como mais de uma vez já se mostrou, corretamente, essa mudança de
rumo coincidiu com a mudança de governo na Argentina e no Brasil. Para
dizê-lo de modo sintético, o modelo do Mercosul “fenício”, orientado quase
exclusivamente para o comércio, com uma institucionalidade fortemente
intergovernamentalista, de baixa intensidade, que lhe era funcional, começou
a nascer muito claramente em julho de 1990, na chamada Ata de Buenos Aires,
assinada por Collor de Melo e Menem. Essa iniciativa brasileira de articulação
com a Argentina recebeu a imediata incorporação do Uruguai, cujo novo
governo, chefiado pelo Presidente Lacalle, viu com lucidez as fortes
conseqüências negativas de um acordo entre Argentina e Brasil que isolasse o
Uruguai e os outros países da região. Na sua adesão, o Uruguai convidava
Paraguai e Chile a fazerem o mesmo, para equilibrar melhor as evidentes
assimetrias do bloco a ser criado. No entanto, como era bastante previsível, a
incorporação do Chile nas condições aduaneiras previstas era absolutamente
impossível, pela total diversidade dos graus de abertura alcançados pelo seu
comércio. O Paraguai se incorporou, chegando-se assim, finalmente, à
assinatura solene do Tratado de Assunção, em 26 de março de 1991.
Entre outros, Bouza e Soltz, no trabalho intitulado “Instituciones y
mecanismos en procesos de integración asimétricos: el caso Mercosur”, notam que o Tratado
de Assunção era definido originalmente por certos traços fundamentais. Em
primeiro lugar, visava a uma institucionalidade claramente intergovernamentalista
e tinha um perfil integracionista exclusivamente comercial – traços articulados
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153
profundamente dentro da orientação basicamente liberal dos governos e dos
presidentes que o assinaram. Apostava-se em um formato institucional de
extremo “intergovernamentalismo”, que alguns autores não vacilaram em
qualificar de “interpresidencialismo. Essa orientação fundamental era muito
forte e visível, temerosa igualmente da precisão das regras e dos procedimentos,
no estilo do que caracterizou a instituição do Nafta (Acordo de Livre Comércio
da América do Norte), por exemplo, mas, de modo muito particular,
totalmente contrária a qualquer esforço de evolução supranacional, como no
caso da União Européia. Essa institucionalidade de baixa intensidade articulava-
se muito bem com um projeto integracionista que buscava prioritariamente o
econômico e o comercial, com normas de importância fundamental, excluindo
a progressiva eliminação de tarifas, a definição de um regime geral de normas
de origem, salvaguardas para práticas desleais no comércio intrazona; e
impondo certos prazos para a implementação de um mecanismo voltado à
solução de controvérsias.
Como outros autores, Bouza e Soltz destacaram também que o formato
institucional do Tratado de Assunção oferecia três traços que definiam as
aspirações e a vontade dos Estados-Partes: i) um claro caráter intergovernamental
dos órgãos decisórios do bloco (a criação – no último Artigo 24 do Tratado, depois
de dar um nome ao bloco, e como sinal inequívoco da intenção de registrar
algo esquecido – de um vago mecanismo de representação dos Parlamentos
dos países associados revela quase anedoticamente essa orientação); ii) a definição
tática de que os acordos de integração teriam a natureza de “atos legais incompletos”, sem o
desenvolvimento de uma normativa Mercosul que pudesse ostentar a condição de algo próximo
a um Direito Comunitário (com a conseqüente insegurança jurídica, agravada pelas
assimetrias constitucionais e jurisdicionais dos países associados, com a
tentação, muitas vezes concretizada, do não-cumprimento do acordado
(recurso realmente efetivo para os países poderosos do bloco) e com a
antecipação de uma mais do que problemática internalização de normas
integracionais dentro dos direitos e leis nacionais; e iii) a ausência de um órgão
jurisdicional autônomo e próprio do bloco”, o que se traduziria na configuração de mecanismos
para a solução de controvérsias extremamente morosos e flexíveis, orientados para a negociação
gradual e, às vezes, pouco menos do que interminável dos governos (tudo o que não só ia
configurar, juntamente com os outros traços, um caso nítido de “deficit
democrático” na institucionalidade e no funcionamento quotidiano do bloco,
mas que geraria, mais cedo ou mais tarde, a crise da eficácia socioeconômica
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DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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dos acordos, em especial quando os contextos internacionais se tornaram
desfavoráveis e se multiplicaram naturalmente as controvérsias e os
contenciosos entre os países associados.
7
Quadro 1
O Protocolo de Brasília, de dezembro de 1991, centrado na definição de
um regime transitório para a solução de controvérsias, optou finalmente pela
via da constituição de tribunais arbitrais ad hoc, de jurisdição obrigatória, regime
que o tempo demonstrou ser claramente insuficiente e, na prática, pouco efetivo.
Em dezembro de 1994, foi assinado o Protocolo de Ouro Preto, que estabeleceu –
pelo menos nas palavras do texto acordado – “um regime definitivo até que se
produzisse a plena convergência da tarifa externa comum.” Com seus 53 artigos,
e o anexo, o Protocolo de Ouro Preto trouxe progressos institucionais de
inegável relevância, mas não alterou de forma substantiva a orientação
intergovernamentalista original. De todos os modos, como o Quadro 2 indica
de forma sumária, esse Protocolo incorporou algumas inovações institucionais
de alcance limitado, mas igualmente relevante: foi criado um novo órgão
7
Roberto Bouzas y Hernán Soltz. Instituciones y mecanismos en procesos de integración asimétricos: el caso Mercosur,
Hamburg, Institut Für Iberoamerika – Kunde, August, 2002.
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155
decisório, a Comissão de Comércio do Mercosul (CCM), igualmente dependente
dos Poderes Executivos; houve a criação formal de órgãos consultivos com
atribuições diminuídas, como a CPC e o Foro Consultivo Econômico e Social
(FCES); aprofundou-se a personalidade jurídica internacional do bloco;
regulamentou-se o mecanismo de internalização e vigência da normativa do
Mercosul; foram criadas instâncias auxiliares dependentes da CCM, como os
Subgrupos de Trabalho, os Comitês Técnicos e as Reuniões de Ministros; foram
um pouco aperfeiçoados os mecanismos para a solução de controvérsias, entre
outras inovações menores.
8
Quadro 2
Depois da concretização do Protocolo de Ouro Preto II, em especial, e
não casualmente a partir de 2002, quando a crise econômica do bloco parecia
configurar o grande fator a exigir uma nova engenharia institucional, que
proporcionasse instrumentos para viabilizar outro tipo de iniciativas, começaram
a ser processadas diferentes inovações, não só relevantes como também providas
de uma orientação geral de perfil mais completo, menos executivista, com maior
8
Cfr. Didier Opertti et alli. El Mercosur después de Ouro Preto, Montevideu, Universidad Católica del Uruguay,
1996, Série Congressos e Conferências Nº 11.
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
156
abertura para enfoques autenticamente regionais. No Quadro 3, indicamos de
forma cronológica essas inovações institucionais, com a decisão correspondente.
Passemos em revista os novos organismos criados: Foro de Consulta e
Concertação Política, Secretaria Técnica, contendo no seu seio um Setor de
Assessoria Técnica do Mercosul, o Tribunal Permanente de Revisão, a Comissão
de Representantes Permanentes do Mercosul, o Foro Consultivo de Municípios,
Estados Federados, Províncias e Departamentos do Mercosul e, finalmente, o
Parlamento do Mercosul, que em mais de um sentido constitui a culminação de
uma etapa de inovações graduais e dispersas, no que se refere ao processo de
reforma da institucionalidade do Mercosul em seu conjunto.
9
Quadro 3
Da crise aos programas promissores de 2003
Boa parte das inovações neste campo institucional encontraram sua principal
base de apoio e promoção em uma autêntica vontade “institucionalista” por
9
Cfr. G. Caetano. Los retos de una nueva institucionalidad para el Mercosur… etc. op. cit. Ali sustentamos, de
acordo com outros expertos que compartilham a mesma idéia , que o processo de reforma institucional do
Mercosul deve ter uma vocação de integralidade que só pode ser resolvida de forma coerente com o que, no
meio das expectativas (desmesuradas, como veremos) de 2004 passou a ser chamado, informalmente, de
“Protocolo Ouro Preto II”.
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157
parte do Foro Consultivo Econômico e Social (FCES) e, de modo especial, de
alguns dos seus integrantes, como a Coordenadora de Centrais Sindicais do
Mercosul. Entre muitas outras comunicações de teor semelhante, poderíamos
lembrar que na XII Reunião Plenária do FCES, em 7 de outubro de 1999, em
Montevidéu, esse organismo fazia uma convocação para “fortalecer a estrutura
institucional do Mercosul, já que a presente crise evidenciou a insuficiência dos
atuais instrumentos do processo de integração ...
10
Nesse sentido, os integrantes do FCES não só reclamavam maior
participação dos atores da sociedade civil, como também enfatizavam, com
igual ênfase, a necessidade de consolidar ainda o papel dos Parlamentos como
âmbitos centrais do processo de integração. A esse respeito dizia, por exemplo,
a Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul, em pronunciamento feito
em Assunção no dia 9 de outubro de 1994: “As centrais sindicais da região se
preocupam também com o conteúdo democrático do processo. É preciso que
haja maior e melhor participação das representações sociais e dos Parlamentos.
Este último aspecto fica muito claro se partimos da base de que, para terem
vigência em cada Estado, as decisões do Mercosul precisam freqüentemente de
ratificação legislativa.
11
Por muitas razões, depois do colapso político e financeiro da Argentina,
durante os anos 2001 e 2002, com seu fortíssimo impacto em toda a região, essa
vontade institucionalista não só se consolidou como começou a produzir
impactos e resultados importantes. Em 18 de fevereiro de 2001, reunidos na
Quinta Presidencial de Olivos, e tendo como anfitrião o novo presidente
argentino, Eduardo Duhalde, os presidentes e ministros de Relações Exteriores
dos quatro países do Mercosul assinavam o muito esperado “Protocolo para a
Solução de Controvérsias no Mercosul.
12
10
Cfr. “Mercosur/fces/Recomendación Nº 3/99.
11
Cfr. “Propuesta de las centrales sindicales del Cono Sur a la estructura institucional del Mercosur”, Assunção, 9 de
outubro de 1994.
12
Cfr. “Protocolo de Olivos para la Solución de Controversias en el Mercosur”, Olivos, Provincia de Buenos Aires, 18
de febrero de 2002. Constava de 56 artigos, inseridos em 14 capítulos, nos quais se definia com precisão as
pautas, âmbitos e procedimentos do sistema de solução de controvérsias, chegando a um acordo sobre
aspectos tais como as negociações diretas entre as Partes, a possibilidade de intervenção do Grupo Mercado
Comum, os procedimentos arbitrais ad hoc, os procedimentos de revisão, os alcances dos laudos arbitrais, etc.
De fato, este Protocolo já estava negociado e pronto para ser assinado em dezembro de 2001, mas a queda do
então Presidente argentino Fernando De la Rúa , coincidente com a Cúpula de Montevidéu, obrigou ao seu
adiamento.
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158
Esse passo fundamental na consolidação institucional do bloco, demanda
muito postergada especialmente pelos receios e vetos do Brasil na matéria,
implicava, sem dúvida, um progresso substantivo e revelava que possivelmente
a situação das críticas dificuldades econômicas e sociais da região pudesse
configurar um cenário propício para atribuir maior ritmo ao processo da integração.
O que aconteceu durante a Cúpula do Mercosul de julho de 2002, em
Buenos Aires, veio a confirmar certas hipóteses e percepções: a crise econômica
e financeira, com suas múltiplas conseqüências (instabilidade dos mercados,
gravíssima deterioração social, debilidade alarmante dos governos,
relacionamento cada vez mais difícil com os organismos internacionais etc.) faziam
que, se não todos, pelo menos a maioria dos países da região apostassem no
Mercosul como alternativa apropriada para aquela conjuntura crítica. Isso
implicava dar mais consistência política ao processo de integração, o que
significava, entre outras coisas, maior e melhor institucionalidade. Tudo parecia
conduzir a que fosse, sem dúvida, o Brasil a assumir a liderança dessa nova fase,
não só pela condição de maior potência da região, mas também porque, conforme
já assinalamos, foi, no , o membro menos disposto a comprometer-se com as
instituições do bloco que limitassem sua possibilidade de ação autônoma. Em
meados de 2002, um ano “fatídico”, a conjuntura era bem diferente e isso poderia
traduzir-se claramente na mudança da agenda da Cúpula. Neste sentido,
convencionou-se, como parte de uma decisão mais global, dar início “ao
processo necessário para transformar a Secretaria Administrativa do Mercosul
em uma Secretaria Técnica”
13
, o que implicava também a confirmação de uma
vontade política distinta da que em anos anteriores havia impedido o progresso
do projeto de “relançar o Mercosul”. Na Cúpula de Buenos Aires, houve
progresso também em outros temas que tocavam a questão institucional do
bloco: a criação e consolidação de Foros Setoriais de Competitividade,
articuladores de uma complementação na área produtiva; foram estabelecidas
estratégias concretas para levar adiante missões comerciais comuns, com a marca
do Mercosul; foi proposto o projeto de criar um Banco de Fomento, como
instrumento privilegiado para uma convergência macroeconômica efetiva – entre
outros acordos importantes.
14
13
Cfr. Mercosur/CMC/Dec. Nº 16/02, datada de 5 de julio de 2002 em Buenos Aires.
14
Como sinal de apoio à região, e em especial à Argentina, participou da Cúpula de Buenos Aires, realizada no
contexto de agudo quadro de instabilidade financeira, o Presidente mexicano Vicente Fox.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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159
A partir de julho, tinha início a Presidência Pro Tempore do Brasil, a última
do Presidente Fernando Henrique Cardoso. O Itamaraty já havia emitido fortes
sinais de uma mudança estratégica no sentido do Mercosul, opção de política
exterior que por vários motivos se tornaria visível nesse segundo semestre: em
outubro haveria eleições nacionais e, como veremos, o tema do Mercosul era
um dos que marcavam então diferenças entre os candidatos com melhores
possibilidades de ganhar a eleição (Lula ou Serra); a partir de novembro, o Brasil
ocuparia, juntamente com os Estados Unidos, a Presidência Pro Tempore da Área
de Livre Comércio das Américas (Alca), precisamente na conclusão das
negociações previstas dentro do quadro, sem dúvida instável, das negociações e
dos alinhamentos no plano internacional, de modo geral, e interamericano em
particular. Dada, além de tudo, a debilidade dos outros governos dos países
associados, a assunção de uma liderança efetiva do Mercosul, sem hegemonismos
e com propostas inovadoras, a partir da plena consciência de que isso supunha
benefícios, mas também custos, parecia um horizonte cada vez mais atraente e
necessário para o país do Norte. O então presidente Fernando Henrique Cardoso
(com o apoio decisivo do então Chanceler, Celso Lafer) preocupou-se de modo
especial em dar esses sinais durante o último semestre dos seus oito anos de
presidência. Seus pronunciamentos durante viagens aos países da região, nesse
período
15
, assim como o fato inédito de que pela primeira vez se criava um
corpo de assessores para a Presidência Pro Tempore, integrado por técnicos e
representantes qualificados dos quatro países, foram outros sinais significativos
na mesma direção.
Essa tônica geral de um Brasil mais favorável ao Mercosul do que era
costume foi consolidada e aprofundada durante a campanha eleitoral de 2002,
da qual surgiu eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do Partido
dos Trabalhadores. Lula se distinguiu, com relação a seus adversários, por um
discurso de apoio decidido ao Mercosul, eixo programático que em particular
confronto com o candidato “oficialista”, José Serra, muito mais cético do que o
seu mentor, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, com respeito à promoção
do Mercosul como núcleo de uma nova proposta de governo para o Brasil.
Antes e depois de eleito, Lula insistiu em que era imperativo consolidar o
Mercosul como “projeto político”, como instrumento insubstituível, não só
para articular as economias dos países da região, como também para dotar o
15
Muito notoriamente, por exemplo, por ocasião da viagem que fizera ao Uruguai em 20 e 21 de agosto de 2002.
Mercosul: quo vadis?
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160
bloco de uma verdadeira identidade, para comparecer e negociar no conflitivo
cenário internacional daquele momento.
Nesse quadro, durante os últimos meses de 2002, voltou a haver progressos
significativos na perspectiva de consolidar e aprofundar a institucionalidade do
Mercosul. Alguns desses progressos mostraram até mesmo um certo tom
“voluntarista”, como o acordo migratório subscrito em 8 de novembro na cidade
de Salvador, na Bahia, pelos Ministros da Justiça dos países do bloco, mais Bolívia
e Chile, pelo qual ficava estabelecido que doravante seria permitido aos cidadãos
dessas seis nações radicar-se e trabalhar livremente em qualquer um dos países,
desde que cumprissem determinadas exigências de documentação, estabelecidas
no convênio.
16
Esse instrumento, que poderia ser considerado fundacional de
uma eventual e futura “cidadania do Mercosul”, foi referendado por ocasião da
Cúpula do Mercosul realizada em Brasília em dezembro de 2002. Naquela reunião,
a agenda de uma institucionalização mais profunda do Mercosul se manteve no
centro do debate, renovando de forma particular os temas da promoção de
uma internalização mais ágil e sólida da normativa emergente dos acordos
regionais e do conseqüente fortalecimento da dimensão parlamentar do processo.
Uma vez mais, contudo, essa demanda “institucionalista” ecoou não só pelos
organismos oficiais do Mercosul, mas também por novos atores sociais de
projeção regional.
Em um documento oficial, a coordenadora de Centrais Sindicais do Cone
Sul, no principal pronunciamento da Cúpula Sindical reunida em Brasília naquela
mesma ocasião, assinalou: “Sabemos também que a opção por um mercado
comum geraria perdas de soberania nacional e reduziria o controle social sobre
as decisões do Estado nacional, mas essa perda pode ser compensada com a
criação de organismos de representação política e social comunitários, que
garantam um processo mais democrático, sob controle social (...) Além da
instrumentação da Secretaria Técnica e da implementação do Protocolo de
Olivos, é fundamental que o Mercosul aprofunde sua estrutura institucional, e
16
O convênio, que vinha confirmar como nunca antes a tantas vezes anunciada política de livre circulação de
pessoas nos países do bloco e países associados, tinha una verdadeira significação histórica, além das dificuldades
de implementação no curto prazo, que não podiam ser ocultadas, com sociedades tão castigadas pelo desemprego
e a pauperização. Dada a inexistência de Ministério da Justiça no Uruguai, assinou o convênio por esse país
representante do Ministério do Interior. Cfr.. “Libertad de residencia y trabajo en el Mercosur”, El Observador,
Montevideo, 9 de novembro de 2002, pp. 1 y 14; Acuerdo histórico en Brasil. Ventajas para los inmigrantes entre
los países del Mercosur”, Clarín, Buenos Aires, 10 de novembro de 2002. (Por Eleonora Gosman, correspondente
em São Paulo).
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
161
ao mesmo tempo reestruture prioritariamente seus diferentes organismos e
espaços de negociação, por meio da racionalização e da articulação das suas
agendas”.
17
Essa inegável mudança em favor de mais sólida e renovada
institucionalização do Mercosul, muito visível na agenda de 2002, que
examinamos sumariamente, teve outro marco histórico na reunião dos
presidentes argentino e brasileiro, Eduardo Duhalde e Luiz Inácio Lula da Silva,
realizada em Brasília em 14 de janeiro de 2003. No seu comunicado conjunto,
os dois presidentes fizeram saber expressamente que concordavam em que “o
Mercosul é também um projeto político, que deve contar com a mais ampla
participação de todos os segmentos das sociedades dos Estados-Partes, hoje
representados no Foro Consultivo Econômico e Social. Coincidiram na
importância de fortalecer a Comissão Parlamentar Conjunta, no sentido de
avançar, em consulta com os demais participantes, na direção de um Parlamento
do Mercosul, assim como em estudar os possíveis sistemas de representação e
formas de eleição”.
18
Por si só o comunicado conjunto não era suficientemente claro, e no seu
discurso o Presidente Lula foi ainda mais categórico: “Construiremos instituições
que garantam a oportunidade do que alcançamos e nos ajudem a superar os
desafios que devemos enfrentar. É fundamental garantir a mais ampla participação
das nossas sociedades neste processo, com a revitalização de instituições como
o Foro Consultivo Econômico e Social e a Comissão Parlamentar Conjunta, e
com a criação, em prazo relativamente breve, de um Parlamento do Mercosul.
19
Embora essa proposta constasse, nos últimos anos, da agenda das reuniões
da CPC, adquiria um impacto especial a partir da explicitação de um acordo
entre os presidentes dos dois maiores países do bloco. Em particular,
representava um novo testemunho do renovado compromisso do presidente
17
“Cumbre Sindical 2002. Por otro Mercosur con empleo para todos”. Brasília, 5 e 6 de dezembro de 2002.
18
Cfr. “Comunicado Conjunto de Imprensa dos Presidentes da República federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva,
e da República Argentina, Eduardo Duhalde. (Brasilia, 14 de janeiro de 2003)”.No mesmo comunicado, os dois
Presidentes assinalavam igualmente sua concordância a respeito da necessidade de promover a coordenação
macroeconômica do Mercosul por meio de um “Grupo de Monitoreo Macro-económico”, de intensificar a integração
de cadeias produtivas, ratificando mais uma vez a importância de avançar na direção de uma maior
institucionalização do Mercosul, mediante o pleno fortalecimento da Secretaria Técnica, da pronta entrada
em vigor do Protocolo de Olivos e do aprimoramento dos procedimentos para a efetiva incorporação e
aplicação das normas do Mercosul.
19
“Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva por ocasião da visita do Presidente da República Argentina, Eduardo
Duhalde”, Brasília, 14 de janeiro de 2003.
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
162
Lula com o Mercosul. A iniciativa repercutiu fortemente na região, destacando-
se o rápido sinal de oposição por parte do governo uruguaio. Declarou o então
vice-presidente do Uruguai, Luis Hierro: “Creio prematuro propor a
organização de um Parlamento do Mercosul; pelo contrário, é preciso fortalecer
a ação da Comissão Parlamentar Conjunta, assim como a tarefa legislativa dos
parlamentos nacionais, para internalizar em cada país a legislação do Mercosul,
(...) Tanto a moeda comum como o Parlamento comum são etapas posteriores ...
(...) É preciso primeiramente fortalecer a união aduaneira imperfeita, a Secretaria
Técnica do Mercosul e o organismo comum de justiça (...) Depois de fortalecer
esses instrumentos, será necessário apostar na coordenação macroeconômica, e
em seguida pensar em uma instituição como o Parlamento do Mercosul.
20
Além dos matizes e das discrepâncias, os sinais do ano 2003, com a
dissonância do governo uruguaio, presidido na época pelo Dr. Jorge Battle,
afastado de uma aposta estratégica no Mercosul, e muito mais inclinado a
promover o projeto da Alca, ainda vigente, pareceram convergir em um avanço
claro das opiniões favoráveis a aprofundar, de um modo ou de outro, as
dimensões política e institucional do Mercosul. Não tinham desaparecido os
que enfrentavam essa idéia, mas na maioria das vezes pareciam inclinar-se com
vigor na perspectiva favorável, tendo à frente o Brasil e o seu governo. Como já
observamos, pensar em diferentes formatos institucionais para o Mercosul
implica confrontar diferentes filosofias e modelos de integração, o que ficou
claro por ocasião da Cúpula do Mercosul celebrada nos dias 17 e 18 de junho
em Assunção. Com o antecedente direto da reunião dos presidentes Lula e
Kirchner, no dia 11 de junho, em Brasília
21
, as delegações brasileira e argentina
participaram do encontro de Assunção, apresentando uma aliança estratégica
associada claramente com um aprofundamento político do processo de
integração.
Nesse contexto, o Brasil submeteu à Cúpula um “Programa para a
Consolidação da União Aduaneira e para o Lançamento do Mercado Comum”,
20
“Gobierno uruguayo se opone a la idea de Lula de crear Parlamento y moneda únicos en el Mercosur”, Búsqueda,
Montevideu, 16 – 22 de janeiro de 2003, p. 1.
21
Cfr. Comunicado conjunto dado à publicidade nessa ocasião pelos dois Presidentes, enfatizando várias
questões institucionais como a “necessidade de avançar na constituição do Parlamento do Mercosur”, a
“pronta entrada em vigor do Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias”, “a importância de
adequar a estrutura institucional (...) à fase atual da integração”, “o compromisso de estabelecer um Instituto
Monetário para intensificar os trabalhos de coordenação macroeconômica”, etc.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
163
intitulado “Objetivo 2006”.
22
Nesse documento, apresentado pouco antes da
reunião, não havia grandes inovações de conteúdo, mas uma ênfase talvez inédita
na expressão de vontade política para progredir, com passo renovado, no
processo de integração política. Estabelecia-se, por exemplo, o objetivo de
caminhar no rumo de um “Parlamento do Mercosul eleito por voto direto”, a
ser instalado antes do fim de 2006; a criação de um “Instituto Social” para fazer
uma reflexão comum sobre os temas sociais compartilhados; a continuidade e o
aprofundamento dos acordos nas áreas de migração, trâmites legais e cooperação
judicial; o reforço da institucionalidade, com o objetivo de “implantar, antes de
2006, uma nova série de aperfeiçoamentos institucionais, que prepare o bloco
para o funcionamento da União Aduaneira completa”, entre outras propostas.
23
De seu lado, a delegação argentina apresentou à Cúpula uma “Proposta
para a Criação do Instituto de Cooperação Monetária do Mercosul”
24
, que
continha um plano para começar a “implementar mecanismos supra-nacionais de
cooperação monetária”, de modo gradual, mas firme. Nessa direção, era apresentada
a iniciativa de gerar um “Instituto Monetário do Mercosul”, etapa indispensável
dentro da perspectiva de progredir na concretização gradual de políticas
monetárias convergentes e até comuns, mencionando-se, por exemplo, a
possibilidade da “criação e administração de uma primeira emissão de uma
moeda comum.
25
De seu lado, o Paraguai apresentava uma proposta sobre outro dos
problemas centrais do bloco: o “tratamento de assimetrias”. Nesse documento,
a partir de um diagnóstico crítico sobre a não-consideração das assimetrias
econômicas e sociais dos países pequenos, e a respeito do impacto negativo
sobre eles da “Zona de Livre Comércio”, havia propostas compensatórias em
vários campos: tarifário, de desenvolvimento fronteiriço, negociações externas,
infra-estrutura, capacitação da mão-de- obra etc. A única delegação a não
apresentar qualquer proposta foi a do Uruguai, país que, paradoxalmente,
assumia a Presidência Pro Tempore do Mercosul.
Essa inegável ofensiva política, principalmente argentina e brasileira, não
pôde plasmar-se na declaração final dos presidentes, fundamentalmente devido
22
Cfr. Mercosul/XXIV CMC/DT Nº 3/03.
23
Ibidem.
24
Cfr. Mercosur/XXIV CMC/DT Nº 02/03.
25
Ibidem.
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
164
à atitude reticente do Uruguai. Assim, não foi por acaso que, nas semanas que se
seguiram a essa Cúpula, os principais líderes e partidos políticos uruguaios
fizeram pronunciamentos firmes e coerentes com respeito ao tema do Mercosul,
que desse modo voltou a ocupar o centro do debate político, como há muito
não acontecia. Em diferentes âmbitos governamentais, políticos e acadêmicos
do Uruguai, procurou-se definir uma base mínima de acordos que sustentassem
uma pauta de linhas gerais para a ação do país durante esse semestre crucial. No
entanto, além de encontros e declarações, os resultados alcançados foram muito
escassos, e essa conjuntura crucial – a Presidência Pro Tempore uruguaia – passou
“sem pena nem glória”.
A “frustração” com a não-concretização do “Protocolo Ouro
Preto II”
Félix Peña, o reconhecido experto argentino em temas de integração,
sintetizou da seguinte forma seu comentário a respeito do ocorrido na Cúpula
de Ouro Preto, realizada uma década depois da Cúpula que aprovou o Protocolo
do mesmo nome : “Depois de Ouro Preto, o Mercosul continua de pé. Seus
principais problemas, também. Não houve a festa esperada, nem a morte
anunciada.
26
O balanço de Félix Peña sobre os resultados de Ouro Preto
representa, do nosso ponto de vista, uma boa síntese do que ficou dessa Cúpula,
da qual tanto se esperava, mas que também não produziu (como queriam os
lobbies anti-Mercosul, que trabalharam nesse sentido) a morte ou a minimalização
do bloco. É importante relatar com exatidão como se chegou a Ouro Preto,
quais os sinais mais substantivos da conjuntura daquela Cúpula tão simbólica, e
o que se podia ou não esperar, definitivamente, das suas decisões finais. Na
verdade, é necessário reafirmar esta última exigência, pois, naqueles dias, a
imprensa da região e também os pronunciamentos dos dirigentes dos governos
dos quatro países associados difundiram versões superficiais ou julgamentos
arrebatados em torno do acontecido em Ouro Preto. E sabemos que, sem um
bom relato, dificilmente se pode fundamentar uma interpretação consistente.
Primeiramente, seria necessário assinalar, com relação aos antecedentes
da Cúpula, que em muitos âmbitos e círculos interessados na integração regional,
26
Felix Peña, “Hay vida después de la Cumbre del Mercosur en Ouro Preto”, La Nación, 21 de dezembro
de 2004, p. 3.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
165
especialmente aqueles considerados mais a favor de um aprofundamento
institucional e econômico do Mercosul, a reunião de Ouro Preto foi percebida
como a possibilidade de um progresso relevante – expectativa que tinha o seu
fundamento. Completava-se dez anos do primeiro Protocolo de Ouro Preto,
que, como vimos, na verdade tinha configurado um passo importante na
construção institucional do bloco. Desde o ano 2002, a princípio por iniciativa
do Itamaraty, depois de uma aproximação programática entre Argentina e Brasil
(iniciada pelos governos de Lula e Kirchner, que, sem dúvida, a radicalizaram e
a projetaram estrategicamente, através de pronunciamentos como os do chamado
“Consenso de Buenos Aires” ou a “Ata de Copacabana”), viu-se um retorno
político à aposta integracionista por parte da maioria dos países da região.
Somava-se a isso um interesse crescente dos países da CAN e também do México
em estabelecer associação de diferente tipo com o bloco, ou em integrar
propostas de integração ainda mais ambiciosas (e talvez apressadas), como a
chamada “Comunidade Sul-Americana de Nações”, fundada em Cuzco em 8
de dezembro de 2004. Por outro lado, persistia e se aprofundava a atenção para
com o Mercosul por parte de outros blocos internacionais ou de países
poderosos, em busca de acordos comerciais de diferente natureza.
Se tudo isso convidava ao entusiasmo, o que acontecia dentro do Mercosul
podia também dar lugar a uma interpretação semelhante. Para citar um exemplo,
as já mencionadas propostas programáticas lançadas na Cúpula de Assunção de
junho de 2003 deram origem a uma nova dinâmica no funcionamento de vários
órgãos do Mercosul. Com efeito, o trabalho que se seguiu àquela Cúpula permitiu
acelerar diversas iniciativas, afetando diferentes organismos do bloco, obtendo-
se, em alguns casos, melhoras e concretizações auspiciosas. Por último, também
a consolidação de uma orientação comum de esquerda ou centro-esquerda nos
governos dos países da região impulsionavam (sem dúvida com forte dose de
voluntarismo e de ingenuidade) na direção das expectativas incrementadas. Nunca
como no período 2002–2004 o Mercosul se converteu em um tema importante
da agenda dos processos eleitorais nos países associados, ao mesmo tempo em
que o triunfo dos candidatos mais favoráveis à integração coincidiu nesse período
em novas identidades ideológicas e em novos modelos integracionistas,
certamente distintos dos que tinham em vista os presidentes que assinaram o
Tratado de Assunção, em março de 1991.
Não obstante, já durante a maior parte de 2004, e em particular durante o
segundo semestre, quando se aproximava a época culminante das negociações
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
166
e, sobretudo, das decisões a tomar, começaram a surgir sinais contraditórios,
e até mesmo adversos. O mais preocupante era o fato de que ressurgiam com
força os já conhecidos lobbies contrários ao Mercosul, com o agravante de
alguns novos integrantes que pareciam ter trocado recentemente de posição, e
sem enfrentar respostas categóricas por parte dos grupos mais inclinados à
consolidação e ao progresso do Mercosul. O fracasso do acordo com a União
Européia começou a ser discutido, com claro erro e intencionalidade, como
se confirmasse que a negociação do bloco com terceiros, no seu conjunto, era
lenta, pesada, e não trazia resultados favoráveis. Naturalmente, o passo seguinte
dessas vozes era uma defesa incisiva do caminho dos acordos bilaterais,
segundo o formato dos TLC assinados pelos Estados Unidos com vários
países do hemisfério (toda a América Central, República Dominicana, Chile,
Colômbia e Peru).
A discussão aberta sobre os temas institucionais, adiante da negociação
de um eventual novo Protocolo Ouro Preto II, reformista, começou a ser
caricaturizada como “inflação institucional”. A opacidade e a desinformação
começaram a ganhar o campo das negociações, que em muito pouco tempo
mudaram várias vezes de âmbito e de interlocutores, precisamente quando
chegara a hora das definições, diante de uma agenda extensa (possivelmente
demasiado extensa) de iniciativas e propostas. O mais inquietante talvez tenha
sido o fato de que os bloqueios e as vacilações começaram a provir dos
negociadores brasileiros – os que mais tinham lutado até aquele momento por
uma perspectiva reformista –, o que sem dúvida gerou tanto suspeitas ceticismo
sobre até que ponto o Brasil estaria disposto a chegar nas resoluções.
Dentro desse quadro, começou-se a perceber diferentes matizes no
entusiasmo integracionista de um setor do Itamaraty (talvez o mais arredio com
relação a compromissos radicais com a região) e os principais porta-vozes do
Partido dos Trabalhadores. Para citar o exemplo muito emblemático de uma
figura tão respeitada na região como Marco Aurélio Garcia, nesses meses prévios
o principal assessor de Lula no campo da política exterior preocupou-se em
reiterar, em mais de uma oportunidade, que todos na região “estavam exigindo
ir mais fundo e mais rápido”.
Naturalmente, nem Marco Aurélio Garcia nem os que se apresentavam
como favoráveis às reformas institucionais e à definição de acordos fundamentais
em matéria econômica propunham lógicas de mudança radical ou de natureza
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
167
refundacional. A respeito do tema sobre como mudar um consenso importante
com relação a determinados assuntos, havia a convicção generalizada de que
essa mudança deveria ser incremental, negociada, não imposta; que precisava
ser integral, porque se o que se propunha era a modificação de um Protocolo
institucional, o que se estava buscando era criar instrumentos aptos para responder
às exigências de uma nova agenda, para a qual a manutenção básica do status quo,
com simples modificações “cosméticas”, não seria suficiente; que se devia avançar
com serenidade, mas também com audácia na discussão dos temas que dependiam
amplamente dos acordos de livre comércio e avançar com seriedade na
perspectiva de aperfeiçoamento de uma genuína União Aduaneira, não apenas
postulada.
27
Por outro lado, talvez a primeira das convicções indicasse que a
hora dos diagnósticos e das propostas (e, sobretudo, a dos discursos e
pronunciamentos) tinha cedido lugar às decisões e ao seu cumprimento irrestrito.
Também nesses dias cresceu a noção de que a expansão faustosa do bloco não
se sintonizava necessariamente com o aprofundamento efetivo do Mercosul. A
essa ponderação sobre como processar as mudanças institucionais em um
processo integracionista tão complexo como o do Mercosul somava-se o registro
de um enfraquecimento progressivo da entente entre Brasil e Argentina,
prejudicada continuamente por reclamações (sobretudo argentinas) sobre o
desnivelamento do intercâmbio comercial, especialmente no tocante aos
produtos manufaturados e às modalidades solitárias de negociação de grandes
pacotes de investimento com terceiros poderosos (leia-se o que aconteceu com
a visita à região do presidente chinês Hu Jintao, nas semanas precedentes). Era
também evidente que a existência das situações persistentes de autêntica
emergência social nos países da região reforçavam a prioridade de atender a
frente interna (especialmente a partir da sensibilidade e da ótica de governos
progressistas) e a consciência de que não era tão fácil articular essas demandas
agudas com as imprescindíveis concessões de qualquer negociação, internacional
ou regional.
27
Como prova dos problemas de funcionamento do Mercosul e do que temos chamado de uma certa
“resignação” dos Estados-Partes com o não cumprimento do que foi pactuado e decidido no bloco, expandiu-
se no Mercosul a referência à noção equívoca de “união aduaneira imperfeita”. Sirva esta observação como
exigência do cumprimento efetivo dos acordos e como posição contrária à criação de “atalhos preguiçosos”,
que começam às vezes nos conceitos e no discurso, mas que logo rapidamente se tornam práticas aceitas ou
toleradas, as quais nenhum bem fazem ao aprofundamento e à consolidação do processo integracionista.
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
168
Em suma, convergiam muitos motivos para que os iniciais exageros das
expectativas com relação à Cúpula de Ouro Preto se tivessem desinflado
aceleradamente nos meses que precederam o encontro de dezembro. Além da
persistência de alguma voz militante, o ceticismo começou a ganhar (também
de forma desmedida?) os atores, que chegaram à Cúpula com uma expectativa
muito limitada e com a firme intenção de denunciar a perda de uma nova
oportunidade. De qualquer forma, vale advertir que mesmo antes disso havia
diferenças em torno da questão: enquanto a Coordenadora de Centrais Sindicais
afirmava com justiça sua intenção de fazer uma séria advertência na sua mensagem
aos governos, ao constatar que suas exigências e as do Foro Consultivo não
seriam aceitas, a Comissão Parlamentar Conjunta apresentava um acordo
fundamental, não muito vistoso no que dizia, mas relevante nas potencialidades
de desenvolvimento que abria para o futuro e na perspectiva da criação de um
Parlamento do Mercosul.
Não obstante, e contra muito ceticismo e maus augúrios, devido à ação
militante exercida depois da Cúpula por parte daqueles representantes de
interesses contrários à consolidação do Mercosul, a Cúpula de Ouro Preto deixou
vários acordos e realizações de importância. Passemos em revista alguns dos
mais importantes:
1) eliminação da dupla cobrança da tarifa externa comum, para o que se
concretizaria a interconexão on line das alfândegas dos países membros;
2) autorização dada à Comissão Parlamentar para realizar todas as ações
necessárias a fim de que o Parlamento do Mercosul começasse a
funcionar antes de 31 de dezembro de 2006;
3) autorização para a formação de “fundos para a convergência estrutural
do Mercosul e o financiamento do processo de integração”, dotados,
em princípio, de 100 milhões de dólares e orientados para reduzir os
desequilíbrios regionais e para melhorar de forma equilibrada a
competitividade de todos os membros do bloco;
4) regulamentação das compras governamentais, harmonizando-se as
exigências de diferente natureza e avançando-se na sua liberalização
intrazona;
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
169
5) criação de um “Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados,
Províncias e Departamentos do Mercosul”, substitutivo da precedente
Reunião Especializada de Municípios e Intendências (REI), orientada
para promover a coordenação de políticas integracionistas em nível
local e sub-regional;
6) estabelecimento de grupos de alto nível em temas como Direitos
Humanos, expansão do emprego, facilitação de atividades empresariais,
para propor aos governos dos Estados-membros políticas e iniciativas
coordenadas nessas matérias;
7) confirmação do ingresso da Venezuela e do Equador como Estados
associados e formalização pela Colômbia da sua solicitação de ingresso
no bloco comercial;
8) concretização de acordos de livre comércio com os países integrantes
da União Aduaneira da África Austral (África do Sul., Namíbia,
Botsuana, Suazilândia e Lesoto);
9) confirmação do acordo comercial com a Índia.
Embora outro dos resultados da Cúpula tenha sido o amortecimento
das desavenças comerciais entre a Argentina e o Brasil, e o reinício de um
bilateralismo privilegiado, que deveria consolidar-se no biênio seguinte, o
contraste entre os discursos de Kirchner e de Lula nessa oportunidade não
poderia ter sido mais claro. Enquanto Lula se queixava das “vozes pessimistas,
que magnificam as dificuldades” no momento em que o Mercosul revela “um
grande poder de atração” (referência à ampliação do número de países
associados ao bloco), que lhe dará maior poder de negociação em torno do
projeto da Alca ou diante da União Européia, o presidente argentino, fiel ao
seu estilo, não economizou críticas: “O que é dito continua longe dos fatos.
(...) As decisões presidenciais não se refletem na mesa das negociações
posteriores, onde os problemas conjunturais locais parecem prevalecer sobre
a perspectiva regional.
Além dos gestos e das centelhas contidas nas declarações e atitudes
enfrentadas, a verdade é que o acontecido e, sobretudo, o decidido em
Ouro Preto nos deixa um saldo muito próximo do sintetizado tão bem
por Félix Peña.
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
170
O Biênio 2004–2006 e algumas das suas questões
problemáticas
Durante os dois últimos anos, depois dessa inflexão das expectativas
representada pela Cúpula de Ouro Preto, a trajetória global do Mercosul não
tem sido auspiciosa e, certamente, não convida ao otimismo. No entanto, é
possível que o tipo de balanço ponderado, ensaiado por Félix Peña para avaliar
a Cúpula de dezembro de 2004, sirva também como pauta sensata para considerar
com maior precisão analítica o acontecido durante este último biênio, no processo
de integração regional. De qualquer forma, não parece estarmos em um momento
de autocomplacência, mas sim de uma avaliação sincera efetiva como base para
uma ação reformista e renovadora do funcionamento do processo de integração.
Nesse sentido, é difícil não coincidir com a “Declaração de Córdoba”, emitida
pela Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul em 21 de julho de 2006.
Uma das suas passagens fundamentais afirma: “O funcionamento do Mercosul
está divorciado do projeto de integração que queremos, porque não contempla
a necessária articulação entre as diferentes políticas que deveriam ser levadas em
conta para orientar nossas economias no sentido do desenvolvimento produtivo
e social.
28
As mudanças havidas no Mercosul como processo de integração não
podem ser vistas fora do contexto do ocorrido ultimamente no panorama
político regional e da situação vivida pelos outros processos de integração no
nosso hemisfério. No que se refere ao primeiro ponto, parece evidente que não
é apropriado aceitar o “ilusionismo” da “afinidade ideológica” dos governos
dos Estados-Partes como motor de uma transformação positiva do Mercosul.
Para expandir as considerações a respeito deste ponto, teríamos de problematizar
primeiramente se, de fato, houve um “giro para a esquerda” nos governos da
região e, se é assim, analisar com rigor quais são os limites e alcances do seu
conteúdo em matéria de políticas específicas (indagando, por exemplo, a respeito
das distinções entre esquerdas clássicas, regimes “progressistas”, movimentos
nacionais populares etc.). Por outro lado, deveríamos observar até que ponto o
surgimento desses novos governos na nossa região promoveu (direta ou
indiretamente) o retorno de interesses setoriais, nacionalistas e políticos (a maioria
28
Cfr. “Coordinadora de Centrales Sindicales del Conos Sur. Declaración de Córdoba”, Córdoba-Mercosur,
21 de julho de 2006.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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171
deles não muito favoráveis a apostas e, sobretudo, a sacrifícios pós-
integracionistas) – ou pelo menos coincidiu com esses interesses. O que é pouco
discutível é a confirmação de que os processos de integração não se consolidam
a partir das “afinidades ideológicas” dos governos, mas requerem a solidez de
construções institucionais entre diferentes países.
Outra nota indiscutível do panorama político regional está relacionada
com a persistência de situações de instabilidade política, com a continuidade da
crise dos partidos e das formas da representação (causada pelo auge do
“movimentismo”, da personalização da política, do desprestígio dos Parlamentos
etc.), com a consolidação de mudanças muito importantes nos mapas nacionais
e regionais de movimentos e atores sociais, com a permanência de novos e velhos
problemas em democracias de “baixa intensidade”. Devemos somar a esse
quadro político conflitivo e cambiante a manutenção de desigualdades sociais
inadmissíveis em um continente que continua a ser o mais desigual do planeta,
mas que, há pelo menos três anos, mostra um bom crescimento econômico,
com uma conjuntura externa favorável para a exportação de commodities. Em um
quadro que combina insegurança interna com conflitos emergentes de diversas
índoles, com países que têm despesas elevadíssimas com armamentos e uma
presença militar norte-americana talvez pouco visível, mas de qualquer forma
muito importante, a América Latina, a América do Sul e o próprio Mercosul
vêem multiplicarem-se os sinais da sua relativa marginalidade no contexto
internacional (vide a esse respeito os indicadores sobre comércio, PIB, fluxos
financeiros ou outros, e esta situação será percebida com clareza).
Com o pano de fundo desse panorama político regional, a situação dos
processos de integração em nível hemisférico provoca expressões de desencanto
ou, quando menos, de incerteza. Observe-se a este respeito a enumeração de
alguns processos que se orientam pelo menos em uma dessas duas direções:
depois da retirada estridente da Venezuela, a CAN parece oscilar entre uma
lenta agonia ou o posicionamento, com o impulso da reintegração plena do
Chile, como o motor do projeto de uma “Liga do Pacífico”, com uma projeção
privilegiada para a Ásia e os Estados Unidos. Além de algumas mudanças
eventuais em eleições próximas, a Odeca e o Caricom parecem consolidar a sua
plena inserção na órbita norte-americana, assim como o México, depois do seu
recente – tão acidentado como polêmico – processo eleitoral. Com o surgimento
acelerado da Venezuela como sócio pleno, o Mercosul se expande, mas sem um
aprofundamento consistente; depois do fracasso do projeto Alca, a partir da
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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posição assumida pelos países do Mercosul e a Venezuela (que ainda não era um
sócio pleno do bloco) durante a Cúpula de Mar del Plata, em fins de 2005, a
presença norte-americana na região parece consolidar-se com a expansão (que
poderá chegar até mesmo ao Uruguai, no coração do Mercosul) dos TLCs
bilaterais; o projeto da Comunidade Sul-Americana não parece terminar de
assentar-se, política e economicamente; prolifera na região uma surda disputa
entre as posições de liderança e articulação de vários “eixos” (Brasil vs. México,
o “fator” Venezuela e o seu projeto bolivariano personalizado na figura de
Chávez, o “eixo” Bolívia–Cuba–Venezuela, o “eixo” Brasília–Buenos Aires–
Caracas, a projetada e incerta “Liga do Pacífico” etc.). A presença da América
Latina, especialmente por meio do seu protagonismo no G 20 plus, não termina
de re-significar sua função contestatória (como em Cancun) na possibilidade de
concretizar acordos positivos (poderá “ressuscitar a Rodada de Doha” e o
cenário da OMC?). Em suma, desencanto ou incerteza parece ser o resultado
dos balanços mais pertinentes, além das apostas ativas nesse jogo.
Neste contexto, para onde parece orientar-se o Mercosul? Na verdade, o
que aconteceu neste último biênio não provoca entusiasmo, mesmo quando a
ponderação precisa do acontecido continua sendo a pauta mais ajustada para a
análise. Registremos nesta direção alguns problemas que consideramos centrais:
i) evidencia-se cada vez mais claramente a crise e a improdutividade de
apostar em determinados “modelos integracionistas”, em contraste
com o crescimento da evidência do caráter indispensável do bloco
Mercosul como plataforma de inserção internacional de todos os seus
Estados-Partes, grandes e pequenos. Sobre este aspecto, parece
necessário advertir que não se trata mais só do “Mercosul fenício”
dos anos noventa (com institucionalidade muito limitada, reduzido a
uma agenda meramente econômico-comercial), que se manifesta como
esgotado. Como também estão esgotados o “Mercosul de duas
velocidades”, o “Mercosul de dois grandes e dois pequenos”, o
“Mercosul do bilateralismo excludente” entre Argentina e Brasil, que
não atende devidamente o tema da consideração efetiva das
“assimetrias e das flexibilidades”, exigido com justiça pelo Paraguai
e o Uruguai. Por outro lado, embora o tratemos mais adiante de modo
específico, essa perspectiva de uma “fuga para a frente” de um
Mercosul que se expande sem aprofundar-se também não parece uma
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
173
boa solução. Mas é necessário sermos precisos e evitar mal-entendidos:
o que está em questão é esse espectro de “modelos integracionistas”,
que a nosso ver não levam a nada – não ao processo de integração
que pode mostrar graus de irreversibilidade importantes como
horizonte histórico para o melhor desenvolvimento das nossas
sociedades.
ii) Como se buscava depois das crises de 1999 e dos anos 2001–2002, a
política (manifestada em maior atenção à agenda da integração por
parte dos governos, dos partidos, dos atores sociais da região)
retornou à condução do bloco, mas os rendimentos dessa operação
não têm sido (pelo menos por enquanto) os esperados. A negação do
irrecusável caráter político do Mercosul tem adeptos solitários, em
número cada vez menor, ancorados na defesa de uma visão da
soberania totalmente anacrônica. Não obstante, o bem-vindo “retorno
da política” não provocou, como dizíamos, o resultado previsto: a
vontade política para fazer os fatos avançarem os no cumprimento
do convencionado e no aprofundamento do bloco manifestou-se mais
na retórica dos discursos das cúpulas do que no desempenho
quotidiano dos governos, no funcionamento do bloco. Os políticos
não deixaram de privilegiar “sua cotização eleitoral, em nível
nacional”, e não se mostraram inclinados a arriscar perspectivas
estratégicas em chave regional; foi possível observar-se a emergência
e a radicalização pouco crível de conflitos bilaterais entre Estados-
Partes do bloco (o conflito das indústrias de celulose é emblemático
nessa direção), sem que os governos tenham podido encontrar vias
de negociação alternativas ao confronto político em chave nacionalista
(sem dúvida, a pior hipótese) ou à “judicialização externa” do
diferendo, no quadro de um Mercosul global que se mostrou
inoperante até mesmo como mediador, não apareceram essas
lideranças estratégicas (não fundadas em messianismos carismáticos
ou em “projetos históricos” tão altissonantes como personalistas, mas
na vontade e na proatividade para alcançar acordos genuínos entre
Estados), que tão relevantes se revelaram em outros processos de
integração em nível internacional.
iii) Diante do esgotamento dos projetos “nacional desenvolvimentistas”
e das políticas emanadas do chamado “Consenso de Washington”
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
174
em sua versão mais dogmática e ortodoxa (estas últimas como uma
espécie de sobrevida relativa na região, frente à ausência de coragem
e de decisão na aposta em alternativas diferentes, sérias e responsáveis),
os governos do bloco não acertam em assentar as bases de uma maior
e real complementaridade das suas políticas econômicas, e muito
menos em desenhar os perfis de um “neodesenvolvimentismo
regionalista”. Não há dúvida de que o signo das políticas e da forma
de tramitar as agendas domésticas por parte dos governos condiciona
fortemente sua disponibilidade e sua habilitação para promover
iniciativas pré-ativas para a região. Se são práticas políticas “para
dentro”, com enfoques mais ou menos nacionalistas, o que sobra para
o regionalismo é apenas residual e subsidiário. E, certamente, é preciso
escapar do falso dilema entre interesses nacionais vs. interesses
regionais, mas é sabido que não há opções sem custos nem progressos
integracionistas sem uma consideração mais estratégica, de prazo mais
longo, com referência ao balanço dos seus êxitos e possibilidades.
Embora pareça ingênua, a defesa da tão invocada permanência
“excludente” dos “interesses nacionais” requer também generosidade
e uma visão de mais ampla duração, sobretudo por parte dos Estados
poderosos, como indica, por exemplo, a experiência da União
Européia. Não parece excessivamente contestável a advertência de
que isso não está acontecendo no Mercosul.
iv) Em que pesem os progressos alcançados na matéria, persistem
vários traços de “déficit democrático” no funcionamento quotidiano
do bloco, com impactos negativos não só na legitimidade do
processo como na sua eficácia nos planos econômico-comercial e
de articulação de políticas. Sobre este ponto, eu mesmo já trabalhei
de forma específica.
29
Não é pertinente fazer uma resenha exaustiva
sobre os problemas de funcionamento que redundam em desprezo
do caráter democrático do governo quotidiano do bloco, dada a
opacidade das negociações, as restrições do resistente modus vivendi
“interpresidencialista” ou o temor da participação mais efetiva dos
parlamentos e dos atores da sociedade civil. Talvez se possa sintetizar
29
Cfr. Gerardo Caetano. Los retos de una nueva institucionalidad para el Mercosur, Montevideu,
FESUR, 2004.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
175
este ponto na permanência de situações deficitárias nos sete níveis
que Grandi e Bizzozero sistematizaram em um dos seus trabalhos:
direcionalidade, governabilidade, gestionabilidade, institucionalidade
e juridicidade, transparência, cidadanização e sensibilização.
30
v) Como vimos, já ficou comprovado que as supostas ou reais “afinidades
ideológicas” dos governos dos Estados-Partes não constituem um
fator que determine por si mesmo uma clara predisposição para
aprofundar o processo de integração nos seus diferentes níveis. Este
ponto já foi explorado anteriormente, e por isso não reiteraremos
aqui os nossos argumentos, mas acrescentaremos um outro: as
conseqüências negativas que a satisfação automática de demandas
fortemente setoriais e dispersas no seio de sociedades fragmentadas
(às vezes, de forma clientelística ou “populista”). Este último cenário,
que tanto se refere ao panorama contemporâneo dos nossos países, é
um terreno fértil para a emergência dos chamados “grupos intensos”,
por vezes portadores de uma única demanda e que, por isso, tendem
a confundir suas reivindicações muito particularistas com a própria
identidade, ficando assim inabilitados para encarar qualquer tipo de
negociação. Desnecessário lembrar que toda integração é, antes de
tudo, negociação – muita negociação.
vi) Voltou a existir um relacionamento bom e privilegiado entre a
Argentina e o Brasil, o que constitui uma base indispensável para o
progresso do Mercosul, mas representa um obstáculo na perspectiva
de que a aproximação dos dois grandes se converta em um
“bilateralismo excludente”, evitando a consulta aos outros Estados-
Partes ao adotar decisões que comprometem todo o bloco e não
terminam de adotar a assunção inadiável de políticas de atenção e
flexibilidade ante o já referido problema das assimetrias. Sobre este
ponto também já argumentamos, e não vamos repetir conceitos já
expostos, mas acrescentaremos um que provém da sempre bem-vinda
consideração da experiência comparada. Já se disse – a nosso ver,
corretamente – que, assim como a União Européia não teria podido
30
Jorge Grandi e Lincoln Bizzozero: “Hacia una sociedad civil del Mercosur: viejos y nuevos actores en el
tejido subregional”, em ALOP-CEFIR-CLAEH: Seminario Participación de la sociedad civil en los procesos
de integración, Montevideu, 1998.
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
176
prosperar sem o progresso da Alemanha e da França, o Mercosul
também não se pode consolidar se a Argentina e o Brasil não se
entendem. É igualmente certo que a consolidação da União Européia
exigiu a grandeza e a generosidade da Alemanha e da França para
atender devidamente as demandas de compatibilização e convergência
das economias dos outros integrantes menores da Comunidade. O
mesmo se poderia dizer com respeito à atitude – exigida, com justiça,
pelo Paraguai e o Uruguai – com relação a iniciativas e desempenhos
pendentes da Argentina e do Brasil em consideração à situação das
economias menores e mais fracas do bloco. Dir-se-á, com razão, que
a constituição do Focem é um passo acertado nessa direção, mas pode-
se também retorquir que essa experiência, aprovada no Mercosul,
ainda está muito longe do que representaram na Europa os Fundos
de Coesão Social. É possível que no Mercosul a compatibilização
entre grandes e pequenos não decorra de um incremento exponencial
de recursos para o Focem, mas de um sábio gerenciamento das
flexibilidades, sempre e quando elas não desvirtuem a natureza
acordada para o rumo do bloco, no seu conjunto.
31
vii) Nesta resenha dos problemas que podem ser identificados no último
biênio da trajetória do Mercosul, é importante incluir uma visão sincera
e corajosa com relação aos problemas derivados de uma expansão
apressada e pouco clara nos seus procedimentos e alcances (como
ocorreu com a complexa incorporação da Venezuela na condição de
sócio pleno, anterior a um aprofundamento efetivo do bloco). Com
respeito ao ingresso da Venezuela, o panorama que se tem é, pelo
menos, duplo. Trata-se da incorporação da terceira economia da
América do Sul, em termos de PIB; seus recursos energéticos, como
os da Bolívia, são vitais em qualquer esquema de integração que seja
viável na região; o governo de Caracas tem manifestado uma inegável
31
Em mais de uma oportunidade expertos e atores do Mercosul têm observado que se não for possível a
concretização de uma união aduaneira real (ou seja, não “imperfeita”), com a sua tarifa externa comum , pelo
menos no momento deveria talvez tentar-se a “agenda curta” de garantir seriamente o pleno acesso do livre
comércio intrazona, deixando uma maior flexibilidade para os Estados-Partes, de forma que possam negociar
mercados ou acordos com terceiros (quando a estratégia externa do bloco, no seu conjunto, não seja possível
e sempre longe do formato de acordos tipo TLC com os Estados Unidos, que pelos seus conteúdos já clássicos
desvirtuariam qualquer integração possível ao Mercosul) e enfatizar com muita força projetos de
complementação produtiva e a articulação de políticas comunitárias com vários temas e setores.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
177
vocação integracionista (embora com o traço negativo de uma
excessiva personalização carismática dessa inclinação genuína) e uma
generosidade plausível para contribuir e ajudar as nações do
hemisfério que têm problemas; seu posicionamento claramente
independente (embora em um contexto de histrionismo e estridência
que é contraproducente) diante dos Estados Unidos configura um
contrapeso geopolítico bem-vindo, em particular quando o governo
de Washington se orienta para o hegemonismo unipolar e para a
“guerra preventiva”, com sinais de retorno a um intervencionismo
inadmissível em um hemisfério que aliás subavalia. Não obstante, esses
pontos favoráveis chocam-se com outros traços negativos: o governo
de Chávez é fortemente personalizado e polarizador, que ensaiou e
ensaia uma estratégia perigosa de confronto, para dentro e para fora
do país. Sua política exterior tem um perfil muito agressivo, pouco
convergente com as posições assumidas nesse campo pelos países do
Mercosul, não só com os Estados Unidos como no relacionamento
com os outros países latino-americanos (em cujos processos eleitorais
internos o Presidente Chávez não hesitou em intervir), envolvendo-
se em posições muito duras e não compartilháveis em zonas
particularmente perigosas do mundo (Israel, Irã, Iraque, Bielorússia
etc.). A sociedade venezuelana se encontra fraturada politicamente,
com a oposição “antichavista” e partes importantes da população
especialmente receosas diante do que consideram a “dispendiosa”
agenda externa do atual mandatário. Apesar da relevância da sua ajuda
econômica e financeira a países do bloco, até com iniciativas de
projeção genuinamente regionalista, Chávez tomou outros tipos de
iniciativa (como a criação das Forças Armadas do Mercosul, por
exemplo) que divergem radicalmente da orientação dos outros países
do bloco. Um Mercosul devidamente aprofundado na sua
institucionalidade e na sua nova agenda poderia incorporar a Venezuela
maximizando as suas potencialidades e aspectos favoráveis,
contribuindo, ao mesmo tempo, para minimizar e até mesmo conter
seus traços negativos. Ao contrário, o inverso é o que ocorre com
uma incorporação desse tipo no quadro de um Mercosul que não
termina de resolver seus problemas, entre outras coisas, porque não
se concretiza uma vontade política firme para aprofundar os
conteúdos do acordo nas direções que mencionamos.
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
178
viii) Por último, a emergência e a falta de solução para muitos preocupantes
conflitos binacionais dentro do Mercosul (o diferendo fronteiriço entre
Argentina e Uruguai com respeito à instalação de fábricas de celulose
é, como vimos, um exemplo paradigmático) afeta muito seriamente
o cenário do que poderíamos chamar de “batalha cultural pelo
Mercosul” (essa construção indispensável de uma cultura da
integração, de uma cultura “ñandé
32
totalmente contrária ao
avassalamento e à assimilação), ao mesmo tempo em que reforça muito
o renovado acionar dos lobbies anti-Mercosul e dos projetos de
“salvação solitária”. A esse respeito, pode bastar o exemplo de como
influiu negativamente no Uruguai a atitude assumida pelo governo
argentino no conflito das fábricas de celulose, o efeito muito negativo
na economia e na sociedade da interrupção do tráfego nas estradas
fronteiriças, efetivado pela Assembléia de Gualeguachu (contando
primeiro com a tolerância, mas depois da primeira decisão da Corte
da Haya, com o apoio decidido do governo de Kirchner –, apoio
recentemente deteriorado diante da radicalização das posições da
Assembléia, que renovou essa interrupção e prometeu “um verão
infernal” para os uruguaios) e o desencanto causado pela ausência de
participação do Mercosul (e em especial do Brasil) na busca de uma
saída para um tema que alcançou proporções efetivamente perigosas.
Não há dúvida de que esta situação de conflito incremental resultou
em campo propício para o início simultâneo de uma operação política
no Uruguai, que procurava assinar um TLC com os Estados Unidos,
aventura finalmente freada por uma decisão sensata do presidente
Vázquez. Este é só um exemplo do ponto a que pode chegar um
conflito binacional, se não recebe do bloco estímulos e instituições
que favoreçam a negociação das diferenças enfrentadas pelos Estados-
Partes, podendo provocar o custo não desejado do afrouxamento ou
da dissolução da lealdade e confiança recíprocas que são a base cultural
da integração. Nesta perspectiva, ganhar a “batalha cultural” na defesa
do Mercosul passa a ser uma tarefa de base. Recordemos, sobre este
32
O grande intelectual paraguaio Ticio Escobar acentuou que no idioma guarani há dois vocábulos que
traduzem o conceito de “nós”: “oré” com conotação excludente, significando “nós, contra os outros”, e
“ñandé”, de significação que projetaria o conceito de “nós, com os outros”. Obviamente, com Ticio Escobar
aspiramos à construção de uma “cultura Mercosul” com o significado de “ñandé”.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
179
particular, a sabedoria de um gigante europeu, construtor da
integração entre Estados: Jean Monnet, que disse: “Se tivesse de
começar de novo, começaria pela cultura.
Portanto, não se trata de problemas sem solução. Eles constituem uma
agenda de circunstâncias complexas, cuja solução satisfatória exige atitude sincera,
vontade política e muito sentido estratégico. Na última Cúpula do Mercosul,
realizada em julho, em Córdoba, além dos episódios anedóticos que ocultaram
o realmente importante, foi possível avançar seriamente em várias iniciativas
que estão relacionadas em parte com os problemas mencionados. Neste sentido,
o “Comunicado Conjunto dos Presidentes dos Estados-Partes do Mercosul”
registra êxitos consistentes em mais de um assunto importante: a constatação
do sucesso na implementação de uma primeira etapa da eliminação da dupla
cobrança da Tarifa Externa Comum; o progresso nos acordos sobre um “Código
Aduaneiro do Mercosul”; progressos na implementação do Fundo para a
Convergência Estrutural do Mercosul (Focem); adoção do “Protocolo de
Contratações Públicas”; progressos na harmonização de normas para a
liberalização do comércio de serviços; progressos nas iniciativas, buscando
concretizar uma “rede de gasodutos Sul–Sul” na região; progressos alcançados
no quadro do chamado “Mercosul político”, com destaque na consolidação do
processo de instalação do Parlamento do Mercosul; progressos na concretização
de acordos de complementação econômica e aproximação comercial com
terceiros países – entre outros pontos que poderiam ser destacados.
33
Não obstante, correspondeu uma vez mais à Coordenadora de Centrais
Sindicais do Cone Sul – sem dúvida um dos atores mais conseqüentes com relação
à idéia de aprofundamento e renovação efetivos do processo, com sua trajetória
de mais de vinte anos na forja da integração regional – marcar na sua Declaração
a exigência das cidadanias e dos atores sociais em favor do fim da retórica e do
começo inadiável das realizações. Outra passagem da “Declaração de Córdoba”
diz que o Mercosul “tem avançado na agenda da integração de cadeias produtivas
ou cadeias de valor de grandes empresas que funcionam na região, em particular
as transnacionais, mas tem relegado aquelas cadeias produtivas compostas pelas
pequenas e médias empresas, que são as que mais geram emprego (...). Os
governos do Mercosul devem por em marcha as metas e os objetivos políticos
33
Cfr. Comunicado Conjunto de los Presidentes de los Estados-Partes del Mercosur, XXX Cumbre de Jefes de Estados del
Mercosur, Córdoba 21 de julho de 2006.
Mercosul: quo vadis?
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
180
que vêem afirmando em suas recentes declarações e nos documentos assinados
pelos Presidentes, principalmente medidas que promovam a complementaridade
das economias dos países membros e a conjunção das suas políticas agrícolas e
industriais.
34
Colofon
Ao longo destes últimos tempos, os uruguaios genuinamente
“mercosulianos” temos precisado passar por circunstâncias difíceis. Entre a
agressividade e o egoísmo dos vizinhos-irmãos e a ressurgência dos lobbies anti-
Mercosul dentro das fronteiras do país, não têm faltado razões à cidadania
uruguaia para desconfiar do Mercosul como horizonte estratégico e como destino
de desenvolvimento histórico. Os “calculistas” da conjuntura têm querido
aproveitar essa conjuntura adversa e, na verdade, não tem sido fácil resistir aos
seus ataques.
Neste contexto, algumas vezes temos preferido ouvir a velha máxima
segundo a qual “os países não têm amigos permanentes, mas sim interesses
permanentes”. Trata-se na verdade de uma frase muito antiga, bastante gasta,
cuja autoria muitos e diferentes autores têm reclamado, e que, insolitamente, a
partir do seu realismo grosseiro, tornou-se uma espécie de “sabedoria
convencional” e de “senso comum” curiosamente exitoso no cenário diplomático
da região. Para dizer o mínimo, caso se tivessem ajustado às coordenadas dessa
pauta filosófica, os europeus não teriam podido construir essa Europa dos
cidadãos que, embora inconclusa, tanto admiramos.
Animando-me agora a falar na primeira pessoa, que sei ser uma audácia
pouco menos do que imperdoável no discurso diplomático, prefiro outros
máximas e outros critérios. Por exemplo, aposto muito mais na sábia
recomendação que me sugeriu meu filho mais velho, Federico Caetano, de vinte
anos, jovem estudante de Direito e Relações Internacionais da Universidade da
República, em Montevidéu, ao ouvir meus argumentos em prol desse “outro”
Mercosul, pelo qual tanto lutamos e que parece muitas vezes tão distante. Disse
Federico: “A ilusão é o motor dos nossos propósitos”. Segundo o dicionário
34
Cfr. Coordinadora de Centrales Sindicales del Cono Sur. Declaración de Córdoba, 21 de julho de 2006.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Gerardo Caetano
181
espanhol mais atualizado que tenho em mãos na minha casa,
35
a palavra “ilusão”
contém uma ambigüidade que considero muito sugestiva e oportuna para indicar
de modo metafórico as atuais possibilidades no que respeita ao rumo do projeto
Mercosul. De um lado, de acordo com o dicionário citado, ela alude ao “conceito
ou imagem formados na mente que não correspondem a uma verdadeira
realidade”, mas contém igualmente a possibilidade de configurar um “interesse
ou entusiasmo cheios de esperança”. Plenamente conscientes do dilema desses
dois significados, e da extensão a que eles se referem aos termos mais
contemporâneos a respeito do debate em torno do destino previsível do
Mercosul, preferimos apostar – com os olhos bem abertos, e sem ingenuidades
– nos riscos da segunda versão, que representa, sem dúvida, a melhor alternativa
possível de um compromisso responsável em favor do Mercosul.
Tradução: Sérgio Bath
Revisão: Regina Furquim
35
Manuel Seco, Olimpia Andrés, Gabino Ramos. Diccionario abreviado del español actual. Madrid, Grupo Santillana
de Ediciones, 2000, p. 968.
DEP
Plena Soberania Petrolífera
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
182
Plena Soberania
Petrolífera
Rafael Ramírez
*
omo a Venezuela é país em desenvolvimento e também produtor de
petróleo, me permitirei tratar de nossa própria experiência, na qual o petróleo
desempenha papel crucial em nossas possibilidades de desenvolvimento.
Esta breve exposição trata do caminho que percorremos na Venezuela
durante os últimos anos para restabelecer a plena soberania sobre a gestão de
nosso petróleo, um processo difícil que, liderado pelo Presidente Hugo Chávez,
exigiu mobilizar todo o povo em defesa de nosso principal recurso, numa dura
confrontação com os interesses transnacionais e seus agentes políticos nacionais.
Acreditamos que essa experiência constitui uma modesta contribuição a nossos
países irmãos produtores de petróleo, e que representa também uma lição.
C
* Ministro de Energia e Petróleo da República Bolivariana da Venezuela e Presidente de PDVSA (Petróleos
da Venezuela S.A).
Papel da energia nos países em desenvolvimento
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Rafael Ramírez
183
A Venezuela foi um laboratório, um terreno onde foi executada uma
estratégia sofisticada concebida pelos centros de pensamento dos países
consumidores a fim de arrebatar o controle soberano de nossos recursos naturais,
e conseqüentemente liqüidar a Opep. Essa estratégia, chamada “de abertura”,
baseia-se na globalização do recurso natural e se disfarça numa certa corrente de
modernidade na qual o Estado nacional, administrador da taxa de exploração e
possuidor de soberania fiscal sobre seus recursos naturais, se transforma em um
conceito anacrônico, que impede o livre acesso ao capital para a exploração e o
comércio do petróleo.
Em nosso país, essa estratégia antinacional contou com inesperado aliado:
nossa própria empresa nacional, a PDVSA. Esta, como verdadeiro “cavalo de
Tróia”, foi desenvolvendo um a um os elementos da “abertura petrolífera” e
desmontando nossa política petrolífera tradicional até entrar em confronto aberto
e violento com o Estado venezuelano. Há dois anos atrás estávamos ainda sob o
impacto que esse confronto causou em nossas mentes e no mercado, e que
culminou em acontecimentos extraordinários bem conhecidos de todos. Em
abril de 2002, a equipe executiva da PDVSA promoveu um golpe de Estado
militar, e entre dezembro de 2002 e janeiro de 2003 um segundo golpe de Estado,
dessa vez econômico, baseado na paralisação das exportações de petróleo, Após
ocasionar graves prejuízos e perdas de mais de 14.700 milhões de dólares a
nossa indústria petrolífera, essa equipe executiva fracassou em ambas as
oportunidades e finalmente seus membros perderam todas as posições que
ocupavam no seio de nossa companhia nacional. Dessa forma, em 2003 o Estado
venezuelano recuperou o controle da PDVSA.
O fato é que a velha PDVSA também havia sido vítima de uma estratégia
de captura – a expressão anglo-saxônica é agency capturing – levada a efeito por
certos países consumidores e companhias petrolíferas internacionais. Em vez de
servir aos interesses da Nacão como proprietária do recurso natural, ela tratou
de impor e implantar políticas concebidas por aqueles atores. Em suma, a PDVSA
tentou converter-se em “corporacão energética global”, em benefício único dos
consumidores nos países desenvolvidos, identificando-se ideologicamente com
o pensamento daqueles países e afastando-se dos problemas típicos e dos
inconvenientes de um país dependente como o nosso. A partir de 2003 o Estado
venezuelano recapturou sua “agência”: a nova PDVSA se orgulha de servir à
Nação como companhia petrolífera definitivamente nacional, não somente na
Plena Soberania Petrolífera
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
184
geracão de rendimentos e royalties, de tanta importância para os países
exportadores de petróleo, mas também na execução de políticas econômicas e
sociais, definidas pelo governo nacional e relacionadas com a distribuição desses
rendimentos: a semeadura do petróleo.
Recapturar a agência não pressupunha simplesmente substituir uma equipe
executiva por uma nova, e recuperar a produção. Mais do que isso, era a
oportunidade para restabelecer os fundamentos de nossa política petrolífera
soberana, de fazer cumprir nossa Constituição e a moldura jurídica vigente desde
1999 e 2002, desmontando toda a estrutura da “abertura petrolífera” que
sustentava a antiga PDVSA.
O primeiro aspecto foi restabelecer o Estado venezuelano, por meio do
Ministério da Energia e do Petróleo, fortalecendo a Opep e subordinando a
empresa nacional às decisões do Estado. Ao fortalecer o Ministério da Energia
e do Petróleo, sede institucional tradicional da política petrolífera venezuelana,
assim como todos os organismos de controle estatal, foram sendo gradualmente
restabelecidas todas as contribuições da PDVSA ao fisco nacional; a gestão da
empresa e os mecanismos de prestação de contas ao Estado, seu único acionista,
se tornaram mais transparentes; e os planos de investimento e expansão da
indústria se adequaram melhor a nossos planos nacionais. Essa nova situação
nos permitiu iniciar um processo de revisão e ajuste de todos os negócios da
“abertura petrolífera” à moldura jurídica vigente, nos quais a velha PDVSA
desempenhava o papel principal ou se colocava na situação de “escudo fiscal”
em relação às empresas transnacionais. Referimo-nos particularmente à
Internacionalização, aos Convênios de Serviços Operativos e às Associações.
Internacionalização
Com essa denominação se conhece a política de investimentos no exterior
que a velha PDVSA executou durante quase vinte anos, orientada para uma
integração vertical com as atividades de refino, distribuição e comercialização
nos grandes países consumidores. O objetivo era converter-se em “corporação
energética global”, com investimentos da ordem de quinze bilhões de dólares,
principalmente nos Estados Unidos, por meio da rede Citgo, e na Alemanha
por meio da rede ROG, exatamente no momento em que o Estado venezuelano
passava por uma de suas piores crises econômicas. O país sofreu forte
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Rafael Ramírez
185
descapitalização e fuga de capitais e sua empresa nacional, a PDVSA, foi ator
fundamental nesse processo. A equipe executiva da PDVSA utilizou uma
estratégia para retirar ativos do controle do Estado venezuelano, interpondo
entre este último e as novas aquisições o “véu empresarial” e sujeitando-as a
legislações estrangeiras e a obrigações financeiras que impossibilitavam o
controle estatal.
Durante quase vinte anos, os vultosíssimos investimentos em refinarias no
exterior não produziram um único dólar em dividendos para o acionista final
da PDVSA, isto é, o Estado venezuelano. Todos os lucros eram reciclados no
interior da própria estrutura e eram reinvestidos e despendidos – e mal gastos –
no exterior, acumulando ativos fora do controle do Estado. A partir de 2003,
no entanto, foi possível terminar com essa situação e agora os lucros chegam
realmente a seu destino, os cofres do estado venezuelano. Desde 2004 até o
presente os dividendos atingiram cerca de três bilhões de dólares, e iniciamos
uma profunda revisão desses investimentos no exterior, desfazendo-nos dos
desnecessários e restituindo ao Estado parte de seus investimentos, além de
ressarcir as perdas sofridas.
Um aspecto fundamental da internacionalização, que está sendo liqüidado,
tem a ver com o fato de que todos os convênios de fornecimento celebrados
com as filiais e as sociedades no exterior concediam descontos substanciais sobre
os preços de mercado. Tratava-se de descontos de 2 a 4 dólares por barril, além
do que as fórmulas adotadas permitiam que os custos de operação fossem
descontados do preco, o que produzia uma transferência de custos para a
Venezuela e conseqüentemente uma evasão fiscal em nosso país, no qual a alíquota
de imposto era mais elevada do que a aplicada nos Estados Unidos.
Além disso, a PDVSA utilizou, para seu endividamento externo,
mecanismos de financiamento em que esses contratos de fornecimento
figuravam como “garantias” bancárias. Dessa forma, a fim de terminar com
essa prática de descontos antinacional e perversa, foi necessário antes de mais
nada reestruturar as dívidas em apreço, reduzindo-a de 9 bilhões a 3 bilhões
de dólares. Em alguns outros casos, a dificuldade consistia em que o sócio
privado alegava direitos adquiridos sobre os descontos concedidos por
contrato, e naturalmente retirar-se da sociedade era um processo muito
laborioso. Não obstante, como demonstra nossa recente retirada da associação
com Lyondell, não permitiremos que esses obstáculos de ordem prática se
Plena Soberania Petrolífera
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
186
convertam em pretextos para não retificar os erros do passado. Além disso,
seguiremos adiante com a revisão de todos e cada um desses contratos, e
daremos os passos necessários para acabar de uma vez por todas com a prática
de descontos, estabelecendo um sistema público de fórmulas de preços para
todos os nossos petróleos brutos e produtos.
Convênios de serviços operativos
Passemos agora a outro elemento da política de desvalorização do recurso
natural levado a efeito pela PDVSA com a “abertura petrolífera”: os convênios
de serviços operativos. Neste caso, chegamos ao coração do problema de como
levar a bom termo a regulamentação do recurso natural e a quem ela deverá
beneficiar. Desde 1 de janeiro de 1976, data da nacionalização da indústria
petrolífera na Venezuela, a prospecção e produção de petróleo são atividades
reservadas ao Estado. Desde então, essas atividades não podem ser exercidas
por particulares, exceto quando associados à empresa petrolífera nacional e sob
o controle desta última. Mas a partir de 1992, a velha PDVSA, já capturada e tal
como o “cavalo de Tróia”, baseando-se em todo o seu poder, em sofismas e
interpretações “criativas” da lei, arrogou-se faculdades em matéria de acesso ao
recurso natural que competiam ao Ministério, passando assim a outorgar os
Convênios de Serviços Operativos (CSO).
Por meio destes mal denominados Convênios Operativos, as companhias
petrolíferas privadas, burlando a legislação em vigor, converteram-se na prática
em produtoras de petróleo na área concedida pela empresa nacional, embora
esse fato fundamenntal ficasse oculto por sofismas legalistas cujo núcleo era o
conceito de “serviços”: formalmente, os chamados contratistas nao prospectavam,
simplesmente prestavam serviços de prospecção; tampouco formalmente
produziam, simplesmente prestavam o serviço de produzir. Finalmente, entendia-
se que o petróleo produzido não fosse de sua propriedade sim era entregue à
PDVSA, que formalmente não o comprava, apenas remunerava os “serviços”
prestados. Dessa forma, pagavam-se diversas remunerações aos contratistas
(OpFee, CapFee, estipêndios e incentivos), todas elas indexadas segundo
fórmulas sofisticadas que – surpresa ! – atingiam simplesmente cerca de 60% do
valor de mercado da produção. A PDVSA e o fisco nacional ficavam com os
40% restantes.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Rafael Ramírez
187
Em janeiro de 2005, já recuperada nossa empresa petrolífera nacional,
resolvemos acabar com essa farsa indigna e prejudicial ao país. Existiam na
época 32 CSO que produziam cerca de 500 mil barris por dia. Como já
dissemos, em média recebiam 60% do valor de mercado. No entanto, havia
diferenças individuais importantes. Em um par de casos extremos – é difícil
acreditar, mas é verdade – pagava-se aos contratistas mais de 100% do valor
de mercado do petróleo bruto: isto é, a Nação sofria prejuízo em cada barril
produzido. Em outros casos, a percentagem superava 70%, de maneira que a
PDVSA sofria perdas, pois era ela – e não os contratistas – quem tinha de
pagar os royalties a uma taxa de 30% (porque o pagamento do royalty compete
ao produtor, e os contratistas não eram considerados produtores, e sim nada
mais do que prestadores de serviços). A outros contratistas era pago um
“incentivo” de um milhão de dólares por dia ao acumular determinado nível
de producão. No final do ano de 2004, o preco por barril produzido pela
própria PDVSA não superava 4 dólares, mas o barril produzido pelos CSO
chegava a 18 dólares, e a PDVSA teve de pagar mais de três bilhões de dólares
a esse título.
Sem dúvida, à base dos mesmos sofismas e tergiversacões, aos contratistas
de CSO tampouco era aplicada a taxa de imposto de renda para atividades
petrolíferas – de 50% – e sim a taxa de imposto para atividades não-petrolíferas –
de 34% – pois entendia-se que se tratava de simples empresas de servicos.
A primeira providência que tomamos em 2005 foi acabar com as
situações de abusos extremos e limitar a remuneração total dos contratistas,
de maneira que a PDVSA – e menos ainda a Nação – em nenhuma hipótese
sofresse perdas ligadas à produção. Em seguida, a autoridade nacional
competente em matéria em impostos classificou os CSO como produtores de
petróleo, e não mais como prestadores de serviços, passando a ser-lhes aplicada
a taxa de 50% em todas as suas declarações de imposto de renda para os
períodos fiscais ainda em aberto, isto é, de 2001 a esta parte. Essas medidas,
em si mesmas bastante moderadas, proporcionaram um rendimento fiscal
adicional de um bilhão de dólares. Depois, o governo questionou, com
argumentos sólidos, a legalidade da totalidade desses convênios. Ao mesmo
tempo, porém, oferecemos uma solução: migrar para a nova Lei Orgânica de
Hidrocarburetos, que estabelecia regras claras para Empresas Mistas com
participação acionária majoritária do Estado.
Plena Soberania Petrolífera
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
188
Para resumir, as negociações duraram 15 meses e produziram o seguinte
acordo: os CSO se converteram em empresas mistas: os royalties aplicáveis
foram elevados a um terco (33%): a taxa aplicável de imposto de renda é de
50%. Além disso, para impedir a evasão fiscal, foi introduzido um “imposto
sombra” de 50% sobre o rendimento bruto. Dessa forma, caso necessário, os
royalties e o imposto de renda se complementariam com esse “imposto
sombra”, de forma que o total nunca fosse inferior a 50% do rendimento
bruto. Finalmente, a PDVSA assumiu uma participação acionária mínima de
60%. Os direitos de exercer as atividades primárias de prospecção e
exploração, dentro de áreas determinadas pelo executivo nacional – as quais
coincidem com as áreas dos antigos CSO, porém drasticamente reduzidas, a
aproximadamente um terço de sua extensão anterior – têm prazo de vigência
de vinte anos.
É preciso esclarecer que a empresa mista é uma empresa operadora, isto
é, não se trata de uma superestrutura sob a qual possa surgir algo semelhante
aos CSO de antigamente. Da mesma forma, a PDVSA atua estritamente como
sócia, e não está envolvida nas chamadas “cláusulas de estabilidade”, por meio
das quais ela atuava como guarda-chuva fiscal ou, o que era pior, desempenhava
o papel de refém, garantindo aos investidores privados o pagamento de
indenizações para compensar qualquer variacão do regime fiscal que viesse a
ser decidido pela Assembléia Nacional soberana. Às empresas mistas não se
aplica a arbitragem internacional, ou para ser mais exato, o capital privado
estrangeiro tem a faculdade de recorrer à arbitragem internacional somente
contra o governo e não contra seu sócio, e somente com base na Lei de Proteção
aos Investimentos, uma legislação geral aplicável igualmente ao setor petrolífero
e não petrolífero.
Em setembro de 2006 todos os 32 contratistas, menos dois, haviam aceito
as condições acima resumidas. Entre eles havia companhias internacionais de
todo tipo, estatais e privadas, e até pequenas empresas latino-americanas e
venezuelanas. Em dois casos não se chegou a acordo, o que levou o governo
nacional a cancelar os respectivos CSO em 1 de abril de 2006. Não obstante,
tenho o prazer de informar-lhes que mesmo nos dois casos em que não houve
acordo até 31 de marco de 2006, estamos negociando, em um ambiente muito
positivo, arranjos de natureza econômica consistentes com as condições gerais
que havíamos estabelecido para a migração. Em outras palavras, acreditamos
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Rafael Ramírez
189
que em futuro próximo poderemos afirmar, sem qualquer reserva, que tivemos
cem por cento de sucesso.
Associacões
Não obstante, ainda nos faltam alguns passos adicionais no processo de
instrumentação da política estabelecida pelo Presidente Chávez para construir
um novo regime petrolífero e desmantelar a “abertura petrolífera”.
A primeira dessas providências envolve as Associações para beneficiamento
do petróleo bruto extrapesado proveniente da Faixa Petrolífera do Orinoco, as
quais produzem cerca de 620 mil barrís diários que se transformam em
aproximadamente 560 mil barrís diários de petróleo bruto beneficiado. Embora
aprovadas pela Assembléia Nacional na década de 90, essas associações padecem
de defeitos econômicos e jurídicos semelhantes aos resumidos no caso dos CSO.
Alguns já foram resolvidos. Por exemplo, as associações pagavam royalties à taxa
de um por cento; em 2004 elevamos essa taxa a um sexto e no decorrer deste
ano, a um terço. Da mesma forma, era-lhes aplicada a taxa de 34% de imposto
de renda para atividades não-petrolíferas; por meio de uma reforma da Lei de
Imposto de Renda acabamos de elevar essa taxa a 50% (isto é, a aplicável a
atividades petrolíferas). Por outro lado, já convidamos quatro associações a
migrar para a nova Lei Orgânica de Hidrocarburetos. Concretamente, isso
significa que a PDVSA passará a ter maioria acionária nas atividades primárias
de prospecção e produção.
Finalmente, para acabar de recuperar o regime petrolífero da nacionalização,
permanece pendente o caso das três associacões chamadas de “Exploração de
Risco e Lucros Compartilhados”, formadas em 1977 para prospecção e produção
de petróleo convencional. Essas associações ainda não entraram em fase de
produção, embora tenham feito descobertas significativas. Elas também se
transformarão de maneira análoga às associações para beneficiamento do
petróleo bruto extrapesado, e quando isso ocorrer, teremos cumprido nosso
objetivo de criar um novo regime petrolífero, consentâneo com o lema cunhado
pelo Presidente Chávez: Plena Soberania Petrolífera.
Para concluir, como assinalei no início de minha exposição, nossa
experiência se encontra à disposição dos países irmãos produtores de petróleo,
como contribuição ao fortalecimento de nossas políticas nacionais para o
Plena Soberania Petrolífera
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
190
controle e defesa de nosso petróleo; a política de Plena Soberania Petrolífera se
fundamenta nos princípios que serviram de base para a fundação e crescimento
da Opep.
No entanto, acreditamos que nessa experiência há também uma mensagem
aos grandes países consumidores e às empresas transnacionais privadas: não
pode haver estabilidade no mercado petrolífero mundial se não houver
estabilidade nos países produtores de petróleo, e isso significa estabilidade
político-social, justiça e distribuição nacional dos rendimentos do petróleo.
A política de Plena Soberania Petrolífera se refere tanto ao recurso natural,
esgotável e não renovável, quanto à atividade industrial. Não exclui, como
demonstra o resumo que dela fizemos, a presença do capital estrangeiro. Deste
se exige apenas respeito a nossos direitos soberanos. Obviamente não é possível
convertê-lo em porta-voz de nossa política petrolífera nacional nos países
consumidores, mas também se pede abster-se de promover políticas concebidas
por certos países consumidores que ainda acalentam seu passado colonial ou
imperial. O capital estrangeiro é bem-vindo sempre que se dedique às atividades
industriais propriamente ditas e aspire legitimamente a um ganho razoável, mas
que aceite também, sem reservas, a legitimidade de nossa aspiração a uma
remuneração justa para o recurso natural, esgotável e não renovável.
Tradução: Sérgio Duarte
DEP
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Silvano Cuéllar – Alegoria da Nação
191
Silvano Cuéllar
Alegoria da Nação
María Victoria de Robayo*
ilvano Cuéllar (1873-1938) estudou ornamentação com o suíço Luis
Ramelli (1851–1931). Desde 1899, suas obras aparecem resenhadas em
exposições coletivas. Realizou grande número de esculturas comemorativas, entre
elas o mármore de Epifanio Garay (1922), situado nos jardins do Museu Nacional
S
Alegoria da Nação (1938)
Óleo sobre tela, 82 x 101 cm
* Diretora do Museu Nacional da Colômbia.
Silvano Cuéllar – Alegoria da Nação
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
192
DEP
da Colômbia; o mármore de José Acevedo y Gómez, no Palácio Municipal de
Bogotá; o mármore de Rafael Maria Carrasquilla, na Aula Máxima do Colégio
Maior do Rosário, em Bogotá; e o bronze de Policarpa Salavarrieta (1911), na
Praça Principal de Graduas, em Cundinamarca, Colômbia. Foi professor na
Escola de Belas Artes de Bogotá (1907) e atuou como pintor, escultor e fotógrafo.
Nesta obra, o artista constrói um Olimpo que preside a Liberdade, rodeada
de musas e símbolos da Pátria. No centro, de pé, Bolívar dirige-se à nação,
dividida em dois grandes grupos: à esquerda, os presidentes da República, desde
Nariño até Enrique Olaya Herrera; à direita, os primeiros habitantes do território
colombiano, os Conquistadores, representantes do Clero, literatos, cientistas e
outros pensadores notáveis. Estão situados em um ambiente no qual sobressaem
as palmas de cera – árvore nacional –, as palmas de baioneta do Parque da
Independência, as guacamayas, o Capitólio, a Igreja de Santo Agostinho, o Palácio
de Governo e o Pequeno Templo de Bolívar, que se encontra atualmente no
Parque dos Jornalistas.
Tradução: Sérgio Bath
Revisão: Regina Furquim
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
Silvano Cuéllar – Alegoria da Nação
193
tão sonhada integração da América do Sul vai, finalmente, imprimindo-
se concretamente no mapa do continente. Não ficou na retórica o encontro de
chefes de Estado que, no ano 2000, lançou em Brasília a Iniciativa para a Integração
da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA). Os frutos começam a
aparecer. E em três deles está presente a Odebrecht: três projetos viários
concebidos com o ambicioso propósito de ligar os oceanos Atlântico e Pacífico.
Dois deles, a construção das rodovias IIRSA Norte e IIRSA Sul, estão sendo
desenvolvidos no Peru – o país pelo qual a Odebrecht iniciou, 27 anos atrás, a
sua internacionalização. O terceiro projeto, que também visa abrir caminho entre
os dois oceanos, inclui a abertura de uma estrada na vizinha Bolívia.
Apoiada, sobretudo, por entidades multilaterais como a Corporação
Andina de Fomento (CAF), a integração sul-americana está, de fato, avançando.
Um dos mais notórios sinais disso foi a inauguração, em janeiro, da primeira ponte
entre o Brasil e o Peru, simbolizando a integração física entre os dois países.
Construtora
Norberto Odebrecht
As interconexões bioceânicas
da integração regional
A
www.odebrecht.com.br
Silvano Cuéllar – Alegoria da Nação
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
194
A ponte sobre o rio Acre, com 240 m de extensão, fez mais do que permitir
a superação do obstáculo natural que separava, num país e no outro, as cidades
de Assis Brasil e Iñapari. Ela desimpediu a passagem para uma daquelas três
estradas, a IIRSA Sul, também chamada Interoceânica Sul, que será, daqui a
quatro anos, a primeira ligação rodoviária do Brasil com o Oceano Pacífico.
“Uma obra que vai redesenhar a geografia econômica de uma vasta porção
do território sul-americano”, segundo o Governador do Acre, Jorge Viana,
antevendo o intenso movimento de transporte de carga e passageiros que em
breve trará vida à fronteira e intensificará a atividade produtiva nas localidades
situadas ao longo da futura rodovia. Os números são expressivos: dos 27 milhões
de habitantes do Peru, cerca de 5,5 milhões serão diretamente beneficiados pela
Interoceânica Sul. Processo semelhante tende a ser verificado nas transformações
que ela irá operar também em território brasileiro.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
195
A inauguração da ponte encerrou uma importante etapa da participação
do Brasil nessa obra, uma vez que, do seu lado da fronteira, o asfalto já chegou
às margens do rio Acre. Ou, mais precisamente: encerrou a participação em
seu próprio território, pois muito do que ainda está por fazer foi confiado a
empreendedores brasileiros. Dos cinco trechos em que foi dividida a
construção da Interoceânica, dois estão sendo desenvolvidos pelo Conirsa,
consórcio liderado pela Odebrecht Perú Ingeniería y Construcción S.A.C. (70%)
e integrado também pelas empresas peruanas Graña y Montero S.A. (18%),
JJ Contratistas Generales S.A. (7%) e Iccsa, Ingenieros Civiles y Contratistas
Generales S.A. (5%).
Pela primeira vez em sua história no Peru, a Odebrecht não será apenas
construtora. Nesse contrato de concessão, no valor de US$ 580 milhões, ela
será também investidora. E, ao contrário do que fez no passado, não precisará
levar recursos do Brasil: a empresa integrou-se ao regime de parceria público-
privada (PPP) que, no Peru, está sendo desenvolvido com sucesso, com algo a
mais: também na engenharia financeira, a Odebrecht tem contribuições originais
a oferecer.
Em território peruano, a Rodovia Interoceânica Sul terá uma de suas
pontas em Iñapari, junto à fronteira com o Brasil. A 403 km dali, na Ponte
Inambari, ela vai se abrir em duas vertentes – uma das quais, por sua vez, também
se bifurcará, fazendo com que a Interoceânica tenha conexões com três portos
do Pacífico: San Juan de Marcona, Matarani e Ilo. Uma dessas vertentes, ligando
Iñapari e San Juan de Marcona, já tem uma parte pavimentada, que vai de Urcos
até o Pacífico, passando por Cuzco. Os 703 km a serem construídos entre Iñapari
e Urcos é que estão entregues ao consórcio liderado pela Odebrecht. O que
existe ali, hoje, é uma estrada estreita, precária, sem revestimento, pontilhada de
perigos, por onde até recentemente poucos se aventuravam a trafegar.
Transformá-la numa moderna rodovia não será tarefa simples, pois há
desafios de toda ordem no projeto – técnicos, logísticos, financeiros, sociais e
ambientais. Eles incluem o trabalho sob temperaturas que variam de 10ºC
negativos, na Cordilheira dos Andes, a 40ºC, na selva amazônica peruana, ou
em altitudes que vão de 270 m acima do nível médio do mar, junto à fronteira
com o Brasil, a 4.700 m, na localidade andina de Hualla-Hualla.
As comunidades que vivem ao longo da estrada têm origens étnicas diversas
– de descendentes de civilizações incaicas e pré-colombianas a populações
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
196
indígenas da selva amazônica –, cada uma delas com crenças, costumes e tradições
diferentes, que precisam ser compreendidos, respeitados e, assim, valorizados.
Foi essa necessária consciência que levou a Odebrecht a adotar procedimentos
especiais ao desenvolver a construção de dois grandes acampamentos para as
obras da Interoceânica em Ccatca e Ocongate, na chamada região de Serra Alta.
Ali vivem comunidades que cultivam hábitos, tradições e rituais anteriores
à chegada dos colonizadores espanhóis. Falam o quíchua, a língua geral do antigo
império inca, e acreditam, como seus ancestrais, que não é a terra que pertence
ao morador, e, sim, o contrário – por isso, julgam necessário fazer-lhe oferendas
para retribuir o que ela lhes concede. Montanhas, por exemplo, são sagradas, e
escavá-las para tirar pedras que se destinem à obra pode ser interpretado como
a invasão de uma catedral, por exemplo.
Em qualquer lugar, a abertura de uma estrada fatalmente altera aspectos
físicos do ambiente por onde ela passará – e, no caso das populações andinas,
haveria a possibilidade de que isso fosse interpretado pelos moradores da área
como uma espécie de profanação. Assim, não se trata apenas de chegar com
máquinas e pessoal, uma vez que o número de trabalhadores, no pico da obra,
alcançará a marca de 1.500 homens. Antes de montar os acampamentos, a
construtora participou, em Ccatca e Ocongate, de duas cerimônias de oferenda,
ou seja, de pago a la Pachamama, a “mãe-terra” – ritual milenar dos antepassados
das comunidades diretamente relacionadas ao empreendimento –, procurando
a assimilação e a integração com as culturas locais.
Não é menor a prioridade de outra frente de trabalho da Odebrecht no
Peru: a construção do eixo de transporte multimodal – fluvial e rodoviário –,
conhecido como Corredor Viário IIRSA Norte, que, a exemplo da rodovia
Interoceânica Sul, proporcionará ao Brasil uma saída para o Pacífico. Ele vai
ligar Manaus ao porto peruano de Paita, o que permitirá, entre outras vantagens,
escoar a produção da Zona Franca da capital amazonense em condições de
tempo e custo muito mais favoráveis do que as atuais.
Hoje, para chegar a um porto do Pacífico, um contêiner de 20 pés
embarcado em Manaus tem de subir até o Atlântico e atravessar o canal do
Panamá, numa viagem que não dura menos de 42 dias (incluídos dois, em média,
de espera no canal) e custa, em média, US$ 7.140. Quando o eixo multimodal
estiver pronto, esse mesmo contêiner poderá ir, por transporte fluvial, de Manaus
a Iquitos, no Peru, e de lá a Yurimaguas, de onde prosseguirá, por rodovia, até o
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
197
porto de Paita – a um custo bem inferior ao da alternativa atual: US$ 4.840. O
tempo cairá pela metade: de Manaus a Yurimaguas, serão apenas 20 dias de
viagem, e mais dois ou três, no máximo, para percorrer 960 km de estrada, de
Yurimaguas, na selva peruana, até Paita.
É na construção, exploração e manutenção dessa rodovia que a Odebrecht
está engajada, como sócia (49,8%) e líder da Concessionária IIRSA Norte,
integrada também pelas construtoras Andrade Gutierrez (40%) e Graña y
Montero (10%). O investimento total da concessionária totaliza US$ 220 milhões,
dos quais US$ 205 milhões se destinam às obras de construção e reabilitação da
rodovia. Essas obras estão a cargo de um consórcio construtor formado pelas
mesmas empresas e com liderança da Odebrecht.
Numa primeira etapa, iniciada em janeiro de 2006, o consórcio cuidará da
recuperação e melhoria de 115 km entre Tarapoto e o porto fluvial de
Yurimaguas, obra que deverá estar concluída em outubro de 2007. Em fevereiro,
um aditivo ao contrato de concessão veio permitir a antecipação do início das
obras da segunda etapa do projeto, para recuperação de mais dois trechos (Paita–
Piura, com 47 km, e Piura–Olmos, com 163 km), incluindo, neste último, o
melhoramento de pontes. Além de incluir trechos de delicada execução técnica
– aqueles, por exemplo, em que será preciso alargar o leito, apertado entre taludes
escarpados e despenhadeiros –, a estrada atravessará áreas de preservação
ambiental onde é imensa a diversidade da fauna e da flora.
A terceira frente rodoviária em que a Odebrecht está no momento
empenhada na região andina, sempre com vistas a ligar o Atlântico e o Pacífico,
é a construção de 114 km de estrada entre El Carmen e Arroyo Concepción, na
região leste da Bolívia. A empreitada marca a retomada de atividades no país,
onde, entre 1993 e 1995, a Odebrecht construiu 115 km da rodovia de Santa
Cruz de la Sierra a Trinidad. Nova associação voltou a reunir agora velhos
parceiros – a empresa brasileira e a boliviana Ingenieros Asociados (Iasa). O
contrato, no valor de US$ 75 milhões, com financiamento da CAF, será executado
em 30 meses e faz parte de um corredor viário que permitirá viajar por terra de
portos brasileiros, como o de Santos, à costa do Peru e do Chile, o que irá
facilitar e baratear o transporte e a prestação de serviços entre o Mercosul e a
Comunidade Andina.
Desse modo, os projetos acima descritos configuram interconexões
bioceânicas que têm por objetivo o incremento sustentado da competitividade
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
198
regional em sua inserção no globo. Além da ampliação de mercados para as
economias locais, por meio dos intercâmbios binacional, regional e mesmo
global, com menores custos de produção e logística, as estradas também criam
melhores condições de comunicação e acessibilidade regionais – fatores sensíveis
no que tange à distribuição de produtos de primeira importância, tais como
medicamentos, alimentos e materiais educativos –, além da geração de 14 mil
postos de empregos diretos e indiretos, como no exemplo da Interoceânica Sul,
beneficiando e, assim, integrando uma diversificada cadeia produtiva de bens e
serviços sul-americanos.
Revisão: Regina Furquim
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
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m meados de 2010, quando entrar em operação, o novo aeroporto de
Quito não será apenas uma das maiores obras de engenharia já realizadas no
Equador, mas uma verdadeira plataforma de geração de novos negócios,
investimentos e recursos para o país. O projeto – que abrange até a criação e o
desenvolvimento de uma zona franca – é parte do programa de modernização
da infra-estrutura equatoriana e repercute em todo o continente. A América
Latina, de fato, não pode mais esperar.
No disputado mundo da economia global, os investimentos em infra-
estrutura são essenciais para garantir a competitividade de países e blocos
regionais. Os recursos públicos são limitados e é cada vez maior a necessidade
das nações emergentes – entre os quais se incluem Brasil e Equador – de promover
parcerias com a iniciativa privada para viabilizar os investimentos demandados.
Bem planejadas, estas parcerias são uma resposta consistente dos gestores públicos
Grupo
Andrade Gutierrez
No Equador, concessão viabiliza novo
Aeroporto Internacional
E
www.agsa.com.br
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
200
aos desafios do crescimento e podem configurar-se em instrumento poderoso
para o equacionamento de inúmeros problemas sociais.
Esse cenário potencial de oportunidades pavimentou a entrada do grupo
Andrade Gutierrez no mercado de concessões de serviços, em 2000, com a
criação da sub-holding AG Concessões, focada no desenvolvimento de negócios
nas áreas de rodovias, transporte público, saneamento, portos, energia e
aeroportos.
No Equador, onde o grupo já atua há mais de 20 anos na área de
engenharia, a AG Concessões se engajou no consórcio que conquistou a concessão
para construir e operar por, 35 anos, o novo aeroporto internacional de Quito
– um projeto que inclui a operação do atual aeroporto local, o Mariscal Sucre.
Este contrato sinaliza um duplo marco histórico na companhia, já que é a primeira
concessão obtida fora do Brasil e também a pioneira no segmento de aeroportos.
O gargalo da infra-estrutura
O Novo Aeroporto Internacional de Quito (NQIA) corresponde a uma
das principais demandas por investimento em infra-estrutura do Equador. Em
especial, a partir dos anos 90, a cidade de Quito tem registrado forte expansão,
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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201
o mesmo ocorrendo no vale Tumbaco-Cumbaya, a leste da capital e a oeste de
onde será o NQIA. O volume crescente de negócios exerce uma forte pressão
por serviços dos mais variados tipos, entre os quais os de transporte aéreo. Não
existe em toda a área de influência da capital, no entanto, um aeroporto que
possa dar vazão ao volume de cargas e passageiros que esse crescimento tem
gerado. De forma precária, este atendimento está todo concentrado no Aeroporto
Internacional Mariscal Sucre (MSIA).
Inaugurado em 1960, no lado norte de Quito, o MSIA é o maior do
Equador, tanto em número de passageiros quanto em volume de carga
transportada – somente em 2005, registrou-se um movimento de 3,3 milhões
de passageiros e 130.000 toneladas de carga. Mas sua presença ainda é muito
tímida no conjunto da América Latina, perdendo na comparação com aeroportos
como os de Caracas, Bogotá e Lima. Por suas características e limitações – já
opera hoje próximo à capacidade máxima em horário de pico –, o MSIA não
pode ser considerado como aeroporto internacional nem regional.
A principal deficiência do aeroporto é não ser capaz de oferecer serviços
sem escala para lugares distantes como, por exemplo, a Europa. Encravada a
uma altitude de 2.800 m acima do nível do mar e com apenas 3.120m de
comprimento, a pista impõe limites ao peso máximo permitido por avião durante
a decolagem. Isto faz que a aeronave, obrigatoriamente, tenha de fazer escalas
de abastecimento em outros aeroportos para chegar aos seus destinos
continentais.
O aumento da pista poderia amenizar o problema, não fosse esta solução
inviável. A área ao redor do aeroporto é completamente urbanizada e impede a
expansão das instalações existentes; a infra-estrutura atual já opera no extremo
de sua possibilidade e, para completar, os terrenos montanhosos da região
reduzem o espaço aéreo utilizável e potencializam os riscos de todas as operações
no aeroporto. Essa realidade conduz à decisão de se implantar uma solução à
altura dos desafios e das oportunidades que se apresentam. Tão logo comece a
operar o novo aeroporto internacional, o atual será desativado.
As parcerias internacionais
Os esforços públicos para construir o NQIA começaram há mais de vinte
anos. O primeiro passo efetivo para sua concretização foi dado em 1989, com a
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
202
criação, pelo governo do Equador, da Comisión Nuevos Aeropuertos Quito/Guayaquil,
encarregada de promover o desenvolvimento do projeto. O trabalho começou
com a requisição a consórcios interessados para submeterem suas credenciais
de projeto, construção, operação e manutenção do empreendimento, por meio
de um contrato de concessão por período pré-fixado.
A Comissão pré-qualificou cinco grupos interessados, em 1996, entre os
quais a Canadian Commercial Corporation (CCC), que reúne empresas de
fomento canadenses, mas os altos custos estimados e a indisposição financeira
de ordem geral inviabilizaram o projeto à época, que só foi reativado no final de
2000, por meio da Lei de Modernização do Estado, Privatizações e Serviços
Públicos Prestados pela Iniciativa Privada. Com a nova legislação, o Distrito
Metropolitano de Quito foi autorizado a prosseguir com os planos de
implantação do novo aeroporto.
As negociações, tendo à frente a CCC, duraram vários meses até que, em
15 de julho de 2002, o consórcio Quiport (Corporación Quiport S.A.) firmou
acordo para construir, operar e manter – por 35 anos – o empreendimento,
além de ser o responsável pela reforma e pelo gerenciamento do atual aeroporto.
O consórcio é formado pela AG Concessões, que entrou no projeto em 2004 e
tem 34,1% do capital, ao lado das canadenses Aecon Construction Group e
Airport Development Corporation (ADC) e a americana Houston Airport System
Development Corporation (HASDC), que opera três aeroportos em Houston.
Com o projeto orçado em US$ 591 milhões, o financiamento dos recursos
foi dividido em duas partes. A primeira, referente a US$ 376 milhões, será obtida
por meio de Project Finance, com os financiadores Overseas Private Investment
Corporation (OPIC), Inter American Development Bank (IADB), Export-
Import Bank of the USA, Canada’s Export Development Corporation (EDC).
O valor restante, US$ 215 milhões, será obtido por meio de Equity e da geração
de caixa do MSIA.
Obra para o presente e o futuro
O local escolhido para a construção do NQIA é estratégico: um planalto
rodeado, por três lados, de ravinas íngremes, a 2,4 mil metros de altitude (500
metros abaixo do aeroporto atual), a cerca de 20 km de Quito. A área ocupada,
de 1,5 mil hectares aproximadamente, é dez vezes maior que a do atual aeroporto.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
203
Com uma pista de 3,6 mil metros e capacidade inicial para atender a 4,3
milhões de passageiros e 69.009 aeronaves por ano, o empreendimento será
desenvolvido em três fases ao longo dos 35 anos de vigência da concessão.
Desenvolvimento do Aeroporto Internacional de Quito
Até 2010 Até 2020 Até 2030
Volume passageiros/ano 4.300.000 6.300.000 8.700.000
Volume aeronaves/ano 70.000 92.000 120.000
Transporte cargas (toneladas) 200.000 360.000 540.000
A princípio, será construída uma pista primária, mas o projeto já prevê
uma futura extensão desta e a incorporação, na fase a seguir, de uma pista
secundária paralela. As pistas para taxiar e as áreas subjacentes serão construídas
conforme a pista primária e as instalações desenvolvidas durante as fases do
plano. O projeto completo do aeroporto inclui terminal de passageiros, terminal
de cargas, hangar, armazéns, edifício administrativo, área de manutenção e
estacionamento, além de uma zona franca a ser desenvolvida e explorada pelos
sócios da Quiport e pelo governo local.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
204
A Construtora Andrade Gutierrez, com larga experiência em obras
aeroportuárias, associada à canadense Aecon Construction Group Inc. foi
contratada para executar as obras, no valor total de US$ 413 milhões, formando
o consórcio Aecon AG Constructores S.A. (AAGC). No auge da obra estarão
envolvidos 1,5 mil trabalhadores, entre empregos diretos e indiretos, o que se
traduz em impacto imediato para a economia do país.
O projeto é um exemplo do enorme potencial de oportunidades para o
desenvolvimento da América Latina. Com soluções inteligentes e viáveis,
parcerias estratégicas e ambientes institucionais estáveis, os governos de cada
nação podem articular respostas consistentes para os profundos desafios da
gestão pública responsável.
Revisão: Regina Furquim.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
205
ntrodução
A Indústria Aeroespacial, da qual a Indústria Aeronáutica constitui o
segmento mais expressivo, reúne uma combinação de características altamente
demandantes, que a fazem especial e diferenciada.
Poucas indústrias no mundo embutem combinação de desafios tão
formidáveis como a indústria aeronáutica: do emprego simultâneo de múltiplas
tecnologias de vanguarda, passando pela mão-de-obra de elevada qualificação,
pelas exigências de uma indústria global por definição, à flexibilidade necessária
para reagir a abruptas mudanças de cenário e os grandes volumes de capital
exigidos em sua operação.
Como fruto da experiência acumulada em mais de três décadas de atuação
neste mercado competitivo, agressivo e sofisticado, na Embraer costumamos
afirmar que o negócio aeronáutico se fundamenta em cinco grandes pilares, que
tem como base única a satisfação dos nossos clientes, fonte geradora dos
resultados que permitirão o retorno aos nossos acionistas e a continuidade da
Empresa ao longo dos tempos:
I
Embraer – Empresa Brasileira
de Aeronáutica S.A.
A internacionalização da Embraer
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
206
Tecnologias avançadas: em decorrência de requisitos operacionais muito
exigentes quanto à segurança, de variações ambientais extremas, e de
restrições de peso e volume, a indústria aeronáutica emprega uma
multiplicidade de tecnologias de ponta e reconhecidamente constitui
laboratório para o seu amadurecimento, antes que sejam repassadas a
outros segmentos e atividades produtivas. Tecnologias complexas e
sofisticadas estão presentes não somente no produto, mas também nos
métodos e processos de desenvolvimento e fabricação, sendo necessário
ainda a utilização das melhores práticas disponíveis no que concerne à
gestão financeira e de pessoas.
Força de trabalho de elevada qualificação: para que se possa fazer uso
eficiente e produtivo compatível destas tecnologias avançadas, é
fundamental que pessoas capacitadas estejam disponíveis, em todos os
níveis de atividades da indústria: no projeto apoiado por computadores,
no relacionamento com fornecedores e clientes baseados nos cinco
continentes, na manufatura com base em máquinas de controle numérico
sofisticadas, e na construção de elaboradas soluções financeiras com
instituições internacionais.
Flexibilidade: abruptas mudanças de cenário afetando a economia e a
ordem geopolítica em escala mundial, das quais o exemplo mais recente
vem dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, tem imediato
impacto sobre a indústria de transporte aéreo e, por decorrência, sobre
os fabricantes de aeronaves. A flexibilidade para adaptar-se a estas
mudanças, com mínima perda de eficiência e custos, constitui
característica crucial para assegurar sua sobrevivência e preservação.
Intensidade de Capital: investimentos maciços requeridos para o
desenvolvimento de novos produtos e melhorias em qualidade e
produtividade, aliados a longos ciclos de desenvolvimento e maturação,
fazem da intensidade de capital outra característica marcante deste
negócio. Apenas para exemplificar, o desenvolvimento da nova família
de aeronaves comerciais EMBRAER 170/190 requereu investimentos
da ordem de US$ 1 bilhão e o novo avião Airbus A350 deverá requerer
nada menos que US$ 15 bilhões!
Indústria global: os baixos volumes de produção e os custos elevados
fazem com que a indústria aeronáutica seja exportadora e global por
natureza, tanto no que se refere à sua base de clientes, como a de fornecedores,
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
207
ou das instituições financeiras e investidores que a apóiam. A mesma
aeronave EMBRAER 170 que opera sob as cores da empresa finlandesa
Finnair no rigoroso inverno escandinavo deve igualmente suportar as
condições de elevadas umidade e temperatura do sul dos Estados
Unidos, operando sob as cores da United Express. Em ambas as
circunstâncias, a Embraer deve se fazer permanentemente presente junto
a seus clientes, provendo apoio técnico local e acesso imediato a peças
e componentes, demonstrando compromisso com o êxito de seus
negócios e objetivando, sempre, a satisfação plena que assegura novas
encomendas no futuro. Ao mesmo tempo, tem que viver os diversos
ambientes em que opera para perceber tendências e mudanças nos
cenários, positivas ou adversas, e ter a capacidade de reagir com rapidez.
Todas essas características tornam a indústria aeronáutica um negócio, ao
mesmo tempo, fascinante e de elevado risco. O insucesso de um novo produto
pode implicar a inviabilidade e conseqüente saída do mercado da empresa que
o desenvolveu. O desaparecimento de empresas tradicionais, como a holandesa
Fokker, e a saída da sueca Saab do mercado aeronáutico civil, dentre outras,
constituem duro atestado desta realidade.
Legacy 600 em vôo.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
208
A despeito dos grandes riscos envolvidos, desenvolver uma indústria
aeronáutica autóctone, forte e autônoma, tem sido parte da agenda estratégica
de muitas nações, que através dos anos investem pesadamente em sua
implantação, apoiando-a de forma recorrente por meio de vários expedientes:
firmando grandes contratos de sistemas e produtos de Defesa, financiando
programas de desenvolvimento de novas aeronaves em condições favoráveis e
propiciando incentivos fiscais de toda a sorte
A internacionalização da Embraer
Consciente de que a conquista de novos mercados, fundamentais para o
crescimento e consolidação da empresa, somente se dará de forma efetiva se
acompanhada de sua presença física nestes mercados, por meio de unidades
industriais ou de prestação de serviços de pós-venda e apoio ao cliente, a
Embraer adotou, a partir de sua privatização, em 1994, a progressiva
internacionalização de suas operações como um objetivo estratégico a
perseguir.
Longe de significar perda de sua identidade brasileira e afastamento de
suas origens, a internacionalização da Embraer assegurará novos negócios, o
fortalecimento da nossa marca e a criação de mais empregos de alta qualificação
no Brasil, em proporções sempre superiores aos empregos gerados em suas
subsidiárias e controladas localizadas fora do país.
A partir do ano de 1997, já em franca recuperação após o lançamento
no mercado do jato regional ERJ 145, a Embraer deu partida à sua estratégia
de internacionalização por meio de um misto de ações que envolveram:
1- a expansão ou implantação de escritórios de vendas e marketing e centros
de distribuição de peças de reposição; 2- realização de “joint ventures” e;
3- aquisição de empresas especializadas em serviços aeronáuticos tradicionais
e reputadas no mercado.
Estados Unidos e Europa: presenças consolidadas
Em território norte-americano e europeu a Embraer encontra-se presente
de longa data: desde 1978 e 1983, respectivamente, por meio de escritórios
de vendas e marketing e unidades de apoio ao cliente (peças e serviços).
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
209
Ambas as unidades tiveram e têm papel vital na expansão de seus negócios
nos dois principais mercados de Aviação Comercial em todo o mundo, onde
voam hoje, aí incluído o Brasil, cerca de 950 jatos comerciais, que se somam
aos cerca de 800 aviões turboélices e mais aviões militares fabricados pela
Empresa. Os mercados norte-americano e europeu são responsáveis por cerca
de 95% do total das exportações.
No caso da unidade norte-americana, baseada em Fort-Lauderdale, no
Estado da Flórida, as instalações foram expandidas para fazer frente ao
crescimento dos negócios da Empresa a partir da primeira entrega do
jato regional ERJ 145, em dezembro de 1996. Em novembro de 2006 esta
unidade empregava 234 pessoas e gerenciava um estoque de peças com mais
de 50 mil itens.
Como resultado do aumento de seus negócios e da base de clientes
estabelecida em território europeu, a Embraer decidiu reunir em uma única
sede, localizada em Villepinte, nas proximidades do aeroporto de Roissy-
Charles de Gaulle, em Paris, suas unidades de vendas e marketing e apoio ao
Phenom 100 e Phenom 300.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
210
cliente, incluindo importante depósito de peças sobressalentes, até então
divididas entre a mesma localidade de Villepinte, e o aeroporto de Le Bourget.
As novas instalações, integradas, deverão proporcionar maior eficácia
operacional a um corpo de 194 empregados, responsáveis pela gestão de •
172 milhões de ativos e servir mais de 37 clientes.
China e Ásia-Pacífico: mercados estratégicos
Pela importância de sua economia, que cresce ininterruptamente a taxas
elevadas há mais de duas décadas, somada ao valor estratégico do transporte
aéreo como elemento integrador e viabilizador do desenvolvimento em um
território dimensões continentais, a China foi eleita pela Embraer como objetivo
estratégico a alcançar, exigindo tratamento próprio e diferenciado, em face de
características culturais próprias, muito distantes do mundo ocidental.
O estabelecimento da presença da Embraer em território chinês deu-se
inicialmente em maio de 2000, por meio da abertura de um escritório de vendas
e marketing, na cidade de Pequim, logo seguido da abertura de um centro de
distribuição de peças de reposição na mesma cidade.
Nos anos 2001 e 2002, a Embraer negociou com autoridades chinesas um
acordo que lhe permitisse instalar uma unidade industrial destinada à fabricação
de aviões da família ERJ 145 destinadas ao mercado chinês.
Finalmente, em dezembro de 2002, foi firmado um acordo com a Aviation
Industry of China II (AVIC II), que levou à criação da Harbin Embraer Aircraft
Industry (HEAI), “joint venture” da qual a Embraer detém o controle, com
51% das ações com direito a voto.
Em fevereiro de 2004, a Embraer anunciou a sua primeira venda na China
por meio da HEAI - seis jatos ERJ 145 para a empresa China Southern. Seguiram-
se outras importantes vendas, do mesmo modelo e na mesma quantidade, para
a China Eastern Jiangsu, março de 2005, e para a China Eastern Wuhan, em
janeiro de 2006.
Em agosto de 2006, a Embraer anunciou a venda de 50 aviões ERJ 145 e
50 jatos EMBRAER 190 ao Grupo HNA, quarta maior empresa aérea da China.
O negócio representou o primeiro contrato de venda de um E-Jet na China
continental. O valor total das encomendas firmes, ao preço de lista, é de US$
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
211
2,7 bilhões. As entregas dos ERJ 145 começarão em setembro de 2007. O jato,
de 50 assentos, será produzido pela própria HEAI, na cidade de Harbin,
Província Heilongjiang.
Até o final de 2006 a HEAI terá entregado 13 unidades do ERJ 145 que,
somadas às cinco aeronaves vendidas em 2000, antes da implantação de sua
“joint venture”, para a Sichuan, totalizarão 18 jatos em operação por empresas
aéreas chinesas.
Com respeito à região da Ásia Pacífico, desde dezembro de 2000, a
Embraer opera um escritório de vendas e marketing localizado em Cingapura,
com a responsabilidade de desenvolver a estratégia comercial da companhia
para os mercados da região, incluindo o subcontinente indiano.
O mercado aéreo indiano passa por processo de desregulamentação e
com interessantes perspectivas de crescimento. Nesse cenário, a empresa
Vista aérea da sede da Embraer de São José dos Campos.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
212
Paramount, recentemente criada, anunciou o início de suas operações, com
base em dois jatos EMRAER 170 e três EMBRAER 175, sob o regime de
“leasing operacional”.
Foi também na Índia, com governo local, que a Embraer assinou
importante contrato de venda de cinco jatos Legacy 600, configurados
especialmente para atender a requisitos de conforto e segurança aplicáveis às
autoridades daquele país.
Expandindo a base de serviços e apoio ao cliente
A Embraer deverá continuar expandindo a área de serviços, não só no
que diz respeito a assegurar os excelentes índices de despachabilidade para a
frota de seus aviões, mas também servir seus clientes com outros serviços,
como a manutenção e o reparo de aviões, garantindo a sua plena satisfação,
condição essencial à geração dos nossos resultados e crescimento das nossas
operações.
Assim é que, além de consolidar sua base de atendimento no Brasil, com
a transferência de seu Centro de Serviços para a Unidade Gavião Peixoto,
foram expandidas sua participação nos Estados Unidos, com a adição de novas
instalações da Embraer Aircraft Maintenance Services (EAMS), em Nashville,
Estado do Tennessee, e também na Europa, com a aquisição da OGMA –
Indústria Aeronáutica de Portugal S.A, em Alverca, Portugal, anunciada em
dezembro de 2004, ao final do processo de privatização.
No início de 2005, a EAMS expandiu suas instalações no Aeroporto
Internacional de Nashville para aumentar a capacidade de realização de serviços
de manutenção, em vista da crescente frota de aviões da Embraer em operação
nos Estados Unidos. Como conseqüência dessa importante decisão, a partir
de 2005, novos empregados foram progressivamente contratados pela EAMS,
cujos quadros contavam, em novembro de 2006, com 277 empregados.
A OGMA, fundada em 1918, tem desde então se dedicado à manutenção
aeronáutica, sendo hoje importante representante da indústria aeronáutica
européia, oferecendo serviços de manutenção e reparo de aeronaves civis e
militares, motores e componentes, modificações e montagens de componentes
estruturais e suporte de engenharia.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
213
Seus principais clientes militares são a Força Aérea Portuguesa, a Força
Aérea Francesa, a Força Aérea e a Marinha dos Estados Unidos, a Agência de
Manutenção e Suprimento da OTAN e as Marinhas da Noruega e Holanda,
entre outros. No segmento comercial, a OGMA vem prestando serviços a
empresas aéreas como a TAP, Portugalia, British Midland e Luxair, e também
para companhias como a Embraer e a Rolls-Royce.
Além de trabalhos na área de manutenção, a OGMA fabrica componentes
estruturais e materiais compostos para a Boeing, Airbus, Lockheed Martin,
Dassault e Pilatus. Em novembro de 2006 contava com 1.606 empregados,
constituindo-se na maior das unidades e subsidiária da Embraer.
A preservação da cultura, valores e atitude: desafio permanente
A velocidade da expansão da Embraer a partir de 1996, ano que marcou
a entrada em operação da aeronave ERJ 145, trouxe consigo enormes desafios
Família EMBRAER 170/190 em vôo.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
214
sob os enfoques da preservação da cultura, valores e atitudes que norteiam e
deverão continuar norteando suas ações.
Apenas para exemplificar a dimensão desse desafio, basta citar que, em
abril de 1997, a Empresa contava com apenas 3.200 empregados distribuídos
em um total de cinco unidades operacionais, sendo três no Brasil e duas no
exterior. Hoje, decorridos nove anos, são 18.670 empregados distribuídos em
treze unidades operacionais, sendo cinco no Brasil e oito no exterior. Em apenas
uma de suas unidades, situada na França, existem cerca de 26 nacionalidades e
19 línguas distintas dentre 194 empregados.
Saber reconhecer a rica diversidade étnica e cultural de seus empregados
e os diferentes ambientes em que desenvolvem suas atividades, aí incluídas as
legislações trabalhistas específicas, e, ao mesmo tempo, desenvolver seu
máximo potencial criativo, canalizando suas energias para os objetivos do
negócio, em perfeito alinhamento com os valores éticos e morais da companhia,
constitui uma das grandes prioridades de seus administradores.
O principal elemento no alcance desse intento é a chamada Metodologia
de Gestão pelo Plano de Ação. Anualmente, a Embraer elabora um Plano de
Ação com uma visão de cinco anos e segue um modelo de planejamento
estratégico considerando mercados, competidores, competências da Empresa,
oportunidades e riscos, prioridades e resultados, dentre outros fatores.
O Plano de Ação da Companhia é resultante do desdobramento interno
de planos equivalentes para cada área corporativa, funcional e de negócio,
chegando ao nível de chão de fábrica, a partir da divulgação, na estrutura
organizacional, de diretrizes gerais emitidas pela administração superior para
a Empresa. A política de remuneração variável da Companhia, que se estende
a todos os seus empregados, leva em conta as metas pactuadas entre líderes e
liderados ao longo de toda a cadeia de comando. Em assim sendo, o Plano de
Ação passa a constituir o instrumento central de empresariamento do negócio,
alinhamento e comprometimento de todos os empregados com as metas e
resultados planejados.
Juntamente com a Metodologia do Plano de Ação, a Embraer pratica
uma forte cultura de Comunicação Interna direcionada para a integração entre
empregados e seus familiares e para a disseminação dos principais valores e
conceitos Embraer.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
215
A Comunicação Interna da Embraer atua de forma global e integrada,
lançando mão de ferramentas modernas e de grande atratividade junto aos
empregados:
O Diretor-Presidente da Embraer dispõe de ferramenta própria de
comunicação com os empregados, denominado Em Tempo,
produzido simultaneamente nos idiomas português e inglês. Mais
recentemente, passaram a serem produzidas edições especiais do Em
Tempo gravadas em vídeo;
A Intranet Embraer constitui hoje ferramenta de alcance corporativo
e a principal fonte de informações de nossos empregados, com uma
média de 24,5 mil acessos diários;
Cerca de 600 comunicados internos são produzidos anualmente e
disponibilizados aos empregados via Intranet e em quadros de avisos,
sendo 25% destes comunicados de alcance corporativo;
O informativo Embraer Notícias divulga temas essenciais à cultura
Embraer: a Metodologia de Gestão pelo Plano de Ação, a importância
do discernimento e contenção de custos, o combate ao desperdício, a
integração entre equipes em torno dos grandes objetivos empresariais
da Embraer, etc;
Entrevistas concedidas pelos principais executivos da Empresa são
traduzidas e enviadas para as unidades situadas fora do país. Por
abordarem, invariavelmente, avaliações de mercado, assim como
estratégias e objetivos da Companhia, constituem objeto de grande
atenção por parte dos empregados;
Artigos publicados na mídia nacional e internacional, abordando temas
de interesse aos negócios da Embraer, são traduzidos e disponibilizados
aos empregados.
Com essa visão e determinação, centrada em valores éticos e morais, e
tendo a integridade como base do desenvolvimento das ações, a Embraer se
lança ao empresariamento de um negócio global, extremamente desafiante e
competitivo. E o faz levando aos diversos mercados a imagem de uma empresa
brasileira eficiente, ágil e com produtos de qualidade e atualidade tecnológica.
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
216
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Número 4 Abril / Junho 2006
5
16
28
44
66
86
101
Sumário
Objetivos e desafios da política exterior argentina
Jorge Taiana
Bolívia, fator de integração
Evo Morales
Desafios e perspectivas da economia brasileira
Paulo Skaf
Programa de governo (2006-2010)
Michelle Bachelet
A armadilha do bilateralismo
Germán Umaña Mendoza
A Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica (Otca): um desafio permanente
Rosalía Arteaga Serrano
A Guiana – vinculando o Brasil ao Caribe:
um potencial que encontra a sua oportunidade
Peter R. Ramsaroop
Eric M. Phillips
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
218
120
134
155
169
206
232
A encruzilhada política paraguaia
Pedro Fadul
A grande transformação
Ollanta Humala
Suriname, uma visão macroeconômica:
desafios e perspectivas
André E. Telting
A inserção externa do Uruguai:
uma visão política e estratégica
Sergio Abreu
“Há um outro mundo, e está neste”
José Vicente Rangel
Pedro Lira
Milan Ivelic
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
219
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Ano I Número 3 Abril / Junho 2005
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
220
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
José Paradiso
221
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Ano I Número 2 Janeiro / Março 2005
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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223
D E P
DIPLOMACIA ESTRATÉGIA POLÍTICA
Ano I Número 1 Outubro / Dezembro 2004
Idéias, ideologias e política exterior na Argentina
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA – JANEIRO/MARÇO 2007
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