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A Hidrovia Paraguai-Paraná e seu
Significado para a Diplomacia
Sul-Americana do Brasil
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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim
Secretário-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente Maria Stela Pompeu Brasil Frota
INSTITUTO RIO BRANCO (IRBr)
Diretor Embaixador Fernando Guimarães Reis
A Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao
Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a
realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a
sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política
externa brasileira.
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
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70170-900 Brasília, DF
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brasileiros. O IRBr organiza, regularmente, o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, e
mantém o Curso de Formação, o Curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas (CAD) e o Curso de
Altos Estudos (CAE).
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Conselheira Eliana Zugaib
XLVIII Curso de Altos Estudos
A Hidrovia Paraguai-Paraná e seu
Significado para a Diplomacia
Sul-Americana do Brasil
Brasília 2006
INSTITUTO RIO BRANCO
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão (Funag)
Ministério das Relações Exteriores
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Impresso no Brasil 2006
FOTO DA CAPA: Momommom
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Equipe Técnica
Coordenação:
CLAUDIO TEIXEIRA
ELIANE MIRANDA PAIVA
Assistente de Coordenação e Produção:
A
RAPUÃ DE SOUZA BRITO
Programação Visual e Diagramação:
P
AULO PEDERSOLLI
CLÁUDIA CAPELLA
Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Decreto n° 1.825 de 20.12.1907
Zugaib, Eliana.
A hidrovia Paraguai-Paraná e seu significado para a diplomacia sul-
americana do Brasil / Eliana Zugaib. – Brasília : Funag, 2006.
438p. : il. ; 23 cm. – (Cursos de Altos Estudos, n. 98)
Anexo.
ISBN:
1. Diplomacia política – Brasil – América do Sul. 2. Política – América do
Sul. 3. Hidrovia – Paraguai - Paraná. I. Fundação Alexandre Gusmão. II. Instituto
Rio Branco. III. Título. IV. Série.
CDD : 341.171
Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................... 15
CAPÍTULO I
A VISÃO ESTRATÉGICA DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA
AMÉRICA DO SUL ........................................................................ 31
1. Antecedentes da valorização do espaço sul-americano ................ 33
2. Organização do espaço físico sul-americano integrado:
moldura político-diplomática ............................................................ 43
3. A IIRSA e o novo paradigma da infra-estrutura sul-americana ......... 45
3.1. Eixos de integração e desenvolvimento: conceito e antecedentes ... 49
3.2. A HPP na conformação dos eixos nacionais e na integração regional ..52
3.3. O velho e o novo paradigma da infra-estrutura regional ................ 55
4. A prioridade atribuída à integração sul-americana no Governo Lula .... 58
CAPÍTULO II
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA: ANTECEDENTES
HISTÓRICOS E CONSIDERAÇÕES GEOPOLÍTICAS ....................... 73
1. Modos tradicionais de utilização dos rios da Bacia do Prata .......... 73
2. Antecedentes da livre navegação na Bacia do Prata ..................... 76
3. Modelo geopolítico de confrontação: características eruptura ........ 89
3.1. Causas do antagonismo geopolítico brasileiro-argentino ............ 89
3.2 Os atores das disputas na região e seu comportamento externo .... 94
3.3. Características do modelo geopolítico na Bacia do
Prata nas décadas 60 e 70 ................................................... 98
4. O Processo da Bacia do Prata ...........................................104
4.1. O surgimento da aliança integradora:
cooperação e conflito na Bacia do Prata ........................... 104
4.2. Duelo entre a Desembocadura e a Nascente ............ 108
4.2.1. Aproveitamento dos rios internacionais:
consulta prévia versus acordo bilateral ................................111
4.2.2. A diplomacia das palavras versus a diplomacia
dos fatos: consulta prévia versus informação prévia ........ 114
4.2.3. Novo determinismo geopolítico transversal:
corredores de exportação ...................................................... 119
4.2.4. A ruptura do equilíbrio de poder:
expansão brasileira e retrocesso argentino ....................... 121
5. Superação relativa do modelo geopolítico:
primeiros passos rumo à cooperação .................................. 124
CAPÍTULO III
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP):
SITUAÇÃO GEOGRÁFICA, CARACTERÍSTICAS DA
NAVEGAÇÃO E ZONAS DE INFLUÊNCIA ........................ 133
1. Inserção da HPP no âmbito da Bacia do Prata ........... 133
1.1. Principais características geomorfológicas dos rios
Paraguai e Paraná e suas implicações para as
condições naturais de navegabilidade e
intervenções de melhoria ...................................................... 137
1.2. Características do rio Paraguai ..................................... 139
1.2.1. Características do Canal Tamengo ............................ 141
1.3. Características do rio Paraná ........................................ 142
1.4. Breve descrição do Pantanal Mato-Grossense e
de sua função reguladora ...................................................... 143
2. A relevância da HPP como via de integração física
e econômica dos países platinos ......................................... 145
2.1. Área de influência: aspectos econômicos
e sociais relevantes .................................................................145
2.2. Vantagens comparativas do transporte fluvial ........... 148
2.3. Particularidades do Porto de Nova Palmira e do
Rio da Prata ..............................................................................152
C
APÍTULO IV
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA
PARAGUAI-PARANÁ ............................................................ 163
1. As motivações e as origens .............................................. 163
1.1. O contexto das motivações ............................................ 163
1.2. A motivação econômico-comercial: a fronteira
agrícola no Centro-Oeste brasileiro ...................................... 165
1.3. O enquadramento político-diplomático ........................ 167
1.3.1. Gênese do projeto HPP: processo institucional
rumo à integração ................................................................... 170
2. Projeto Hidrovia: antecedentes, objetivos e
instrumentos de consecução ................................................ 176
2.1. Antecedente remoto ........................................................ 176
2.2 O projeto Hidrovia: concepção e objetivos .................. 178
2.3. O enquadramento institucional ..................................... 181
2.4. O enquadramento jurídico-legal e normativo ............. 183
2.5. O significado para os países beneficiados ................. 187
2.5.1. Argentina ....................................................................... 188
2.5.2. Bolívia ............................................................................ 190
2.5.2.1. Postura do Brasil na solução dos problemas do
Canal Tamengo ....................................................................... 192
2.5.3. Brasil ............................................................................... 196
2.5.4. Paraguai ........................................................................ 197
2.5.5. Uruguai .......................................................................... 199
2.6. Fontes de Financiamento ............................................... 200
2.7. Interconexão da HPP com a Hidrovia Tietê-Paraná
e outros modos de transporte ................................................ 203
C
APÍTULO V
OS ESTUDOS DE VIABILIDADE TÉCNICA,
ECONÔMICA E AMBIENTAL DAS MELHORIAS
NA INFRA-ESTRUTURA DE TRANSPORTE
DA HIDROVIA .......................................................................... 209
1. O Programa da Hidrovia Paraguai-Paraná .................... 210
1.1. Plano de Gestão Ambiental (PGA) ............................... 214
1.2. Plano de Ação Integrado (PAI) ...................................... 216
2. Estudos concluídos e em andamento ............................. 218
2.1. Estudos Concluídos ........................................................ 221
2.1.1. Estudo de Pré-viabilidade. Grupo de Trabalho
Ad Hoc. Novembro de 1988 .................................................. 221
2.1.2. Estudo de Viabilidade Econômica. Internave
Engenharia. Janeiro de 1990 ............................................... 223
2.1.3. Estudo de Viabilidade Técnico-Econômica.
Consórcio HLBE. Dezembro de 1997 ................................. 227
2.1.4. Estudos de Impacto Ambiental (Módulo B2).
Consórcio TGCC. Fevereiro de 1998 ................................... 234
2.1.5. Estudo Institucional-Legal, de Engenharia,
Ambiental e Econômico-Financeiro Complementar
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá
e Santa Fé. COINHI. Junho de 2004 .....................................237
3. Reações da Sociedade Civil às recomendações
dos Estudos ............................................................................. 243
4. Estudos em andamento ..................................................... 246
4.1. Projeto “Missão Portos”/ União Européia (UE) ........... 246
4.2. Sistema de Informação da Hidrovia Paraguai-Paraná .. 247
C
APÍTULO VI
O ESTÁGIO ATUAL DE IMPLEMENTAÇÃO DO
PROJETO HIDROVIA E SEUS REFLEXOS NA
MELHORIA DAS CONDIÇÕES DE NAVEGABILIDADE ... 251
1. Estágio atual ........................................................................ 251
1.1. Intervenções de manutenção em curso
na Hidrovia ............................................................................... 255
1.2. Implementação do Acordo de Transporte Fluvial
pela Hidrovia Paraguai-Paraná ............................................ 258
1.3. Impactos das obras/serviços de manutenção e
da harmonização da legislação ............................................ 261
2. Obstáculos a serem transpostos ...................................... 264
2.1. Obstáculos de natureza institucional-legal ................. 266
2.1.1. A questão da supranacionalidade na gênese do
Tratado da Bacia do Prata ..................................................... 266
2.1.2. Supranacionalidade versus soberania no âmbito
do Acordo de Transporte Fluvial ........................................... 272
2.1.3. Posições sobre a natureza da entidade
administradora da HPP no CIH ............................................. 274
2.2. Obstáculos de natureza econômico-financeira .......... 285
2.3. Necessidade de complementação intermodal ........... 287
3. Posição dos países membros do CIH sobre a
utilização da Hidrovia ............................................................. 289
CAPÍTULO VII
A POSIÇÃO BRASILEIRA: CONDICIONANTES E
CONSEQÜÊNCIAS PARA O DESENVOLVIMENTO
DO PROJETO HPP (COMPONENTE AMBIENTAL) ........ 299
1. A posição brasileira nas negociações no CIH ................299
1.1. Antecedentes ................................................................... 299
1.2. Fundamentos da posição brasileira (Componente
Ambiental) ................................................................................ 305
2. A evolução da posição brasileira e sua influência
no processo negociador ........................................................ 310
2.1. Condicionantes da posição brasileira .......................... 324
3. Principais conseqüências da posição brasileira para
o projeto Hidrovia .................................................................... 335
4. A posição brasileira e o novo paradigma da
infra-estrutura sul-americana ................................................ 338
C
APÍTULO VIII
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA ..... 343
1. A posição brasileira e os novos rumos do projeto
Hidrovia ..................................................................................... 343
1.1. Breves considerações sobre Direito da Integração ....349
2. “Modelo fragmentado” versus “modelo integral” ............ 356
3. A fase de transição: definição dos “grandes temas” .... 362
3.1. Duelo nascente/desembocadura reeditado ou
projeto pentanacional? .......................................................... 370
3.1.1. Perspectivas à luz da posição argentina ................. 374
3.1.2. Perspectivas à luz da posição brasileira e da
definição dos grandes temas ................................................ 378
3.1.3. Perspectivas de longo prazo à luz das
possibilidades de interconexão da HPP ............................ 382
4. Possíveis cenários ............................................................. 385
Conclusão ................................................................................ 393
ANEXOS .................................................................................. 415
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
A vertente externa prioritária do atual Governo brasileiro foi
claramente definida pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no
momento em que assumiu a Presidência da República, em janeiro de
2003, ao afirmar, na sessão de posse, no Congresso Nacional:
A grande prioridade da política externa durante o meu
Governo será a construção de uma América do Sul politicamente
estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e
de justiça social. Para isso é essencial uma ação decidida de
revitalização do MERCOSUL, enfraquecido pelas crises de cada
um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas
do significado da integração. O MERCOSUL, assim como a
integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um
projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces
econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados
e reforçados
1
.
Claro também ficava o papel estratégico da revitalização do
Mercosul como núcleo irradiador da integração continental e peça-
chave de futura consolidação do espaço comum sul-americano. A idéia
1
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Discurso Inaugural, proferido na Sessão de Posse, no
Congresso Nacional. Brasília, Congresso Nacional, em 01 jan. 2003. Texto disponível
em <www.mre.gov.br>. Acesso em 12 jun. 2004.
ELIANA ZUGAIB
16
de que o alicerce econômico-comercial do bloco pressupõe o
fortalecimento da integração física regional passaria a permear o discurso
político e a ação do atual governo. Essa convicção encontra sustentáculo
na Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana
(IIRSA), considerada “eixo principal de nossa relação sul-americana”
2
,
na prioridade que lhe é atribuída na ata de fundação da Comunidade
Sul-Americana de Nações
3
e na busca de mecanismos inovadores para
seu financiamento
4
. Nesse âmbito, inscreve-se a Hidrovia Paraguai-
Paraná (HPP), que atravessa o centro do continente, une naturalmente
os países do Mercosul e seu membro associado, a Bolívia, oferece
oportunidade de meio de transporte competitivo e é importante
instrumento de consecução do objetivo prioritário da atual política
externa.
2
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Declaração à imprensa, feita por ocasião da visita do
Presidente do Paraguai, Nicanor Duarte Frutos, ao Brasil. Brasília, Palácio Itamaraty,
em 14 out. 2003. Texto disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em 23 mar. 2004.
3
Ver em BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Nota à imprensa no. 591, de 09
dez. 2004. Declaração de Cusco sobre a Comunidade Sul-Americana de Nações. Texto
disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em 11 dez. 2004. Na III Reunião de Presidentes
Sul-Americanos, realizada em Cusco nos dias 08 e 09 de dezembro de 2004, foram
impulsionados 31 projetos de integração constantes do documento “Agenda de
Implementación Consensuada 2005-2010”, aprovado pela “VI Reunión Del Comitê de
Dirección Ejecutiva de la Iniciativa IIRSA”, nos dias 23 e 24 de novembro de 2004, na
cidade de Lima. Informe disponível em <www.iirsa.org>. Acesso em 11 dez. 2004.
4
“En el caso brasileño, hay una clara decisión del gobierno de transformar el Banco
Nacional de Desarollo Económico y Social (BNDES) en una importante agencia de
fomento, no sólo para el desarollo nacional, sino para el desarollo de la región (...). Es
evidente que tenemos que pensar que mientras no se creen instituciones más sólidas,
mientras no se definan formas de financiación más importantes son necesarios (sic)
activar mecanismos intermedios de transición de gran importancia, como la dinamización
de los convenios de crédito recíproco (CCR), que estaban un poco paralizados por
algunas medidas burocráticas en Brasil y que nosostros tuvimos la condición de
activarlos”. Ver em GARCIA, Marco Aurélio. [Palestra proferida]. In: Seminario
Regional sobre Integración Productiva Argentina-Brasil, 10 jun. 2004, Hilton Hotel,
Salón Buen Ayre, Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Texto desgravado. “A questão de
financiamento a projetos de infra-estrutura, no atual momento de definição de prioridades
na execução de projetos, é também crucial e a maior participação do BNDES está sendo
examinada. Está sendo intensificada a relação do banco brasileiro de desenvolvimento
com a CAF e o FONPLATA, no sentido do seu maior envolvimento nos projetos da
17
INTRODUÇÃO
A HPP, via natural navegável, encerra importante significado
histórico, econômico e diplomático. Constitui o eixo fluvial longitudinal
mais extenso da América do Sul, banha vasto e rico território, tanto
do ponto de vista ambiental quanto de desenvolvimento econômico-
social, no centro do continente. Seu papel como opção de
escoamento natural de cargas dos países ribeirinhos em direção aos
mercados regionais e internacionais tem sido resgatado não apenas
em função de seu interesse econômico, mas também como instrumento
de integração regional.
O tema da navegação e do transporte fluvial no eixo Paraguai-
Paraná mereceu particular ênfase no âmbito do processo institucional
da Bacia do Prata, iniciado em 1967, quando se realizou em Buenos
Aires a I Reunião de Chanceleres dos países da região. Constituiu uma
IIRSA. A idéia, portanto, é utilizar recursos do BNDES como instrumento financeiro na
implementação de projetos de integração regional atendendo a critérios técnicos daquela
entidade, levando em consideração as prioridades da política externa do País. Pensamos
que isto permitirá dar maior impulso ao processo de integração regional e consolidar o
papel que cabe ao Brasil no momento em que a América do Sul busca meios de superar
os entraves ao seu desenvolvimento”. Ver em GUIMARÃES, Luiz Filipe de Macedo
Soares. Política Geoeconômica da América do Sul. [Trabalho apresentado]. S.L. 2003.
“(...) o BNDES tem servido de estímulo muito importante para o projeto de integração
física, de infra-estrutura, em países vizinhos, desde que contem com a participação de
empresas brasileiras. É importante mencionar também que o BNDES tem procurado
aumentar sua associação com a Corporação Andina de Fomento, exatamente com esse
objetivo de estimular projetos de infra-estrutura, que possam melhorar a integração
com países vizinhos”. Ver em FELÍCIO, José Eduardo Martins. Amazônia e América
do Sul. [Entrevista concedida]. [S.l.][S.d.] Em discurso proferido na cerimônia de
encerramento do Seminário “Integração da América do Sul: Desafios e Oportunidades”,
ocorrida no dia 16 out. 2003 em Buenos Aires, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
deu a conhecer haver instruído o BNDES a “financiar projetos de integração física em
cooperação com outras instituições, como a Corporação Andina de Fomento (CAF), o
FONPLATA e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)”. No Seminário
“Integração da América do Sul: I Encontro Brasil-Argentina, possibilidades de
financiamento à infra-estrutura”, promovido pelo BNDES, o vice-presidente do banco,
Darc Costa, anunciou a retomada do CCR e o financiamento de US$ 700 milhões a
projetos de infra-estrutura de interesse do governo argentino, dentre os quais a Hidrovia
Paraguai-Paraná, no valor de US$ 80 milhões. Ver em NASCIMENTO, Daisy. Efeitos
da falta de infra-estrutura no comércio da América do Sul é tema de debate no Rio.
Agência Brasil, Rio de Janeiro, 23 ago. 2004. Disponível em <www.agenciabrasil.gov.br>.
Acesso em 23 ago. 2004.
ELIANA ZUGAIB
18
das áreas de interesse prioritário do Tratado da Bacia do Prata,
assinado em Brasília em 1969, e foi objeto de tratamento específico
em reuniões técnicas de representantes governamentais instituídas por
resoluções dos Chanceleres das nações platinas. Um dos aspectos
discutidos nesse foro era o da melhoria das condições de
navegabilidade dos rios da Bacia, mormente naqueles em que se
requeriam obras de dragagem, retificação, sinalização e balizamento,
entre outras.
O desenvolvimento do processo da Bacia do Prata esteve
fortemente condicionado pelas divergências entre o Brasil e a
Argentina acerca da utilização dos rios internacionais, sobretudo no
que se referia ao seu aproveitamento energético. A questão da
navegação ou do transporte fluvial não chegou a ter incidência direta
nessas divergências, na medida em que, desde o século XIX, após a
Guerra do Paraguai, já se havia consolidado o princípio da livre
navegação nos rios internacionais da Bacia. Foi muito acentuada a
influência de visões geopolíticas e estratégicas, em geral contaminadas
por atitudes confrontacionistas. Tanto no Brasil quanto na Argentina,
entre as décadas de 1930 e de 1980, houve uma profusão de estudos
geopolíticos que tiveram ampla repercussão. O momento de inflexão
que contribuiu para o arrefecimento dessas tendências foi, sem dúvida,
o acordo sobre Itaipu e Corpus, de 1979, mediante o qual o Brasil e
a Argentina lograram equacionar, de modo prático, a controvérsia
sobre a questão do aproveitamento dos rios internacionais de curso
sucessivo e em particular das hidrelétricas do alto Paraná, dando
início a processo de entendimento e cooperação que, mais tarde, iria
resultar na constituição do Mercosul e na formulação da aliança
estratégica entre os dois vizinhos.
A HPP constitui a primeira proposta de projeto regional de
utilização fluvial compartilhada na América do Sul, de iniciativa
brasileira, cuja importância transcende seu significado geoeconômico
no espaço integrado da Bacia do Prata e do Mercosul. Alguns
19
INTRODUÇÃO
autores, sobretudo argentinos
5
, ressaltam o valor da Hidrovia como
exemplo emblemático da passagem do paradigma secular do
antagonismo geopolítico, predominante até o início ou meados da
década de 1980, que se pautava pelo esquema de eixos longitudinais
versus eixos transversais. A HPP serve assim como via do comércio
regional e inter-regional, contribuindo para integrar economicamente
os territórios mediterrâneos e possibilitando seu desenvolvimento
sustentável.
Nesse contexto, o trabalho propõe-se discutir a relevância da
HPP para a diplomacia brasileira na sua vertente de integração física
da América do Sul, a partir dos antecedentes remotos e imediatos
relativos ao tema da navegação fluvial na Bacia do Prata, e colocar em
evidência as origens e o desenvolvimento do chamado projeto
Hidrovia
6
, bem como os interesses que nele têm o Brasil e os demais
países platinos.
A monografia partiu da hipótese de que a valorização da
Hidrovia como eixo de caráter longitudinal marcou mudança de
5
Ver em BOSCOVICH, Nicolás. Geoestrategia para la Integración Regional. Buenos
Aires: Ciudad Argentina, 1999. p. 91; FRAGA, Jorge Alberto. El Sistema del Plata –
visión geopolitica. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná –
factor de integración, Buenos Aires, año 110, v. 109,suplemento n. 763 G 11, pp.77-
83, invierno, 1991; ROMANO, Alfredo Hector Rizzo. Hidrovia Paraguay-Paraná –
aspectos jurídicos y geopolíticos. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovíia Paraguay-
Paraná – factor de integración, Buenos Aires, año 110, v.109, suplemento n. 763 G 11,
p.104, invierno 1991; SORIANO, Carmelo. La Cuenca Del Plata: geopolítica y desarrollo
socioeconómico. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná – factor
de integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n. 763 G 11, pp. 137 e 138,
invierno 1991.
6
A iniciativa dos cinco países platinos de reunir esforços para melhorar as condições de
navegabilidade da Hidrovia Paraguai-Paraná foi incorretamente denominada “Projeto
Hidrovia”. A expressão cunhada e de uso corrente não reflete a natureza real da iniciativa,
que é manter as características naturais da via fluvial, com intervenções mínimas em
alguns pontos críticos de seu curso, para garantir a manutenção das boas condições de
navegação ininterrupta, diurna e noturna, ao longo de todo o ano, suficiente para
embarcações adaptáveis ao rio. Ao contrário, a expressão tem contribuído para gerar
interpretações errôneas de que se trata de abrir uma grande pista fluvial, por meio de
obras de engenharia de grande envergadura.
ELIANA ZUGAIB
20
paradigma geopolítico, em que a antiga lógica de antagonismos
que caracterizou as relações na Bacia do Prata, até o fim da
década de 1970, foi substituída por esforços de instauração do
modelo de cooperação e complementação que dinamizou o
processo de integração regional, de que é exemplo expressivo o
Mercosul.
Buscou-se desenvolver a argumentação de que essa mudança
de paradigma geopolítico, embora real, tem alcance relativo,
sobretudo em função de visões diferenciadas sobre a utilização da
Hidrovia e de seus benefícios. O Brasil, por exemplo, sustenta que a
Hidrovia é um corredor fluvial navegável que se encontra, em quase
todo seu percurso, em condições naturais, devendo-se buscar o
equilíbrio que permita sua melhor utilização com o menor impacto
ambiental. Outros países chegariam a buscar maiores vantagens
econômicas do uso da Hidrovia, com a realização de obras, que
esbarrariam em diferentes limitações, seja de caráter ambiental, seja
de caráter econômico-financeiro.
Sustentou-se o ponto de vista de que: (i) existe um valor
intrínseco da Hidrovia para o Brasil como meio de transporte que pode
beneficiar sobretudo a economia da região Centro-Oeste, cujo
desenvolvimento acelerado e crescente vinculação internacional exigem
soluções inovadoras e competitivas e (ii) a via fluvial serve de importante
instrumento de integração regional sul-americana. Sua função, porém,
não deveria ser magnificada isoladamente porque a melhoria das
condições de navegabilidade no sistema fluvial Paraguai-Paraná não
diminui o papel de outros eixos e projetos de infra-estrutura, sejam
longitudinais, sejam transversais, de interesse para a integração sul-
americana.
Procurou-se demonstrar que a iniciativa de revalorização da
Hidrovia, anterior à instituição do próprio Mercosul, viria a assumir a
condição de projeto capaz de contribuir para dar conteúdo à nova
política de integração, que começou a ser gestada no final da década
21
INTRODUÇÃO
de 1980 e se expressa hoje na prioridade atribuída pelo Governo
brasileiro à América do Sul.
Para melhor compreender essas vertentes do projeto Hidrovia,
procurou-se inseri-lo no âmbito das estratégias de fortalecimento e
ampliação da infra-estrutura regional, sub-regional e nacional e na
perspectiva histórica da utilização dos rios da Bacia do Prata e de suas
implicações geopolíticas em que prevalecia o conflito dos eixos
“transversais” e “longitudinais”, com o objetivo de monopolizar a
circulação do tráfego e da produção a partir das áreas interiores. O
projeto foi, assim, focalizado como exemplo de transição daquele
paradigma de confrontação para outro de complementação e
cooperação regional.
O trabalho visou, principalmente, ao enfoque diplomático, a partir
do qual buscou realçar o significado da participação do Brasil no projeto
Hidrovia como instrumento da política de integração física e econômica
regional e situá-lo como uma das iniciativas que concorrem para os
objetivos da política externa brasileira na América do Sul. Atribuiu-se
ênfase aos aspectos econômicos e comerciais pelo que representam para
as potencialidades de crescimento da região e aos de caráter ambiental,
tendo em conta constituírem elementos-chave do posicionamento
brasileiro nas negociações no âmbito do Comitê Intergovernamental da
Hidrovia (CIH) e de seus futuros desdobramentos.
A pesquisa seguiu o método dedutivo, tendo como ponto de
partida a consideração dos interesses do Brasil na Bacia do Prata e
evoluiu para a discussão dos aspectos particulares do transporte e da
navegação fluvial que se relacionam com a HPP. Tratou-se de abordar
dois temas específicos, a Hidrovia e a integração da América do Sul,
de maneira a identificar sua inter-relação e inferir dessa abordagem os
elementos de relevância para o estudo. Trabalharam-se fontes já
conhecidas sob ótica diferenciada, com o intuito de chegar a novos
patamares de interpretação acerca de pontos debatidos. Foi realizada
análise documental e bibliográfica.
ELIANA ZUGAIB
22
Para responder à hipótese, intentou-se observar, registrar e
analisar os seguintes argumentos: (a) o projeto HPP representa mudança
das visões geopolíticas que tanto condicionaram os esforços de
integração regional e, portanto, do modelo de relacionamento do Brasil
com seus vizinhos da Bacia do Prata; (b) nesse sentido, a HPP tornou-
se opção de infra-estrutura de transporte eficiente, competitiva e capaz
de impulsionar o processo de integração e de desenvolvimento
sustentável regionais; (c) a vocação natural do complexo Paraguai-
Paraná é servir de via de passagem para a integração regional e poderá
viabilizar o propósito do Mercosul de agilizar a circulação de
mercadorias, bens e serviços, com redução dos custos de transporte e
de seguros; (d) para que a HPP possa cumprir plenamente a função de
via interior do Mercosul é imprescindível que sua navegabilidade seja
assegurada em condições suficientes com vistas a incrementar a eficiência
do comércio regional e sua competitividade no mercado internacional;
(e) a questão ambiental tem forte incidência sobre o tema da HPP e
representa elemento de complexidade no trato diplomático da Hidrovia;
e (f) a continuidade do projeto tem importância para os esforços
empreendidos no âmbito da IIRSA, que resultou da I Reunião de
Presidentes da América do Sul, realizada em Brasília no ano 2000, e
ganhou acrescida importância na política de integração sul-americana
preconizada pelo Governo do Presidente Lula.
O trabalho sustenta-se em oito capítulos. O primeiro deles trata
da integração da América do Sul como condição essencial para o
desenvolvimento sustentável da região. Para crescer de maneira
harmônica, objetivo básico do Tratado da Bacia do Prata, os países
que a compõem devem integrar suas economias, aumentando o
intercâmbio comercial, financeiro e tecnológico, a partir de sua
concepção como espaço geoeconômico único. Discute o
enquadramento jurídico e político da integração física, consubstanciada
na IIRSA e ressalta os principais aspectos e princípios básicos que
norteiam a estratégia adotada nessa área. Situa a relevância da HPP
23
INTRODUÇÃO
como parte de amplo plano de remodelação, aperfeiçoamento e
ampliação da infra-estrutura física regional, voltada para a promoção
do desenvolvimento sustentável.
O segundo capítulo dedica-se a breve retrospectiva histórica
da livre navegação nos rios da Bacia do Prata, tema que ocupou grande
parte das atenções da diplomacia brasileira no século XIX. Aponta os
modos tradicionais de utilização dos rios platinos como via de transporte
e comunicação para demonstrar que a HPP não constitui projeto novo.
É, ao contrário, realidade existente que apenas requer gestão unificada
internacional eficiente e adequação à demanda atual e potencial de
tráfego e às novas tecnologias de navegação e de movimentação de
carga nos portos. Coloca em evidência que a utilização compartilhada
da HPP é vista como emblema da superação das rivalidades e
antagonismos geopolíticos do passado em favor de política de
cooperação para a integração.
O terceiro capítulo focaliza a descrição da distribuição geográfica
das bacias dos rios Paraguai e Paraná, as mais importantes do sistema
do Prata em termos de descarga e de área de drenagem, que
compreendem 2.605.000 km² distribuídos entre Brasil, Argentina,
Paraguai e Bolívia. É feita também menção à particularidade da posição
do Porto de Nova Palmira e do Rio da Prata no contexto da Hidrovia.
São enfatizadas as principais características geomorfológicas que têm
influência direta nas condições naturais de navegabilidade dos rios e
nas intervenções para sua melhoria. Considerando-se a importância
do aspecto ambiental na promoção do desenvolvimento sustentável
da região e seu papel central na elaboração da posição brasileira em
relação às melhorias na HPP, é contemplada neste capítulo breve
descrição do Pantanal Mato-Grossense, área de preservação ecológica
e depressão sazonalmente inundada, integralmente situada
geomorfológica e hidrologicamente na área de drenagem do alto
Paraguai, para atenuar e reduzir o escoamento superficial da Bacia.
São também objeto deste capítulo os aspectos econômicos e sociais
ELIANA ZUGAIB
24
relevantes que encerram as zonas de influência da Bacia do Paraguai-
Paraná e que a justificam como via interior do Mercosul.
O quarto capítulo introduz o projeto Hidrovia. Uma vez
superado o modelo de antagonismos e, embora a evolução dos meios
de transporte terrestre na década de 50 tenha provocado a diminuição
da importância dos rios Paraguai e Paraná como vias de transporte e
comunicação, o desenvolvimento dos estados do Mato Grosso, do
Mato Grosso do Sul, de Rondônia e de outras áreas distantes da costa
atlântica, aliado aos anseios de integração regional, fizeram renascer
no Brasil o interesse pela via fluvial, como meio de transporte eficiente
e competitivo, dando surgimento ao projeto Hidrovia. São, portanto,
considerados, neste capítulo, suas origens e motivações, seus principais
objetivos, seu enquadramento político e jurídico original, institucional-
legal e normativo, bem como suas fontes de financiamento e seu
significado para cada um dos países beneficiários. Contempla, ainda
que de forma sucinta, a postura de cooperação do Brasil na solução
dos problemas apresentados no Canal Tamengo e tece algumas
considerações sobre a importância da interconexão da HPP com a
hidrovia Tietê-Paraná e com outros meios de transporte, que a integrem
aos planos de desenvolvimento da infra-estrutura nacional e regional.
O quinto capítulo apresenta, em linhas gerais, histórico dos
estudos técnicos, já realizados e em andamento, sobre a viabilidade
do projeto e de seu impacto ambiental. Atribui ênfase às razões pelas
quais os diversos estudos já realizados não produziram resultados
concretos em termos de avanço na implementação das obras de
melhoria da via fluvial e às expectativas que se criaram nesse sentido
em torno dos últimos esforços envidados para complementá-los. Os
estudos realizados no passado acabaram não contando com a
aprovação dos governos envolvidos no projeto, não apenas em função
de obstáculos de ordem técnica e de acompanhamento inadequado de
sua evolução por parte dos órgãos especializados de cada país, mas
também em decorrência de resistências políticas que denotam um certo
25
INTRODUÇÃO
vestígio do padrão de comportamento que permeou a lógica dos
antagonismos. Salienta a importância dos Planos de Ação Integrado
(PAI) e de Gestão Ambiental (PGA), documentos que norteiam as
intervenções dos cinco países na Hidrovia, e os dados relevantes para
a sustentação da posição brasileira, em especial no tocante a obras/
serviços de manutenção em matéria de melhoria da navegabilidade,
segurança, previsibilidade, movimentação de carga, investimentos em
infra-estrutura portuária, adaptação das embarcações às características
dos rios e renovação da frota, entre outros. São considerados como
marco zero, para efeito de comparação, os dados apresentados no
Estudo de Pré-viabilidade, realizado em 1988. Inclui ainda breves
considerações a respeito das reações da sociedade civil, nacional e
internacional, notadamente da parte de algumas ONGs como o World
Wildlife Fund (WWF), às recomendações emanadas dos referidos
estudos.
O sexto capítulo propõe-se examinar o estágio ainda
embrionário de implementação do projeto e suas implicações na
melhoria das condições de navegabilidade da Hidrovia. Procura,
portanto, avaliar em que medida, a despeito dessa circunstância, os
avanços registrados a partir do enquadramento legal e normativo e da
execução de obras/serviços de manutenção, já se traduzem em impactos
na melhoria das condições de navegação em trechos da Hidrovia. Tais
aspectos são discutidos com base em dados e indicadores disponíveis
(atração de investimentos em termos de modernização dos portos e
renovação da frota, aumento da movimentação de carga, melhoria das
condições de segurança, entre outros). Leva em conta o fato de que,
sobretudo no trecho Cáceres/Corumbá, em função da questão
ambiental e das condições naturais favoráveis à navegação, prevêem-
se apenas medidas de manutenção, sem a intervenção de obras de
engenharia. Os impactos positivos verificados servirão para comprovar
a posição brasileira de que a HPP é uma via natural navegável e apenas
demanda melhorias capazes de promover a utilização racional e
ELIANA ZUGAIB
26
ordenada da navegação fluvial em proveito dos cinco países. São
igualmente apontadas as diferentes posições sobre a utilização da
Hidrovia e os principais obstáculos ainda a serem transpostos, como é
o caso da criação de entidade multinacional encarregada de sua
administração, do método de financiamento das obras e da necessidade
de complementação intermodal. Procura ressaltar que a evolução do
projeto dependerá do encerramento da fase dos estudos e da
capacidade de os países alcançarem consenso em torno dessas questões
sensíveis pendentes de definição, na nova fase de transição para a
execução das futuras obras na Hidrovia, que se prenuncia em breve
inaugurar.
No sétimo capítulo, pretendeu-se ilustrar os fundamentos da
posição brasileira em relação ao desenvolvimento da HPP, que se
orienta, em última análise, pela busca do equilíbrio entre a melhor
utilização do potencial de navegação dos rios Paraguai e Paraná e o
menor impacto ambiental. Para tanto, são retomadas as constatações
e considerações tecidas nos capítulos anteriores, sobretudo as de cunho
histórico e as características naturais dos rios Paraguai e Paraná no
trecho brasileiro e suas áreas de influência, que incluem os estados do
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em particular a região do Pantanal
Mato-Grossense, declarada área de preservação ambiental. Esses
elementos dão sustentação à posição defendida pelo Governo brasileiro
de que a HPP é uma via natural navegável que sempre existiu e que o
sistema Paraguai-Paraná apresenta, no Brasil, condições naturais de
navegação suficientes para o trânsito de embarcações adaptáveis ao
rio. Posteriormente, são analisadas as condicionantes ambientais de
natureza legal e judicial que levaram à realização de estudos
complementares de viabilidade, bem como suas conseqüências para o
andamento da execução do projeto HPP.
No último capítulo, partindo-se da constatação de que a HPP
já existe como via natural navegável e é uma realidade para os cinco
países, não havendo, portanto, espaço para retrocessos nesse sentido,
27
INTRODUÇÃO
contemplam-se dois cenários futuros possíveis: (a) o de que o projeto
se encaminhe para o objetivo de atingir a capacidade máxima de
transporte na Hidrovia por meio da realização de obras de engenharia;
e (b) o de que prevaleçam as obras/serviços de manutenção na maioria
dos trechos, sobretudo o brasileiro, com o objetivo de promover a
utilização racional e ordenada da navegação fluvial, em proveito dos
cinco países e do projeto de integração, procurando-se o equilíbrio
entre a melhor utilização do potencial de navegação e o menor impacto
ambiental. O trabalho sustenta o ponto de vista de que o projeto se
encaminha para o segundo cenário, considerando-se os seguintes
fatores: as condicionantes impostas pela posição brasileira, cuja margem
de flexibilidade em relação aos aspectos ambientais é bastante limitada;
a reduzida capacidade dos países envolvidos de financiar eventuais
obras em seus respectivos territórios, ainda que só de manutenção; o
fato de que, dada a natureza dinâmica dos rios, os resultados dos
estudos técnicos podem perder parte de sua validade no longo prazo;
as probabilidades de interconectar a HPP com outros modos de
transporte dentro do Brasil e no âmbito da IIRSA e de alcançar acordo
sobre gestão unificada que permita facilitar e dinamizar a navegação
pela Hidrovia. O ponto de inflexão das negociações e da evolução do
projeto deu-se a partir da entrega dos resultados dos estudos técnicos
complementares, em junho de 2004. Nesta etapa de transição para a
fase de execução das obras, a posição que o Brasil vier a assumir
poderá ser decisiva na determinação dos rumos da iniciativa, ao envolver
a tomada de decisão sobre a alternativa técnico-financeira a ser adotada
e discussões relativas a possíveis modos de administração conjunta da
HPP.
O capítulo final contempla, portanto, ensaio das perspectivas à
luz das posições brasileira e argentina, e da definição das questões
pendentes, cunhadas como “grandes temas”, que apontam para as
seguintes possibilidades de evolução do projeto: (a) a de que haja
consenso sobre os “grandes temas”, que muito provavelmente levará à
assinatura de Acordo de Alcance Parcial (AAP), tendo como “agência
executora” o Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países da
Bacia do Prata (CIC), e à execução integral do projeto, tal como
idealizado e acordado no âmbito do Comitê Intergovernamental da
Hidrovia Paraguai-Paraná (CIH); (b) a de que haja consenso sobre os
“grandes temas”, que leve à assinatura de acordo multilateral que serviria
de enquadramento para a execução das obras por meio dos acordos
bilaterais existentes, a custos menos elevados; (c) a de que não haja
consenso sobre os “grandes temas” e leve a Argentina a lançar mão
dos mecanismos bilaterais existentes com os países menores para garantir
a execução das obras de melhoramento, no curto prazo, o que
comprometeria os esforços empreendidos até o momento para imprimir
enfoque global e sustentável à iniciativa, como instrumento de
integração; e (d) a de que não haja consenso e leve à paralisia do
curso de ação para a execução de futuras obras na Hidrovia, dando-
se continuidade apenas às intervenções de manutenção, no curto e
médio prazos.
Em suma, ao focalizar o tema da Hidrovia Paraguai-Paraná,
esta monografia busca analisar a evolução, as perspectivas e o
significado desse projeto para o Brasil e sua política de integração no
Mercosul e na América do Sul.
ELIANA ZUGAIB
28
CAPÍTULO I
A VISÃO ESTRATÉGICA DA INFRA-ESTRUTURA
FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
A VISÃO ESTRATÉGICA DA INFRA-ESTRUTURA
FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
As tentativas de promover a transformação das fronteiras
de separação em fronteiras de cooperação e união, na América do
Sul, que assentam raízes na diplomacia inaugurada por Rio Branco,
encontram expressão máxima no governo do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. A liderança exercida na condução dos processos de
revitalização do Mercosul e de sua associação com a Comunidade
Andina das Nações (CAN)
7
, núcleo da emergente Comunidade
Sul-Americana de Nações
8
, cuja ata de fundação priorizou a
integração física continental, imprime sentido prático e realista ao
que se insinua ser “el único porvenir común posible
9
para os
países da região.
7
A associação MERCOSUL/CAN representará mercado de 350 milhões de habitantes,
o quinto em nível mundial. Os países signatários do acordo de associação
comprometeram-se a criar condições para que, no curto prazo, em 2007, sejam liberados
90% do comércio com os países da região e, no prazo de 15 anos, a desgravação seja
total, com o que todo produto sul-americano circulará sem travas pelo novo espaço
geográfico que se cria. (Cf. BIELSA, Rafael. Nuestro Destino Sudamericano. Clarín,
Buenos Aires, 08 dic. 2004. Sección Opinión, p. 33.)
8
O novo espaço que se inaugura com a fundação da emergente Comunidade Sul-
Americana de Nações, conta com 360 milhões de habitantes e 17 milhões de km² de
superfície, correspondentes a 85% do total da América Latina e do Caribe e 45% de toda
a América. (Cf. NIEBIESKIKWIAT, Natasha. Doce Países lanzan en Cusco la Comunidad
Sudamericana. Clarín, Buenos Aires, p. 20, 08 dic. 2004.).
9
Bielsa, op. cit., p. 33.
ELIANA ZUGAIB
32
Em reunião do Grupo do Rio, ocorrida nos dias 04 e 05
de novembro de 2004, no Rio de Janeiro, o governo brasileiro
envidou esforços no intuito de se colocar como liderança regional,
ampliando sua visibilidade internacional. Embora o objetivo de
construir a integração sul-americana tenha sido constante na ação
externa brasileira, foi retomado com maior assertividade. Nesse
âmbito, o Brasil reafirma seu propósito de se aproximar da
América do Sul, e liderá-la, em busca de solução para problemas
comuns da região
10
.
A III Reunião de Presidentes Sul-Americanos, realizada
em Cusco, Peru, nos dias 08 e 09 de dezembro de 2004,
engendrou a transposição do antigo ideal de integração continental
do plano teórico para o plano da ação. A nova geopolítica da
América do Sul, que começou a delinear-se há quatro anos, em
Brasília, assumiu forma concreta transcorridos menos de dois anos
do atual governo.
Ponto de convergência entre o discurso e a prática, o mais
categórico dos imperativos, o geográfico, é agora colocado a serviço
da solução dos problemas regionais, por meio do aproveitamento
dos recursos naturais da própria região e de sua incorporação à
corrente de comércio internacional. A materialização do novo
espaço geoeconômico continental pôde ser vislumbrada a partir da
Reunião de Cúpula de Cusco, em que se assumiu o compromisso
de dar impulso à implementação de 31 projetos de infra-estrutura
física contemplados na IIRSA. Um dos três únicos eixos longitudinais
(ANEXO – Figura 1) que compõem a estratégia de integração física
da região, a HPP atravessa o coração do continente, vertebra o
Mercosul e é elo de conexão com as Bacias dos rios Amazonas e
Orinoco, o que lhe confere importância como um dos instrumentos
de consecução da prioridade externa do governo Lula.
10
ONUKI, Janina. O Brasil, a América do Sul e o Mundo. In: Colunas de RelNet. n. 10,
mês 7-12, ano 2004. Disponível em <www.relnet.com.br>. Acesso em 10 dez. 2004.
33
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
1. ANTECEDENTES DA VALORIZAÇÃO DO ESPAÇO SUL-AMERICANO
A América do Sul é e tem sido para o Brasil prioridade de
política externa, por ser constitutiva de nossa identidade internacional
11
.
A valorização do espaço sul-americano, como elemento dinâmico capaz
de gerar importantes interações entre povos e suas formas de
organização
12
, confere dimensão geoestratégica à aproximação com
os países vizinhos, e tem permeado as aspirações da política externa
sul-americana do Brasil, desde a primeira década do século XX, quando
foi idealizada e iniciada pelo Barão do Rio Branco. Deixaria esse espaço
de ser mera referência cartográfica limítrofe para assumir as feições de
fator constante da inserção do país na vida internacional.
Fruto da expansão econômica, demográfica e cultural européia
iniciada no século XVI, a América espanhola e a portuguesa guardam
semelhanças, sob a marca ibérica de um passado comum, em que, não
obstante, “cedo verificaram ser conflitantes seus interesses em atividades
11
LAFER, Celso. Pronunciamento na abertura do Seminário sobre América do Sul. In:
IEPES/IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul: a organização do espaço
sul-americano: seu significado político e econômico (2000: Brasília, DF). p. 8. Sobre o
conceito de identidade internacional, ver em LAFER, Celso. A identidade internacional
do Brasil e a política externa brasileira. São Paulo: Perspectiva, 2001. “A integração da
América do Sul é uma prioridade do governo Lula. Acreditamos que a aproximação
entre os dois países do continente é o melhor caminho para a construção de uma
América do Sul mais democrática, próspera e justa”. AMORIM, Celso. Entrevista ao
jornal “A Classe Operária”, em 25/08/2004. Disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso
em 03/09/2004. “(...) atenção especial à prioridade de nossa política externa, que é a de
integração na América do Sul. (...) temos verificado um forte empenho de trabalharmos
em harmonia pela integração física e pelo progresso econômico, social e político de
cada um de nossos países”. AMORIM, Celso. Discurso proferido por ocasião do Dia
do Diplomata, em 18/09/2003. Disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em 03/09/
2004. “A América do Sul é base tanto para o Brasil quanto para os outros países da
região. Se você quer se projetar bem para o mundo, a sua base próxima tem de estar
bem consolidada”. AMORIM, Celso. Entrevista concedida à revista “Indústria
Brasileira”, em 01/10/2003. Disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em 20/12/2004
12
QUAGLIOTTI DE BELLIS, Bernardo. Uruguay en la Cuenca del Plata. In:
DALLANEGRA PEDRAZA, Luis (Coord.). Los Países del Atlántico Sur. Geopolítica
de la Cuenca del Plata. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 165..
ELIANA ZUGAIB
34
exploratórias, comerciais e colonizadoras”
13
, herança que viria a se
refletir em momentos de convergências a que se interpuseram outros
de rivalidades e tensões vividos especialmente por Brasil e
Argentina, no espaço platino, até o final da década de 1970. Como
parte da marca ibérica comum, viriam as duas Américas a
emancipar-se das metrópoles européias, embora por processos
distintos, dentro do quadro político e econômico mais amplo da
desagregação do sistema colonial, que lhes conferiria o status de
atores internacionais, cujas políticas externas, no século XX,
priorizaram naturalmente as questões da estratificação internacional
e do desenvolvimento.
O tema da estratificação internacional não se fez visível na
política externa brasileira ao longo do século XIX, dados seu vetor
principal de consolidação do espaço nacional e o poder de gestão
da ordem mundial que se limitava ao equilíbrio das grandes
potências
14
. Decorrência de heterogeneidades dos processos
históricos vivenciados pelos povos das Américas espanhola e
portuguesa, a consolidação do espaço conquistado pelas potências
da Península Ibérica configurou-se por meios distintos e sua
organização política obedeceu a diferentes formas de governo. O
cantonalismo geopolítico
15
imposto pelos espanhóis para melhor
13
ARAÚJO, João Hermes Pereira de. A Herança Colonial. In: ARAÚJO, João Hermes
de; AZAMBUJA, Marcos e RICUPERO, Rubens. Três Ensaios sobre Diplomacia
Brasileira. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 1989. p. 3.
14
LAFER, Celso, 2001, op. cit., p.67.
15
Cantonalismo gepolítico impuesto también a los españoles que para mejor defender
y administrar sus tierras americanas las dividieron en cuatro Capitanías Generales y
cuatro Virreynados; uno de ellos, el Virreynado del Río de la Plata (1763), que
correspondía, en parte a la subregión geográfica de la Cuenca del Plata, abarcando
parte de Bolivia, el Paraguay, Uruguay y Argentina. Sin embargo, los núcleos
geohistóricos españoles cerrados, ya fuertemente disociados por las vastas planicie
(sic) del Plata, no consiguieron mantener unido al todo formado por la unidad geográfica
de la Cuenca fluvial”. Ver em CASTRO, Therezinha de. Brasil y la Cuenca del Plata. In:
DALLANEGRA PEDRAZA, Luis. Los Países del Atlántico Sur. Geopolítica de la
Cuenca del Plata. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 131.
35
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
administrar suas terras americanas resultou na “balcanización histórica
16
de seus domínios, em contraste com os esforços bem sucedidos da Coroa
portuguesa de manter unido o território conquistado nos limites do Tratado
de Tordesilhas e para além deles, o que justificaria, entre outros fatores,
a incapacidade das nações hispânicas de formar, após o processo de
independência, uma unidade ou aliança política latino-americana
17
. Por
sua vez, as instituições monárquicas no Brasil conviviam com as Repúblicas
que se formavam na América espanhola, condição em que as forças de
atração natural imantavam o país ao continente europeu, distanciando-o
de sua realidade mais imediata. Dessa forma, o Brasil esteve atrelado à
Europa até o final do século XIX e essa situação só começaria a reverter-
se em 1889, com o advento da República, que traria em seu bojo a
“americanização” das relações exteriores do Brasil
18
. No entanto, esse
dado novo da inserção do Brasil nas Américas fez-se explícito já no
texto do Manifesto Republicano de 1870, cuja passagem “Somos da
América e queremos ser americanos”
19
, pressagiava o caminho que seria
então percorrido, por impulso de Rio Branco, para preparar as bases
em que se daria mais tarde a iniciativa de construção de um espaço sul-
americano integrado.
16
“Consolidar la integración y ampliarla en América del Sur es un hecho clave para
América Latina; su balcanización histórica contribuyó a nuestra debilidad y redujo
nuestra capacidad de regateo por décadas; debemos dialogar frente al ALCA con un
potencial exterior que no existe en condiciones de balcanización, pero sí superando esta
situación, consolidando, fortaleciendo y ampliando el Mercosur (...)”. Ver em WILLIAN
RAMIREZ, José Cláudio. América do Sul no atual sistema internacional [Palestra
proferida]. In: IEPES/IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul: a organização
do espaço sul-americano: seu significado político e econômico (2000: Brasília, DF). p.
45.
17
TOMASSINI OLIVARES, Luciano Historia e Identidad en la Definición Cultural de
las Sociedades. [Palestra proferida]. In: IEPES/IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a
América do Sul. A organização do Espaço Sul-americano: seu significado político e
econômico. (2000: Brasília, DF). v.1. pp. 53-55.
18
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História Política da Exterior do Brasil.
São Paulo: Ática, 1992. p.149.
19
PESSOA, Reynaldo Carneiro (Org.). A idéia republicana no Brasil, através dos
documentos: textos para seminários. São Paulo: Alfa/Ômega, 1973. p.60.
ELIANA ZUGAIB
36
Uma vez solucionadas as questões de fronteira e consolidados
os limites do território nacional, os esforços diplomáticos puderam
ser redirecionados para a promoção do desenvolvimento, que
ocorreria no “eixo de relativa igualdade entre países com poder e
situação internacionais comparáveis”
20
. Condição indispensável a esse
novo objetivo, que passaria a integrar a essência de nossa diplomacia,
era a garantia da paz na região, para o que não mais deixaria de
empenhar-se o Brasil em sua ação externa, voltada para a promoção
da amizade e união dos países sul-americanos, sua realidade
imediata
21
.
Pavimentava-se, assim, a estrada das primeiras iniciativas
promotoras da transformação das “fronteiras de separação em fronteiras
20
De acordo com o Embaixador Rubens Ricupero, os esforços da diplomacia brasileira
em prol da cooperação e do desenvolvimento seriam empreendidos, na realidade, em
dois eixos, o de “simetria” ou relativa igualdade com os países de poder e situação
internacional comparáveis aos do Brasil (América Latina, mais tarde África e Ásia) e o
de “assimetria” ou de desigualdade com as nações das quais nos separa um diferencial
apreciável de poderio político e econômico (industrializados da América do Norte,
Europa, Japão, de um lado, e U.R.S.S. e socialistas, do outro). Ver em RICUPERO,
Rubens. A Diplomacia do Desenvolvimento. In: ARAÚJO, João Hermes de;
AZAMBUJA, Marcos e Ricupero, Rubens. Três Ensaios sobre Diplomacia Brasileira.
Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 1989. pp. 193 e 194.
21
RICUPERO, Rubens. Rio Branco, definidor de valores nacionais. In: CARDIM,
Carlos Henrique; ALMINO, João (Orgs.). Rio Branco: a América do Sul e a
modernização do Brasil. Rio de Janeiro: EMC, 2002. p.90. Expressões dessa política,
iniciada por Rio Branco já em 1909, foram os esforços diplomáticos empreendidos, na
década de 30, em busca de soluções conciliatórias para os conflitos deflagrados entre
Colômbia e Peru, em torno da questão de Letícia; entre Paraguai e Bolívia, por ocasião
da Guerra do Chaco, e, mais recentemente, entre Peru e Equador, envolvidos em antigo
contencioso territorial. A questão da paz na América do Sul como condição essencial
para o desenvolvimento e a segurança do país era notada na política de Rio Branco.
“Fiel ao seu passado, o Brasil [à época do chanceler] continuava a oferecer ao mundo
testemunho inequívoco de amor à concórdia e de entranhado sentimento de justiça,
prosseguindo com serena constância na liquidação pacífica da pesada herança de litígios
territoriais, pondo termo, prudente e cautelosamente, a situações por vezes inquietantes,
com a preocupação exclusiva de viver em paz com os seus vizinhos e em boa harmonia
com todas as nações do mundo”. JORGE, Arthur Guimarães de Araújo. Rio Branco e as
fronteiras do Brasil: uma introdução às obras do Barão do Rio Branco. Brasília:
Senado Federal, 1999. p.154. “Na concepção de Rio Branco, a melhor maneira de se
proteger contra atentados à soberania era garantir a estabilidade política da região”.
37
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
de cooperação”
22
, na América do Sul, já a partir do início dos anos
sessenta, seguindo a tendência aos processos de integração regional,
de que foi precursora a Europa na década de 50. A primeira delas, a
Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC, 1960),
resultaria na Associação Latino-Americana de Integração (ALADI,
1980)
23
. A segunda, o Tratado da Bacia do Prata (1969), em cujo
âmbito se inscreve o projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná, chegou a
incluir no rol de suas discussões a preocupação com a integração do
espaço físico sul-americano. Nesse sentido, a XII Reunião de
Chanceleres da Bacia do Prata, realizada em 1981, em Santa Cruz de
la Sierra, teve como um dos tópicos de interesse a questão da
interligação das bacias do Orinoco, do Amazonas e do Prata, tema
retomado como relevante na atualidade
24
.
Seguiram-se a essas iniciativas, a criação, em 1969, do Grupo
Andino, que se transformaria em Comunidade Andina das Nações
BUENO, Clodoaldo. O Barão do Rio Branco e o projeto da América do Sul. In: CARDIM,
Carlos Henrique, ALMINO, João (Orgs). Rio Branco, a América do Sul e a modernização
do Brasil. Rio de Janeiro: EMC, 2002. p.359.
22
COMUNICADO DE BRASÍLIA. Emanado da I Reunião dos Presidentes da América
do Sul, realizada em Brasília, no período de 31 de julho a 02 de agosto de 2000, texto
mimeografado, parágrafo 36.
23
PEÑA, Félix. Momentos y Perspectivas. La Argentina en el mundo y en América
Latina. Buenos Aires: Editorial de la Universidad Nacional de Tres de Febrero,
septiembre, 2003. p. 169. Sobre a evolução do pensamento político brasileiro acerca da
integração regional, veja CERVO, Amado Luiz. Eixos Conceituais da política exterior
do Brasil (abril de 1998). In: Revista Brasileira de Política Internacional, ano 46, n. 1,
pp. 69-74, 2003.
24
“O assunto acabara de ser tratado naquele ano, em Lima, no âmbito de Reunião
Especializada, convocada pelo Governo peruano, com o patrocínio da OEA. Dado o
caráter ambicioso do projeto, que tinha grandes implicações para o Brasil em termos
econômicos, buscou-se lhe dar tratamento cauteloso e realista. Esse enfoque prevaleceu
por ocasião da reunião de Santa Cruz de la Sierra, na qual a Bolívia pretendia dar
seguimento mais dinâmico ao assunto, tendo apresentado, para tanto, projeto de resolução
encomendando o exame da questão no âmbito da Bacia do Prata. Tal proposta não
prosperou, contudo, tendo sido apenas incluída na Ata Final uma referência ao encontro
de Lima”. Ver em BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES.
Informação da DAM-I. Brasília, 1985, texto mimeografado, p. 6.
ELIANA ZUGAIB
38
(CAN); o Tratado de 1973 celebrado entre o Paraguai e o Brasil, que
possibilitou a construção da hidrelétrica de Itaipu, cuja controvérsia
será tratada no capítulo II; o acordo tripartite celebrado por Argentina,
Paraguai e Brasil, em outubro de 1979, que representou a transposição
das relações Brasil/Argentina do patamar da confrontação para o da
cooperação, como se procurará demonstrar mais adiante; o Tratado
de Cooperação Amazônica (1978); o gasoduto Brasil/Bolívia (1999),
cujas tratativas se haviam iniciado na década de 30; o Tratado de
Integração, Cooperação e Desenvolvimento, assinado entre a Argentina
e o Brasil em 1988, que proveria os fundamentos iniciais do Mercosul
e a efetiva criação deste último, em 1991, pelo Tratado de Assunção,
que incorporaria o Paraguai e o Uruguai ao processo de integração, e
estabeleceria, num primeiro momento, laços de associação com o Chile
e a Bolívia. Mais tarde, no governo Lula, abrir-se-iam perspectivas
não só de aprofundar, mas de ampliar o bloco regional com a associação
do Peru, em 2003, e a assinatura de acordo com a Venezuela, Colômbia
e Equador, em outubro de 2004, de maneira que ficaria configurada a
zona de livre comércio entre o Mercosul e a CAN, com a possibilidade
de futura associação do México
25
.
No entanto, essa tentativa de “latino-americanização” da
diplomacia brasileira
26
viria a sofrer, mais recentemente, um
reducionismo, embora não excludente, em função da revisão do conceito
25
A reunião de chefes de Estado latino-americanos em Puerto Iguazú, em julho de 2004,
quando o Brasil assumiu a presidência Pro Tempore do Mercosul, marcou uma inflexão
na aliança regional. Registrou avanços nos acordos com a CAN, aprovou o ingresso da
Venezuela como membro associado e autorizou negociações para que o México venha a
se incorporar nessa mesma condição. GARCIA, Marco Aurélio. Além da Crise do
Mercosul. Jornal O GLOBO, coluna Opinião, de 14 jul. 2004. A aspiração de unidade
continental presidiu também o surgimento do Grupo do Rio, primeiro foro político
exclusivamente latino-americano para harmonizar posições a respeito dos grandes
problemas hemisféricos e conferir à região voz mais influente através da coordenação
informal das atuações do Brasil, Argentina, México, Venezuela, Colômbia, Peru, Uruguai
e Panamá, este último suspenso após haver-se afastado da prática democrática.
RICUPERO, Rubens, 1989. op. cit., p. 207.
26
Ricupero, Rubens, 1989, op. cit., p.207.
39
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
de América Latina, em decorrência do surgimento das forças
contraditórias da globalização e da regionalização, contexto em que a
dimensão geoeconômica adquiriu importância vital nos esforços de
integração. Em função dessa nova dinâmica internacional, aumentou o
grau de interdependência do México, da América Central e do Caribe
com os Estados Unidos, em contraste com a América do Sul, cujas
relações regionais e internacionais são mais diversificadas, o que lhe
confere especificidade no âmbito latino-americano
27
.
As tentativas de organização do espaço sul-americano de
maneira a favorecer a paz e o desenvolvimento, vertente amalgamada
à ação externa brasileira a partir do início do século XX, foram
construídas sob o lastro da identidade histórico-cultural, dos valores
democráticos dos países que compõem a região e das particularidades
que a singularizam em meio a outros contornos geográficos de dimensões
continentais. De fundamental importância têm sido, nesse sentido, o
distanciamento da região da linha de frente das tensões prevalecentes
no centro do sistema internacional e a leitura compartilhada que fazem
os países sul-americanos da dinâmica do sistema internacional, fato
que se reflete na prioridade atribuída a pontos comuns de suas agendas
externas, sobretudo o da estratificação internacional e o do desafio do
desenvolvimento
28
, indutores, em certa medida, dos esforços de
integração regional
29
.
27
FRAGA, Rosendo. América do Sul: história e identidade. [Palestra proferida]. In:
IEPES/IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul. A organização do Espaço
Sul-americano: seu significado político e econômico. (2000: Brasília, DF). . p. 63.
Menção ao artigo América Latina frente al cambio de siglo, de Abraham F. Lowenthal,
publicado no Journal of Democracy, em abril de 2000.
28
JAGUARIBE, Hélio. Mercosul e a nova ordem mundial. In: HUGUENEY FILHO,
Clodoaldo, CARDIM, Carlos Henrique (Orgs.). Grupo de Reflexão Prospectiva sobre
o Mercosul. Brasília: FUNAG/IPRI/SGIE/BID, 2002. p.177.
29
Na década de sessenta, a exemplo do que ocorrera na Europa, os países latino-
americanos, para poderem crescer e desenvolver-se, recorreram a políticas e modelos de
cooperação regional, em busca do bem-estar de suas populações por meio da liberalização
do comércio. A integração passava a ser, assim, considerada instrumento do crescimento
econômico, da elevação do nível de vida das comunidades e da superação dos limites do
ELIANA ZUGAIB
40
A regionalização da América Latina insere-se hoje no contexto
da atual etapa do processo de globalização que está vinculada à revolução
tecnológica e engloba todas as áreas da civilização atual, dentre as quais
as da inter-relação dos mercados e das estratégias competitivas. Nessa
linha do processo de integração da América Latina, surge, como primeiro
ponto de apoio, o Mercosul, cuja consolidação e possibilidades de
projetar-se para o resto da América do Sul assentam suas bases sobre
os fundamentos históricos e culturais latino-americanos
30
. Embora haja
diferenças claras entre os países da América do Sul, não são elas
antagônicas e seu reconhecimento viabiliza o aproveitamento das
sinergias
31
e permite transformá-las em complementaridades.
A projeção no espaço sul-americano faz-se todavia mais viável
ao agregar o Mercosul pólos de desenvolvimento conectados por eixos
viários e econômicos, conformados por zonas caracterizadas pela
densidade demográfica e pela concentração de capital financeiro e de
atividade industrial. O Mercosul relaciona-se, por meio da ALADI,
com o processo de integração mais amplo com o resto da América
Latina, e insere-se no quadro mais abrangente de integração e
cooperação econômica na sub-região meridional latino-americana, por
mecanismos multilaterais e bilaterais, a maioria de caráter setorial, dentre
“estado nação”, condição imprescindível para enfrentar os desafios da globalização. No
entanto, esses processos de regionalização encontrariam seu momento de crise nos anos
80 para então renascer no início da década de 90, na forma do chamado novo regionalismo.
No novo regionalismo, o conceito de integração compreende o reforço do aspecto
econômico e supõe ao mesmo tempo o surgimento e a manutenção de relações políticas
e sociais, cujo aprofundamento se transforma em uma espécie de “identidade regional”.
Ver em INSTITUTO DE INVESTIGACIONES ECONÓMICAS (I.I.E.). El Balance
de la Economía Argentina. Alianzas Inter-Regionales. Córdoba, Argentina: Talleres
Gráficos de Ediciones Eudecor SRL, 2003. pp. 52-55.
30
WILLIAN RAMIREZ, José Cláudio. América do Sul no atual sistema internacional.
[Palestra proferida]. In: IEPES/IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul. A
organização do Espaço Sul-americano: seu significado político e econômico. (2000:
Brasília, DF).pp. 42 e 43.
31
SALAZAR PAREDES, Fernando. América do Sul: eixos sinérgicos. [Palestra proferida].
In: IEPES/IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul. A organização do Espaço
Sul-americano: seu significado político e econômico. (2000: Brasília, DF). . pp. 152 e 153.
41
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
os quais cabe mencionar, sem dúvida, o Tratado da Bacia do Prata,
que abarca seus quatro membros plenos e a Bolívia
32
, e em cujo âmbito
geográfico e econômico se desenvolve um dos projetos de integração
física mais interessantes, o da Hidrovia Paraguai-Paraná (HPP).
Ao iniciar-se o século XXI, o processo de globalização resultava
na tendência à cristalização do sistema internacional em torno de grandes
blocos ou países continentais, o que fez do Mercosul e de sua ampliação
o principal instrumento para assegurar a proteção de interesses regionais
no sistema internacional e preservar, no longo prazo, as identidades
nacionais dos países membros
33
. Nessas condições, a conformação
de um sistema regional sul-americano é hoje a um só tempo imperativo
e consenso e o Mercosul reúne condições para exercer a função de
força política e econômica aglutinadora, constituindo seu núcleo
organizador
34
. A ampliação do Mercosul para um sistema de integração
sul-americana poderá vir a conferir aos países da região:
(...) uma oportunidade única de elevarem, dentro das
condições favorecedoras desse mercado ampliado, a
competitividade de seus sistemas produtivos. E lhes asseguraria
um poder internacional de negociação incomparavelmente
superior ao que pudessem ter individualmente, abrindo-lhes
condições para terem acesso, no quadro da estratificação
internacional do poder, ao patamar de países relativamente
autônomos. A viabilidade de formação desse sistema, sem
32
PEÑA, Félix. Momentos y Perspectivas. La Argentina en el mundo y en América
Latina. Buenos Aires: Editorial de la Universidad Nacional de Tres de Febrero,
septiembre, 2003. pp. 169-171.
33
JAGUARIBE, Hélio,Mercosul e a nova ordem mundial. In: HUGUENEY FILHO,
Clodoaldo, CARDIM, Carlos Henrique (orgs.). Grupo de Reflexão Prospectiva sobre o
Mercosul. Brasília: FUNAG/IPRI/SGIE/BID, 2002. p. 173.
34
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Discurso proferido por ocasião da cerimônia de
encerramento do Seminário “Integração da América do Sul: Desafios e Oportunidades”.
Buenos Aires. 16 out. 2003. Texto disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em 05
jun. 2004.
ELIANA ZUGAIB
42
35
JAGUARIBE, Hélio. América do Sul no atual sistema internacional. [Palestra
proferida] In: IEPES/IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul. A organização
do Espaço Sul-americano: seu significado político e econômico. (2000: Brasília, DF).
pp. 34 e 35.
36
O Programa de Integração e Cooperação (PICE), de 1986, bem como o Tratado de
Integração, Cooperação e Desenvolvimento de 1988, que o consolidou, seguia método
gradualista, baseado no desenvolvimento de laços de cooperação e complementação
embargo de inúmeros e complexos problemas a serem
especificamente considerados, resulta do fato de que, na América
do Sul, a identidade cultural básica dos países da região tem,
como contrapartida, níveis equiparáveis de desenvolvimento e
significativas facilidades físicas de intercomunicação
35
.
Não obstante a superação dos obstáculos históricos dos
momentos de divergências brasileiro-argentinas, transcorrer-se-iam
ainda praticamente duas décadas, até que fosse adotada visão
geopolítica que ultrapassasse as fronteiras de seus próprios territórios
e permitisse a necessária convergência de estratégias nacionais e
afinidades na visão de mundo. Com a ascensão ao poder dos
presidentes Fernando Collor de Mello, no Brasil, e Carlos Menem, na
Argentina, no início da década de 90, começava a haver mudança na
estratégia integracionista, mais ambiciosa do que a até então perseguida
pelos dois países, reflexo do comprometimento em maior ou menor
grau com políticas neoliberais e da perspectiva de enfraquecimento do
sistema multilateral de comércio
36
.
Apenas uma década mais tarde, a revalorização do espaço
sul-americano viria a adquirir a forma de opção mais evidente e viável
para ampliar a capacidade dos países da região de enfrentar os desafios
e tirar proveito das oportunidades da globalização, o que constituiria
uma das motivações da realização da I Reunião dos Presidentes da
América do Sul, em Brasília, no período de 31 de julho a 2 de agosto
de 2000, moldura político-diplomática dos atuais esforços de integração
física regional.
43
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
2. ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO FÍSICO SUL-AMERICANO INTEGRADO:
MOLDURA POLÍTICO-DIPLOMÁTICA
A integração e o desenvolvimento da infra-estrutura física são
duas linhas de ação que se complementam
37
, facilitadas, no caso da
América do Sul, por sua configuração geográfica como unidade física
contínua, propiciadora de oportunidades de cooperação econômica,
entendida esta última como esforço coordenado para atingir objetivos
comuns
38
, ou seja, a fusão de propósitos mutuamente benéficos às
partes envolvidas. Essas constatações motivaram a realização da I
Reunião de Presidentes da América do Sul, com o objetivo de
aprofundar a cooperação já existente no espaço sul-americano e dele
fazer um projeto, o que elevaria a outro patamar a convivência dos
países que o integram.
A iniciativa não era inovadora, no sentido de que ainda se inseria
na linha do fio condutor da diplomacia sul-americana preconizada por
Rio Branco. Entretanto, introduzia-lhe elementos novos, emanados da
própria dinâmica das transformações do cenário internacional e das
negociações multilaterais, relacionados à dimensão econômica do
espaço geográfico, ao conceito de desenvolvimento sustentável e à
visão sistêmica do espaço integrado. A diretriz original da diplomacia
sul-americana, voltada para a união, a amizade e o progresso dos povos
sul-americanos, conforme explicitado no projeto do tratado de “cordial
inteligência e de arbitramento” entre Argentina, Brasil e Chile, redigido
por Rio Branco em 1909, e conhecido como ABC, era agora
intra-setoriais entre as duas economias. Collor e Menem, ao contrário, comprometeram-
se formalmente com ambicioso projeto de estabelecimento, em menos de quatro anos,
de um mercado comum entre os quatro países (Tratado de Assunção, 1991). Ver em
SOUTO MAIOR, Luiz A. P. Eleições e o Futuro do Mercosul. In: Política Externa, v.
12(2), p. 89. setembro/outubro/novembro de 2003.
37
Comunicado de Brasília, op. cit., parágrafo 37.
38
MARCOVITCH, Jacques. Democracia e Valores. [Palestra proferida] In:IEPES/
IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul. A Organização do Espaço Sul-
americano: seu significado político e econômico. (2000: Brasília, DF). p. 111.
ELIANA ZUGAIB
44
aprofundada para favorecer o desenvolvimento, por meio da sinergia
logística/transporte/telecomunicações/energia, que, ao agregar valor
e reduzir custos, pode ampliar as vantagens comparativas regionais
no processo de inserção competitiva na economia mundial e estimular
o comércio e os investimentos
39
.
Dessa perspectiva, passava a América do Sul a ser concebida,
pela primeira vez, como espaço geoeconômico único e sua integração
percebida como condição essencial para o desenvolvimento
sustentável regional. Como resposta às exigências da nova dinâmica
da economia mundial, tornara-se imperativo para os países sul-
americanos integrar suas economias, aumentar o intercâmbio
comercial, financeiro e tecnológico, dentro da região, e com o restante
do mundo, para crescer de forma harmônica
40
.
A integração deixava de ser vista como iniciativa puramente
comercial para fundamentar-se em objetivos político-econômicos de
natureza estratégica. Procurava o Brasil fortalecer seus laços na
América do Sul também com o propósito de aumentar seu peso
relativo diante de países de fora do seu entorno regional, e o da
região frente aos blocos econômicos, o que conferiu importante
sentido político-estratégico à integração. As forças centrípetas,
observáveis entre países que compartilham um espaço geográfico,
liberadas pela superação relativa dos antagonismos geopolíticos e
das supostas pretensões hegemônicas no início dos anos 80,
permitiram que fossem retomados, com maior vigor, os preceitos
originais da política sul-americana inaugurada por Rio Branco, cuja
visão de futuro orientava-se pela diretriz do “desenvolvimento como
39
ALEGRETT, Sebastian. América do Sul – articulação Mercosul e Comunidade Andina.
[Palestra proferida]. In: IEPES/IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul. A
organização do Espaço Sul-americano: seu significado político e econômico. (2000:
Brasília, DF). pp. 192 e 193.
40
SILVEIRA, José Paulo. Eixos de integração da América do Sul: A Contribuição
Brasileira. Brasília: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, [S.d.]. Texto
mimeografado. p.1.
45
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
meio de reduzir o diferencial de poder, responsável pela vulnerabilidade
sul-americana”
41
:
(...) A nação brasileira só ambiciona engrandecer-se pelas
obras fecundas da paz, com os seus próprios elementos, dentro
das fronteiras em que se fala a língua dos seus maiores,
e quer
vir a ser forte entre vizinhos grandes e fortes (...). É indispensável
que, antes de meio século, quatro ou cinco, pelo menos das maiores
nações da América Latina, por nobre emulação, cheguem, como
a nossa grande e querida irmã do Norte, a competir em recursos
com os mais poderosos Estados do mundo
42
. (grifo da autora).
Uma outra constatação, a de que a ampliação da integração
econômica pressupõe o fortalecimento da integração física entre os
países
43
, levou os presidentes sul-americanos a contemplarem como
área prioritária sua modernização e seu desenvolvimento, para o que
decidiram criar um arcabouço legal, a “Iniciativa para a Integração da
Infra-estrutura Regional Sul-Americana” (IIRSA).
3. A IIRSA
E O NOVO PARADIGMA DA INFRA-ESTRUTURA SUL-AMERICANA
A precária integração física do continente sul-americano
representa um dos principais empecilhos à inserção competitiva da
região na economia internacional e não é condizente com os termos do
Capítulo I, Artigo 1, do Tratado de Assunção, de acordo com os quais
o Mercado Comum implica “a livre circulação de bens, serviços e
41
Interpretação do Embaixador Rubens Ricupero emanada da análise que fez do discurso
pronunciado por Rio Branco, no Rio de Janeiro, em 1905, por ocasião do III Congresso
Científico Latino-americano, cujo texto consta da publicação Obras do Barão do Rio
Branco. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946. pp. 76-77. (C.f Lafer, 2001,
op. cit., p.84.
42
Ibidem.
43
Silveira, op. cit., p. 3.
ELIANA ZUGAIB
46
fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação
dos direitos alfandegários e restrições não tarifárias à circulação de
mercadorias e de qualquer outra medida de efeito equivalente”
44
.
Para superar essa deficiência, não se pode prescindir da
melhoria e da ampliação da infra-estrutura existente, de forma a criar
elos de ligação entre os países, aproveitando as sinergias e as
complementaridades entre as economias da região, indispensáveis
ao desenvolvimento integrado e à diminuição de suas assimetrias. Ao
surgir como resposta adequada a essas exigências, a IIRSA
representou divisor de águas no planejamento de projetos de infra-
estrutura regional. Imprimiu-lhe nova perspectiva, em consonância
com os desafios das forças de globalização e de regionalização, ao
estar a iniciativa orientada por três princípios fundamentais, os da
eficiência, da sinergia e da sustentabilidade. Instaurava-se, assim, novo
paradigma de desenvolvimento da infra-estrutura na América do Sul,
cujo objetivo é:
44
TRATADO PARA A CONSTITUIÇÃO DE UM MERCADO COMUM ENTRE A
REPUBLICA ARGENTINA, A REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, A
REPUBLICA DO PARAGUAI E A REPUBLICA ORIENTAL DO URUGUAI.
Assunção, 26 mar.1991. Disponível em <www.mercosul.gov.br/textos/
default.asp?Key=45>. Acesso em 8 out. 2004. Sabe-se que os maiores blocos econômicos
do mundo, União Européia e NAFTA, cresceram e consolidaram-se apoiados em infra-
estrutura moderna e integrada. No entanto, ao iniciar-se o século XXI, a precária integração
física do nosso continente apresentava-se ainda como um dos maiores obstáculos à
inserção competitiva da região na economia mundial, apesar dos esforços empreendidos
nessa direção nas últimas décadas, sobretudo no último decênio. O atraso no
desenvolvimento de um sistema moderno e integrado de infra-estrutura justificava, à
época, o declínio vertiginoso da presença da América do Sul no comércio internacional.
A região, que havia chegado a representar 12,5% das exportações mundiais, em 1950,
via sua participação reduzida a apenas 3,5%, em 1990. Da mesma forma, pode-se dizer
que o comércio entre as nações da América do Sul, que corresponde a 20% de suas
exportações globais, é pequeno em comparação ao de outros blocos regionais. Os parceiros
comerciais do NAFTA, por exemplo, concentram, intrazona, cerca de 30% de seu
comércio total, enquanto no sudeste asiático o percentual chega a 31% e na União
Européia, equivale ao comércio com o restante do mundo. Ver em FONSECA, Paulo
Sergio Moreira da. América do Sul: eixos sinérgicos. [Palestra proferida]. In: IEPES/
IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul. A organização do Espaço Sul-
americano: seu significado político e econômico. (2000: Brasília, DF). pp. 126 e 127.
47
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
(...)to promote patterns of development that will yield
maximum returns from the resources available to each of
the nations of South America, by emphasizing
complementarity, opportunities to add value to products of
the region, within the region, and operating to maximize
social equity and environmental soundness as well as
profitability. In the long run, avoiding the costs of
environmental and social damages enhances economic
efficiency(...)
45
.
Sobre o alicerce daqueles princípios, baseados nos conceitos
de competitividade e sustentabilidade, e da experiência acumulada
nas últimas décadas, foi elaborado, pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e pela Corporación Andina de Fomento
(CAF), Plano de Ação para a Integração da Infra-estrutura Regional
Ver também em Silveira, op. cit. p. 3. Entre outras iniciativas de promoção da integração
física, na década de 1990, sobressaíram-se a criação da Rede de Transportes e o Inventário
de Projetos Prioritários para a Integração da América do Sul, aprovados pela Conferência
dos Ministros de Transportes, Comunicações e Obras Públicas da América do Sul; as
atividades do Grupo de Trabalho Multilateral sobre Corredores Terrestres Bioceânicos
e o trabalho realizado no âmbito da Bacia do Prata e do Tratado de Cooperação Amazônica,
cujo propósito é integrar as redes de transporte. Destacam-se também a importante
atuação de organizações como a ALADI, a CEPAL, o Comitê Intergovernamental da
Hidrovia Paraguai-Paraná, Secretarias e instâncias governamentais da CAN e do Mercosul
em favor da integração regional. Instituições como o BID, a CAF e o FONPLATA
financiaram um número importante de projetos de investimento em infra-estrutura, nos
setores de transporte e energia. SILVA, Eliezer Batista da. Infrastructure for Sustainable
Development and Integration of South America. [Estudo patrocinado pela Companhia
Vale do Rio Doce (CVRD), Corporación Andina de Fomento (CAF), AVINA Foundation,
Bank of America, Companhia Auxiliar de Empresas de Mineração (CAEMI) e Business
Council for Sustainable Development – Latin America (BCSD-LA)]. April, 1996. pp.
1 e 8. Texto mimeografado.
45
SILVA, Eliezer Batista da. Infrastructure for Sustainable Development and Integration
of South America. [Estudo patrocinado pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD),
Corporación Andina de Fomento (CAF), AVINA Foundation, Bank of America,
Companhia Auxiliar de Empresas de Mineração (CAEMI) e Business Council for
Sustainable Development – Latin America (BCSD-LA)]. April, 1996. pp.1 e 2. Texto
mimeografado.
ELIANA ZUGAIB
48
da América do Sul
46
. Esse plano, que contém sugestões e propostas
para ampliar a modernização da infra-estrutura física da região no prazo
de dez anos, nas áreas de energia, transportes e comunicações, foi
incorporado ao Comunicado de Brasília, documento emanado da I
Reunião dos Presidentes da América do Sul e aperfeiçoado por ocasião
da Reunião Ministerial de Montevidéu, realizada em dezembro de 2000.
A versão aperfeiçoada do Plano de Ação incorporou a
identificação de doze eixos de integração e desenvolvimento, aí
incluídos o “Multimodal Orinoco-Amazonas-Prata” e o “Marítimo
do Atlântico”, dos quais fazia parte a Hidrovia Paraguai-Paraná. Essa
configuração foi revisada
47
e resultou na criação de dois novos eixos
o Andino Sul e o da Hidrovia Paraguai-Paraná
48
, havendo sido seu
total reduzido para dez
49
.
Subjaz à elaboração desse plano a adoção do conceito de
Eixos de Integração e Desenvolvimento, cuja configuração leva em
conta, em particular, a situação dos países que enfrentam dificuldades
46
Plan de Acción para la Integración de la Infraestructura Regional en América del Sur.
Disponível em <www.iirsa.org>. Acesso em 27 maio 2004.
47
A configuração original dos eixos de integração e desenvolvimento foi revisada durante
a V Reunião do Conselho de Direção Executiva (CDE) da IIRSA, realizada em Santiago
do Chile, em dezembro de 2003. O Conselho de Direção Executiva (CDE) da IIRSA é
composto pelos ministros de planejamento e infra-estrutura dos doze países da América
do Sul. Abaixo do CDE, funciona o Comitê de Coordenação Técnica (CCT), que exerce
as funções de Secretaria Executiva da iniciativa e é integrado pelo BID, CAF e pelo
FONPLATA. O CCT é também responsável pelos trabalhos dos Grupos Técnicos
Executivos (GTE) que gerenciam os Eixos de Integração e Desenvolvimento da América
do Sul e dos Processos Setoriais de Integração.
48
BRASIL. MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO.
Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana – IIRSA. Situação Atual.[2004?]
49
“Se indicó que la Hidrovía Paraguay-Paraná debe ser priorizada en IIRSA dada su importancia
estratégica, convocando al GTE respectivo a la brevedad posible”. IIRSA. Ata da V Reunião
do Conselho de Direção Executiva. Chile. 4 e 5 dez. 2003. Disponível em: <www.iirsa.org>.
Acesso em 12 dez. 2004. Espaço geoeconômico chave, a HPP é um dos poucos eixos de
circulação Norte/Sul da Bacia do Prata, do Mercosul ampliado e da Comunidade Sul-Americana
de Nações. Une naturalmente os membros do Mercosul e seu associado, a Bolívia. É elo de
ligação física entre o Mercosul e a CAN, núcleo da emergente Comunidade. Um dos indícios
de que a HPP venha a ser priorizada no âmbito da IIRSA é o fato de haver sido encomendado
estudo de “Visión de Negocios de la Hidrovía Paraná-Paraguay”.
49
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
geográficas para ter acesso por via marítima aos mercados
internacionais
50
e tem como norte o desenvolvimento sustentável da
região, que inclui os aspectos econômicos, sociais, ambientais e
tecnológicos. A criação de eixos continentais de desenvolvimento abre
o caminho para a inserção, na ordem mundial, de uma América do Sul
mais simétrica, ao ser propiciadora da eliminação progressiva das
desigualdades entre os países da região, assim como os eixos nacionais
contribuem para diminuir os desequilíbrios regionais internos.
3.1. E
IXOS DE INTEGRAÇÃO E DESENVOLVIMENTO: CONCEITO E
ANTECEDENTES
Há uma correlação entre os princípios básicos que fundamentam
os eixos de integração e desenvolvimento nacional e aqueles traçados
para alcançar a integração em escala continental. Esses princípios
básicos norteiam a escolha dos projetos de infra-estrutura que mais
contribuem para aumentar a eficiência e a sustentabilidade do
desenvolvimento econômico.
Os eixos de integração e desenvolvimento do Brasil encontram
no Programa de Metas do governo do Presidente Juscelino Kubitscheck
de Oliveira, na década de 50, seu antecedente mais distante.
Concentrava-se o Programa nas áreas de energia e transporte, com o
objetivo de integrar o espaço nacional, a partir da execução de projetos,
como ocorre no âmbito da IIRSA
51
. Seu vínculo mais recente, no
entanto, faz-se com o conceito de “corredores de exportação”, de
natureza unidimensional, desenvolvido exclusivamente para criar fluxo
transversal de transporte entre as regiões do país
52
, com saída para o
Atlântico. Essa concepção atendia às preocupações geopolíticas de
50
Comunicado de Brasília, op. cit., parágrafo 39.
51
FAUSTO, Boris. Historia Concisa de Brasil. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económico, 2003. p.210.
52
Silveira, op. cit., pp. 3 e 6.
ELIANA ZUGAIB
50
anular a importância do eixo longitudinal, favorecedor do porto de
Buenos Aires, e as pretensões argentinas de cooptar para sua órbita
de influência o Centro-Oeste brasileiro.
Esse conceito, que representou retrocesso com respeito ao
Programa de Metas, evoluiu nos últimos trinta anos. No início dos
anos 90, foi aperfeiçoado e transformou-se em referência para o
planejamento ao reincorporar à dimensão transporte as interações com
as áreas de energia e telecomunicações. No Plano Plurianual (PPA)
1996-1999, o conceito ganhou nova forma, ao ser o Programa de
Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento nele incluído como
tentativa de traçar estratégia de desenvolvimento para o Brasil que
permitisse a redução dos desequilíbrios regionais e sociais, sob nova
ótica, a da geografia econômica e a dos fluxos de bens e serviços.
As prioridades passavam a ser a integração das regiões, a
consolidação da ocupação do território e a abertura de novas fronteiras
de desenvolvimento como elementos importantes para a geração de
emprego e renda, agregando-lhe, portanto, também a dimensão social
53
.
A definição de projetos prioritários incluídos no PPA 2000-2003, por
sua vez, foi baseada em estudo que considerou o país do ponto de
vista de seus grandes eixos de integração e desenvolvimento para
detectar os principais entraves ao desenvolvimento das regiões. Os
eixos nacionais, como concebidos atualmente, nasciam de um olhar
lançado sobre quatro grandes dimensões do território, os ecossistemas,
os setores econômicos, a interação da rede de cidades e a malha
multimodal de transportes. Tencionava-se, a um só tempo, dinamizar o
desenvolvimento nacional e revelar oportunidades de integração com
os países vizinhos
54
.
Em síntese, enquanto o conceito de corredor vinculava-se à
idéia de unir dois pontos distantes entre si em função de sua projeção
a mercados externos, o conceito de eixo consiste na criação de uma
53
Silveira, op. cit., p. 6.
54
Moreira da Fonseca, op. cit., p. 134.
51
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
faixa de densidade econômica, na qual confluem o transporte, a energia
e as telecomunicações, de maneira a beneficiar as atividades produtivas
em todo o trajeto, com o cuidado de fazê-lo de forma ambiental e
socialmente sustentável.
O atual conceito de eixos apóia-se em cinco princípios
observados na escolha dos melhores projetos de infra-estrutura
regional que têm a propriedade de aumentar a eficiência e o caráter
sustentável do desenvolvimento econômico
55
. O primeiro desses
princípios diz respeito à sustentabilidade ambiental. A infra-estrutura
regional deve adaptar-se à capacidade e à vocação do território e
aos ecossistemas que a compõem. Os projetos, portanto, devem ser
concebidos de maneira a reduzir ao máximo os impactos ambientais
negativos e estimular as iniciativas que contribuam para a conservação
dos recursos naturais, gerando, ao mesmo tempo, empregos e renda.
A eficiência econômica, segundo fundamento dos eixos de integração,
pressupõe que os novos projetos integrem as modalidades de
transporte e os sistemas de energia e de telecomunicações, de forma
a criar “cinturões de desenvolvimento multimodais”
56
, que permitam
reduzir os custos de implantação e otimizar os investimentos. O
terceiro princípio remete-nos à questão da sustentabilidade social.
As repercussões sociais e sobre os meios de subsistência das
populações atingidas por projetos de infra-estrutura devem ser
examinadas nos níveis local e regional.
A perspectiva geoeconômica, o quarto fundamento, está ligada
à forma de planejamento, que deve considerar o espaço físico como
unidade econômica única e basear as decisões de investimento nos
meios mais eficientes para se alcançarem a integração e o progresso
em todo o continente. Buscam-se, dentro dessa perspectiva, os
empreendimentos que permitam a sinergia e a complementaridade
entre os setores e as nações.
55
Silveira, op. cit., p. 3; Moreira da Fonseca, op. cit., p.127.
56
Moreira da Fonseca, op. cit., p. 128.
ELIANA ZUGAIB
52
Finalmente, faz-se necessário considerar a demanda atual e
futura e o efeito multiplicador dos projetos de desenvolvimento. Diante
da exigüidade dos recursos naturais, a escolha dos empreendimentos
deve pautar-se pelo critério do essencial. Com base neste último
fundamento, têm prioridade os projetos que possam preencher os elos
que faltam na infra-estrutura regional, o que desencadeará a realização
de novos investimentos e impulsionará o desenvolvimento
57
.
Portanto, a concepção que se tem da infra-estrutura sul-
americana à luz do novo enfoque é a da sinergia promovida pela
interação entre os setores de transporte, energia e telecomunicações.
Os cinco princípios que a permeiam possibilitam a construção de projeto
de infra-estrutura global, que possa induzir o aumento da produção
econômica, minimizar os impactos ambientais e garantir a melhoria da
qualidade de vida da sociedade. Para viabilizar esse projeto, as ações
levadas a cabo pelos governos incluem esforços conjuntos para reduzir
os obstáculos legais e institucionais ao maior intercâmbio comercial
entre os países da região e a busca de mecanismos inovadores entre
os governos e os organismos financeiros multilaterais
58
.
3.2. A HPP
NA CONFORMAÇÃO DOS EIXOS NACIONAIS E NA
INTEGRAÇÃO
REGIONAL
A iniciativa de coordenação de um plano de infra-estrutura
comum, que priorizou os eixos de integração como meio de articulação
das regiões do país entre si e com outras dos países vizinhos, constituiu
57
Ver em Silveira, op. cit., pp. 3 e 4; Moreira da Fonseca, op. cit., pp. 127 e 128.
58
O novo enfoque adotado pela IIRSA oferece ainda a vantagem de que a definição de
projetos emanados de visão comum da região assegura posição consolidada frente aos
investidores privados e aumenta a atração dos empreendimentos, o que facilita a promoção
de parcerias público-privadas. Permite ainda otimizar a alocação dos recursos, na medida
em que os investimentos se concentram em projetos essenciais à integração e ao
desenvolvimento sul-americanos, e aumentar o nível de retorno sobre o capital a ser
investido, o que amplia o interesse do setor privado na execução desses empreendimentos.
Ver em Silveira, op. cit., p. 12.
53
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
uma das idéias propostas para o relançamento do Mercosul, ao
iniciar-se o século XXI. Buscava-se dinamizar o comércio intra-
regional, ao estender aos membros do Mercosul, Bolívia e Chile,
os eixos de integração, aliados à estratégia global para o
aproveitamento dos recursos na própria região
59
, propiciando o
estabelecimento de cadeias produtivas.
Essa extensão da malha de transporte nacional para além
das fronteiras brasileiras resultou de Estudo sobre os Eixos Nacionais
de Integração e Desenvolvimento
60
. O referido Estudo fundamentou
o planejamento estratégico dos projetos de infra-estrutura em quatro
conceitos básicos, as ações integradas nas áreas de energia,
transportes, telecomunicações, entre outras; a abordagem
geoeconômica; os investimentos públicos e privados e os “projetos
estruturantes”
61
do desenvolvimento nacional, ou seja, aqueles
capazes de gerar efeitos multiplicadores, que desencadeiem
processo de investimentos, crescimento e desenvolvimento. Com
base nessas diretrizes, foi identificado e implantado número
significativo de projetos daquela natureza em todas as regiões
brasileiras, a maioria dos quais contribui para a integração
continental.
Dentre os projetos brasileiros considerados “estruturantes”
da integração regional, inclui-se o conjunto das Hidrovias Paraguai-
Paraná e Tietê-Paraná, sistema de integração situado no centro do
continente e traduzido em mais de 5.800 km de rios navegáveis,
que, além de cumprir o papel de meio de transporte, apresenta
potencial de desenvolvimento que pode ser comparado ao ocorrido
na América do Norte, na bacia do Mississipi
62
.
59
BOSCOVICH, Nicolás. El Mercosur y La Integración Física. Ejes Fluviales: Actuales
y Futuras Hidrovías Regionales. In: Geopolítica, año XXVI, n. 71, p. 47, 2000.
60
O Estudo sobre os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento foi realizado
por consórcio de consultoria para subsidiar a elaboração do PPA 2000-2003.
61
Silveira, op.cit., p. 7.
62
Silveira, op.cit., p. 9.
ELIANA ZUGAIB
54
A abundância de recursos naturais, comparável apenas à de
alguns países da África Central e partes da ex-União Soviética, constitui
a chave do desenvolvimento econômico sustentável da América do
Sul e dela faz um “continente de oportunidades”
63
. Sendo os sistemas
de infra-estrutura elementos essenciais desse processo, é imprescindível
que sejam também desenvolvidos de maneira sustentável e propiciem
acesso eqüitativo àquelas oportunidades. Nesse sentido, o sistema
Paraguai-Paraná constitui área de importante potencial de intercâmbio
de bens e de riqueza em recursos naturais, que inclui reservas de 1,2
bilhão de toneladas de ferro, 100 milhões de toneladas de manganês
64
e grandes extensões de terras agricultáveis. Esse potencial faz da HPP
o grande eixo de integração do Cone Sul, capaz de impulsionar a
circulação de bens e pessoas nos países do Mercosul e na Bolívia e de
possibilitar o acesso competitivo de seus produtos no mercado
internacional.
A Hidrovia Tietê-Paraná constitui outro elo de interligação do
Brasil com o Mercosul, ao viabilizar a conexão direta da região brasileira
de maior atividade econômica com os países vizinhos. Por esse meio,
a soja e os combustíveis produzidos no Brasil atingem a Argentina e,
no caminho inverso, o trigo argentino ingressa no mercado paulista,
assim como os produtos do Paraguai chegam a São Paulo e ao Porto
63
Ver em Batista da Silva, op. cit., pp. 11 e 12.
64
A reserva de minério de ferro pode tornar-se a principal fonte de matéria-prima para
as indústrias siderúrgicas do Paraguai, Argentina e sul do Brasil e a população do Cone
Sul, de quase 60 milhões de habitantes, torna a região o mercado natural para a produção
de ferro e de aço. Igualmente aquinhoado em recursos energéticos, o sistema dos rios
Paraguai-Paraná e seus afluentes dispõem de potencial para gerar 60.000 megawatts de
energia, dos quais 40.000 são explorados. A Argentina dispõe de reserva de 1,6 bilhão de
barris de petróleo e depósitos de 300 bilhões de metros cúbicos de gás natural em
Neuquén, no sudoeste do país, assim como a Bolívia conta com 100 bilhões de metros
cúbicos daqueles recursos na porção noroeste de seu território. Calcula-se, ainda, que as
reservas inexploradas de gás natural no noroeste da Argentina e no sul da Bolívia
possam atingir 500 bilhões de metros cúbicos. Ver em Moreira da Fonseca, op. cit., pp.
137 e 138; SCHILLING, Paulo. El Expansionismo Brasileño. Buenos Aires: Gráfica
Saavedro, dic. 1978, p.132; Batista da Silva, op.cit.; pp.42 e 43.
55
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
de Santos. A conexão das hidrovias Paraguai-Paraná e Tietê-Paraná,
por sistema intermodal que permita transpor a barragem de Itaipu,
poderá vir a aprofundar o processo de integração regional, numa área
que reúne 90 milhões de habitantes e 85% do PIB dos países do
Mercosul
65
. As potencialidades da região poderão ainda multiplicar-
se no caso em que, no futuro, se venham a conectar as bacias fluviais
do continente - Prata, São Francisco, Amazonas e Orinoco – e
conformar o “Litoral Fluvial Sul-americano”, criando possibilidades
inestimáveis para o desenvolvimento sustentável da porção
mediterrânea da América do Sul
66
.
3.3. O
VELHO E O NOVO PARADIGMA DA INFRA-ESTRUTURA REGIONAL
No início da década de 2000, por iniciativa da diplomacia
brasileira, reforçaram-se os laços entre os países sul-americanos sob
o signo de nova perspectiva, que, no setor de infra-estrutura,
materializou-se na mudança do paradigma que vinha orientando o
planejamento e o desenvolvimento de projetos naquela área.
No passado, o planejamento da infra-estrutura, nos países sul-
americanos, era motivado por preocupações de natureza geopolítica que
induziam os governos, especialmente o do Brasil, a perseguir objetivos
nacionais estratégicos e de segurança. Eram considerados prioritários os
projetos que contribuíssem para a ocupação do território, para a consolidação
da presença nacional dentro de seus limites, e para a auto-suficiência
econômica, como meio de satisfazer as necessidades de desenvolvimento
65
Moreira da Fonseca, op. cit., p. 139. Sobre a Hidrovia Paraná Tietê, ver em BLOCH,
Roberto D. Transporte Fluvial. Principales vías de navegación. Características. Sistema
de transporte en los ríos más importantes del mundo. Análisis integral de la hidrovía
Paraná-Paraguay. Principales Puertos. Actualidad y futuro. Terminales Interiores de
Carga. Vehículos fluviales. Legislación. Buenos Aires: Ad Hoc S.R.L., diciembre 1999,
pp. 117-132.
66
BOSCOVICH, Nicolás. Geoestrategia para la integración regional. Ejes Fluviales
Claves y Complementarios para el Protagonismo Argentino en la Integración Física
del Mercosur. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1999, pp. 45-47.
ELIANA ZUGAIB
56
dentro das fronteiras nacionais. Para alcançar esses objetivos, recorriam
aqueles governos a políticas centralizadas de planejamento e de investimentos,
que, se por um lado, resultaram no surgimento de pólos de desenvolvimento
econômico, por outro, conduziram a investimentos ineficientes em infra-
estrutura e a impactos sócio-ambientais negativos.
Essa visão compartimentada e isolacionista do espaço físico
sul-americano tornou-se anacrônica com o advento das forças de
globalização e de regionalização e o desenvolvimento econômico dos
países que compõem a região passou a depender, em grande medida,
da habilidade de os governos incrementarem o comércio regional e
aumentarem sua participação no mercado internacional. A transposição
para esse patamar pressupõe, hoje, sobretudo, a ação coordenada
dos governos dos países da região e a adoção de padrões de eficiência
e de competitividade de custos dos fatores que sustentam o comércio,
inter alia, as matérias-primas, a energia envolvida em sua produção e
as redes de comunicação e transportes
67
. Impunha-se, portanto, no
início do século XXI, mudança substantiva do paradigma de
desenvolvimento da infra-estrutura então vigente.
O novo paradigma passaria, assim, a fundamentar-se na
perspectiva geoeconômica e nos princípios básicos da eficiência e da
sinergia, implícitos no conceito dos eixos de integração e
desenvolvimento. A eficiência, por sua vez, está ligada ao conceito de
corredores multimodais
68
. Tendo presente que a maximização da
eficiência pode ser alcançada por meio da redução dos custos, adquiriu
relevância o aproveitamento de corredores já existentes, tendo como
foco a complementaridade, o que levou a reforçar o “compromisso de
atribuir prioridade política ainda maior às iniciativas nacionais, bilaterais
ou sub-regionais já em curso, com vistas à modernização e ao
desenvolvimento da rede de infra-estrutura”
69
, de que é exemplo a HPP.
67
Batista da Silva, op. cit., p. 18.
68
Comunicado de Brasília, op. cit., parágrafo 41.
69
Comunicado de Brasília, op, cit., parágrafo 45.
57
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
O outro pilar do novo paradigma, o princípio da sinergia,
pressupõe o conceito da simultaneidade aplicado ao desenvolvimento
dos sistemas de macro-logística, energia e telecomunicações, cujo
planejamento deve pautar-se pelo princípio da precaução
70
, com vistas
a evitar danos ao meio ambiente. A adesão ao desenvolvimento
sustentável, com eqüidade social, reveste-se hoje de acrescida
importância, uma vez que constitui uma das condições da concessão de
financiamento. Abriam-se, dessa maneira, oportunidades de redução dos
custos de investimentos, ao maximizar-se a eficiência, e de minimização
dos impactos adversos ao meio-ambiente, ao fundamentarem-se os
projetos de infra-estrutura em estudos prévios de viabilidade.
Ao contrário do que ocorria no antigo paradigma, esses estudos
passaram a anteceder a aprovação dos projetos, o que assegura sua
sustentabilidade e maior retorno dos investimentos. Pode-se afirmar,
portanto, que a característica central do novo paradigma traduz-se no
processo de planejamento que contempla o equilíbrio de três dimensões
complementares, a perspectiva geoeconômica, a sustentabilidade
ambiental e os parâmetros de máxima eficiência econômica, ambiental e
social
71
.
A infra-estrutura é determinante do desenvolvimento sustentável
e este último, por sua vez, elemento fundamental do novo paradigma, o
que justifica a ênfase atribuída, no setor de transportes, às vias fluviais,
importantes instrumentos de integração, sob essa ótica, porque constituem
modo de transporte competitivo em termos de custos e agente de menor
70
O consenso multilateral em torno do “princípio da precaução” foi alcançado por
ocasião da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento,
em 1992, e encontra-se refletido no Princípio 15 da Declaração do Rio, que estabelece:
“where there are threats of serious or irreversible damage, lack of scientific certainty
shall not be used as a reason for postponing cost-effective measures to prevent
environmental degradation”. AZEVEDO, Maria Nazareth Farani. O princípio da
precaução e o Acordo sobre Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da
OMC – as implicações para o processo de reforma agrícola. 2001. 185 f. Tese (Curso
de Altos Estudos) - Instituto Rio Branco, Brasília, 06 de julho de 2001. p.19.
71
Batista da Silva, op. cit., p. 18.
ELIANA ZUGAIB
58
impacto sobre o meio ambiente
72
. Portanto, no caso das vias fluviais, a
aplicação do novo paradigma parte da premissa de que o projeto de
navegação deveria ser desenhado de forma a se adequar ao ciclo
hidrológico natural do ecossistema a que pertencem os rios
73
.
As potencialidades de desenvolvimento sustentável da América
do Sul, à luz da nova perspectiva que se abre para a região com a
adoção do paradigma que se pode dizer da “eco-eficiência”, traduzem-
se na visão estratégica do espaço sul-americano como unidade
geoeconômica, incorporada à IIRSA:
South America, although not today a major global
economic unit, has the potential to become an economic unit
even more innovative than the European Union or NAFTA. It
already has sub-continental units such as the Andean Pact
and MERCOSUR. Further, with its abundant natural resources
and still-low population density, South America has the
potential to be a model of regional integration and sustainable
development. South America can be the first continent to
implement the new paradigm of sustainable development by
applying preventive rather than corrective planning
74
.
4. A PRIORIDADE ATRIBUÍDA À INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA NO
GOVERNO LULA
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando da assunção
da liderança do País, atribuiu então acrescida relevância à integração
continental, coerente com a linha de ação anunciada durante a campanha
eleitoral, em que foi firme em proclamar sua intenção de fortalecer
72
CORPORACIÓN ANDINA DE FOMENTO, CAF. Los ríos nos unen. Integración
Fluvial Suramericana.. Santa Fé de Bogotá, D.C., Colômbia: Editora Guadalupe Ltda.,
noviembre 1998, p. 33.
73
Batista da Silva, op. cit., p 46.
74
Idem. p. 4.
59
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
ainda mais as relações com os vizinhos sul-americanos, ao afirmar que
“deveremos dar ênfase à relação com nossos vizinhos, em especial a
Argentina; nossa aliança com esse país é vital para o futuro do
continente”. Ao aludir a “uma nova convergência de países da América
do Sul”, visando a “uma negociação mais equilibrada com os Estados
Unidos”, defendeu a necessidade de se avançar na “definição e
implementação de mecanismos de controvérsias e preparar a formação
de um parlamento regional(...)”
75
.
Uma vez mais, prevalecia o fio condutor da política sul-
americana do Brasil traçada por Rio Branco, cujos elementos
fundamentais incluem a promoção da paz, a igualdade entre os
parceiros
76
e a necessidade de promover a diminuição do diferencial
de poder da região frente às nações e blocos mais poderosos:
A integração da América do Sul é um objetivo primordial
da política externa do Presidente Lula (...). Concebemos essa
integração como meio de assegurar um papel influente da região
no sistema global (...). Preconizamos, assim, a América do Sul
como região de paz, maior prosperidade e desenvolvimento
econômico e social, o que constitui um dos objetivos mais
importantes da política externa do governo do Presidente Lula
77
.
Fiel a essa linha de ação, o discurso do então candidato à
Presidência da República já deixava claro seu firme propósito de dar
75
Os trechos citados foram extraídos de SILVA, Luiz Inácio Lula da. Presença soberana
no mundo. In: Carta Internacional, ano X, n. 114, agosto de 2002.
76
Esclarece o Chanceler Celso Amorim que o fato de o Brasil ser a maior economia
implica sua maior responsabilidade em fazer com que o processo de integração seja
“saudável”, benéfico para todos os países, e não lhe imprime sentido hegemônico, como
interpretam alguns. Entrevista concedida a Aloisio Milani, Spensy Pimentel e André
Deak. Brasília, em 01 abr. 2004. A transcrição da íntegra do texto encontra-se disponível
no sítio <www.radiobras.br>. Acesso em 05 jun. 2004.
77
SOARES, Luiz Filipe de Macedo. Política Geoeconômica da América do Sul. [Palestra
proferida] [S.d. S.l.], p.1.
ELIANA ZUGAIB
60
substância, a partir do Mercosul, a política que reforçasse a união sul-
americana, o que viria a se confirmar, na prática, antes mesmo de
assumir ele o governo, e de que é exemplo a busca de solução para a
crise da Venezuela, que resultou na criação do Grupo de Países Amigos.
A essa iniciativa seguiram-se outras, mais tarde, como o comprovam
os esforços empreendidos pelo Brasil para ajudar a promover o diálogo
na Bolívia e apoiar decisões que favoreçam a solução pacífica dos
problemas de segurança na Colômbia.
Ao ser empossado, afirmava o presidente, com a mesma
convicção, em seu discurso inaugural:
A grande prioridade da política externa durante o meu
Governo será a construção de uma América do Sul politicamente
estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e
de justiça social. Para isso é essencial uma ação decidida de
revitalização do Mercosul (...)
78
.
Entendia, portanto, o novo governo que a consecução desse
objetivo, de que é pedra angular a aliança estratégica entre o Brasil e a
Argentina, depende, em última instância, da revitalização do Mercosul,
peça-chave para a futura consolidação do espaço comum sul-
americano
79
e, conseqüentemente, prioridade da política externa
brasileira.
O sentido prático da preocupação de revitalizar o Mercosul,
compartilhada em certa medida pelos outros membros plenos, encontra
expressão concreta no Programa acordado para o período 2004-2006.
Ao determinar, entre outras medidas, a implantação gradual de um
78
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Discurso Inaugural, proferido na Sessão de Posse, no
Congresso Nacional. Brasília, Congresso Nacional, em 01 jan. 2003. Texto disponível
em <www.mre.gov.br>. Acesso em 12 jun. 2004.
79
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Discurso proferido por ocasião do encerramento da IV
Reunião Plenária do Fórum Empresarial Mercosul/União Européia. Hotel Blue Tree,
Brasília, em 29 out. 2003. Disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em 12 jun. 2004.
61
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
Parlamento do Mercosul, a eliminação gradual de barreiras à integração
completa dos mercados nos quatro países integrantes do bloco e o
início de nova agenda de integração nos campos da produção e do
desenvolvimento tecnológico, imprimia-se com aquele Programa maior
ênfase à prioridade da integração física regional
80
.
Encontra-se, ainda, no centro do discurso do atual governo,
a percepção de que a conformação de uma Comunidade Sul-
americana de Nações constitui instrumento para a superação das
vulnerabilidades sócio-econômicas regionais e, portanto, a de que a
integração ultrapassa os limites da simples liberalização do comércio
81
.
A superação dos problemas internos brasileiros depende, em grande
parte, do estabelecimento de parceria estratégica com os países
vizinhos, que permita “maximizar as possibilidades da ‘geografia
econômica sul-americana’ e facilitar conexões com outras regiões
do globo”
82
. No âmbito dessa perspectiva, a vertente estratégica da
80
O “Projeto MERCOSUL 2006” e seus objetivos foram definidos politicamente na
reunião realizada em Assunção, em junho de 2003. Considera o Professor Marco Aurélio
Garcia que esse projeto permitirá contornar as ameaças da globalização assimétrica,
criar economias de escala, um grande mercado que nos permita usar a capacidade
produtiva dispersa, a inteligência que se produziu na região. Ver em GARCIA, Marco
Aurélio. [Palestra proferida]. In: Seminário Regional sobre Integración Productiva
Argentina-Brasil, 10 jun. 2004, Hilton Hotel, Salón Buen Ayre, Ciudad Autónoma de
Buenos Aires. Texto desgravado. p.5.
81
“O Programa 2004-2006 para o aprofundamento do Mercosul, sugerido pelo Brasil,
determina, entre outras medidas, a consolidação da união aduaneira e a eliminação
gradual das barreiras à integração completa dos mercados nos quatro países integrantes
do grupo; a implantação de um Parlamento do Mercosul; medidas destinadas a ampliar
a dimensão cidadã do bloco; e o início de uma nova agenda de integração nos campos da
produção e do desenvolvimento tecnológico. O Programa evidencia a vontade
compartilhada dos quatro Estados Partes do Mercosul de completar o processo de
integração econômico-comercial, ao mesmo tempo em que se aprofundam suas vertentes
política, social e cultural”. Ver em AMORIM, Celso. Aula Magna proferida na UFRJ.
Rio de Janeiro. 12 mar. 2004. Disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em 28 maio
2004.
82
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Política Externa Brasileira no Século XXI e o Papel da
Parceria Estratégica Sino-Brasileira. Conferência proferida na Universidade de Pequim,
República Popular da China, em 25 de maio de 2004. Disponível em
<www.planalto.gov.br>. Acesso em 15 jun. 2004.
ELIANA ZUGAIB
62
integração consiste em “explorar coletivamente o potencial de
crescimento de nosso mercado comum e as oportunidades que nos
aguardam no exterior”
83
.
Permeia ainda a diretriz da política externa do governo Lula
a idéia de que a ênfase na integração sul-americana não tem caráter
excludente, mas complementar, o que permitirá intensificar a
cooperação com toda a América Latina e o Caribe, e da
universalidade da diplomacia brasileira, que induz ao estreitamento
das relações com todas as regiões do mundo. O peso relativo do
Brasil e da Argentina, no contexto do Mercosul e do espaço sul-
americano, confere a sua relação bilateral influência significativa
na evolução do sistema sub-regional e nas perspectivas da
integração da América do Sul. As relações entre os dois países,
muitas vezes marcadas pela rivalidade e pela desconfiança, têm-
se modificado nos últimos tempos, o que favoreceu a intensificação
e ampliação do processo de integração. Hoje, não obstante as
divergências ainda por superar
84
, os dois países seguem sendo
83
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Discurso pronunciado por ocasião da cerimônia de
encerramento do Seminário Integração da América do Sul: Desafios e Oportunidades,
no Hotel Sheraton, em Buenos Aires, 16 out. 2003. Disponível em <www.mre.gov.br>.
Acesso em 22 jun. 2004.
84
Embora haja aproximação de visões sobre as linhas gerais da política regional e
hemisférica, não se pode deixar de considerar o acirramento de divergências sobre
questões pontuais como por exemplo: (a) o espinhoso tema do assento permanente
no Conselho de Segurança da ONU e (b) as disputas no plano comercial que envolvem
pedido argentino para introduzir salvaguardas, ou seja, medidas de defesa contra
importações excessivas de determinados bens brasileiros, o que constitui violação
do livre comércio, em especial se adotadas em países membros de um bloco que
pretende ser um mercado comum. Essas divergências não impedem, no entanto, os
avanços no projeto de integração porque há disposição política para superar essas
dificuldades, como o confirma a declaração do próprio presidente Lula: “O Brasil é
um país que tem a maior economia da América do Sul e do Mercosul e o parque
industrial mais consolidado. Portanto, o Brasil é o país que tem que ter mais
paciência, mais generosidade e não permitir que um problema qualquer de um ou
outro setor econômico se torne um problema da relação entre duas nações”. O
chanceler Celso Amorim, por sua vez, avalia que “O problema não é apenas
econômico, mas também político. Trata-se de entender que eles (refere-se ao governo
argentino) estão tentando reiniciar um processo de industrialização enquanto nós
63
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
sócios e parceiros e compartilham interesses comuns com os
vizinhos sul-americanos.
Os compromissos assumidos pelo atual governo na esfera
do discurso têm ganhado lastro no campo da ação. O Presidente
Lula tem sinalizado a prioridade atribuída à integração regional
ao reunir-se, em alguns casos mais de uma vez, com Chefes de
Estado sul-americanos, com o intuito de promover a aproximação
comercial e a cooperação nos campos energético, de
comunicações e de transporte, entre outros
85
. Foram registrados
avanços importantes tanto no âmbito do Mercosul
86
quanto no da
integração com a América do Sul, alguns dos quais pareciam impensáveis
temos que fazer valer nossa competitividade”. (cf. ROSSI, Clóvis. Brasil prega
mais paciência com Argentina. Folha de São Paulo, São Paulo, 09 dez. 2004.
Disponível em: <www.mre.gov.br>. Acesso em: 09 dez. 2004). Prossegue o
Chanceler, “Acho que há outras soluções mais criativas (refere-se ao pedido de
salvaguardas) para solucionar a questão, como uma política industrial comum,
joint ventures e financiamentos de compras governamentais” (cf. Amorim pede
soluções mais criativas. In: O Estado de São Paulo, 09 dez. 2004. Disponível em:
<www.mre.gov.br>. Acesso em: 09 dez. 2004).
85
AMORIM, Celso. Aula Magna, op. cit., p. 1. SILVA, Luiz Inácio Lula da. Palavras
proferidas durante Encontro com Estudantes Brasileiros. Havana, Cuba: Residência
de Protocolo do Conselho de Estado “La Mansión”, 27 set.2003. Disponível em
<www.mre.gov.br>. Acesso em: 28 maio 2004.
86
“O Consenso de Buenos Aires [assinado em 16 de outubro de 2003] exprime a
identidade de visões quanto à necessidade de conjugação entre crescimento econômico
e justiça social. O documento consigna a convicção de que o Mercosul não é somente
um bloco comercial, mas constitui um catalisador de valores, tradições e futuro
compartilhado. A Argentina e o Brasil comprometeram-se a fortalecer o grupo por meio
do aperfeiçoamento de suas instituições comerciais e políticas e da incorporação de
países da América do Sul como novos membros associados.[...]. [Na] Reunião de Cúpula
de Montevidéu, [16 de dezembro de 2003], [...] a função agregadora no subcontinente
[...] [foi reforçada com] a incorporação do Peru, como membro associado e a assinatura
de acordo com os países andinos. Houve, também, um redimensionamento do papel da
Bolívia, que gozará do mesmo status que já tinha o Chile [...]. Os entendimentos com o
governo do Peru são um modelo de como lidar com assimetrias, a partir do princípio de
flexibilidade, por meio da incorporação de mecanismos de ajuste e de compromissos
diferenciados entre as partes, de modo a permitir que a associação ao Grupo constitua
um fator de desenvolvimento para as economias menores”. AMORIM, Celso. Aula
Magna proferida na UFRJ, em 12 mar. 2004. Disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso
em : 28 maio 2004.
ELIANA ZUGAIB
64
há alguns anos porque “talvez o momento não tivesse chegado, não
houvesse condições políticas coincidentes nos vários países”
87
.
Conforme assinalaram os Presidentes Lula e Kirchner, na Ata
de Copacabana, por ocasião do encontro que mantiveram no Rio de
Janeiro, em 16 de março de 2004, “a partir do aprofundamento das
relações entre o Mercosul e a CAN, se buscará a construção de uma
Comunidade Sul-Americana de Nações”, cuja fundação acabaria sendo
consubstanciada na Reunião de Cúpula de Cusco, em dezembro do
mesmo ano.
Entende ao mesmo tempo o atual governo que a ampliação da
integração econômica pressupõe o fortalecimento da integração física
entre os países, fator cuja importância havia sido enfatizada no Protocolo
sobre Integração Física, Adicional ao Acordo de Complementação
Econômica nr. 36, assinado entre os governos dos Estados Partes do
Mercosul e o governo da República da Bolívia, e priorizada no âmbito
da I Reunião dos Presidentes, em que se criou a moldura legal para
sua modernização e desenvolvimento, a IIRSA. A Iniciativa viria a ser
retomada ainda com mais vigor pelo governo Lula como o “eixo
87
AMORIM, Celso. Entrevista concedida a Aloisio Milani, Spensy Pimentel e André
Deak. Brasília, em 01/04/2004. Disponível em <www.radiobras.br>. Acesso em: 15 jul.
2004. Ressalta-se, nesse aspecto, a incorporação do Peru ao Mercosul, como membro
associado, e ao Acordo Mercosul/Comunidade Andina de Nações (CAN), cujas
negociações chegaram a bom termo em 2003 e culminaram com a convergência dos dois
principais blocos da América do Sul, etapa fundamental para a conformação de um
espaço integrado sul-americano. Esse acordo representou avanço no processo de
integração regional, na medida em que a aproximação lograda traduz-se concretamente
em aliança econômico-estratégica, que compreende população de cerca de 350 milhões
de habitantes e PIB de mais de US$ 1 trilhão, e da qual não se pode prescindir. Integrada
por Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, a CAN é o segundo maior bloco
econômico da região. Com PIB total estimado em US$ 286 bilhões e população de 109
milhões de habitantes, de acordo com dados de 1998, a CAN vem trabalhando
intensamente para aumentar sua participação no comércio internacional. A criação, em
1993, da zona de livre comércio entre os países da Comunidade, à exceção do Peru, tem
contribuído para o desempenho positivo do comércio intrabloco que registrou, no
período de 1990 a 1998, aumento de 267,5%, ou seja, 11,9% das exportações totais da
CAN. O objetivo para 2005 é criar o mercado comum entre os cinco países, envolvendo
a livre circulação de bens, serviços, capital e mão-de-obra, a coordenação macroeconômica
e uma política externa comum. Ver em Moreira da Fonseca, op. cit., p.125.
65
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
principal de nossa relação sul-americana”
88
. A ênfase atribuída à
aproximação entre os países da América do Sul expressa-se, portanto,
também, por intermédio da IIRSA, instrumento aglutinador que tem
por objetivo contribuir para a interconexão física das economias e dos
habitantes da região e para a integração de cadeias produtivas que
atravessem suas fronteiras.
O atual governo tem, portanto, atribuído atenção prioritária
à construção de infra-estrutura regional que cumpra as funções de
canal de desenvolvimento, estenda o progresso econômico e o bem-
estar às áreas remotas e promova a inserção mais competitiva de
toda a região na economia internacional. A persecução dessa meta
tem justificado a busca de mecanismos capazes de atrair
investimentos para o desenvolvimento de projetos no setor, inclusive
por meio de parceria público-privada
89
, e a decisão de envolver o
BNDES
90
no financiamento de projetos de integração física, em
cooperação com outras instituições como a CAF, o FONPLATA e
o BID, com vistas a explorar plenamente as oportunidades que se
abrem com a IIRSA.
O PPA 2004-2007 explicita, como uma das preocupações
presentes nas ações voltadas para investimentos em infra-estrutura, a
88
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Declaração à imprensa, feita por ocasião da visita do
Presidente do Paraguai, Nicanor Duarte Frutos, ao Brasil. Brasília, Palácio Itamaraty,
em 14 out. 2003. Texto disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em: 23 mar. 2004.
89
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Discurso pronunciado por ocasião do Seminário para
Investidores Estrangeiros no Brasil Genebra, Suíça, em 29/01/2004. Disponível em
<www.mre.gov.br>. Acesso em: 15 fev. 2004.
90
Por determinação do Presidente Lula, foi criada, em abril de 2003, no BNDES,
diretoria para projetos de integração física na América do Sul; intensificados os contatos
daquele Banco com a CAF, com vistas à ampliação de sua participação no capital
daquela entidade financiadora de projetos; realizado, em agosto de 2003, seminário no
BNDES, Rio de Janeiro, em associação com a CAF, com o objetivo de se proceder a
levantamento das necessidades em matéria de infra-estrutura e a exame das possibilidades
de financiamento de obras de infra-estrutura na América do Sul, ocasião em que cada
país do continente apresentou dois projetos de integração física, passíveis de
financiamento por aquelas duas entidades. (Cf. Circular Telegráfica n. 48607/1423, de
18/12/2003).
ELIANA ZUGAIB
66
promoção da integração física da América do Sul. Atribui ênfase à
exploração do potencial de uso multimodal, em especial por meio da
melhoria das hidrovias interiores, que impulsione a abertura de sistemas
de integração com a fronteira econômica do território brasileiro e com
os países vizinhos
91
. A essa preocupação têm correspondido ações
práticas para viabilizar mecanismos inovadores de financiamento do
desenvolvimento na América do Sul, de que são exemplos a revogação
de medidas que impediam o maior uso dos Convênios de Créditos
Recíprocos (CCR), com vistas a estimular investimentos brasileiros na
região
92
, e a transformação do BNDES em um dos pilares do
financiamento dos projetos da IIRSA no Brasil e nos países vizinhos
93
.
O atual governo tem insistido igualmente na importância da saída
para o Pacífico, ao abordar a questão da integração física da América
do Sul
94
:
91
BRASIL. MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO,ORÇAMENTO E GESTÃO.
Plano Plurianual 2004-2007, pp. 16, 51, 134-136.
92
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Palavras proferidas por ocasião da abertura da XXV
Reunião do Conselho do Mercado Comum – Mercosul. Montevidéu, 16 de dezembro
de 2003. Ver também GARCIA, Marco Aurélio. [Palestra proferida]. In: Seminario
Regional sobre Integración Productiva Argentina-Brasil, 10 jun. 2004, Hilton Hotel,
Salón Buen Ayre, Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Texto desgravado. pp. 6 e 7.
93
CARVALHO, Guillherme. A estratégia da integração da infra-estrutura da América do
Sul e o Governo Brasileiro. [Trabalho apresentado]. [S.l.], 2003. Disponível em
<www.fase.org.br/acervo_fase_rits/Artigo%20IIRSA.pdf#search=
’a%20estratégia%20da%20integração%20da% 20infraestrutura%20
da%20américa%20do%20sul%20e%20o%20governo%20brasileiro’>. Acesso em: 10
out. 2004.
94
O Presidente Lula tem mencionado reiteradamente a construção de cem quilômetros
de via férrea que uniriam toda a rede sul do Brasil com a rede norte argentina, com a
mesma bitola, chegando até o Chile. Esse pequeno investimento permitiria unir 20 mil
quilômetros de vias férreas, que integrariam os principais portos do sul e sudeste do
Brasil com o norte chileno e toda a mesopotâmia, o norte e o nordeste argentinos. Ver
em Silva, Luiz Inácio Lula da. Discurso pronunciado no encerramento do seminário
Integração da América do Sul: Desafios e Oportunidades op. cit. Sobre o assunto ver
também em EMBAIXADA DO BRASIL EM BUENOS AIRES. Telegramas ns. 1142/
03, 2551/03 e 1160/04 e em FELÍCIO, José Eduardo Martins. Entrevista concedida
sobre “Amazônia e América do Sul”, [S.d]. Texto de transcrição obtido junto à Assessoria
de Imprensa do Itamaraty.
67
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
O Presidente Lula tem dado imensa importância à integração
da América do Sul, que está totalmente ligada a uma saída para o
Pacífico. Aliás, não só uma única saída; várias saídas. Pelo norte,
mais ao sul ou ao centro do Brasil (...)
95
.
Entende-se, portanto, a importância atribuída aos eixos bioceânicos,
que constituem alternativa para o escoamento dos produtos brasileiros
para o mercado asiático
96
, e, em particular, aos projetos de navegação
pelo Amazonas, contemplados na IIRSA, que possibilitam ligar o Oceano
Pacífico à foz do rio Amazonas, por meio de transporte intermodal
97
. Nesse
95
AMORIM, Celso. Entrevista concedida ao jornalista Bóris Casoy, no Programa
Passando a Limpo, em 04/10/2003. Disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em : 28
maio 2004. Para citar alguns exemplos de saídas pelo Pacífico, estudos promovidos
para analisar a viabilidade dos chamados Corredores Bioceânicos nos eixos do Norte
concluíram que a exportação dos produtos industrializados da Zona Franca para o
Extremo Oriente, através dos portos do Peru e do Chile, é mais vantajosa em termos de
custo do que pelo porto de Santos. Na região Centro-Oeste, a criação de uma saída para
o Pacífico, por 2000 km de rodovias na rota Cuiabá, Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba,
na Bolívia, aos portos de Arica ou Iquique no Chile, tem sido a principal reivindicação
dos Estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, cuja integração com a Bolívia
e o Paraguai é considerada fator determinante para o desenvolvimento da Região. A
Hidrovia Madeira-Amazonas, conectada às rodovias BR 364 e 317 cobre vasta região
do centro do continente, constituindo rótula de articulação entre o Centro-Oeste brasileiro,
a Bolívia, o Peru e a costa do Pacífico. Na região sul, a possível conformação de um
corredor bioceânico, mencionado pelo Presidente, de bitola métrica em toda sua extensão,
entre o Brasil, a Argentina e o Chile, poderá vir a constituir opção de escoamento pelos
portos de Antofagasta e Iquique, no Pacífico. Além das saídas pelo Pacífico, há outras
opções que levam ao Atlântico, como por exemplo, a Hidrovia do Madeira que se
conecta com a do Mamoré e poderá oferecer alternativa para o escoamento da produção
de soja da Bolívia através do porto de Itacoatira, assim como a construção de uma
segunda ponte sobre o Rio Paraná e a extensão da Ferroeste até Ciudad del Este poderão
constituir meio de saída das exportações paraguaias pelo porto de Paranaguá. No
momento, os portos de Santos e Paranaguá constituem opções competitivas em termos
de segurança, previsibilidade e prazos de percurso, o que tem justificado a preferência
dos usuários. Ver em Moreira da Fonseca, op. cit., p. 136, 137 e Batista da Silva, op.
cit., pp. 46 e 47.
96
Choque de realidade na política externa. Gazeta Mercantil, São Paulo, 09 dez. 2004.
Disponível em <www.gazetamercantil.com.br>. Acesso em: 09 dez. 2004.
97
Felicio, [entrevista concedida] op, cit. É natural que a Amazônia brasileira adquira
relevância no processo de integração física continental ao fazer limite com oito países
sul-americanos e estar próxima à área de expansão da fronteira agro-pecuária. Ver em
ELIANA ZUGAIB
68
sentido, é emblemático o compromisso assumido pelos Presidentes Lula
e Toledo, em Cusco, de implementar o projeto da Rodovia
Interoceânica, que liga Iñapari, na fronteira do Estado do Acre, aos
portos peruanos de Ilo e Matarani no Pacífico
98
.
Embora a HPP também mereça menção específica em
instrumentos bilaterais e multilaterais, assinados pelos Presidentes Lula
e Kirchner
99
; seja considerada estruturante nos âmbitos nacional e
regional; ofereça vantagens em termos de competitividade de custos
de transporte para carga pesada; seja a via natural de integração física
do Mercosul e elo de sua ligação com a CAN, sua importância não
deveria ser magnificada isoladamente em função da prioridade atribuída
a alternativas de transporte, dentro e fora do âmbito da IIRSA.
Não obstante, o projeto HPP é uma das iniciativas mais
importantes que concorrem para os objetivos da política externa
Choque de realidade na política externa. Gazeta Mercantil, 09 dez.2004. Disponível em
<www.gazetamercantil.com.br>. Acesso em: 09 dez. 2004.
98
SILVA, Luiz Inácio Lula da. Discurso proferido por ocasião da III Reunião de
Presidentes da América do Sul. Cusco. 08 dez. 2004. Disponível em <www.mre.gov.br>.
Acesso em: 09 dez. 2004.
99
A vontade política de dar curso ao Projeto da HPP tem sido consignada em declarações
conjuntas emanadas de encontros presidenciais de que são exemplos: (a) o Consenso de
Buenos Aires, assinado por ocasião da Visita de Estado do Presidente Lula à Argentina,
em 16 de outubro de 2003; (b) a Declaração de Santa Cruz de la Sierra para a reativação
da Hidrovia, resultante da XIII Reunião de Cúpula Ibero-americana, realizada em Santa
Cruz de la Sierra, em 15 de novembro de 2003, pela qual os presidentes determinaram
aos chefes de delegação do CIH que realizem os máximos esforços a fim de que as obras
recomendadas nos estudos complementares fossem executadas em 2004; e (c) a Ata de
Copacabana, assinada quando do encontro de trabalho mantido pelos Presidentes Lula
e Kirchner, no Rio de Janeiro, em 16 de março de 2004, em que decidiram “[...] tomar
todas as medidas necessárias para a construção de uma linha ferroviária que, atravessando
as províncias de Corrientes e Missiones, se conecte com a rede brasileira, nos Estados
do Mato Grosso do Sul e São Paulo, possibilitando unir, através do Norte argentino e
pelo mesmo caminho, os portos chilenos do Pacífico com a Hidrovia Paraguai-Paraná e
os portos brasileiros no Atlântico, potencializando, por sua vez, o desenvolvimento do
corredor ferroviário da mesopotâmia argentina”. Solicitaram, ainda, os presidentes,
naquele documento, a pronta finalização do estudo institucional-legal para as obras na
HPP, com vistas a dar início ao processo de licitação entre os países integrantes da
hidrovia.
69
A VISÃO DA INFRA-ESTRUTURA FÍSICA DA AMÉRICA DO SUL
brasileira na América do Sul, no que diz respeito à revitalização do
Mercosul e à integração física continental. Encerra, ainda, valor
intrínseco, como via tradicional de transporte e instrumento das antigas
disputas na região, que a singulariza e só pode ser entendido a partir
da perspectiva histórica de sua utilização, vertente a ser abordada no
próximo capítulo.
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO
PRATA: ANTECEDENTES HISTÓRICOS E
CONSIDERAÇÕES
GEOPOLÍTICAS
CAPÍTULO II
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA:
ANTECEDENTES HISTÓRICOS E
CONSIDERAÇÕES
GEOPOLÍTICAS
1. MODOS TRADICIONAIS DE UTILIZAÇÃO DOS RIOS DA BACIA DO PRATA
A impetuosa força aventureira do expansionismo europeu
no século XVI, em busca do canal interoceânico
100
, trouxe
portugueses e espanhóis ao portal da descoberta da porção
meridional do Novo Mundo, o rio da Prata. Caminho de entrada
dos descobridores, os rios da Bacia do Prata já eram utilizados
pelas populações nativas como meio natural de transporte no
continente sul-americano e seria o português Estevão Flores o
primeiro europeu a navegar suas águas, mais precisamente, a
desembocadura do rio Uruguai. Não tardaria até que navegantes
espanhóis viessem a disputar o domínio daquela zona. Assim é que,
em 1516, Juan Diáz de Solís o sucedeu na descoberta do chamado
“Mar Doce” e, em 1520, Rodriguez Serrano adentrava o rio
Uruguai. Sete anos mais tarde, por delegação da Coroa de Castela,
expedição capitaneada por Sebastián Gaboto, navegador genovês,
penetrava o rio Paraná, explorando o território adjacente e
100
QUAGLIOTTI de BELLIS, Bernardo. Uruguay y la Cuenca del Plata. In:
DALLANEGRA PEDRAZA, Luis (Coord.). Los Países del Atlántico Sur. Geopolítica
de la Cuenca del Plata. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. pp. 168 e 169.
ELIANA ZUGAIB
74
conquistando o hinterland
101
da Bacia do Prata, enquanto o
português Alejo García descobria o rio Paraguai. A navegabilidade
dos rios garantiria, numa primeira fase de sua utilização, a conquista e
a colonização de ampla região do interior do continente sul-americano,
a partir de 1533, quando zarpavam, respectivamente, de Lisboa e de
Sevilha, uma frota portuguesa e outra espanhola. Ficavam, assim,
assentadas as raízes do histórico antagonismo hispano-lusitano pelo
domínio do Prata
102
.
Os rios Paraná e Paraguai começaram a ser utilizados como
via de transporte e de comunicação logo depois do descobrimento do
Brasil, servindo também ao escoamento dos produtos locais para as
metrópoles européias. Transcorridos aproximadamente quarenta anos
desde a chegada de Pedro Álvares Cabral às costas brasileiras, foi
fundada a cidade de Assunção, a 1600 km do oceano e, portanto, em
total dependência daqueles rios
103
. Convertida em principal centro da
conquista espanhola, por seu avançado desenvolvimento populacional
e agropecuário, à época, Assunção engendrou intenso comércio com
as Províncias do Rio da Prata, como fonte supridora de gêneros
alimentícios
104
. Aquele núcleo passaria a desempenhar também, desde
então, papel chave no jogo de forças que conformaram as
nacionalidades no Rio da Prata, pois, historicamente, constituiu o elo
101
Un ‘hinterland’ es el contorno geoeconómico atraído por un centro, región
polarizada o puerto sobre un litoral marítimo o fluvial. Esta atracción no es sólo
resultante de la distancia con respecto a otro centro polarizante (menor distancia), sino
fundamentalmente, del costo-kilómetro de los distintos medios de transporte, la
disponibilidad y capacidad de carga en ellos, los tipos de productos para el intercambio
y el carácter perecedero o no de los mismos”. BOSCOVICH, Nicolás. La Argentina en
la Cuenca del Plata. In: DALLANEGRA PEDRAZA, Luis (Coord.). Los Países del
Atlántico Sur. Geopolítica de la Cuenca del Plata, op. cit., pp. 81 e 82.
102
SÁNCHEZ-GIJÓN, Antonio. La integración en la Cuenca del Plata. Madrid:
Ediciones de Cultura Hispánica, 1990, p. 44.
103
CLEAVER, Vitoria Alice. Discurso pronunciado na Escuela Nacional de Inteligencia.
Buenos Aires, em 21 de abril de 1993, texto mimeografado, p. 2.
104
ARBO, Higinio. Libre Navegación de los Ríos. Régimen jurídico de los ríos de la
Plata, Paraná y Paraguay. Buenos Aires: Librería y Editorial “El Ateneo”, 1939. p. 63.
75
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
entre o porto de Buenos Aires e o Alto Peru, bloqueando a passagem
da expansão portuguesa do litoral atlântico em direção ao interior do
continente. Não obstante, depois de consolidados os enclaves costeiros,
os colonizadores portugueses avançariam até as regiões interiores,
utilizando as passagens fluviais e terrestres para alcançar as zonas de
conquista almejadas no centro do continente. A expansão ao Oeste, e
para além do núcleo sul-americano, iria representar, mais tarde, um
traço predominante da tradição geopolítica brasileira
105
.
A partir do século XVIII, ao dar-se a descoberta das minas de
ouro na América Portuguesa, os bandeirantes, em suas incursões em
busca do metal precioso, atravessaram as regiões Sul e Oeste do Brasil,
margeando as nascentes dos rios Paraná, Uruguai e, posteriormente, a
do Paraguai. Afugentados pelos ataques dos caçadores de índios, os
jesuítas espanhóis tiveram que abandonar o sudoeste dos quatro estados
brasileiros meridionais e do Mato Grosso do Sul em poder dos
portugueses, que, pelo interior, avançaram a linha de Tordesilhas e
apoderaram-se das terras espanholas nas nascentes dos três rios da
Bacia, e que o “uti posidetis” iria consagrar pelo Tratado de Madri, em
1750. Impedidos de se manterem na desembocadura do Prata, os
portugueses dirigiram-se ao sul pelas nascentes, anexando o que
podiam, atraídos pelo fértil vale do Iguaçu e pela planície
riograndense
106
.
A navegabilidade dos rios da Bacia, que havia servido aos
propósitos da conquista de zonas interiores estratégicas, dando origem
às tradicionais rivalidades na região, passou a exercer, até meados do
século XX, importante papel como via de comércio. A abertura do rio
Paraguai à navegação fluvial internacional em 1865 possibilitou, finda
105
KELLY, Philip. Temas Tradicionales de la geopolítica brasileña y el futuro de la
geopolítica en el Cono Sur. In: KELLY, Philip y CHILD, Jack (Comp.). Geopolítica del
Cono Sur y la Antártida. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1990. p. 118.
106
CASTRO, Therezinha de. Brasil y la Cuenca del Plata. In: DALLANEGRA
PEDRAZA, Luis (Coord.) Los Países del Atlántico Sur. Geopolítica de la Cuenca del
Plata, Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 132.
ELIANA ZUGAIB
76
a Guerra do Paraguai, o florescimento econômico do Centro-Oeste
brasileiro, materializado no comércio do açúcar, do álcool e da
aguardente. A importância da navegação no rio Paraguai começaria a
declinar apenas a partir da crise econômica mundial de 1929, quando
as refinarias da região perderam competitividade para as concorrentes
do Nordeste brasileiro, em decorrência da queda dos preços
internacionais do açúcar
107
. Nesse mesmo período, 90% do comércio
exterior paraguaio e boliviano efetuavam-se pelo rio Paraná e outros
meios de transportes argentinos
108
. A partir da década de 30, interesses
geopolíticos levariam à valorização de rodovias e ferrovias em
detrimento daquelas vias fluviais, outrora eixo de penetração no sistema
do Prata.
2. A
NTECEDENTES DA LIVRE NAVEGAÇÃO NA BACIA DO PRATA
O tema da livre navegação nos rios da Bacia do Prata ocupou
grande parte das atenções da diplomacia brasileira no século XIX,
constituindo a busca de sua garantia um dos traços permanentes das
intervenções do Império na região. Essas intervenções estiveram em
grande parte fundamentadas em razões de ordem geopolítica
109
, na
107
HAPPE, Barbara Maria, Os Caminhos da Sustentabilidade Cinco Anos depois da
Rio 92: O Papel Político, Econômico e Social do Projeto da Hidrovia Paraná-Paraguai
(HPP) para o Brasil. Marburg, Alemanha: Philipps-Universität, Institut Für
Politikwissenschaft, outubro, 1997. p. 18.
108
Boscovich, 1983, op. cit., p. 96.
109
De acordo com HAUSHOFER, “Geopolítica é a ciência da influência da terra sobre
a evolução do Estado, servindo como diretriz política para a gestão dos negócios do
Estado”. Ver em COUTO e SILVA, Golbery. Questões sobre Geopolítica do Brasil. In:
A Defesa Nacional, Rio de Janeiro, n. 698, p. 33, novembro-dezembro 1981. Philip
KELLY e Jack CHILD, por sua vez, a definem como “la influencia sobre las políticas
exteriores y de seguridad de ciertos rasgos geográficos, siendo los más importantes la
ubicación entre los países, las distancias entre áreas, y los terrenos, climas y recursos
dentro de los Estados” ou “la relación entre la política de poder y la geografía”. Ver em
Reseña: Geopolítica, integración y conflicto en el Cono Sur y la Antártida. In: Kelly,
Philip y Child, Jack (Comp.). Geopolítica del Cono Sur y la Antártida, op. cit., p. 3.
Para Jorge FRAGA “[...] rama de la Política que estudia y analiza la influencia e
77
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
medida em que, por conquista
110
, logramos, no período colonial, o
controle das nascentes dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai, interessando-
nos, portanto, manter a livre navegação em seu curso
111
. A visão
geopolítica portuguesa desde aquele período evidenciava-se nas tentativas
de estabelecer os limites atlânticos de seu império americano, a Bacia do
Amazonas ao norte e a do Prata ao sul. Perseguiam, assim, os portugueses,
o domínio dos dois únicos caminhos de penetração naturais utilizáveis à
época, com a ambição de controlar toda a América do Sul
112
.
Com esse objetivo, fundariam a Colônia do Sacramento,
em 1680, na margem oriental do Rio da Prata. Aquele enclave havia
sido concebido em termos estratégico-militares para assegurar o domínio
da navegação do Prata e de seus tributários, que representavam a chave
do acesso ao interior da parte meridional do continente
113
. Tinham em
conta seus fundadores que a principal questão enfrentada pelas coroas
de Espanha e de Portugal desde a época dos descobrimentos era garantir:
incidencia de las características y factores geográficos físicos, económicos, ideológicos,
sociales y culturales en la vida política de los Estados y en sus relaciones exteriores, a
fin de extraer conclusiones útiles para su gobierno (...). Es evidente, ante esta y
parecidas definiciones, que el espacio juega un rol preponderante en todo estudio
geopolítico. El espacio geopolítico de un Estado puede ser entonces mayor o menor que
el espacio que la Geografía Política le ha asignado, en función de las características
apuntadas. En otras palabras, el espacio geopolítico de un Estado, tanto terrestre,
cuanto marítimo y aéreo, llegará hasta donde puede llegar la influencia política,
económica, ideológica social o cultural del mismo”. Ver em FRAGA, Jorge A. La
Argentina y el Atlántico Sur. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 63.
110
“No século XVIII, (...) a penetração portuguesa na Amazônia prosseguiu, facilitada
por sua vasta rede fluvial, apesar de que os franceses, já senhores de uma extensa área, a
tentassem impedir. O Brasil incorporou então, três quartas partes da maior bacia hidrográfica
do mundo(...)”.BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O Expansionismo Brasileiro e a
formação dos Estados na Bacia do Prata. Rio de Janeiro: Revan, 1998, p. 34. “(...) No
âmbito meridional, com a obsessão de manter a Colônia do Sacramento, os espanhóis
ignoraram a penetração no norte e no centro, entregando aos portugueses a maior parte da
Bacia do Amazonas e o vasto ‘hinterland’”. Castro, 1983, op. cit., p. 133.
111
Castro, 1983, op. cit. pp. 136 e 137.
112
SCHILLING, Paulo R. El expansionismo brasileño. México: El Cid Editor, 1978. p.
18.
113
TOSI, Jorge Luis, Geopolítica Fluvial Argentina. Buenos Aires: Ciudad Argentina,
1999. pp. 144 e 145.
ELIANA ZUGAIB
78
la posesión de ambas costas en el Río de la Plata, pues
significava la red acuática más importante para penetrar,
conquistar, dominar, explotar y expandirse en el vasto
’hinterland’ a través de los grandes ríos navegables, como el
Paraná y el Paraguay
114
.
Movida pela aspiração de dominar o estuário do Rio da Prata
e pautada por sua “política imperialista de agressão”
115
, a Coroa
Portuguesa logrou ampliar as fronteiras do Brasil, tendo o mercantilismo
como força propulsora da conquista territorial. Constituía, assim, uma
das preocupações fundamentais de D. João V (1706-1750) “facilitar
aos navios portugueses do comércio a livre navegação”
116
do Rio da
Prata, razão pela qual se impunha o controle de sua margem oriental.
Embora tivessem perdido a Colônia de Sacramento para a Espanha,
pelo Tratado de Santo Ildefonso (1777)
117
, os portugueses nunca
114
QUAGLIOTTI de BELLIS, Bernardo. La Cuenca del Plata en la Geopolítica del
Cono Sur. In: KELLY, Philip y CHILD, Jack (Comp.). Geopolítica del Cono Sur y la
Antártida. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1990. p. 131.
115
CALÓGERAS, J. Pandiá. A política exterior do Império. – Ed. fac-similar – Brasília:
Senado Federal, 1998. v.1. p.161.
116
Moniz Bandeira, 1998, op. cit. p. 39. Menção à carta do rei D. João V a Gomes
Freire de Andrada, Lisboa, 23.03.1736.
117
Durante o período colonial, a navegação dos rios da região meridional do continente
americano foi comum a todas as entidades governantes dependentes da Coroa de Espanha.
A partir do século XVIII, juntamente com a preocupação de estabelecer os limites dos
domínios portugueses e espanhóis, surge a questão da navegação dos rios que atravessavam
os territórios de uma e outra Coroa. Assim é que os tratados de limites, celebrados entre as
Coroas de Portugal e de Espanha, incluem disposições relativas aos rios. O artigo 18 do
Tratado de Madri (1750) estabelecia que: “La navegación en aquella parte de los ríos, por
donde ha de pasar la frontera, será común a las dos naciones, y generalmente, donde
ambas orillas de los ríos pertenezcan a una de las dos coronas, será la navegación
privativamente suya”. Por sua vez, o Tratado de Santo Ildefonso (1777) dispunha em seu
artigo 13 que: “La navegación de los ríos por donde pasare la frontera o raya, será comun
a las dos naciones hasta aquel punto en que pertenecieren a entrambas respectivamente sus
dos orillas; y quedará privativa dicha navegación y uso de los ríos a aquella nación a quien
perteneciere privativamente sus dos riberas, desde el punto en que principiare esa pertenencia;
de modo que, en todo o en parte, será privativa o común la navegación, según lo fueren las
riberas u orillas del río (...)”. Ver em Arbo, op.cit., pp. 58 e 59.
79
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
desistiram de possuir a banda oriental do Prata, provocando conflitos
e invasões. As tentativas de recuperar aquele território culminaram, em
1821, na sua anexação, como Província Cisplatina
118
.
A partir do final do século XVIII, projetava-se da Europa visão
geopolítica mais clara e definida do valor econômico do mercado sul-
americano, tanto para a exploração de matérias primas como para a
venda de produtos manufaturados. Nesse sentido, a crescente e
significativa concentração na Bacia do Prata conferia-lhe real
importância em termos de mercado de consumo, mantendo-a,
juntamente com seu hinterland, sempre presente nos planos
expansionistas políticos, estratégicos e econômicos do Velho Mundo
119
.
A Grã-Bretanha e a França, que competiam por novos mercados
comerciais, viriam a tomar para si a questão da abertura dos rios platinos
à livre navegação internacional, assunto que assumiria novas proporções
no século XIX, ao ultrapassar a esfera dos países ribeirinhos.
A navegação através do Rio da Prata e de seus afluentes tornou-
se vital para os portugueses no século XVIII, em cuja primeira metade
ocorreram a ocupação do Oeste e a exploração do ouro. As ligações
entre o Oeste e o interior da colônia passaram a depender daquele
estuário, cujos tributários, o Paraná e o Paraguai, conformavam o trajeto
mais direto e a única via de comunicação entre o Rio de Janeiro e os
territórios do Mato Grosso e de Goiás, as terras mais ricas e férteis do
Brasil
120
. O Rio da Prata adquiria, dessa forma, dimensão geopolítica
essencial à articulação da América portuguesa.
O tema da livre navegação na Bacia do Rio da Prata surge de
forma mais clara a partir de 1816/17, com a invasão portuguesa na
banda oriental daquele rio. Justamente nessa época, após a queda de
Napoleão, estipulava-se, no Tratado de Paz de Paris de 1814, que a
navegação do Reno seria livre em todo o seu curso navegável para
118
Moniz Bandeira, 1998, op. cit., p.40.
119
Quagliotti de Bellis, 1990, op. cit., pp. 131 e 132.
120
Ibidem. Ver em Tosi, op. cit., p. 147.
ELIANA ZUGAIB
80
todos os Estados. Caberia a um futuro Congresso o posterior
estabelecimento dos direitos a que fariam jus os Estados ribeirinhos,
da maneira mais eqüitativa e favorável ao comércio de todas a nações,
com o propósito de que essa norma viesse a se estender a todos os
rios internacionais europeus
121
.
Como conseqüência, o Congresso de Viena (1815), sob a
inspiração do imperialismo liberal da Inglaterra, dispôs que as potências,
cujos Estados estão separados ou atravessados por um mesmo rio
navegável, comprometiam-se a regulamentar a sua navegação de
comum acordo, tendo por base determinadas normas, dentre as quais
a de que a navegação seria inteiramente livre para fins de comércio.
Por meio de convenções especiais para cada um dos rios, a partir de
1821, foi estabelecida a liberdade de navegação para todos os navios
comerciais, sem distinção de bandeira. Assim, atitudes de governos
nacionalistas e protecionistas que viessem a acarretar o fechamento
desses rios poderiam resultar em conflitos
122
, o que justificaria as
intervenções franco-britânicas no Prata, em 1838 e em 1845.
A tentativa de solução dos conflitos ocorridos em torno da
disputa pelo domínio da banda oriental do Rio da Prata, por mediação
da Grã-Bretanha, levou à criação da República do Uruguai. Ao dividir
o rio geopoliticamente em duas esferas de influência, a uruguaia e a
argentina, aquela potência européia veria triunfar sua estratégia de
121
A liberdade de navegação começou a estabelecer-se por etapas, primeiro para os
Estados ribeirinhos. Nesse sentido, a decisão tomada no Tratado de Paz de Paris constituía
um avanço em relação ao primeiro antecedente do princípio da livre navegação, relativo
aos rios Escalda e Mosa. Ocorrido à época da Revolução Francesa, em 1792, consagrava
a livre navegação apenas para os países ribeirinhos ao declarar que “los ríos son propiedad
común e inalienable de todas las comarcas regadas por sus aguas, por lo que ningún
Estado del curso inferior podrá impedir su uso a los del curso superior”. Ver em Tosi,
op. cit., p. 37; BLOCH, Roberto D., Transporte Fluvial. Buenos Aires: AD HOC, dic.
1999, pp. 41 e 42; Arbo, op.cit., p. 26 e RIZZO ROMANO, Alfredo Hector. Hidrovía
Paraguay-Paraná. Aspectos Jurídicos y Geopolíticos. In: : Boletín del Centro Naval:
Hidrovía Paraguay-Paraná Factor de Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109,
suplemento, n. 763-G-11, vol. 109, año 110, pp. 98-100, invierno, 1991.
122
Tosi, op.cit., pp. 38 e 167; Bloch, op. cit., p. 42.
81
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
estabelecer Estado-tampão para evitar que uma das partes envolvidas
no conflito viesse a obter a pretendida supremacia na região
123
. A
Convenção Preliminar de Paz, assinada em 27 de agosto de 1828,
entre o Império do Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata,
assegurou a independência do Uruguai. As partes contratantes
comprometeram-se a envidar esforços para manter a navegação dos
rios daquele sistema aos súditos brasileiros por um período de quinze
anos, até que fosse negociado um tratado definitivo de paz, o que
nunca chegou a se concretizar
124
. Permaneceria, portanto, em aberto a
questão da navegação dos rios platinos. Começaria, assim, a delinear-
se o processo de consagração do princípio da livre navegação, que
viria a ser arduamente perseguido pelo Brasil. A partir de então, o
assunto foi considerado sob o prisma contratual
125
e sua inclusão em
todos os documentos celebrados com os países vizinhos, que pudessem
contemplar o tema da navegação fluvial, passou a constituir
preocupação constante da diplomacia do Império.
Como se poderá observar, o papel do Brasil foi notável no
desenvolvimento da tese da abertura do Rio da Prata ao comércio de
todas as bandeiras, façanha que as duas grandes potências européias,
a Grã-Bretanha e a França, não haviam conseguido obter por meio de
intervenções no Prata para demover Juan Manuel de Rosas de seus
desígnios exclusivistas com respeito ao direito de navegação naquele
rio e afluentes
126
.
A ameaça à livre navegação na Bacia do Prata quando se
encontrava Rosas à frente do governo de Buenos Aires, entre outros
motivos, envolveria o Brasil no episódio bélico de que foi palco todo o
123
Castro, 1983, op. cit., p. 135.
124
SOARES, Álvaro Teixeira. Diplomacia do Império no Rio da Prata. Rio de Janeiro:
Brand, 1955. pp. 86-88. Arbo, op. cit. pp. 81-83.
125
ARAÚJO, João Hermes Pereira de. O Segundo Reinado (Capítulo III). In: ARAÚJO,
João Hermes de; AZAMBUJA, Marcos e RICUPERO, Rubens. Três Ensaios Sobre
Diplomacia Brasileira. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, Brasília, 1989. p. 67.
126
Soares, Teixeira, op. cit. pp., 88 e 118.
ELIANA ZUGAIB
82
Rio da Prata entre 1839 e 1851
127
. Rosas perseguiria nesse período a
incorporação do Uruguai e a neutralização da política do Império
naquela região
128
. Em conformidade com as aspirações da burguesia
mercantil, procuraria ele fortalecer o monopólio do porto de Buenos
Aires sobre o comércio do Rio da Prata e manter seu exclusivismo,
fechando o rio e seus afluentes à navegação estrangeira.
Os fundamentos jurídicos do fechamento dos rios assentavam-se na
alegação da inexistência de instrumento legal que regulamentasse a sua
utilização, que, conforme preconizava o artigo adicional à Convenção
Preliminar de 1828, deveria ser provido por um tratado definitivo de paz que
não chegou a ser assinado. O sucesso dessa pretensão dependia, no entanto,
da capacidade do governo de Buenos Aires de controlar o porto de
Montevidéu, impedindo-o de transformar-se em alternativa ao comércio
com a mesopotâmia platina, e de decretar a nacionalização do Prata e de
seus tributários, conferindo-lhes o status de rios internos, por meio da
integração do Uruguai e do Paraguai à Confederação Argentina. Dessa forma,
reconstituiria o Vice-Reinado do Prata
129
, que se havia dissolvido em 1810
130
.
A pretensão exclusivista de Rosas com respeito à navegação
da Bacia do Prata arrastaria o governo do Império ao confronto cada
vez mais direto com Buenos Aires. O fechamento dos rios ameaçava a
integridade do território brasileiro, uma vez que isolava por completo a
Província do Mato Grosso. Ao mesmo tempo, prejudicava certos
setores do comércio europeu
131
, o que justificaria o envolvimento das
duas potências européias nas lutas travadas na região do Prata.
127
SANGUINETTI, Julio María. O Barão do Rio Branco e o Uruguai. In CARDIM,
Carlos Henrique; ALMINO, João (Orgs.) Rio Branco, a América do Sul e a Modernização
do Brasil. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores (FUNAG/IPRI/IRBr),
EMC Edições, 2002, p. 478.
128
Soares, Teixeira, op. cit., p. 92.
129
Moniz Bandeira, 1998 , op. cit., pp. 58 e 59.
130
Ver em SÁENZ QUESADA, María. La Argentina. Historia del País y de su Gente.
Buenos Aires: Editorial Sudamericana, mayo de 2001, pp. 218-226.
131
Moniz Bandeira, 1998, op. cit., p. 59.
83
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
Na ausência do tratado definitivo de paz, previsto na Convenção
Preliminar de 1828, não se admitiu, na prática, a livre navegação dos
rios e a ocupação da ilha de Martin Garcia pelo governo de Buenos
Aires daria a este a faculdade de proibir o tráfego em direção ao
Norte
132
. Sob o governo de Rosas, Buenos Aires, que também drenava
e centralizava as riquezas dos demais territórios platinos, anulando a
concorrência de Montevidéu e enriquecendo-se com o comércio,
resistiria à abertura das portas do Prata ao tráfego de todas as bandeiras
do mundo, indiferente às reivindicações das potências européias. A
França, cujos súditos haviam tido seus direitos desconhecidos e seus
bens seqüestrados por Rosas, seria a primeira potência a entrar em
conflito com Buenos Aires, levando o governo de Paris a dar o primeiro
passo do bloqueio do Prata (1838). Com seus interesses comerciais
lesados pelas lutas intestinas de Rosas (guerra entre dois partidos no
Uruguai; campanha contra os Farrapos na Província de São Pedro do
Rio Grande), o governo inglês seria também envolvido no conflito, o que
resultou na ação naval conjunta franco-britânica no Prata (1845-47)
133
.
Com a ascensão de Dom Pedro II ao trono e o fim da guerra
dos Farrapos no Rio Grande, a diplomacia brasileira envolveu-se nos
problemas do Prata
134
. Em setembro de 1844, o Império reconheceu
formalmente a independência do Paraguai
135
e, com o intuito de prestar
auxílio a Montevidéu
136
, em 7 de outubro daquele mesmo ano, assinou
um Tratado de Aliança, Comércio e Limites com o governo paraguaio,
cujo artigo IV estabelecia liberdade recíproca de comércio e navegação
nos rios e portos de ambos países para seus respectivos navios
mercantes. Era o primeiro passo dado pela diplomacia brasileira no
sentido de conseguir a liberdade de navegação no Prata e seus
132
Soares, Teixeira, op. cit., p. 88.
133
Idem, pp.94, 95, 99.
134
Idem, p. 103.
135
Moniz Bandeira, 1998, op.cit., p. 67.
136
Os portos uruguaios haviam sido bloqueados por Rosas desde janeiro de 1841.
ELIANA ZUGAIB
84
afluentes
137
. Em 1845, Rosas, em aliança com o General Manuel Oribe,
ex-presidente do Uruguai e à época à frente do Partido Nacional no governo
provisório instalado em Cerrito, perto de Montevidéu, decidiu impor
verdadeiro bloqueio fluvial a tudo quanto fosse destinado ao território
paraguaio, decretando o rio Paraná de propriedade exclusiva da
Confederação Argentina
138
. Ao persistir a situação de insegurança na
América do Sul, provocada por Rosas, em 25 de dezembro de 1850,
Brasil e Paraguai assinaram o decisivo Tratado de Aliança Defensiva, no
qual se consolidava a liberdade de navegação fluvial assegurada no tratado
de outubro de 1844
139
. Por força de seu artigo III, “ambas as Partes se
comprometiam a auxiliar-se mutuamente a fim de que a navegação do rio
Paraná até o Rio da Prata ficasse aberta aos súditos de ambas as nações”
140
.
Interessada pelo destino do Uruguai e para defender-se da
investida de Rosas, a diplomacia brasileira procurava desenvolver ações
que lhe permitissem avançar no tabuleiro do Prata. Desde 1848, o
Brasil havia passado a intervir de maneira mais direta no processo da
derrubada de Rosas, aproximando-se do General Justo José de
Urquiza, governador de Entre Rios, através da diplomacia de
Montevidéu
141
. Visando à pacificação do conflagrado Rio da Prata,
onde a Confederação Argentina guerreava contra o governo legal do
Uruguai, o Brasil promoveu negociações que culminaram na assinatura,
em 29 de maio de 1851, de um tratado de aliança ofensiva e defensiva
com a República do Uruguai e os Estados de Entre Rios e Corrientes
142
.
Esse ato não apenas estabelecia a devolução da ilha de Martin Garcia
ao Uruguai, como confirmava o princípio da livre navegação que vinha
sendo contemplado nos instrumentos firmados pelo Brasil desde a
137
Soares, Teixeira, op. cit., pp. 113 e 114.
138
Idem. p.113.
139
Pereira de Araújo, op. cit., pp. 59 e 60.
140
Soares, Teixeira, op. cit., p. 114.
141
Tosi, op. cit., p. 156.
142
Pereira de Araújo, op. cit., p. 59.
85
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
Convenção Preliminar de Paz de 1828, ao refletir em seu texto a
anuência dos governos de EntreRios e de Corrientes à navegação do
rio Paraná por embarcações dos países aliados
143
.
No entanto, a diplomacia do Império não perdia de vista seus
objetivos de assegurar relações mais estáveis com o Uruguai e
conquistar de forma definitiva a abertura da navegação do Rio da Prata.
Essa motivação justificaria a celebração, com a República do Uruguai,
de dois tratados, em 12 de outubro de 1851 - o de Limites, que
estabeleceu definitivamente a fronteira entre o Brasil e aquele país
vizinho, e o de Comércio e Navegação, que garantiu a neutralidade da
ilha de Martin Garcia. Esse último ato seria fundamental:
Consagrava-se plenamente a política seguida pelo Império
de conseguir a liberdade de navegação do Rio da Prata para os
navios de ambas as partes contratantes. Pelo artigo XV, as Altas
Partes Contratantes se obrigavam ‘a convidar os outros Estados
ribeirinhos do Prata e seus afluentes a celebrarem um acordo
semelhante, com o fim de tornar livre para os ribeirinhos a
navegação dos rios Paraná e Paraguai’
144
.
Esses tratados seriam sucedidos por uma série de novos atos
que permitiria consolidar a aliança estabelecida em 29 de maio de 1851,
iniciada pelo Convênio de 21 de novembro do mesmo ano, cujo artigo
XIV reafirmava o compromisso da livre navegação:
(...).Los Gobiernos de Entre Ríos y Corrientes se comprometen a
emplear toda su influencia cerca del Gobierno que se organizar
en la Confederación Argentina, para que éste acuerde y
consienta la libre navegación del Paraná y de los demás afluentes
del Río de la Plata, no sólo para buques pertenecientes a los
143
Tosi, op. cit., p. 160.
144
Soares, Teixiera, op. cit., p. 117.
ELIANA ZUGAIB
86
Estados aliados, sino también para los de todos los otros
ribereños que se presten a la misma libertad de navegación, en
aquella parte de los mencionados ríos que les pertenecer
145
.
De forma cartesiana e progressiva, o Brasil seguiria traçando
obstinadamente sua estratégia para ver garantida a livre navegação dos
rios da Bacia do Prata, dando um passo a mais nesse sentido, em 6 de
abril de 1856, ao assinar, com o Paraguai, o Tratado de Amizade,
Navegação e Comércio. Com base no artigo II daquele Tratado, a livre
navegação dos rios Paraná e Paraguai seria concedida aos navios mercantes
das partes contratantes, nas regiões em que ambas fossem ribeirinhas
146
. A
astúcia com que era conduzida a diplomacia do Império nessa questão
contornaria o não cumprimento, na prática, daquele artigo, pela celebração
com o país vizinho de uma Convenção adicional, em 12 de fevereiro de
1858, que representava progresso em relação ao referido Tratado ao
“franquear ao comércio de todas as nações a navegação dos rios Paraguai
e Paraná nos trechos pertencentes a ambos países”
147
. Por esses
instrumentos ficavam resolvidas as questões controvertidas com o Paraguai,
especialmente as ligadas à efetiva liberdade de navegação fluvial
148
. É
importante observar que, em 1853, um ano após a queda de Rosas, para
a qual haviam contribuído as intervenções do Brasil no Prata, a Constituição
argentina incorporava em seu texto a garantia da liberdade de navegação
nos rios interiores da Confederação a todas as bandeiras, sujeitas tão
somente aos regulamentos impostos pela autoridade nacional
149
.
Em 7 de março de 1856, a diplomacia brasileira já havia obtido
outra vitória nessa empreitada. O Tratado de Amizade, Comércio e
145
Tosi, op. cit., p. 160.
146
Soares, Teixeira, op.cit., p. 122; Arbo, op. cit., pp. 164-168.
147
Ibidem.
148
Pereira de Araújo, op. cit., p. 60.
149
Ibidem. Com o propósito de endurecer a pressão sobre Montevidéu, durante a chamada
“Grande Guerra” (1839-1851), Rosas proibiu a navegação dos rios interiores aos navios
estrangeiros, medida que levou França e Grã-Bretanha a intervirem na chamada “questão
87
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
Navegação assinado com a Confederação Argentina reconheceu a
liberdade de navegação no Rio da Prata pelos países ribeirinhos
150
, princípio
que foi reafirmado pela Convenção de 20 de novembro de 1857, “a qual
fazia referência expressa à plena liberdade de trânsito para os navios de
guerra brasileiros no trecho argentino daqueles rios”
151
. O Tratado teve o
mérito de dissipar as pressões exercidas por Rosas sobre as províncias e
propiciar seu progresso econômico, que decorreu da abertura da Bacia
do Prata ao livre comércio internacional, com que se beneficiaram os países
ribeirinhos
152
. A mencionada Convenção foi sancionada pelo Protocolo de
25 de fevereiro de 1864, assinado em Buenos Aires, e “consagrada
solenemente” pelo Tratado da Tríplice Aliança de 1 de maio de 1865
153
,
assinado entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai, cuja finalidade era unirem-
se os signatários “em aliança ofensiva e defensiva na guerra promovida
pelo governo do Paraguai”
154
. A questão da livre navegação dos rios Paraná
e Paraguai era tratada no artigo 11 que estipulava:
Derrubado o atual governo da República do Paraguai, os
aliados farão os ajustes necessários com a autoridade que ali se
constituir para assegurar a livre navegação dos rios Paraná e
Paraguai, de sorte que os regulamentos ou leis daquela República
não possam estorvar, entorpecer ou onerar o trânsito e a
navegação direta dos navios mercantes e de guerra dos Estados
oriental” para assegurar a livre navegação nos rios argentinos. A discussão no Parlamento
britânico para solucionar o conflito determinou a retirada do Reino Unido do bloqueio
anglo-francês (1845-1847) por entender que a reivindicação argentina da navegação de
seus rios interiores era justa e não queria continuar afetando os interesses da comunidade
britânica em Buenos Aires. Em 1850, ao firmar a paz com a França (Convenção Arana
Lepredour), Rosas veria reconhecido o direito exclusivo da Confederação de navegar os
rios interiores. Ver em Sáenz Quesada, op.cit., pp. 320, 321, 328.
150
Soares, Teixeira, op.cit., p.124.
151
PIO CORRÊA, Manuel. O Mundo em que Vivi. Rio de Janeiro: Editora Expressão e
Cultura, 1996, volume 2, p. 1045.
152
Soares, Teixeira, op. cit., p. 125.
153
Ibidem.
154
Pereira de Araújo, op. cit., p. 63.
ELIANA ZUGAIB
88
aliados, dirigindo-se para seus territórios respectivos ou para
território que não pertença ao Paraguai (...)
155
.
O mesmo direito seria assegurado aos navios brasileiros pelo
Tratado de Paz firmado pelo Brasil e pelo Paraguai em 9 de janeiro de
1872
156
, que não apenas reproduziu mas ampliou os direitos já consagrados
nos tratados anteriores, nos quais se havia garantido amplamente a liberdade
de navegação nos rios da Bacia. Therezinha de Castro assim resume o
desfecho dessa batalha árdua e bem sucedida da diplomacia do Império:
(...)terminadas las luchas (1870), quedó garantida la libre
navegación de la Cuenca del Plata; beneficiandose los
puertos de Buenos Aires y Montevideo. Se beneficiaban
dentro del aspecto fisiopolítico de la Cuenca presentándose
entonces en un eje natural Norte-Sur y que, con la
inclinación Noroeste-Sudeste, llevaba a los países
interiorizados: Bolivia y Paraguay, a obtener de la Argentina
y Uruguay la salida directa al Atlántico
157
.
Entretanto, com esta direção Norte-Sul iria mais tarde
entrecruzar-se a tendência Leste-Oeste: “Posteriormente, dentro del
enfoque geopolítico de que la llave de control de la Cuenca del
Plata se encontraba en el Paraguay, se tornó posible la
implantación del eje transversal de salida de los dos países
interiorizados, también por la costa brasileña”
158
.
A despeito da consagração do princípio da livre navegação na
Bacia do Prata, os compromissos assumidos nos Tratados de 1851
155
TRATADO DA TRÍPLICE ALIANÇA, Disponível em<www2.uol.com.br/
linguaportuguesa/triplicealianca.htm>. Acesso em: 05 abr. 2004.
156
Pio Corrêa, op. cit., p. 1045.
157
Castro, 1983, op. cit., p. 137.
158
Ibidem.
89
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
viriam, surpreendentemente, a ser questionados pelo governo argentino,
na década de 1970, a propósito do aproveitamento hidrelétrico do
alto Paraná.
3. M
ODELO GEOPOLÍTICO DE CONFRONTAÇÃO: CARACTERÍSTICAS E
RUPTURA
3.1. CAUSAS DO ANTAGONISMO GEOPOLÍTICO BRASILEIRO-ARGENTINO
O antagonismo geopolítico argentino-brasileiro teve suas raízes
mais profundas e remotas na herança da relação conflituosa vivida pelas
respectivas metrópoles durante o período colonial. Essa confrontação
centenária caracterizou-se por fases muito marcadas. No entanto, para
efeito da tese que nos propomos defender, concentraremos nossa
análise na etapa moderna da confrontação entre o Brasil e a Argentina,
a partir do modelo idealizado por Mário Travassos, na década de 30,
quando os dois países passaram a traçar suas diretrizes geopolíticas
antagônicas para os âmbitos regional e continental
159
, sobretudo no
159
O Brasil contou ao longo de sua história com homens que souberam valorizar o território
como fator de poder, como por exemplo, Alexandre de Gusmão, autor do Tratado de Madri,
que reconheceu o direito das conquistas portuguesas e dos bandeirantes; o político José
Bonifácio e o Barão do Rio Branco. Nos anos vinte, o trabalho de Everardo Backheuser “A
estrutura política do Brasil” (1926), veiculou conceitos fundamentais sobre território, raça,
destino, estado e população, que viriam a ser utilizados por outros autores brasileiros em seus
pronunciamentos geopolíticos, que sofreram também a influência das idéias de Ratzel, Haushofer
e Kjéllen graças a Backheuser. A partir da década de trinta, sobressaem-se como principais
protagonistas da geopolítica brasileira Mario Travassos, autor, em 1931, da obra “Projeção
Continental do Brasil”; o próprio Everardo Backheuser com sua “Geopolítica Geral do Brasil”;
o Brigadeiro Lisias A. Rodríguez que, em 1937, escreveu “Projeção do Brasil” e Golbery do
Couto e Silva, com sua “Geopolítica do Brasil”. A esses seguiram Carlos de Meira Mattos,
cujas principias obras são “Brasil: Geopolítica e Destino”, “Projeção Mundial do Brasil”,
“Geopolítica Pan-Amazônica”, “Geopolítica e Trópicos” e Therezina de Castro com sua obra
“Rumo à Antártida”, entre outras. Essas doutrinas de confrontação que, na corrente de
pensamento brasileira, assentavam suas bases na observação da realidade nacional, foram
menos claras na Argentina. Duas décadas antes do surgimento da obra de Travassos, o Vice-
Almirante Segundo R. Storni (“Intereses argentinos en el mar”) fundamentava suas teses no
caráter insular da Argentina, não do ponto de vista geográfico como tal, mas do da “geografia
social”, as quais eram influenciadas pelos interesses das elites agropecuárias e, portanto,
ELIANA ZUGAIB
90
caso do Brasil
160
, com o objetivo de superar o país vizinho e conquistar
a liderança na América do Sul
161
. A audácia e o estilo provocador dos
postulados de Travassos dariam início a mudança de perspectiva
geopolítica na América do Sul, ao colocarem em relevo seus
desconectadas da realidade latino-americana e voltadas a uma intensa união comercial e
cultural com o “centro de gravidade da civilização”. A visão mercantilista de ultramar de
Storni foi criticada pelos geopolíticos que o sucederam sobretudo porque pressupunha
implicitamente o isolamento da Argentina em relação aos vizinhos da Bacia do Prata. No
entanto, os estudos geopolíticos na Argentina começaram a tomar corpo teórico a partir de
1940, com J. Atencio e J.P. Briano, embora durante décadas a pedra angular da geopolítica
argentina se tenha submetido ao “problema brasileiro” (os efeitos da aliança Brasil-EUA nos
anos sessenta; as teses de Golbery do Couto e Silva; a projeção geopolítica brasileira no
Atlântico Sul e na Antártica). Na década de setenta, destacaram-se Miguel A. Basail; Reynaldo
G. Bandini (“Contexto Mundial e a inserção da Argentina”); Juan E. Guglialmelli (“Nación
y soberania”), Felipe Merini, representante de uma “geopolítica pragmática”, entre outros.
Somente nos anos 80 manifestou-se uma verdadeira tomada de consciência com respeito à
reinserção do país no novo contexto sul-americano. Ver em BOSCOVICH, Nicolás.
Geoestrategia para la Integración Regional. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1999, pp.
23-26; QUAGLIOTTI de BELLIS, Bernardo. La cuenca del Plata en la geopolítica del Cono
Sur. In: KELLY, Philip e CHILD, Jack (Comp.). Geopolítica del Cono Sur y la Antartida.
Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1988. pp.132-138; SÁNCHEZ-GIJÓN, Antonio. La
integración en la Cuenca del Plata. Madrid: Ediciones de Cultura Hispánica, 1990. p. 94.
160
O Brasil, herdeiro de Portugal, demonstrou sempre mentalidade mais oceânica , em
contraste com a Argentina, descendente de uma Espanha mais orientada à continentalidade.
Enquanto a desembocadura do rio da Prata era para a Argentina, na ação geocêntrica de
Buenos Aires, o terminal de rotas no oceano, 80% da população brasileira encontrava-se ao
longo da costa atlântica desde o Oiapoque ao Chuí. Por outro lado, ao contrário da Argentina,
envolvida apenas no Cone Sul, o Brasil articulava-se com as duas Bacias fluviais do
Continente, recebendo impulsos das forças continentais através do vale longitudinal do
Prata e transversal do Amazonas. As comunicações amplamente desenvolvidas pelo Brasil
para romper a natural geografia dos rios da Bacia do Prata no sentido Norte-Sul, através das
conexões Leste-Oeste, que favoreciam a saída da produção em direção ao Atlântico, buscavam
ao mesmo tempo a saída rumo ao Pacífico para alcançar seu objetivo de potência bioceânica.
Ver em Castro, 1983, op. cit. pp. 138 e 139. Em aberto contraste com as debilidades das
pretensões geopolíticas oceânicas da Argentina e do Chile, situavam-se as doutrinas
geopolíticas do Brasil que enfatizavam o uso estratégico do espaço continental sul-americano.
Durante mais de um século, o Brasil perseguiu uma política de projeção continental distinta
dos objetivos oceânicos que impulsionaram a Argentina e o Chile a competir pelo domínio
do extremo sul do continente e pelo controle das passagens oceânicas. Ver em CAVIEDES,
César N., La Aparición y desarrollo de doctrinas geopolíticas en los países del Cono Sur. In:
KELLY, Philip e CHILD, Jack (Comp.) . Geopolítica del Cono Sur y la Antártida. Buenos
Aires: Editorial Pleamar, 1990. p. 13.
161
Schilling, op. cit., pp. 149 e 150.
91
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
antagonismos fundamentais: Atlântico versus Pacífico e Amazonas versus
Prata
162
.
O cenário dessa disputa refletiu-se no conflito dos eixos
transversais contra os eixos longitudinais
163
, rompendo a ordem
natural estabelecida com a consagração do princípio da livre
navegação ao término da Guerra do Paraguai. Embora essa disputa,
cujo principal objetivo era monopolizar a circulação do tráfego e
da produção do hinterland, acentuara-se a partir dos anos 1970,
já vinha sendo aconselhada por Travassos desde 1931
164
, e daria
origem à política dos corredores de exportação. As relações
acrimoniosas entre o Brasil e a Argentina atingiram o seu ponto
crítico em meados da década de 70 com a aceleração do processo
de aproveitamento hidrelétrico levado a cabo pelo Brasil na Bacia
do alto Paraná. Curiosamente, esse mesmo rio converter-se-ia no
principal eixo da integração da Bacia, ao ensejar, no final dessa
década, a pavimentação das bases de uma futura e efetiva aliança
regional
165
.
As rivalidades alimentadas no passado pela disputa do
controle do estuário do Prata, cuja chave se encontrava no domínio
da banda oriental do rio, hoje República do Uruguai, e na garantia
162
Ver em TRAVASSOS, Mário. Projeção Internacional do Brasil. 2ª. ed. São Paulo:
Nacional, 1935. p.19; e em Sánchez-Gijón, op. cit., p. 72.
163
“El conflicto de ‘ejes transversales’ contra ‘ejes longitudinales’, con el objeto de
monopolizar la circulación del tráfico y la producción desde el extenso hinterland, fue el
más claro escenario de la pugna argentino-brasileña. Nuestro vecino priorizó la creación
de un ‘nuevo determinismo’ geoestratégico transversal en el Cono Sur por intermedio
de conexiones fluviales interiores entre cuencas y corredores ferroviarios-carreteros con
terminales en la cadena de sus puertos profundos en el oceano Atlántico: Minas Geraes-
Victoria, Santa Cruz de la Sierra-Corumbá-Santos, Foz Iguazú-Paranaguá, Paso de los
Libres-Porto Alegre-Río Grande”. BOSCOVICH, Nicolás. Geoestrategia para la
Integración Regional. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1999. p. 25.
164
Castro, 1983, op. cit., p. 147.
165
De natureza eminentemente internacional, o Paraná abrangia os principais centros
econômicos e demográficos do Brasil, da Argentina e do Paraguai e apresentava resposta
parcial para as necessidades energéticas daqueles países, donde a importância das represas
de Itapu, Corpus e Yaciretá. Castro, 1983, op.cit., p. 157.
ELIANA ZUGAIB
92
do princípio da livre navegação, passariam a se deslocar para o
campo do aproveitamento dos recursos hídricos que conformam o
sistema fluvial. Seria o Paraguai desta vez o país-chave e as negociações
para o estabelecimento do regime de utilização dos rios internacionais
o campo de batalha que enfrentaria a diplomacia brasileira para lograr
seus objetivos de primazia na região.
As razões seculares e mais recentes do antagonismo regional
têm conotações distintas. As pretensões hegemônicas estiveram, no
passado, ligadas à expansão e consolidação dos domínios territoriais e
do comércio. O controle da desembocadura atlântica dos rios platinos,
o chamado “centripetismo rioplatense
166
, permitia o pleno domínio
do acesso ao interior, donde sua importância estratégica para a
Argentina e a necessidade de assegurá-lo. A posse das nascentes nas
bacias superiores do Paraná, Paraguai e Uruguai, por sua vez, tornava
possível a utilização dos rios como vias de penetração e de conquista
dos territórios interiores e justificava os esforços do Brasil para
conservar sobre elas sua soberania e influência, conquistadas
progressivamente desde o Tratado de Tordesilhas.
As razões profundas da confrontação moderna foram o atraso
e o isolamento das zonas remotas, sobretudo as províncias do norte
argentino e os Estados centrais do Brasil, em particular o do Mato
Grosso, suscetíveis de serem atraídos pelo vizinho mais ativo na
promoção das comunicações e do transporte. Assim, fizeram parte
dos principais objetivos geopolíticos do Brasil e da Argentina, não
apenas integrar suas regiões interiores a seus centros econômicos e
demográficos, mas também isolá-las da influência e penetração do
166
Boscovich, 1999, op. cit., p. 28. Com relação ao conceito de centripetismo geopolítico,
Therezinha de Castro elucida que “la ubicación de Buenos Aires confirmaba, en la
época, el hecho de que cuando las corrientes fluviales como la de los ríos Paraguay,
Paraná y Uruguay, divergentes en sus nacientes, convergen hacia el mar en una única
dirección – caso específico del Plata – conforman un centro geopolítico común. En esas
condiciones, Buenos Aires se mantiene siempre dentro del centripetismo geopolítico,
en el comando de un núcleo colonial común, dentro del fenómeno natural de unificar el
conjunto (...)”. Castro, 1983, op. cit., p. 131.
93
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
país vizinho
167
. A partir dos anos 60, somar-se-iam a esses objetivos
a busca, pelo Brasil, da preponderância na área energética como
forma de romper o equilíbrio de poder na região. Permanecia como
traço comum da disputa, o “duelo entre a nascente e a
desembocadura”
168
, no passado, em busca de seu domínio; no
presente, em torno do aproveitamento dos recursos energéticos do
alto Paraná.
Os geopolíticos argentinos viam, com alarme, o ressurgir do
Brasil nas décadas de 60 e 70. Os geopolíticos brasileiros, por sua
vez, avivavam essa inquietação com suas declarações, percebidas como
hegemônicas e imperialistas
169
. As desavenças ocasionadas pelo desvio
da tradicional orientação Norte-Sul da configuração das correntes
comerciais e de transporte, que favorecia a Argentina, para a Leste-
Oeste, que beneficiava o Brasil, seriam recrudescidas pela espinhosa
questão do aproveitamento racional dos recursos hídricos do sistema
do Prata, tendo como foco principal sua utilização como meio de
transporte e como fonte energética. Portanto, do ponto de vista
geopolítico, as causas do conflito encontravam-se nos inconciliáveis
interesses brasileiros e argentinos com respeito ao eixo que marca o
rio Paraná, principal curso de água da Bacia. No caso do Brasil, a
tendência era à horizontalidade, eixo perseguido historicamente desde
o Tratado de Tordesilhas, que favorecia seus portos de águas profundas
e trazia para sua órbita de influência o Paraguai e a Bolívia. À Argentina,
convinha manter o curso natural das águas no sentido Norte-Sul, que
desembocava no estuário do Prata, pois possibilitava a saída de seus
produtos agrícolas da mesopotâmia, das áreas produtoras de cereais
e frutas do litoral e dos produtos agro-pecuários da Pampa Húmeda,
ao mesmo tempo em que facilitava a saída do Paraguai e da Bolívia
167
Boscovich, 1999, op. cit., pp. 28 e 29.
168
Expressão utilizada por Therezinha de Castro em Brasil y la Cuenca del Plata, op.
cit., p. 139.
169
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 80.
ELIANA ZUGAIB
94
para o mar, podendo, dessa forma, exercer influência sobre a economia
daqueles países
170
.
3.2. O
S ATORES DAS DISPUTAS NA REGIÃO E SEU COMPORTAMENTO EXTERNO
A expressão “dois grandes”, utilizada pelos geopolíticos, nas
décadas de 60 e de 70, para referirem-se ao Brasil e à Argentina, no
contexto da Bacia do Prata, justificava-se na medida em que constituíam
os dois únicos Estados com meios instrumentais suficientes para
alcançar seus objetivos nacionais e regionais
171
. Entre os dois principais
protagonistas, o Brasil possuía vantagens que lhe asseguravam maior
influência sobre a ordem de fato e de direito reinante na região. Essas
vantagens advinham, em grande parte, por um lado, do fato de dispor
o Brasil da condição privilegiada de país de “águas acima”, o que lhe
permitia controlar o curso dos três rios que conformam a Bacia, por
encontrarem-se suas nascentes em território brasileiro. Por outro, da
exclusiva possibilidade de que dispunha de operar simultaneamente
com os dois eixos da Bacia, o natural Norte-Sul e o tradicional Leste-
Oeste, utilizado desde a época dos bandeirantes e mais tarde equipado
com portos modernos de águas profundas (Santos, Paranaguá e Rio
Grande). O traçado Leste-Oeste, além de assegurar ao país a almejada
relação bioceânica, permitia-lhe, por sua posição geográfica, provocar
a saída do comércio sul-americano por seus portos de águas profundas,
com o que obtinha o controle do comércio exterior dos demais países
platinos
172
.
Além disso, através de sua política constante e pragmática, o
Brasil mantinha relações mais fluidas com os outros países platinos do
170
DALLANEGRA PEDRAZA, Luis. Situación Energética Argentina y La Cuenca del
Plata. In: DALLANEGRA PEDRAZA, Luis (Coord.). Los Países del Atlántico Sur.
Geopolítica de la Cuenca del Plata. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 18.
171
DALLANEGRA PEDRAZA, Luis. Analisis Estructural del Comportamento Externo
de los Países del Plata. In: Geopolítica, Buenos Aires, año X, n. 29, pp. 80 e 81, 1984.
172
Ibidem.
95
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
que a Argentina, cujas relações ficavam à mercê das oscilações de
políticas que variavam entre integracionistas e anti-integracionistas, de
acordo com a mudança de governos locais e nos países vizinhos
173
.
Com isso, o Brasil lograva manter um melhor sistema de alianças com
os países menores, como foi o caso do Paraguai, para atingir seus
objetivos na Bacia do Prata. O próprio Paraguai, por sua posição
chave na Bacia, alcançou em maior medida seus objetivos do que a
Argentina, cuja possibilidade relativa era superior
174
.
Tradicionalmente, o Paraguai adotou o papel de país pêndulo e
seus interesses orientavam-se no sentido de tirar o melhor proveito de
suas relações com o Brasil e a Argentina e dos esforços de
desenvolvimento por eles empreendidos. Acabaria inclinando suas
preferências pelo Brasil, que soube satisfazer melhor e em maior medida
do que a Argentina suas aspirações. Embora o Paraguai constituísse,
geopoliticamente, país de grande importância para que a Argentina
alcançasse o objetivo de manter a vigência do eixo Norte-Sul
175
, faltou
a seus governantes habilidade política que, somada à carência de planos
concretos com respeito aos empreendimentos hidrelétricos no alto
Paraná, cederia terreno às investidas brasileiras para trazer o Paraguai
para sua órbita de influência.
A atuação geopolítica do Paraguai seguiria duas linhas básicas
impostas por sua geografia: (a) manter variedade de vias de
comunicação alternativas com o Atlântico, em direção ao sul, por via
fluvial, através da Argentina e, em direção ao leste, por ferrovias e
rodovias, através do Brasil e (b) aproveitar ao máximo a exploração
dos recursos hídricos de seu território, que lhe permitiram levar a cabo
jogo astuto no equilíbrio de poder no rio Paraná, em magnitude
desproporcional ao seu peso específico.
173
Ver em LANUS, Juan Archibaldo. De Chapultepec al Beagle. Política Exterior
Argentina: 1945-1980. Buenos Aires: Emecé Editores, 2000. pp. 285-296.
174
Castro, 1983, op.cit., p.137.
175
Dallanegra Pedraza, 1983, op.cit., pp. 19 e 20.
ELIANA ZUGAIB
96
No entanto, o isolamento daquele país do próprio interior do
continente, separado da Bolívia pela deserta zona do Chaco e do nordeste
argentino pela província de Formosa, despovoada e em depressão
econômica, constituíam condições adversas limitadoras de sua liberdade
de ação. Essa situação facilitou ao Brasil, nos anos 60 e 70, o exercício de
deliberada política de incorporação daquele país à esfera de sua influência
176
.
A Bolívia também adotava políticas pendulares, mas com
características diferentes das paraguaias. Desde sua derrota na Guerra
do Pacífico, em 1870, sua principal preocupação passou a ser a saída
para o mar, sendo que a alternativa de acesso ao Atlântico dar-se-ia
através da estrada de ferro Santos-Arica
177
. O Brasil detinha a chave
da saída da Bolívia ao alto Paraguai, por meio do qual podia aceder
aquele país ao sistema Paraná-Prata, o que equivale a dizer que o
Brasil também detinha a chave das comunicações entre a Bolívia e o
Paraguai, países que não podiam comunicar-se pelo alto Paraguai
soberanamente porque mais ao norte de Porto Busch o rio não lhes
pertencia
178
. Embora se tenham pensado alternativas de saída ao
Atlântico pela região argentina, seriam extremamente onerosas e a
política argentina em relação a essa questão resumia-se à concessão à
Bolívia de duas zonas francas em seus portos
179
. Essa extrema
dependência da Bolívia em relação aos “dois grandes” para suas
comunicações e exportações, reflexo de sua geografia dividida e da
evolução de sua história, determinava seu comportamento geopolítico
“circunspecto” e cauteloso
180
. Segundo alguns autores, a Bolívia estaria
fadada a desenhar uma política internacional de difícil equilíbrio, que não
deveria ser pendular, mas de amizade equilibrada com todos os vizinhos
181
.
176
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 88.
177
Dallanegra Pedraza, 1983, op.cit., p. 20.
178
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 85.
179
Dallanegra Pedraza, 1983, op.cit., p. 20.
180
Ver em Sánchez-Gijón, op. cit., p. 86.
181
Ibidem.
97
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
No caso do Uruguai, a neutralidade era quase que inerente à
ordem natural dos fatos. Sua condição histórica de estado-tampão, ou
de “algodão entre cristais”
182
, reduzia sua atitude à reflexão sobre as
implicações das complexas geopolíticas de seus dois únicos e grandes
vizinhos, o Brasil e a Argentina
183
. De qualquer forma, ao Uruguai
certamente conviria o eixo Norte-Sul, uma vez que o talvegue
184
do rio
da Prata se encontrava perto de suas costas, um dos lugares mais
apropriados para a construção de porto de águas profundas (costa da
Rocha). As condições de seu território, sem obstáculos naturais e
interposto entre São Paulo e Buenos Aires, habilitavam o país a constituir
a zona de união entre as duas cidades e centro de serviços da região
platina
185
.
No entanto, o Uruguai, assim como a Argentina, ao não dispor
de porto oceânico, foi facilmente sensibilizado pelos planos brasileiros
de imposição do eixo transversal Leste-Oeste ao tráfego comercial do
interior da Bacia do Prata, muito embora debilitassem a importância
dos portos de Montevidéu e de Buenos Aires. A estratégia brasileira
visava a favorecer nossos portos atlânticos, especialmente o de Rio
Grande, situado a poucos quilômetros ao norte da fronteira uruguaia.
Essas razões fundamentariam o desígnio dos geopolíticos e líderes
políticos uruguaios de construir um grande porto oceânico que viesse a
proteger os interesses comerciais polarizados no rio da Prata
186
.
Schilling define, com poder de concisão e visão de futuro, a
complexa situação geopolítica da Bacia do Prata, do ponto de vista do
perfil de seus atores:
182
Sánchez-Gijón, op. cit. p.89. Menção a Lord Ponsonby.
183
Idem, pp. 88 e 89.
184
Palavra de origem germânica “Thalweg”, cujo significado conceitual corresponde à
linha mais profunda do rio e, portanto, onde a corrente é mais rápida. Nos rios navegáveis,
implica o canal de navegação. ALLENDE, Guillermo, L. Derecho de Aguas (con
acotaciones hidrológicas). Buenos Aires: Eudeba Editorial Universitaria, 1971. p. 158.
185
Dallanegra Pedraza, 1983, op.cit., p. 28.
186
Sánchez-Gijón, op. cit., pp. 90.
ELIANA ZUGAIB
98
(...)la región presenta la siguiente situación: dos países grandes,
Brasil y Argentina, con no disimuladas tendencias
expansionistas, y tres países chicos (geográfica, demográfica
o económicamente chicos): Uruguai, Bolívia y Paraguay. Estos
dos últimos son países mediterráneos, sin salida al mar:
‘prisioneros geopolíticos’ (...) Su liberación depende
fundamentalmente de la integración. Uruguay, estratégicamente
ubicado en la Cuenca del Plata, entre los dos grandes y el
océano Atlántico, con posibilidades de construir un superpuerto
en La Paloma (para los barcos del futuro), podría tener un
papel fundamental en el futuro de la región integrada
187
.
Outro fator relevante a ser considerado quanto ao equilíbrio de forças
desses atores é o fato de o Brasil ser o país menos dependente da Bacia do
Prata para desenvolver-se. Seu território é banhado pela parte mais extensa
e mais importante da Bacia Amazônica e dispõe de longa costa litorânea
estrategicamente situada em relação aos mercados dos EUA, da Europa e
da África, de considerável potencial hidrelétrico fora da região da Bacia,
além de incalculáveis recursos naturais (vegetais e minerais)
188
.
Dadas essas circunstâncias, agregadas ao fato de que a Bacia
nasce em território brasileiro e o Paraguai, país detentor da chave de
seu controle, pendia para a órbita de influência do Brasil, ficava
praticamente definida a maior probabilidade de o eixo horizontal triunfar
sobre o vertical, marcando o predomínio brasileiro na região, à época.
3.3. C
ARACTERÍSTICAS DO MODELO GEOPOLÍTICO NA BACIA DO PRATA
NAS
DÉCADAS DE 60 E DE 70
O antagonismo geopolítico e as pretensões supostamente
hegemônicas com relação aos países menores da região da Bacia do
187
Schilling, op. cit., p. 133.
188
Ibidem.
99
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
Prata, de que foram atores Brasil e Argentina, a partir dos anos 30 até
o final dos anos 70, têm suas causas mais remotas nas rivalidades
provocadas pelas disputas em torno do domínio dos espaços
geopolíticos na América Latina, herdadas das coroas de Portugal e de
Espanha
189
. A compreensão das causas mais recentes das hostilidades
e permanente dificuldade de diálogo que caracterizaram as relações
dos “dois grandes” naquele período não pode deixar de levar em
consideração os vínculos e as políticas que ambos países mantiveram
com os EUA, no pós-guerra. Quando do término do segundo conflito
mundial, o Brasil, país aliado, havia logrado consolidar uma aliança
com a nação mais poderosa do mundo, que o considerou o país chave
do continente e merecedor, portanto, da ajuda econômica que
possibilitou seus primeiros desenvolvimentos siderúrgicos
190
.
A Argentina, que adotara posição de distanciamento e neutralidade
no conflito, havia sido, ao contrário, relegada ao isolamento diplomático e
à suspicácia de Washington, que só seriam rompidos na década de 50.
Essa situação externa da Argentina alimentou, durante anos, a desconfiança
de setores de vários grupos dirigentes brasileiros
191
. Além disso, há que se
considerar que, no final dos anos 30, se encerrava a etapa da supremacia
argentina na região, durante a qual havia aquele país desenvolvido uma
agressiva política de penetração das zonas interiores da Bacia. Os territórios
interiores e isolados do Brasil não fugiam tampouco a essa dependência
de Buenos Aires. A comunicação e o abastecimento do Mato Grosso
estavam totalmente atrelados à navegação pelos rios da Prata, Paraná e
Paraguai
192
.
189
Quagliotti de Bellis, 1990, op.cit., p. 133.
190
Ver em Lanús, op.cit., p. 283.
191
Ibidem.
192
A Argentina contava com portos fluviais e marítimos eficientes, os rios eram
freqüentemente navegados, foram construídas vias férreas e estradas que atravessavam as
fronteiras dando acesso a todas as capitais dos países vizinhos, de forma que a zona de
influência platina, o hinterland, transcendia o território nacional e se integrava com vastas
regiões de países vizinhos. Em 1928, o PIB argentino era equivalente ao de toda a América
Latina e o dobro do brasileiro. Aproximadamente 90% do comércio exterior paraguaio
ELIANA ZUGAIB
100
As pretensões da Argentina na Bacia do Prata, e
conseqüentemente a de tornar-se potência latino-americana,
fundamentavam-se em teses geopolíticas, cujas premissas básicas
consistiam em: (a) escoar obrigatoriamente toda sua produção pelo Rio
da Prata, evitando que fosse transportada, através do Brasil, quaisquer
que fossem as razões de conveniência de custos de frete e (b) estabelecer
relação de preponderância com o Paraguai e a Bolívia, considerados o
heartland
193
do Cone Sul, o que justificaria a decisão de privilegiar a
realização de projetos com aqueles países, uma vez que considerava
mais fácil influir sobre sua vontade do que se entender com o Brasil
194
.
Da mesma forma que o distanciamento argentino em relação a
Washington causava suspeitas nos meios dirigentes brasileiros, analistas
argentinos semeavam desconfianças com relação ao Brasil. Alegavam
que havia profundas divisões no Cone Sul emanadas do papel do Brasil
na região. Para muitos deles, a estreita relação política, militar e
econômica do Brasil com os EUA sinalizava que o Brasil não era
verdadeiramente uma nação latino-americana e que a Argentina deveria
resistir ao seu surgimento como potência regional e mundial, com a
finalidade de bloquear o domínio da área por parte dos EUA, através
do substituto brasileiro
195
.
fazia-se pelos rios Paraguai e Paraná. Com o objetivo de atrair a Bolívia para a órbita de
influência do Rio da Prata, criou-se a Comissão do Canal Lateral do Rio Bermejo, com o
objetivo de proporcionar àquele país uma saída fluvial ao Atlântico pelo Rio Paraná-Rio
da Prata e um porto franco em Rosário. Boscovich, 1999, op. cit., pp. 26 e 27.
193
O conceito de Heartland refere-se a territórios privilegiados por sua localização
(Mackinder). Ver em SALAZAR PAREDES, Fernando. [Palestra proferida]. In: IEPES/
IRBr/IPEA/BID. Seminário sobre a América do Sul. A organização do espaço sul-americano:
seu significado político e econômico (2000: Brasília, DF). v.1. p.158.
194
Lanús, op. cit., p. 299 e BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e
Estados Unidos. Conflito e integração na América do Sul. (Da Tríplice Aliança ao
Mercosul 1870-2003). Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 412.
195
Ver em Kelly, Philip; Child, Jack (Comp.), 1990, op. cit., p. 5. O golpe militar de
1964 possibilitou a total e incondicional adesão do Brasil ao bloco ocidental, com o que
passaria a atuar fundamentalmente como representante do imperialismo norte-americano
no sul do continente, como instrumento para atingir o status de potência hegemônica.
Schilling, op. cit., pp. 20 e 22.
101
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
As desavenças entre o Brasil e a Argentina assentavam-se,
portanto, nessas bases de desconfiança mútua e sob o pano de fundo,
no cenário internacional, da confrontação bipolar dos dois centros do
poder mundial, Washington e Moscou, com radical divórcio político-
ideológico, pedra angular da chamada “doutrina da Sorbone”
196
.
Os partidários daquela doutrina, da qual foi teórico o General
Golbery do Couto e Silva, e entre os quais incluía-se o Marechal Castelo
Branco, convictos de que não restava alternativa senão “aceitar
conscientemente a missão de se associar à política dos Estados Unidos
no Atlântico Sul (...) [e que] o quase monopólio de domínio naquelas
áreas deve ser exercido pelo Brasil exclusivamente (...)”
197
, ensejariam
a incorporação à estratégia traçada pela Escola Superior de Guerra de
várias teses, que refletiam a um só tempo a opção por adaptar-se
àquela situação caracterizada pela fatalidade e o cuidado de assegurar
ao Brasil situação privilegiada nas relações de poder no Cone Sul.
Essas teses, que subjazem ao modelo geopolítico adotado na região,
seriam materializadas nas políticas: (a) do satélite privilegiado
198
,
segundo a qual os EUA deveriam reconhecer o destino manifesto do
Brasil na América do Sul, dadas suas condições superiores em relação
às da Argentina, baseadas em “sua economia não competitiva com a
dos EUA, pela tradicional amizade com aquele país e pelos recursos
de que dispõe para uma troca leal”
199
; (b) das fronteiras ideológicas
200
,
que se inseriam no âmbito da estratégia global da luta contra o
comunismo; (c) do cerco
201
, que previa a incorporação de áreas
estratégicas, imprescindíveis para a segurança do regime político e do
sistema social vigentes no Brasil, bem como para garantir seu futuro de
196
Schilling, op. cit., p. 22.
197
SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional: o Poder Executivo &
Geopolítica do Brasil. 3ª.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981. p.52.
198
Schilling, op. cit., p. 22.
199
SILVA, Golbery do Couto e, 1981, op. cit. p. 51.
200
Schilling, op. cit., pp. 23, 196, 197 e 257.
201
Idem, p.147.
ELIANA ZUGAIB
102
grande potência e (d) das fronteiras vivas
202
, cuja sustentação
estratégica eram o rápido aumento demográfico e o acelerado
desenvolvimento econômico dos espaços vazios do hinterland
brasileiro, para evitar que caíssem sob o domínio estrangeiro
203
.
Temores de penetração sub-reptícia de estrangeiros através das
fronteiras em áreas remotas levavam as doutrinas geopolíticas a
enfatizarem a integridade territorial, a fomentarem programas de
segurança nacional e a se oporem aos objetivos de desenvolvimento
dos países vizinhos
204
, procurando atraí-los para a esfera de sua
influência política e econômica
205
.
A estratégia de Travassos, que orientaria seus seguidores até a
década de 80, tinha como diretriz bloquear a penetração no Rio da
Prata, com vistas a “neutralizar as influências platinas”
206
. Destinava-se a
alterar de forma radical a organização espacial do Cone Sul, mediante a
contenção da agressiva política argentina de domínio do interior da Bacia.
Para atingir esse objetivo, não bastaria apenas abrir os eixos transversais,
que dariam origem ao “novo determinismo geopolítico transversal”. Essa
estratégia impunha o direcionamento ao Atlântico brasileiro e a saída
pelos rios amazônicos
207
, em detrimento do eixo natural e histórico Norte-
Sul e conseqüentemente dos portos de Buenos Aires e de Montevidéu.
Era necessário também neutralizar as vantagens comparativas
do transporte fluvial, o que levaria ao bloqueio de projetos para o
melhoramento das condições de navegação do rio Paraguai e à
construção da represa de Itaipu, sem eclusas, quase na fronteira com a
Argentina
208
. Portanto, nas décadas de 60 e de 70, fazia também parte
202
Idem, p.260.
203
Ibidem.
204
Caviedes, op. cit., p. 13.
205
Schilling, op. cit., p. 147.
206
Ver em TRAVASSOS, Mário. Projeção Internacional do Brasil. 2ª. ed. São Paulo:
Nacional, 1935. pp.121-126 e 158-159; e em Boscovich, 1983, op. cit., p. 97.
207
Boscovich, 1983, op. cit., p. 97.
208
Boscovich, 1999, op. cit. p. 28.
103
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
da estratégia perseguir um ritmo de desenvolvimento muito superior ao
do país vizinho e colocar obstáculos ao seu processo de
desenvolvimento
209
.
As doutrinas geopolíticas brasileiras, sobretudo as preconizadas
pelo General Golbery do Couto e Silva, tinham também como premissa
a tese de Federico Ratzel
210
de que “o espaço é poder” e, portanto,
fundamentavam-se na valorização do território nacional, tendo como
objetivo sua integração total, quando aplicada internamente, e sua
projeção sobre os espaços circunvizinhos, quando aplicada
externamente. Um dos “objetivos nacionais permanentes”, que
inspiravam a ação política do Brasil, preconizados por Golbery, era
justamente a “manutenção do status quo territorial na América do Sul,
contra qualquer tendência revisionista ou a formação de blocos
regionais, políticos ou simplesmente econômicos, que possam constituir
uma ameaça para a própria paz do continente (...)”
211
. Em
contraposição, circunstâncias políticas internas não permitiram que a
Argentina elaborasse teses de concepção espacial unitária, havendo
aquele país desenvolvido política fronteiriça marcada por diferenda,
rivalidades e disputas de limites e de jurisdição com o Chile, o Brasil, a
Bolívia e o Uruguai, respectivamente
212
.
As pretensões do Brasil, na realidade, extrapolavam os limites
do status de poder regional, com as necessidades de crescimento que
impunham. A meta era atingir o patamar de grande potência, de acordo
com o destino que julgava manifesto em suas dimensões territoriais,
demográficas, econômicas e geopolíticas, o que levaria o Governo do
General Artur da Costa e Silva (1967-1969) a romper com as doutrinas
209
Dois exemplos claros dessa estratégia foram os acordos firmados pelo Brasil, com a
Bolívia, para a exploração das jazidas de ferro de Mutún e, com o Paraguai, para a
geração de energia no rio Paraná, insumos dos quais dependia o futuro da Argentina
como potência industrial. Ver em Schilling, op. cit. p. 149.
210
Quagliotti de Bellis, 1990, op. cit., p.134, em menção a Ratzel.
211
Boscovich, 1999, op. cit., p. 51.
212
Quagliotti de Bellis, 1990, op. cit., pp. 133 e 134.
ELIANA ZUGAIB
104
da interdependência, segurança coletiva e fronteiras ideológicas,
corolários da aliança com os EUA, restaurando o “interesse nacional
como fundamento permanente de uma política externa soberana”
213
.
O modelo brasileiro impunha-se, ganhando terreno facilitado
pelo comportamento argentino caracterizado pelo favorecimento de
setores dominantes em detrimento do interesse nacional; pela ausência
de planos que privilegiassem a participação das áreas interiores do
país na vida nacional; pela visão pouco clara sobre sua inserção no
âmbito regional e por política externa dissociada da consecução dos
interesses nacionais
214
.
4. O P
ROCESSO DA BACIA DO PRATA
215
4.1. O SURGIMENTO DA ALIANÇA INTEGRADORA: COOPERAÇÃO E CONFLITO
NA
BACIA DO PRATA
A Bacia do Prata foi historicamente espaço nevrálgico de
rivalidade e confrontação e, ao mesmo tempo, de comunicação e união
entre os países da região. A idéia de vincular esses países por meio de
esforço conjunto, visando a promover sua integração física e a organizar
213
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 410.
214
Dallanegra Pedraza, 1983, op. cit., pp. 51 e 52.
215
“O Processo da Bacia do Prata constitui, no que diz respeito a seu aspecto
institucional, sistema dinâmico e sui generis, de que participam diretamente os próprios
Governos, através de seus funcionários técnicos. Prevê esse processo, como sua mais
alta instância, as Reuniões de Chanceleres dos Países da Bacia do Prata, e, abaixo, o
Comitê Intergovernamental Coordenador (CIC), organismo de caráter permanente,
encarregado basicamente de executar tarefas encomendadas pela Reunião de Chanceleres.
Os Grupos de Peritos e Grupos de Trabalho propiciam ao CIC o indispensável
assessoramento técnico, consubstanciando-se, assim, um mecanismo ágil e objetivo
destinado a dar plena execução aos elevados propósitos do Tratado da Bacia do Prata.
Esses Grupos foram reformulados por ocasião da VII Reunião dos Chanceleres, realizada
em Cochabamba, em 1975, através da Resolução nr. 60, que procedeu ao agrupamento
das atividades do CIC em áreas básicas de trabalho”. BRASIL. Ministério das Relações
Exteriores, DAM-I. Informação sobre o Processo da Bacia do Prata, [S.d.], texto
mimeografado, p. 10.
105
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
o aproveitamento dos seus recursos naturais, nascera na Argentina,
sob o governo do Presidente Arturo Illia (1963-1966), que iniciou
consultas nesse sentido em 1965. Um ano depois, em 2 de junho de
1966, pouco antes de sua queda, formalizara convite ao Brasil, Uruguai,
Paraguai e Bolívia para a I Reunião Ordinária de Chanceleres, que
seria realizada em fevereiro de 1967, em Buenos Aires
216
.
A particularidade de a Argentina ser um país de águas abaixo,
o que a colocava em posição de desvantagem em relação ao Brasil,
motivou o governo Illia a dar esse primeiro impulso em busca de
entendimento no âmbito da Bacia, com o intuito de desenvolver projetos
conjuntos e evitar que a realização de obras águas acima viesse a causar
danos no curso de seus rios que cabia à Argentina. Com efeito, a
iniciativa do governo Illia, que não havia conseguido alcançar acordos
que permitissem concertar estratégia comum sobre o aproveitamento
energético dos rios, configurava tentativa de “multilateralizar”
217
diálogo
que não havia prosperado desde a queda do Presidente Arturo Frondizi.
No entanto, com a ascensão de Juan Carlos Ongania (1966-1970) ao
poder, o projeto da Bacia do Prata, que havia sido concebido como
instrumento de cooperação sub-regional, adquiria conotação distinta e
passaria a ser utilizado para mediar a rivalidade com o Brasil
218
.
Segundo a percepção dominante no governo do general
Ongania, a Bacia e o aproveitamento hidrelétrico de seus rios constituíam
instrumento de poder e de influência geopolítica. A política externa de
Ongania, que assinaria o Tratado da Bacia do Prata, iria pautar-se
pela perspectiva de reconstruir o Vice-Reinado do Rio da Prata, sob a
modalidade das fronteiras ideológicas. O que estava em jogo, portanto,
não era o desenvolvimento de uma política de cooperação, mas o da
tradicional disputa geopolítica argentino-brasileira
219
. Subjazia a essa
216
Ver em Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 411.
217
Lanús, op. cit., p. 298.
218
Idem. pp. 298 e 299.
219
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 412; Lanús, op. cit., pp. 298 e 299.
ELIANA ZUGAIB
106
política a ambição argentina de estabelecer sua preponderância sobre
o Paraguai e a Bolívia, considerados o heartland do Cone Sul, para
alcançar o status de potência latino-americana, estratégia que justificaria
a política argentina de privilegiar a realização de projetos com aqueles
países e com o Uruguai.
A preocupação com a guerra anti-subversiva explicaria, por
sua vez, a decisão de centralizar o vínculo do país com seus vizinhos,
especialmente o Paraguai, na infra-estrutura viária, favorecendo, no
entanto, apenas as ligações Norte-Sul, por considerar as Leste-Oeste
contrárias aos interesses geopolíticos argentinos. Esses interesses
pressupunham o escoamento de toda a produção, inclusive as do
heartland, pelo porto de Buenos Aires. Adotaria ainda Ongania modelo
de “integração para dentro”
220
, que priorizava projetos exeqüíveis
dentro do território nacional, opondo-se à integração energética da
Argentina na Bacia do Prata, por depender de entendimento com os
vizinhos. Essa conduta viria a ser criticada na década de 80, por ser
percebida como uma das principais causas do atraso argentino que
levara o país à paralisia nessa área
221
.
O espírito de competição que marcara a gênese do processo
da Bacia do Prata aflora com limpidez, também do lado brasileiro, no
registro que faz o Embaixador Pio Corrêa das memórias de sua
participação na II Reunião de Chanceleres da Bacia do Prata, ocasião
em que se fez aprovar, por unanimidade, proposta de sua autoria para
que se reconhecesse ao Rio Grande a condição de “porto de
importância relevante para a Bacia do Prata”
222
, embora estivesse
situado na bacia da Lagoa Mirim. Via ele, com orgulho, naquela
resolução, a consagração de sua tese sobre o papel futuro desse porto
como alternativa ao de Buenos Aires para o escoamento da produção
das províncias da mesopotâmia argentina. Mais adiante, confessava
220
Ibidem; Idem. pp. 299 e 305-307
221
Lanús, op. cit., pp.300-305.
222
Pio Corrêa, op. cit., p.1032.
107
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
abertamente haver insistido junto ao Ministério da Marinha para obter
autorização para que a Flotilha Fluvial brasileira, baseada em Ladário,
visitasse o porto argentino de Corrientes, com o objetivo de “enfatizar
a presença militar do Brasil nas águas do Rio Paraguai, no momento
em que eram lançadas as bases do que seria uma estrutura orgânica de
colaboração entre os países da Bacia do Prata”
223
.
Embora o Brasil suspeitasse de que a iniciativa argentina era
pretexto para atrelar o país a compromissos que pudessem deter seu
desenvolvimento nacional, não a pôde ignorar, uma vez que a ela já haviam
aderido os dois países menores e fazia parte de seus interesses favorecer o
aperfeiçoamento da infra-estrutura de transportes e comunicações da região.
Isso porque, na visão de longo prazo, pavimentaria o caminho para futura
integração econômica, ao estarem incluídas na área de influência do projeto
as zonas produtivas mais importantes e dinâmicas da América do Sul, em
extensão contínua de Buenos Aires a São Paulo, cujos mercados já
mantinham tradicional e intenso intercâmbio
224
. Essas divergências de
propósitos e interesses não impediriam, no entanto, que a criação e o
estatuto do Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia
do Prata (CIC) fossem aprovados já na II Reunião dos Chanceleres, em
Santa Cruz de la Sierra (1968), e o Tratado da Bacia do Prata por eles
assinado quando de sua terceira reunião, em Brasília (23 de abril de 1969).
Essas duas iniciativas de institucionalização do Processo da Bacia do Prata
“balizariam o caminho que levaria um dia ao Acordo que cimentou a união
dos países da Bacia do Prata em um sistema de integração econômica
justaposto ao Mercosul”
225
.
Antes disso, foi extensa a controvérsia suscitada na órbita do
Tratado da Bacia do Prata em torno de vários pontos essenciais (o
pleito das represas do alto Paraná, a exploração das jazidas de ferro
de Mutún, a atração dos portos atlânticos brasileiros) que, durante
223
Ver em Pio Corrêa, op. cit., pp. 1032, 1045, 1054 e 1055.
224
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 411.
225
Pio Corrêa, op. cit., p. 1030.
ELIANA ZUGAIB
108
mais de uma década, paralisaram a tarefa de cooperação multilateral,
consagrada no Tratado da Bacia do Prata, ademais de provocar
desconfiança e confrontação diplomática
226
.
4.2. D
UELO ENTRE A DESEMBOCADURA E A NASCENTE
227
Começaria a reinar, desde o início, no seio da aliança
integracionista proposta por Arturo Illia, desacordo básico
relacionado com a natureza das rivalidades regionais dos países que
a compõem.
Ao lado das reiteradas declarações favoráveis ao
desenvolvimento conjunto da Bacia do Prata
228
, a Argentina vinha-
se preocupando com a questão da regulamentação dos usos dos rios
internacionais e lideraria agora desacordo nessa matéria, ao lançar,
já na II Reunião de Chanceleres dos Países da Bacia do Prata, a tese
de seu aproveitamento multinacional. De acordo com essa tese,
nenhum país possuidor das nascentes da Bacia poderia, em matéria
226
Quagliotti de Bellis, 1990, op. cit., pp. 137-144. O projeto de exploração de El
Mutún, com a conseqüente criação de pólo de desenvolvimento, era de interesse brasileiro
e argentino. Juntamente com Urucum, transformaria a área de influência boliviana de
Santa Cruz de la Sierra em entroncamento econômico e geopolítico vital de toda a
América do Sul. Mário Travassos determinava o triângulo formado em território boliviano
pelas cidades de Cochabamba/Sucre/Santa Cruz de la Sierra como o espaço econômico
que, sob influência brasileira, neutralizaria geopoliticamente a Bacia do Prata, mais
precisamente, o desenvolvimento siderúrgico da Argentina.
227
Expressão utilizada por Therezinha de Castro para referir-se às diferenças dos
princípios geopolíticos integracionistas adotados pelo Brasil e pela Argentina, em função
de sua presença e localização no âmbito da Bacia do Prata. Essa presença e localização
destacavam-se em dois pontos fortes: São Paulo, no planalto, e Buenos Aires, na
planície. Os dois maiores centros econômicos e demográficos da América do Sul, que
refletiam, em última análise, o que chamou de duelo entre a nascente e a desembocadura.
Ver em, Castro, 1983, op. cit., p. 139.
228
O interesse dos países da Bacia do Prata pelo seu estudo e aproveitamento vinha de
longa data. Desde o princípio do século expressou-se a vontade de conceber projetos de
forma conjunta e de favorecer programas nacionais de benefício regional. Várias reuniões
latino-americanas ocuparam-se do assunto, valendo destacar a Conferência Regional
dos Países do Prata, realizada em Montevidéu, em 1941.
109
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
de aproveitamento hídrico, adotar medidas que afetassem direta ou
indiretamente os demais ribeirinhos. Dessa maneira, declarava a
Argentina que o Brasil, possuidor das nascentes dos rios platinos,
deveria, antes de qualquer empreendimento, consultar todas as nações
integrantes do curso médio e inferior daqueles rios
229
. Essa
preocupação tornou-se mais aguda ante o vigoroso programa de
aproveitamento hidrelétrico levado a cabo pelo Brasil na bacia do
alto Paraná. O motivo alegado da apreensão argentina era a
repercussão das obras brasileiras sobre o regime das águas daquele
rio no seu trecho inferior, o que poderia influir nas condições de
navegabilidade. A real motivação, entretanto, residiria no receio de
que a potência energética de que poderia dispor o Brasil nas regiões
sul e centro-sul, aliada a outros fatores, como a população, faria
pender irreversivelmente a seu favor o equilíbrio estratégico, político
e econômico da região do Prata
230
.
Ao propor a aliança de integração da Bacia do Prata, a Argentina
esperava que a institucionalização de foro multilateral, com atribuição
para examinar a viabilidade de estudos e planejamentos conjuntos da
região, viesse a favorecer a consagração do princípio da consulta prévia.
Sua estratégia política era atrelar o Brasil a sistemática que, vinculando-
o a processo de decisão supranacional, tolheria, em última análise, sua
autonomia para desenvolver projetos nacionais
231
. O Brasil, por sua vez,
não desejava contrair obrigações que o constrangessem ou restringissem
sua liberdade de executar projetos isolados, dentro de suas fronteiras,
ou realizar empreendimentos bilaterais, como vinha fazendo com o
Uruguai, na bacia da Lagoa Mirim, e, com o Paraguai, para a exploração
do potencial hidráulico de Sete Quedas
232
. Assim é que, diante do
229
Castro, 1983, op. cit., p. 138.
230
Ver em BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Informação da DAM-I, A
questão do aproveitamento dos rios internacionais na Bacia do Prata, [S.d.], texto
mimeografado, p. 1.
231
Idem, p. 3.
232
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., pp. 411 e 412.
ELIANA ZUGAIB
110
convite da Argentina aos chanceleres da Bacia do Prata para um
encontro em Buenos Aires com vistas à formação do agrupamento
sub-regional, o Brasil e o Paraguai apressaram seus planos de
aproveitamento compartilhado do rio Paraná, desde Salto Grande de
Sete Quedas até a foz do rio Iguaçu, consagrando-os na Ata de Iguaçu,
assinada por seus chanceleres em junho de 1966. Com isso, chegariam
à I Reunião de Chanceleres dos Países da Bacia do Prata, com esse
fato consumado
233
. No momento em que se pensava no Tratado da
Bacia do Prata, o Brasil construía, portanto, a Usina de Urubupungá e
negociava o contrato de Itaipu.
A partir de então, o Brasil perseguiria, com êxito, ao longo do
processo da Bacia do Prata, o objetivo de evitar a consagração das
teses argentinas sobre o uso dos rios internacionais, preocupado em
equacionar o problema da conceituação jurídica do aproveitamento
agrícola e industrial desses rios, de acordo com seus interesses
nacionais
234
.
233
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 133.
234
A VII Conferência Interamericana de Montevidéu, realizada em 1933, aprovou a
Declaração nr. 72, que passou a constituir norma positiva do Direito Internacional
Público Americano e cujo artigo 2º estipula que “nenhum país pode, sem o
consentimento do outro ribeirinho, introduzir nos cursos de águas de natureza
internacional, para o aproveitamento industrial ou agrícola de suas águas, alteração de
qualquer espécie que resulte prejudicial à margem do outro Estado interessado”. O
mesmo princípio aplica-se naquele documento aos rios de curso sucessivo. A evolução
pragmática do conceito daria origem à figura jurídica do “dano sensível”, invocada
pela Argentina com respeito às obras realizadas pelo Brasil no curso superior do rio
Paraná. Em 1962, por ocasião da sessão do Conselho da OEA para tratar do pleito
entre a Bolívia e o Chile relativo ao desvio por este último de uma parte importante
do rio Lauca, o jurista e representante brasileiro Ilmar Penna Marinho expressou que
a questão merecia a atenção dos países americanos também pela circunstância de que
o aproveitamento das águas de um rio contíguo ou sucessivo podia envolver a
transgressão da Declaração nr. 72. Propôs, então, a realização de uma Conferência
Interamericana Especializada para legislar sobre a matéria à luz do desenvolvimento
tecnológico e das necessidades econômicas dos países empenhados no aproveitamento
das águas dos rios internacionais sucessivos. A conferência não se realizaria uma vez
que, com a Revolução de 1964, o novo governo instalado adotou posição contrária
sobre a matéria. Ver em Boscovich, 1983, op.cit., pp. 90-93 e em Sánchez-Gijón, op.
cit., pp. 130 e 139.
111
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
4.2.1. APROVEITAMENTO DOS RIOS INTERNACIONAIS: CONSULTA PRÉVIA
VERSUS
ACORDO BILATERAL
Para resolver o impasse argentino-brasileiro da consulta
prévia versus acordo bilateral, cujo debate já se havia iniciado
no âmbito do Grupo de Peritos do Recurso Água, celebrou-se
a IV Reunião de Chanceleres dos Países da Bacia do Prata, em
1971, na capital paraguaia, ocasião em que se adotou a
Declaração de Assunção que, de forma clara, precisa e objetiva
consagrou, na Resolução nr. 25, os dois princípios cardeais que
passariam a reger a questão do aproveitamento de rios
internacionais na região:
(a) Nos rios internacionais contíguos, sendo a soberania
compartilhada, qualquer aproveitamento de suas águas deverá
ser precedido de um acordo bilateral entre os ribeirinhos; (b)
Nos rios internacionais de curso sucessivo, não sendo a
soberania compartilhada, cada Estado pode aproveitar as
águas em razão de suas necessidades sempre que não cause
prejuízo sensível a outro Estado da Bacia
235
.
Ao reconhecer a Argentina aquela distinção jurídica, ficava
legalmente excluído do contexto da Bacia do Prata o princípio da
consulta prévia no que se refere aos rios de curso sucessivo. Com
efeito, o referido instrumento apenas condicionou o aproveitamento
desse tipo de rio ao princípio da responsabilidade de não causar danos,
obrigação que se estendia aos Estados ribeirinhos superiores e
inferiores. Introduzia-se, ao mesmo tempo, conceito totalmente novo,
no que diz respeito aos rios internacionais contíguos, o da soberania
235
Declaração de Assunção sobre o Aproveitamento de Rios Internacionais. Resolução
nr. 25, assinada por ocasião da IV Reunião Ordinária de Chanceleres dos Países da Bacia
do Prata, em 03 de junho de 1971.
ELIANA ZUGAIB
112
compartilhada, que também atendia aos interesses do Brasil
236
, ao
bilateralizar o sistema de relações dentro da região
237
.
Se, por um lado, a inclusão do conceito de dano sensível na
Declaração de Assunção representava êxito, ainda que limitado, da
diplomacia argentina, por outro, a aceitação dos termos daquele
instrumento jurídico era avaliada nos meios diplomático e geopolítico
argentinos como desastrosa. A Resolução nr. 25 foi interpretada pelo
ex-embaixador Hugo Gobbi como “o eixo da política brasileira e o
único instrumento a justificar seus movimentos táticos na área”
238
. A
opção pelo conceito de soberania compartilhada em lugar de recursos
compartilhados era percebida como injustificada e danosa aos interesses
argentinos na região, ao mesmo tempo em que a expressão “prejuízos
sensíveis” apresentava debilidades por constituir figura qualitativa e
quantitativamente difícil de precisar. Entendia-se, em última análise, que
a referida Resolução deixava sem proteção os rios de curso sucessivo
e minava o espírito e a letra do Tratado da Bacia do Prata, acordo em
sua essência multinacional, animado por clima de cooperação e
solidariedade
239
.
O Brasil, ao contrário, passava a considerar a Declaração de
Assunção como uma das pedras angulares sobre a qual repousava o
esquema cooperativo na Bacia do Prata, por constituir o dispositivo
jurídico que regulamentava a matéria e pelo fato de haverem os seus
princípios orientado os dois atos internacionais relativos aos
aproveitamentos hidrelétricos binacionais mais importantes na região.
À Declaração referiam-se expressamente o Tratado de Itaipu (abril de
1973), assinado entre o Brasil e o Paraguai, e o Tratado de Yaciretá
(dezembro de 1973), concluído entre a Argentina e o Paraguai
240
.
236
Lanús, op. cit., p. 300.
237
Dallanegra Pedraza, 1983, op.cit., p. 83.
238
Boscovich, 1983, op. cit., p. 92.
239
Idem. pp. 92 e 94.
240
Pronunciamento do Chefe do Departamento das Américas na Câmara dos Deputados,
Ministério das Relações Exteriores, DAM-I, texto mimeografado. Brasília, 1975, p. 5.
113
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
Na seqüência cronológica e linear do processo da Bacia do Prata,
surgiria outro documento de real transcendência, a Resolução de Jupiá
sobre enchimento e operação de represas, aprovada por ocasião da III
Reunião do Grupo de Peritos do Recurso Água, realizada, em Brasília, em
novembro de 1972, e endossada pela V Reunião de Chanceleres, celebrada
em Punta del Este, em dezembro do mesmo ano. Recomendava-se
(...) aos Estados que executem aproveitamento hidrelétrico nas
águas de rios internacionais de curso sucessivo, nos trechos
submetidos a sua jurisdição, que, a respeito dos programas de
operação e enchimento das represas de obras dessa natureza,
sigam práticas análogas à que foi cumprida no caso da represa
de Jupiá, para o público conhecimento de dados técnicos relativos
a ditos programas”
241
.
À luz da Declaração de Assunção e da Resolução de Jupiá, o
Governo brasileiro dava por encerrada a discussão, naquele foro, do
tema relativo ao aproveitamento dos recursos hídricos internacionais
na Bacia do Prata, uma vez que estabeleciam a fundamentação jurídica
da posição brasileira no assunto.
Nessas condições, sentindo que lhe estavam vedados, no
âmbito da Bacia do Prata, os caminhos para a consagração de suas
teses de aproveitamento de recursos naturais, a Argentina,
inconformada, passou a investir em outros foros a fim de obter apoio
internacional, com o objetivo precípuo de “frear” a construção de Itaipu,
cujo projeto já estava latente desde a Declaração de Uruguaiana
242
,
241
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Informação da DAM-I, [ S.d.], op.
cit., p. 4.
242
A Declaração de Uruguaiana sobre questões de política regional e internacional
assinada pelos Presidentes Frondizi e Jânio Quadros, em 22 de abril de 1961, contemplou
o método da consulta prévia. Ademais, os presidentes abordaram o tema do
aproveitamento do Salto de Sete Quedas, que logo se transformaria em Itaipu. Jânio
Quadros propôs que esse aproveitamento energético se realizasse de forma conjunta
ELIANA ZUGAIB
114
recorrendo para isso ao Direito Internacional, tática que ficou conhecida
como a batalha dos princípios jurídicos ou a guerra dos papéis
243
.
4.2.2. A
DIPLOMACIA DAS PALAVRAS VERSUS A DIPLOMACIA DOS FATOS:
CONSULTA PRÉVIA VERSUS INFORMAÇÃO PRÉVIA
Em junho de 1972, a delegação argentina à Conferência do
Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, faria a primeira tentativa
de recuperar o terreno perdido em Assunção. No entanto, diante
do impasse causado pela firme oposição do Brasil à consagração
do princípio da consulta prévia, o problema seria transferido para a
Assembléia-Geral da ONU, que adotou a Resolução 2995
(XXVII). Essa Resolução consubstanciava o Acordo de Nova
Iorque (29/09/1972), assinado pelos chanceleres Gibson Barbosa
e Eduardo Mc Loughlin, que haviam chegado a fórmula
“aparentemente transacional”
244
. O Brasil admitia que “na
exploração e desenvolvimento de recursos naturais os Estados não
devem causar efeitos prejudiciais em zonas situadas fora de sua
jurisdição nacional” e comprometiam-se as partes a dar
“conhecimento oficial e público dos dados técnicos relativos aos
trabalhos a serem empreendidos pelos Estados dentro de sua
jurisdição nacional”
245
.
O entendimento alcançado, uma vez mais, ficara muito aquém
das expectativas argentinas. O Brasil não se comprometera com a
consulta prévia, figura que pressupunha o efeito suspensivo, como
por ambos países. Por decreto de 6 de junho de 1961, o presidente brasileiro criou
Grupo de Trabalho, em Brasília, com instruções expressas de convidar grupo técnico
argentino para colaborar com dados topográficos e hidrográficos. Com a queda dos dois
governos, um ano depois de Uruguaiana, esses planos foram interrompidos, cedendo
lugar à “saga hidrelétrica”. Ver em Lanús, op. cit., pp. 294-296 e 299.
243
Lanús, op. cit., pp. 301 e 305.
244
Schilling, op. cit., p.139.
245
Ibidem.
115
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
queria a Argentina, mas apenas a informá-la, o que equivalia, em última
análise, a mantê-la alijada de qualquer decisão, já que o Acordo de
Nova Iorque não estabelecia quem deveria decidir sobre os eventuais
efeitos prejudiciais. Ademais, o próprio documento assinado deixava
claro que a informação não facultava a nenhum Estado “retardar ou
impedir os programas e projetos de aproveitamento (...)”
246
.
O ambiente na Argentina, onde a esquerda peronista dominara
o governo Cámpora (maio a outubro de 1973), já era de hostilidade
ao Brasil
247
, e agravou-se por ocasião do enchimento da represa de
Ilha Solteira no rio Paraná, quando a atitude do Brasil foi interpretada
pela parte argentina como demonstração de falta de vontade de
facilitar a informação a respeito, em tempo hábil. Embora o Acordo
pudesse haver resistido às críticas que suscitou, não sobreviveu ao
episódio de Ilha Solteira, conhecido como “traje de banho”
248
, que
precipitou sua denúncia, em 10 de julho de 1973, pelo Chanceler
Juan Carlos Puig, cuja atuação já se fazia em nome de um governo
peronista
249
.
Nem a denúncia, contudo, do Acordo de Nova Iorque, nem
mesmo o complexo mecanismo da Bacia do Prata, com seus comitês
e grupos de trabalho, haviam servido à Argentina para ganhar tempo e
recuperar seu atraso no aproveitamento dos rios internacionais,
sobretudo o do alto Paraná. O anúncio de Ilha Solteira não viria sozinho.
O Brasil não se demoveu de sua determinação de dar curso à preparação
de seus projetos. O mais importante deles, Itaipu, seria formalizado
em 26 de abril de 1973 e, já em maio, com a aprovação de seu tratado
246
Ibidem.
247
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 420.
248
O Ministro Plenipotenciário Expedito Freitas Resende, encarregado das questões do
Prata no Itamaraty, encontrando-se em traje de banho numa piscina de natação, informou o
embaixador argentino no Brasil, José Maria Alvarez de Toledo, que o Brasil procederia ao
enchimento da represa de Ilha Solteira. O fato causou grande mal-estar ao governo de
Buenos Aires e o Brasil resistia a formalizar uma “informação” que a Argentina julgava
indispensável. Ver em Lanús, op. cit., p. 301 e 302 e em Sánchez-Gijón, op. cit., p. 140-141.
249
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 141.
ELIANA ZUGAIB
116
constitutivo, por Decreto Legislativo, era dado início ao cronograma
de execução de suas obras
250
. A assinatura desse Tratado encerrava
importante significado para os interesses geopolíticos dos “dois grandes”
na região. Itaipu era para o Brasil um projeto essencialmente político
e, na visão de muitos analistas, enquadrava-se na estratégia da Escola
Superior de Guerra para estabelecer a supremacia brasileira na região.
Ao optar por solução binacional em detrimento de outra multinacional,
como pretendia a Argentina, o Paraguai abandonaria, pela primeira
vez, desde a paz imposta pela Tríplice Aliança em 1870, sua posição
pendular em relação aos dois atores principais do jogo geopolítico na
Bacia. Com efeito, o Paraguai “optava pelo Brasil, incorporando-se
praticamente a ele”
251
.
Contrariamente ao esperado, ao substituir Cámpora na
presidência, Perón promoveu período de distensão no relacionamento
com o Brasil, ao abandonar a ótica centrada na disputa pelo poder e
na avaliação geopolítica anti-integracionista com que os governos
militares vinham tratando a questão do Prata e que havia levado o país
à paralisia. Convencido da ineficácia das batalhas jurídicas e por
entender que o “fundamental era o aproveitamento dos rios e não as
normas que o deveriam regulamentar”, Perón inaugurava uma nova
era em busca da recuperação do tempo perdido, durante a qual o país
deveria passar a expressar-se politicamente através de fatos e da
realização de obras, colocando fim à chamada diplomacia dos papéis
na Bacia do Prata
252
.
Não demoraria até que o interesse do Paraguai de
contrabalançar a aparência de que havia feito opção pelo Brasil, aliado
ao desejo dos peronistas de apresentar reação de fato à condução
da questão de Itaipu pelos governos anteriores, resultaria na
assinatura, em dezembro de 1973, do Tratado argentino-paraguaio
250
Lanús, op. cit., p. 302 e 305.
251
Schilling, op. cit., p. 140 e 146.
252
Ver em Moniz Bandeira, 2003, op. cit., pp. 420-421 e em Lanús, op. cit., p. 305.
117
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
para a construção de Yaciretá. Ao mesmo tempo, eram impulsionados
os projetos de Corpus e Salto Grande, até então estancados. Esses
três temas passariam a permear as relações dos dois países a partir
da VI Reunião Ordinária de Chanceleres. Destacou-se à época a
áspera questão da compatibilização de Itaipu e Corpus, assunto a
respeito do qual já se haviam cruzado considerações geopolíticas
antagônicas no momento mais tenso das rivalidades entre o Brasil e a
Argentina, com acentuada postura “não alinhada” da Argentina e o
alegado “ocidentalismo pró-norte-americano” do Brasil. Aquela
questão colocaria uma vez mais à prova o Tratado da Bacia do
Prata
253
.
A Argentina assinava, naquele mesmo ano, com o Uruguai, o
Tratado do Rio da Prata, que colocava fim ao litígio sobre seus limites
fluviais e seria, mais tarde, o pivô do questionamento do Tratado de
Paz, Amizade, Comércio e Navegação de 1856 e da Convenção
Fluvial, de 20 de novembro de 1857, pelo Governo do General Jorge
Rafael Videla, que inaugurou, em março de 1976, a restauração do
regime autoritário, conhecida como o Processo de Reorganização
Nacional. Em resposta à nota que recebera do Brasil solicitando
esclarecimentos sobre os efeitos do Tratado do Rio da Prata, o novo
governo questionou implicitamente a validade daqueles atos
internacionais celebrados no século XIX, que asseguravam a livre
navegação no Rio da Prata, ao assinalar que Buenos Aires não estava
integrada à Confederação Argentina, quando esta última os firmou com
o Império do Brasil. No início de 1977, o Brasil reagiu com firmeza à
atitude de Buenos Aires. Reclamou, por nota, pronunciamento a respeito
das incertezas levantadas acerca da livre navegação no Prata, cuja
garantia viria a ser dada em julho de 1977, quando da reabertura das
negociações para superar as divergências sobre a construção das
represas de Corpus e Itaipu. Concorreram para essa garantia, os sérios
problemas externos enfrentados pela Argentina, com a Grã-Bretanha,
253
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 143 e 144. Ver também em Lanús, op. cit., pp. 307-311.
ELIANA ZUGAIB
118
em torno das Ilhas Malvinas, e, com o Chile, por causa da disputa na
região do Canal de Beagle
254
.
Apesar dos esforços empreendidos no início da instauração
do Processo de Reorganização Nacional, o clima para o diálogo com
o Brasil não se restabeleceu e a ótica geopolítica para o encaminhamento
da cooperação na Bacia do Prata foi retomada por Videla
255
. Pretendia
ele impor política de equilíbrio na região, onde o Brasil já havia
incorporado a Bolívia, o Paraguai e o Uruguai ao seu hinterland
comercial e expandia-se na direção do Pacífico
256
. Com essa nova
orientação política, a obra de Yaciretá-Apipé não foi iniciada e as
atividades dos projetos de Garabi, San Pedro e Roncador, sobre o rio
Uruguai, considerados de maior interesse para o Brasil do que para a
Argentina, foram condicionadas a um acordo sobre Corpus, cuja cota
negociada, mais tarde, acabaria sendo inferior à inicialmente oferecida
pelo Brasil.
Assim, não só a alternância de poder na Argentina havia
impedido o país de recuperar o tempo perdido, conforme pretendeu
Perón, como o Brasil perseguia com determinação sua política de
fazer obras. A presença brasileira no alto Paraná já não mais se
limitava às obras de aproveitamento hidrelétrico. Estendia-se também
às novas conexões rodoviárias e ferroviárias desenvolvidas no sentido
Leste-Oeste que rompiam a natural geografia dos rios da Bacia, no
sentido Norte-Sul, e favoreciam a saída da produção do hinterland
em direção ao Atlântico, através dos superportos de Santos,
254
Ver em Moniz Bandeira, 2003, op. cit., pp. 430, 431, 434 e 435. Sobre o incidente
das incertezas levantadas pelo governo argentino acerca da livre navegação no Rio da
Prata, ver também a íntegra das notas trocadas entre os governos brasileiro e argentino,
em O Estado de São Paulo,, São Paulo, p. 11, 05 ago. 1977.
255
Ver em Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 430 e Sáenz Quesada, op.cit., pp. 656-
664.
256
Essa incorporação do hinterland pelo Brasil era feita por meio da assinatura de
acordos bilaterais de cooperação econômica para a exploração de recursos naturais e
execução de projetos fronteiriços e de integração física com a Bolívia, Chile, Equador,
Colômbia, Venezuela e Peru. Ver em Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 424.
119
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
Paranaguá e Rio Grande, tornando obsoletos os de Buenos Aires e
de Montevidéu
257
.
4.2.3. N
OVO DETERMINISMO GEOPOLÍTICO TRANSVERSAL: CORREDORES
DE
EXPORTAÇÃO
Embora a política dos corredores de exportação já fosse
aconselhada por Travassos desde 1931
258
, a integração econômica
que pressupunha só viria a se acentuar a partir de 1974. Às razões de
ordem geopolítica por ele invocadas de que, para fugir do poder
concêntrico de Buenos Aires na desembocadura do Prata, os países
mediterrâneos “gostariam de dispor de novos caminhos em direção ao
Atlântico”
259
, somar-se-iam as necessidades geradas pelo acelerado
desenvolvimento industrial brasileiro que demandava o incremento das
exportações, atribuindo ao comércio exterior papel estratégico. Assim,
o Plano Nacional de Desenvolvimento para o período 1972/74 passou
a considerar a implementação dos corredores de exportação como
canais de saída em massa entre as áreas produtoras e os pontos de
destino dos produtos.
Com o objetivo de neutralizar o atrativo dos eixos convergentes
de Buenos Aires e equilibrar seu exclusivo geocentrismo, considerou-se
necessário estabelecer outras saídas brasileiras de forma a eliminar o
isolamento do interior do Prata. Essa decisão deu origem aos
corredores de exportação, a partir dos anos 60, quando o Brasil adotou
a filosofia de que exportar era uma necessidade nacional. Parte da
política de integração brasileira, esse empenho foi maior na Bacia do
Prata devido a sua importância no Cone Sul como pólo geopolítico,
circundado por todo o Atlântico Sul. Não por coincidência, os primeiros
257
Dallanegra Pedraza, 1983, op. cit, p. 49.
258
Ver em Boscovich, 1983, op.cit., pp. 96, 97, 107-109; Castro, 1983, op. cit., pp.
146-156 e Sánchez-Gijón, op. cit., pp. 73, 74 e 77.
259
Castro, 1983, op. cit., p. 147.
ELIANA ZUGAIB
120
terminais de exportação encontravam-se na Bacia do Prata, ofereciam
facilidades mais adequadas e estavam localizados na confluência de
rodovias, ferrovias e vias fluviais. Além de servirem centros agrícolas e
os pólos industriais de Porto Alegre/Rio Grande, Curitiba/Paranaguá,
Rio de Janeiro/São Paulo/Santos, atraíam os centros do interior como
Corumbá/Campo Grande/Brasília/Goiânia
260
.
A abertura desses corredores, que competiam com o sistema
argentino de comunicações com o interior, facilitou muito também a
ligação entre o hinterland da Bacia do Prata e o litoral Atlântico,
induzindo a Bolívia, o Paraguai, o Uruguai e a própria Argentina, por
intermédio das Províncias de Entre Rios e Misiones, a escoar sua
produção pelo corte transversal da Bacia, sobretudo através dos portos
de Santos, Paranaguá e Rio Grande
261
. Esses portos, reaparelhados e
modernizados passaram a competir, vantajosamente, com o de Buenos
Aires. Além de estar mais distante da mesopotâmia, o porto argentino
apresentava profundidades inadequadas para a atracação de navios
de grande calado, exigindo constantes trabalhos de dragagem em
conseqüência do contínuo assoreamento causado pelo depósito de
grandes quantidades de massa aluvial depositada no estuário pelo
sistema Paraná-Paraguai, em contraste com as condições do porto de
Rio Grande, de águas profundas e obstáculos superáveis com dragagem
de pouca importância. A propósito de pareceres independentes nesse
sentido dados pelas empresas Nerdeco e Vianni Dragaggi, o
Embaixador Pio Corrêa deixa o seguinte registro de suas memórias:
Estava vindicada a minha afirmação de que Rio Grande poderia
e deveria, no futuro, substituir Buenos Aires para o escoamento das
exportações da rica Mesopotâmia Argentina (sic), bem como em
260
Ver em CASTRO, Therezinha de. El Cono Sur y la situación Internacional. In:
KELLY, Philip; CHILD, Jack (Comp.). Geopolítica del Cono Sur y la Antartida. Buenos
Aires: Editorial Pleamar, 1990. p. 91.
261
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 419 e 420.
121
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
parte as do Paraguai. A isso tendera meu esforço na Conferência de
Santa Cruz de la Sierra para fazer reconhecer Rio Grande como
‘porto de relevante importância para a Bacia do Prata’
262
.
Enquanto o Brasil conseguia promover mudança radical na
organização espacial do Cone Sul, a Argentina perdia o poder de pressão
sobre a Bolívia e o Paraguai. Era também afetada economicamente, uma
vez que os corredores de exportação reduziam a importância comercial e
política do porto de Buenos Aires, ao libertar, como previa Travassos, de
sua dependência e controle, aqueles “prisioneiros geopolíticos”
263
. O Brasil
fortalecia, assim, sua influência na Bacia do Prata, o que, para alguns autores,
significava restabelecer a hegemonia que ali mantivera até 1876, quando
se consolidou a vitória da Tríplice Aliança
264
. Com a expansão brasileira e
o retrocesso argentino, rompia-se o equilíbrio regional no Cone Sul.
4.2.4. A
RUPTURA DO EQUILÍBRIO DE PODER: EXPANSÃO BRASILEIRA E
RETROCESSO
ARGENTINO
A tensão geopolítica vivida entre os anos 30 e 70 pelos países da
Bacia do Prata havia girado em torno do conflito dos tráfegos alternativos
entre as direções Norte-Sul e Leste-Oeste, do aproveitamento dos recursos
energéticos da Bacia e da influência dos “dois grandes” sobre os três países
menores. Em meados dos anos 70, o Brasil podia considerar-se, de fato,
vencedor dos três diferenda. Havia consumado a política dos corredores
de exportação, que minava a utilidade dos canais tradicionais de comércio,
e concretizado Itaipu, que impedia a otimização do uso dos recursos da
Bacia e interrompia a navegabilidade, águas acima do Paraná, além de
haver conquistado, como sustentam alguns autores, “tutelagem mais ou
262
Pio Corrêa, op. cit., v.. 2, pp. 1054 e 1055.
263
A expressão “prisioneiros geopolíticos” foi cunhada por Golbery do Couto de Silva.
Ver em SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional: o Poder Executivo
& Geopolítica do Brasil. 3ª.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981. p. 55.
264
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 420.
ELIANA ZUGAIB
122
menos discreta sobre a Bolívia e o Paraguai”
265
. Assim, o Brasil, de forma
progressiva, transformava-se em “denominador” da Bacia
266
.
A Argentina, por sua vez, via-se diminuída em suas posições na
Bacia, por estar atrelada a tradicional padrão de comportamento
isolacionista em relação à região e a política externa pouco hábil
direcionada ao Paraguai, país detentor, em última instância, do poder
de decisão sobre o aproveitamento hidrelétrico do alto Paraná e sobre
o eixo de transporte e comunicação que predominaria na Bacia. Não
pôde, portanto, evitar, por um lado, a perda do controle do manejo do
eixo natural da Bacia, na direção Norte-Sul, submetendo sua economia
e sua geopolítica ao eixo Leste-Oeste, e, por outro, a desvantagem de
não haver desenvolvido política hídrica na região que se traduzisse na
realização efetiva de obras
267
.
Enquanto a Argentina concentrava-se na defesa de “princípios
jurídicos” para fazer prevalecer seus interesses geopolíticos na Bacia
do Prata, o Brasil avançava em sua política desenvolvimentista,
despendendo esforços em “fazer obras”
268
. Ao privilegiar o regime de
regulamentação da utilização dos rios em detrimento de seu
aproveitamento, a Argentina iria deparar-se, no início da década de
80, com preocupante situação de desvantagem em relação ao Brasil,
detentor de trinta e cinco obras hidrelétricas na Bacia do Prata, contra
uma única obra argentina, Salto Grande, iniciada no governo do general
Perón
269
. Com efeito, a expansão econômica do Brasil, cujo PIB desde
1968 começara a crescer com taxas de 9%, 10% e 11% ao ano,
contrastou com a relativa estagnação da Argentina, e acarretou
desequilíbrio de poder cada vez maior na América do Sul, verdadeira
265
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 92.
266
DALLANEGRA PEDRAZA, Luis. Prólogo. In: DALLANEGRA PEDRAZA, Luis
(Coord.). Los países del Atlántico Sur. Geopolítica de la Cuenca del Plata. Buenos
Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 8.
267
Ibidem.
268
Lanús, op.cit., p. 300.
269
Idem, p. 306.
123
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
essência da controvérsia entre os dois países em torno do projeto de
Itaipu
270
. Revertia-se radicalmente a posição de supremacia alcançada
pela Argentina entre as décadas de 20 e de 50. O PIB brasileiro que à
época áurea vivenciada pela Argentina representava apenas 0,9 do
argentino, o ultrapassaria em 3,8 vezes nos anos 80
271
.
A influência política e econômica conquistada pelo Brasil rompia
irreversivelmente o equilíbrio de poder na América do Sul, em seu
favor, permanecendo a Argentina sem condições de contrabalançá-la.
Esse fato era explicitamente reconhecido pelos EUA, que, em 1976,
elevaram ao nível de potência emergente o relacionamento com o
Brasil
272
. À época, a escalada dos problemas externos enfrentados
pela Argentina com o Reino Unido (Ilhas Malvinas) e com o Chile
(Canal de Beagle), bem como a percepção pelo Brasil do declínio do
vizinho, cuja importância internacional reduzia-se progressivamente,
concorreram para que se chegasse a um entendimento sobre Corpus.
A fragilidade em que se encontrava a Argentina explicaria sua aceitação
da cota de 105 m sobre o nível do mar, inferior aos 112,5 m que
haviam sido oferecidos pelo Chanceler Antônio Azeredo da Silveira,
na VI Reunião de Chanceleres. Em 19 de outubro de 1979, colocava-
se fim às divergências sobre o aproveitamento hidrelétrico do alto
Paraná, com a assinatura do Acordo Tripartite de Cooperação Técnico-
Operativa entre os Aproveitamentos de Itaipu e Corpus, celebrado
pelos governos do Brasil, da Argentina e do Paraguai
273
, a respeito do
qual assim se exprimiu Therezinha de Castro:
De esta manera, las relaciones Argentino-Brasileñas,
que se habían deteriorado en la década de 1960-70, fueron
suavizadas por el Acuerdo Cooperativo Itaipú-Corpus (...).
270
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 414.
271
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 80.
272
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 423.
273
Lanús, op.cit., pp. 309 e 311.
ELIANA ZUGAIB
124
Abarcando definiciones de cotas, sobre la base de
concesiones mútuas según el Acuerdo Itaipú-Corpus, promete
transformar el perfil geopolítico de la Región Platina
274
.
5. SUPERAÇÃO RELATIVA DO MODELO GEOPOLÍTICO: PRIMEIROS PASSOS
RUMO
À COOPERAÇÃO
Houve, ao longo do processo de institucionalização da Bacia
do Prata, até o final da década de 70, contradição sistemática entre os
fatos e o objetivo primordial do Tratado que o regulamenta, especificado
em seu artigo primeiro, que dispõe “promover o desenvolvimento
harmônico e a integração física da Bacia do Prata em suas áreas de
influência direta e ponderável”
275
. Os objetivos originais do Tratado
constitutivo desse sistema de integração não apenas caíram no
esquecimento, mas os países membros também orientaram suas políticas
de maneira totalmente alheia à possibilidade de atingi-los.
As razões da inércia em relação aos propósitos integradores
deviam-se à sua incompatibilidade com as premissas do modelo
geopolítico que permeou as relações dos países da região até o final
da década de 70. As determinantes externas desse modelo emanavam
da previsibilidade da bipolarização do poder mundial. Por sua vez, as
internas atrelavam-se a um passado histórico em que o Brasil e a
Argentina estiveram em constante estado de rivalidade no plano
regional, que pressupunha a atração dos países menores da Bacia a
suas respectivas áreas de influência.
A esses fatores, contrários a qualquer esforço de cooperação
que levasse ao desenvolvimento harmônico, somava-se o fato de a
maioria dos diferentes governos que se foram sucedendo nos países
da Bacia, sobretudo na Argentina, haverem adotado variedade de
274
Castro, 1983, op. cit., p. 144.
275
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Coleção de Atos Internacionais, no.633
– Tratado da Bacia do Prata. Rio de Janeiro, 1971. p.4.
125
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
posições que oscilaram do integracionismo ao anti-integracionismo.
Além disso, a exemplo do que ocorrera no período colonial, Brasil e
Argentina continuavam voltados essencialmente para outros continentes,
de costas para os países vizinhos, em busca de parcerias econômicas
e políticas além-mar, como o demonstrava a própria estrutura do
comércio exterior dos dois países. A falta de percepção conjunta sobre
as relações regionais e sua inserção internacional, aliada à instabilidade
dos regimes da maioria dos países da região, à exceção do Brasil,
provocava a descontinuidade de suas políticas externas, o que eliminava
as possibilidades de haver coerência ou coordenação entre seus
objetivos
276
.
Nessas condições, a institucionalização da Bacia do Prata
serviu, naquele período, mais como instrumento para solucionar
diferenda resultantes das posições adotadas pela Argentina e pelo Brasil
do que para promover os objetivos de integração sub-regional
consagrados em seu tratado constitutivo. Pode-se dizer que, até então,
se tratava de uma sub-região congregada por pacto cuja declaração
de forma era orientada pelo princípio integrador, mas, na prática,
marcado por geopolíticas divergentes.
A passagem do paradigma da confrontação para outro de
complementaridade foi possibilitada pelas transformações ocorridas,
a partir dos anos 80, no sistema internacional e na região, em particular,
nas relações entre o Brasil e a Argentina, “cujo salto conceitual
reconhece suas raízes mais imediatas nos tempos do Convênio de
Uruguaiana e alcança sua maturidade na negociação do Acordo
Tripartite de 1979”
277
. Esse salto conceitual caracterizou-se pela
superação da hipótese de conflito permanente como ponto de partida
das relações entre os dois vizinhos; pela inserção de suas relações
bilaterais no quadro mais amplo das relações internacionais e regionais;
276
Dallanegra Pedraza, 1984, op. cit., p. 84.
277
PEÑA, Félix. Momentos y Perspectivas. La Argentina en el mundo y en la América
Latina. Buenos Aires: Editorial de la Universidad Nacional de Tres de Febrero, 2003. p. 81.
ELIANA ZUGAIB
126
pela identificação de pontos de convergência, de longo prazo, em
percepções de desafios e possibilidades derivados da “leitura
compartilhada” da situação internacional e pela busca de soluções
conjuntas para problemas bilaterais concretos
278
.
Embora o Acordo Tripartite representasse ponto de inflexão
nas relações entre o Brasil e a Argentina, ao arrefecer a rivalidade e
eliminar a hipótese de conflito permanente como vetores de seu
relacionamento bilateral, a aproximação entre os dois países já vinha
sendo gestada por uma série de fatores. Um deles foi o
reconhecimento das disparidades de poder existentes a favor do
Brasil, que levou a diplomacia militar argentina à “adoção de um
pragmatismo exemplar que contou com o beneplácito da diplomacia
econômica”
279
. Desde o começo dos anos 70, o milagre econômico
do Brasil e o estancamento da Argentina contribuíram para o
desmantelamento progressivo do velho esquema geopolítico de
rivalidades, na medida em que os círculos militares e diplomáticos
argentinos passaram a adotar a tese de que a disputa contínua
colocaria a Argentina em irremediável situação perdedora. A partir
dessa perspectiva, as variáveis de conflito foram relegadas a segundo
plano e as alternativas de cooperação com o Brasil priorizadas pelas
potencialidades que encerrava o entendimento bilateral para a
superação das dificuldades enfrentadas
280
. No caso do Brasil, que
havia optado por declarada política unilateral em relação à Argentina -
278
Ver em Peña, op.cit., pp. 81 e 82.
279
A abertura da economia argentina, promovida pelo presidente Videla, permitiu que o
Brasil aumentasse cada vez mais suas exportações de manufaturados para a Argentina
e pudesse competir com a Alemanha Ocidental, a Coréia do Sul e o Japão, devido à
proximidade geográfica, que reduzia o custo do frete. Em 1980, como reflexo da visita de
Figueiredo a Buenos Aires e do agravamento da crise que a elevação das taxas de juros
pelo Federal Reserve Board acarretou para o Continente, o Brasil consolidou-se, com
intervalo apenas em 1981, como segundo fornecedor da Argentina. Ver em Moniz
Bandeira, 2003, op. cit., pp. 437-443.
280
Ver em RUSSEL, Roberto. La Argentina: Diez años de políticas exteriores hacia el
Cono Sur y Brasil. In: KELLY, Philip; CHILD, Jack (Comp.). Geopolítica del Cono Sur
y la Antártida. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1990. p. 76.
127
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
que acabara criando conflito de alcance internacional com o embate
na ONU sobre a questão da consulta prévia - e bilateral com respeito
aos países menores, a integração da Bacia realizava-se em ritmo
crescente através de acordos bilaterais com o Paraguai, a Bolívia e o
Uruguai
281
.
Apesar do forte caráter anticomunista dos regimes militares, a
Argentina e o Brasil, em maior ou menor grau, aproximavam-se da
URSS, tendência que se acentuou a partir de meados da década de
70, a fim de ampliarem, internacionalmente, sua margem de autonomia
relativa, na medida em que suas relações econômicas e políticas com
os EUA se tornavam cada vez mais conflitantes
282
, sobretudo durante
a presidência de Jimmy Carter. Ao afrouxar o Brasil seus laços anteriores
com o sócio do Norte, estava em condições de ser novamente bem
recebido no redil latino-americano
283
, fato que abriu o caminho para o
restabelecimento da confiança, ainda que relativa, entre os dois países,
pressagiando uma nova era na geopolítica do Cone Sul.
Embora o primeiro impulso verdadeiramente integrador tenha
ocorrido nas presidências de Sarney e Alfonsin, o apoio do Brasil aos
direitos reivindicados pela Argentina sobre as ilhas Malvinas foi de
importância significativa para a reaproximação dos dois países, ainda
durante o governo Figueiredo. Por ironia, a Argentina conseguiria aliviar
as dificuldades decorrentes do embargo comercial e econômico que
lhe havia sido imposto pela CEE e pelos EUA, burlando-o dadas as
facilidades oferecidas pelo Brasil para que pudesse escoar parte de
sua produção agropecuária através dos portos de Santos, Paranaguá
e Rio Grande, “através dos mesmos corredores de exportação que,
nos anos 70, começaram a concorrer e a reduzir a importância
econômica e geopolítica de Buenos Aires”
284
.
281
Castro, 1983, op. cit., pp. 145 e 152.
282
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., p. 436.
283
Ver em Kelly e Child, 1990, op. cit., p. 5.
284
Moniz Bandeira, 2003, op. cit., pp. 449 e 450.
ELIANA ZUGAIB
128
A invasão das Malvinas não deixou, no entanto, de reavivar
velhos estereótipos sobre a imprevisibilidade e volatilidade da ação
externa argentina, que levaria o governo brasileiro a assumir posição
cautelosa e fundamentada de wait and see com respeito à concretização
de várias iniciativas de cooperação bilateral, tarefa que deveu também
aguardar o retorno da democracia
285
. Vários autores atribuem à
democratização quase simultânea do Brasil e da Argentina a coincidência
do ideal latino-americano dos presidentes Sarney e Alfonsin, na medida
em que lhes permitiu garantir a aplicação de suficiente capital político
necessário à concretização dos propósitos integradores. Não estavam,
no entanto, os protagonistas da passagem do estado de confrontação
ao de cooperação alheios às transformações ocorridas no sistema
internacional. Ao contrário, a “leitura compartilhada” daquela realidade
era condicionante da reaproximação brasileiro-argentina.
As bases de sustentação do modelo geopolítico de confrontação
começavam a ruir diante das vertiginosas transformações que ocorriam
paralelamente no sistema internacional, desde os anos 70, a partir da
revalorização do petróleo, que o chanceler Helmut Schmidt definiu
como “crise de redistribuição do poder”
286
. A década de 80 foi marcada
pela superação progressiva do conflito Leste-Oeste e pela fragmentação
do Terceiro Mundo. Com o fim da oposição ideológica global entre o
socialismo e o capitalismo, a ordem internacional deixava de ser
exclusivamente organizada em torno dos eixos Leste-Oeste e Norte-
Sul para entrar em fase de crescente competição econômica e
tecnológica
287
. Atenuava-se o bipolarismo, e a transição do mundo
285
Ver em Russell, op. cit. pp., 77, 80-81.
286
HELMUT SCHMIDT. The Strugle for the World Product. In: Foreign Affairs, v. 52
(3), abril 1974, pp. 437-451.
287
Ver em ALMEIDA, Paulo Roberto de. As duas últimas décadas do século XX: fim
do socialismo e retomada da globalização. In: SARAIVA, José Flavio Sombra (Org.).
Relações Internacionais. Dois séculos de história. Entre a ordem bipolar e o policentrismo
(de 1947 a nossos dias). Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI),
2001. pp. 91-174.
129
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
emergente de Yalta produzia nova configuração de poder entre as
superpotências, de difícil previsibilidade. O elemento diferencial nas
relações dos países desenvolvidos era a perda relativa do poder dos
EUA e a confrontação industrial, tecnológica e nuclear surgiam como
temas dominantes de suas relações
288
.
Se no campo político-diplomático predominavam o declínio
do socialismo e o surgimento da multipolaridade estratégica, no
econômico era inegável a tendência à globalização e à regionalização,
com a formação de espaços comuns de dimensões continentais, que
se transformavam em centros de poder. À internacionalização
produtiva, comercial e financeira decorrente da crescente
interdependência das economias contrapunham-se os processos de
diversificação do Sul, com o reforço dos blocos regionais e a
emergência da Ásia, por um lado, e a estagnação de grande parte da
América Latina, por outro. Deparavam-se, portanto, os países da sub-
região com o desafio de buscar modos de inserção em mundo
polarizado em macro centros de poder onde as “individualidades
nacionais” contavam com escassas possibilidades de sobreviver e menos
ainda de desenvolver-se adequadamente
289
.
No início dos anos 80, os problemas enfrentados pelos países
sul-americanos tinham suas raízes em causas intrínsecas ou em fatos
e situações que lhes escapavam ao controle e afetavam a todos
igualmente. Nessas condições, as disputas entre a Argentina e o Brasil
na região perderam qualquer sentido, até mesmo no plano retórico
290
.
A crise da dívida externa, o protecionismo comercial do mundo
industrializado e a necessidade de preservar a região do conflito Leste-
Oeste operariam como elementos aglutinantes dos países da região.
A partir dessa realidade e do advento dos preceitos democráticos, a
288
Peña, op. cit., pp. 57 e 58.
289
Ver em Boscovich, 1990, op.cit., p.31.
290
Ver em Hélio Jaguaribe. Novo Cenário Internacional. Rio de Janeiro: Editora
Guanabara, Rio de Janeiro, 1986. p. 177.
subordinação dos interesses regionais aos objetivos estratégicos do
conflito entre as superpotências cedia lugar à concertação de políticas
que permitissem regionalizar os problemas e soluções e impulsionar
o processo de integração. A existência palpável de problemas e
interesses comuns passaria a orientar as políticas externas dos dois
países, levando-os a assumir posições concertadas nos foros
multilaterais, aprofundando, assim, a tendência à reaproximação
bilateral iniciada em 1979
291
. No entanto, a crescente convergência
de paradigmas entre os dois países, fruto de inevitáveis adaptações à
própria dinâmica da economia internacional, não seria suficiente para
sepultar por completo a herança da vivência de seus caminhos
históricos e mentalidades próprias, que continuariam a permear suas
relações bilaterais até o presente, refletindo-se em desconfianças
veladas e diferenças de visões, que dificultam a negociação de políticas
e iniciativas conjuntas e a conformação de uma real “aliança
estratégica”
292
.
Não restam dúvidas de que a unidade regional dependeria, a
partir da abertura proporcionada pelo Acordo Tripartite, da
consolidação do entendimento entre o Brasil e a Argentina, que
começava a delinear-se no âmbito do Tratado da Bacia do Prata,
transformado durante anos em foro de mediação de suas controvérsias.
O desenvolvimento integrado da Bacia passaria, portanto, a constituir
autêntico desafio geopolítico e as bases para efetiva aliança regional
que viria sobrepor-se no futuro às desavenças do passado, ao levar os
países da área a unirem esforços para evitar dependência externa. A
proposta brasileira de revalorização da Hidrovia Paraguai-Paraná foi
o primeiro passo nessa direção, antecedendo a criação do próprio
Mercosul, sua expressão máxima.
291
Russell, op. cit., pp.81-83.
292
Ver em GONÇALVES, José Botafogo e LYRIO, Mauricio Carvalho. La Alianza
entre Brasil y Argentina. In: Archivos Del Presente, Buenos Aires, año 8, n. 31, p. 21,
2003.
ELIANA ZUGAIB
130
CAPÍTULO III
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP):
SITUAÇÃO GEOGRÁFICA, CARACTERÍSTICAS
DA
NAVEGAÇÃO E ZONAS DE INFLUÊNCIA
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP):
SITUAÇÃO GEOGRÁFICA, CARACTERÍSTICAS
DA
NAVEGAÇÃO E ZONAS DE INFLUÊNCIA
1. INSERÇÃO DA HPP NO ÂMBITO DA BACIA DO PRATA
A América do Sul conta com três importantes bacias
hidrográficas, a do Amazonas, a do Orinoco e a do Rio da Prata
(ANEXO - Figura 2), que, se conectadas, ofereceriam a possibilidade
de se navegarem 50.000 km de vias fluviais
293
. A união desses sistemas,
que hoje funcionam de forma isolada, é tema que chegou a despertar
planos ambiciosos sobre a integração física das três bacias, os quais,
entretanto, sempre se chocaram com dificuldades práticas, inclusive
de ordem econômica. Contudo, tais planos costumam ser valorizados
politicamente por líderes da região (como, por exemplo, o ex-Presidente
Belaunde Terry, do Peru, e o atual Presidente da Venezuela, Hugo
Chávez), na medida em que poderiam contribuir para incrementar o
espaço econômico regional e melhor aproveitar seus recursos e
vantagens comparativas. Gerariam esses sistemas os elementos
necessários a nossa inserção competitiva na economia mundial, uma
vez que o transporte aquático é considerado ideal para o intercâmbio
de grandes volumes de mercadorias não perecíveis, por suas vantagens
competitivas econômicas e ambientais.
293
CAF. Los Ríos nos unen. Integración Fluvial Suramericana. Santa Fe de Bogotá,
Colombia: Jorge Perea Borda, 1998. p. 28.
ELIANA ZUGAIB
134
A Bacia do Prata, amplo espaço geopolítico regional,
compreende superfície de 3.200.000 km², equivalente a
aproximadamente 18% da área total da América do Sul, e
superada em tamanho apenas pelos sistemas fluviais do Amazonas,
do Congo e do Mississipi
294
. Esse sistema fluvial é regido pelo
Tratado da Bacia do Prata, assinado por ocasião da I Reunião
Extraordinária de Chanceleres dos países que a integram
295
,
realizada em Brasília, em abril de 1969, cujo Artigo 1
o
dispõe:
“As Partes Contratantes convêm em conjugar esforços com o
objetivo de promover o desenvolvimento harmônico e a integração
física da Bacia do Prata e de suas áreas de influência direta e
ponderável”
296
.
Ao estender os efeitos do Tratado para além dos limites
geográficos compreendidos pela Bacia do Prata, de forma a
englobar as áreas de influência direta e ponderável, o Artigo 1
o
pressupõe a busca do aproveitamento e desenvolvimento sustentável
dos recursos naturais da região com base no conceito de espaço
econômico que prevalece sobre o de espaço geográfico e político.
A integração física far-se-á, no âmbito do Tratado, por meio de
obras de infra-estrutura que permitam a livre circulação de bens,
serviços e pessoas. Com esse objetivo, promovem-se “a
identificação de áreas de interesse comum e a realização de estudos,
programas e obras, bem como a formulação de entendimentos
294
CASTRO, Therezinha de. Brasil y la Cuenca del Plata. In: DALLANEGRA
PEDRAZA, Luis (Coord.).. Los Países del Atlántico Sur. Geopolítica de la Cuenca del
Plata. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 123.
295
Realizou-se em Buenos Aires, em 1967, por iniciativa do governo argentino, a I
Reunião de Chanceleres da Bacia do Prata, oportunidade, em que subscreveram Declaração
Conjunta, na qual consignaram a decisão de levar a cabo “estudo conjunto e integral da
Bacia do Prata, com vistas à realização de um programa de obras multinacionais, bilaterais
e nacionais de utilidade para o progresso da região”. Essa decisão viria a materializar-se
na assinatura do Tratado da Bacia do Prata, em Brasília, em abril de 1969, por ocasião
da I Reunião Extraordinária de Chanceleres.
296
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Coleção de Atos Internacionais, no.
633 – Tratado da Bacia do Prata. Rio de Janeiro, 1971. p.4.
135
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
operativos ou instrumentos jurídicos”
297
que contribuam para, inter
alia, facilitar e assistir os países em matéria de navegação e
aperfeiçoar as interconexões rodoviárias, ferroviárias, fluviais,
aéreas, elétricas e de telecomunicações. Portanto, não pareceria
descabido afirmar que preocupações dessa natureza, aliadas à de
consideração dos aspectos integrais da Bacia, conferem ao referido
Tratado caráter precursor do novo paradigma proposto para o
desenvolvimento da infra-estrutura física sul-americana.
Do ponto de vista de sua distribuição geográfica, estende-se a
Bacia do Prata de forma heterogênea pelos territórios da Argentina
(32,3%), Brasil (44,2%), Bolívia (6,4%), Paraguai (12,7%) e Uruguai
(4,4%)
298
(ANEXO – Tabela 1). No entanto, se vista sob a ótica do
artigo 1
o
do Tratado da Bacia do Prata, ou seja, a da “zona de influência
direta e ponderável”, essa distribuição adquire outra conotação. O
Brasil, que dispõe da maior área platina, é o que tem a menor
porcentagem de seu território total (17%) sob a influência da Bacia,
em comparação ao Paraguai, cujo território encontra-se nela contido
integralmente (100%); ao Uruguai (79,34%); à Argentina (37%) e à
Bolívia (18,5%)
299
.
O sistema platino (ANEXO – Figura 3), que forma em sua
desembocadura vasto estuário entre o Uruguai e o extremo oriental da
planície argentina, é constituído por três grandes eixos fluviais: os rios
Paraguai, Paraná e Uruguai, cujas nascentes encontram-se no planalto
297
Ibidem.
298
BOSCOVICH, Nicolás. Geoestrategia para la Integración Regional. Buenos Aires:
Ciudad Argentina, 1999. p. 46.
299
Castro, op. cit., p. 124. Ver também em FRAGA, Jorge Alberto. El Sistema del
Plata. Visión Geopolítica. In: Boletín del Centro Naval: . La Hidrovía Paraguay-Paraná.
Factor de Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n. 763-G-11, p. 77,
invierno 1991; BLOCH D. Roberto. Transporte Fluvial. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1999.
p. 45. No que diz respeito às populações afetas às áreas de influência da Bacia, de
acordo com Fraga, o desequilíbrio é ainda mais visível, ao corresponder a população
daquelas áreas a 54,6% de brasileiros; 36% de argentinos; 4,7% de uruguaios, 3,8% de
paraguaios e 0,9% de bolivianos.
ELIANA ZUGAIB
136
brasileiro
300
. A bacia hidrográfica do Paraná-Paraguai é a mais
importante do sistema do Prata, em termos de descarga (75%) e área
de drenagem (84%)
301
, e cobre extensa região de 2.605.000 km² no
Brasil, na Argentina, no Paraguai e na Bolívia. O rio Paraná, o maior
deles, drena 58% da Bacia do Prata, passando pelos territórios do
Brasil (59%), da Argentina (37,4%) e do Paraguai (3,6%). Enquanto
o rio Paraguai, seu tributário mais importante, banha o restante da Bacia,
atravessando áreas do Brasil (33.3%), do Paraguai (33,3%), da
Argentina (16,7%) e da Bolívia (16,7%)
302
. Esses rios estão divididos,
do ponto de vista da navegação comercial, em três seções distintas,
respectivamente, o alto, o médio e o baixo Paraná e o alto, o médio e
o baixo Paraguai.
Conformada pelos principais rios do sistema do Prata, a HPP
nasce no rio Paraguai, na localidade de Cáceres, situada no interior do
estado do Mato Grosso, inclui o Canal Tamengo e continua até sua
desembocadura no rio Paraná, de onde se prolonga para atingir seu
ponto extremo, o Porto de Nova Palmira, sobre a desembocadura do
rio Uruguai, na banda oriental do Prata (ANEXO – Figura 4). Apesar
de existir relativa homogeneidade nas características hidrológicas e
morfológicas ao longo dos 3.442 km de hidrovia, há sensíveis diferenças
nas condições de navegabilidade, sobretudo nas épocas de estiagem,
que, no âmbito do projeto HPP, levaram a sua divisão em quatro trechos
desde a nascente até a desembocadura, representativos daquelas
diferenças.
O primeiro deles compreende 413 km, de Cáceres a Ponta do
Morro; o segundo, de Ponta do Morro à Foz do Rio Apa, num percurso
de 858 km; o terceiro, da Foz do Rio Apa à confluência do rio Paraná,
em extensão de 932 km; e o quarto, da confluência do rio Paraná ao
300
Castro, op. cit., p. 124.
301
PONCE, Victor M. Descrição Geográfica, Pantanal e Hidrovia. Disponível em
<http://ponce.sdsu. edu/hidroviareportportuguesechapter2.html>. Acesso em: 25
nov.2003. Menção a Bonetto (1975).
302
Ibidem. Menção a Anderson et al. (1993).
137
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
rio da Prata, com 1240 km
303
(ANEXO – Tabela 2). A Argentina é o
país que possui a maior frente fluvial da Hidrovia, com 1661 km, dos
quais 375 compartilhados com o Paraguai, seguida do Brasil, com
1653 km, sendo que nessa extensão 393 são lindeiros com o Paraguai
e 48 com a Bolívia. O Paraguai coloca-se em terceiro lugar, com
1321 km, dos quais 563 passam exclusivamente em seu território; e,
em quarto lugar, encontra-se a Bolívia, com apenas 48 km
compartilhados com o Brasil. O Uruguai não dispõe de nenhum
trecho
304
.
Para se compreenderem os objetivos do projeto de melhoria
das condições de navegabilidade da HPP, é importante ter presente as
características físicas e hidrológicas dos rios que a formam e o valioso
ecossistema que encerra, em grande medida ainda inalterado, no qual
se inclui o Pantanal Mato-Grossense.
1.1. P
RINCIPAIS CARACTERÍSTICAS GEOMORFOLÓGICAS DOS RIOS
PARAGUAI E PARANÁ E SUAS IMPLICAÇÕES PARA AS CONDIÇÕES NATURAIS
DE
NAVEGABILIDADE E INTERVENÇÕES DE MELHORIA
Ao compreender os rios Paraguai e Paraná, e levando-se em
conta sobretudo sua longa extensão, a HPP oferece condições naturais
de navegação consideradas bastante satisfatórias, limitando-se as
restrições de calado a alguns meses e a anos críticos
305
. De fato, à
exceção dos rios da Bacia Amazônica, nenhuma outra via fluvial do
mundo, em condições naturais, permite o tráfego contínuo de
303
GRUPO DE TRABAJO AD HOC DE LOS PAÍSES DE LA CUENCA DEL PLATA.
Hidrovía Paraguay-Paraná. Estudio de Pré-Factibilidad. [S.l], nov. 1988. p. 22.
304
FRAGA, Jorge Alberto. Cuenca del Plata, Río de la Plata e Hidrovía; tendencias
geopolíticas y esfuerzos de integración. In: Revista de la Escuela Nacional de Inteligencia.
Secretaría de Inteligencia de Estado, República Argentina, v. II, n. 1, p. 119, primer
cuatrimestre, 1993. Ver também em CAF. Los Ríos nos unen. Integración Fluvial
Suramericana, op. cit., p. 178.
305
INTERNAVE ENGENHARIA. Hidrovia Paraguai-Paraná. Estudo de Viabilidade
Econômica. Relatório Final. Volume I, item 1.4/1, cópia disponível no arquivo do CIC.
ELIANA ZUGAIB
138
embarcações de 1,5 m de calado, durante todo o tempo, na maioria
dos anos, por mais de 3.400 km
306
.
Um dos problemas que se colocam, principalmente no rio
Paraguai e em menor grau no rio Paraná, com conseqüências para a
navegabilidade de seus cursos, está relacionado com seu regime
hidrológico anormal, que provocou a interrupção do tráfego no rio
Paraguai, especificamente no trecho Corumbá/Puerto Quijarro onde
se encontravam as minas de ferro de Mutum e Urucum, em período de
águas baixas, entre 1962 e 1973
307
. Com o período de águas altas, em
1974, reiniciou-se de forma ativa a navegação no rio Paraguai,
particularmente com o transporte de minério de ferro e manganês, soja
e seus subprodutos, trigo, petróleo, calcário para a produção de cimento
e produtos florestais. De acordo com estudos realizados, o aumento
das águas do rio Paraná, a partir de 1972, deveu-se à construção de
inúmeras represas em território brasileiro, a partir do anos 50, o que
não aconteceu com respeito ao rio Paraguai. Considera-se, portanto,
provável a repetição de períodos prolongados de águas baixas
308
. O
regime hidrológico da HPP apresenta período de águas baixas entre
julho e novembro e de águas altas entre dezembro e abril, sendo que
este último coincide com a época da colheita de cereais e, portanto, de
tráfego mais intenso.
Existe, contudo, no sistema platino, ordem natural sui generis,
graças à complementaridade de seus recursos hídricos. Estudos realizados
indicam que as boas condições de navegabilidade dos rios Paraguai e
Paraná se devem ao efeito regulador das áreas inundadas do Pantanal
306
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata. op. cit., p. 20.
307
INSTITUTO DE INVESTIGACIONES ECONÓMICAS (I.I.E.). El Balance de la
Economía Argentina. Alianzas Inter-Regionales. Córdoba, Argentina: Talleres Gráficos
de Ediciones Eudecor SRL, 2003. pp. 103, 104.
308
Idem. p. 104. Ver também em D’ALMEIDA, Carlos Eduardo. Características e
viabilidade técnica e econômica da Hidrovia. In: OPORTUNIDADES EMPRESARIAIS
NA HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ, 1990, São Paulo. A Hidrovia Paraguai-Paraná:
oportunidades empresariais (síntese dos trabalhos apresentados). São Paulo: ILAM,
1990. p. 14.
139
A NAVEGAÇÃO NOS RIOS DA BACIA DO PRATA
Mato-Grossense, ao baixíssimo declive daqueles rios e à defasagem do
regime pluviométrico entre as bacias de seus tributários
309
.
1.2. C
ARACTERÍSTICAS DO RIO PARAGUAI
O rio Paraguai, com 2.500 km de extensão, nasce no estado
do Mato Grosso, na serra de Tapirapuã, perto de Vila de Parecis, e
torna-se navegável a 250 km, águas abaixo, nas proximidades de
Cáceres, para então ingressar, em distância de 30 km, na região do
Pantanal
310
, pela qual percorre aproximadamente 300 km. O trecho
de 650 km entre Porto Cáceres e Corumbá, de muita sinuosidade e
pouca profundidade, mais que duplica a distância em linha reta e as
maiores dificuldades localizam-se acima da confluência de seu afluente,
o rio Cuiabá, com obstáculos sérios em seu leito e profundidades de
apenas 2 ou 3 metros nos pontos críticos no período de estiagem
311
.
Em estudo pioneiro do engenheiro Luis Tossini, realizado no ano de
1931, lê-se “desde Cáceres a Barra Norte de Bracinho – unos 160
kilómetros – el río Paraguay sigue un curso sinuoso en un valle
entre colinas bajas y una llanura aluvial bien definida”
312
.
309
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca Del Plata. op. cit., p. 20. O
Paraná cresce no verão e tem seus volumes mínimos no inverno, porém, um de seus
principais afluentes, o rio Iguaçu, que contribui com 16% desse volume, tem
comportamento sazonal diferente. Suas características são similares às do rio Uruguai,
com nascentes nas margens do Atlântico, onde as chuvas ocorrem nos meses de inverno.
O mesmo sucede com o Paraguai, cujas cheias anuais na zona de confluência tem de 3 a
4 meses de defasagem com respeito às do Paraná. Esse fenômeno acontece, apesar das
precipitações nas bacias superiores dos dois rios ocorrerem nas mesmas épocas do
verão, em função da presença no território brasileiro, águas acima de Corumbá, do
Pantanal, maior planície inundável da América do Sul. Ver em Boscovich, 1999, op. cit.,
p. 101.
310
I.I.E. op. cit., p. 95.
311
Boscovich, 1999, op. cit., pp.107, 108 e 318. Ver também em Grupo de Trabalho Ad
Hoc de los Países de la Cuenca Del Plata. op. cit. pp. 22 e 25.
312
Boscovich, 1999, op. cit., p. 318. Menção a estudo realizado por Luis Tossini em
1931.
ELIANA ZUGAIB
140
Esses trechos que apresentam dificuldades para o transporte fluvial
têm, no entanto, encontrado soluções mais fáceis e menos onerosas que
a alternativa da saída pela bacia amazônica ou o investimento em ferrovias
e rodovias até os portos do Atlântico, como é o caso da dragagem de
alguns setores e a utilização de embarcações especiais de baixo calado
para navegar a extensão de Porto Cáceres/Corumbá
313
.
O trecho Ponta do Morro/Foz do rio Apa, que ainda percorre
terrenos baixos do Pantanal Mato-Grossense e do Chaco Paraguaio,
é o mais favorável à navegação de todo o rio Paraguai, devido à baixa
sinuosidade e largura de 180 m, embora com algumas limitações de
calado em bancos de areia, águas abaixo de Corumbá, e a necessidade
de desmembramento de comboios
314
.
Na porção inferior à desembocadura do rio Apa, o Paraguai é
bastante largo, apresenta numerosas ilhas e leito menor relativamente
sinuoso e instável, serpenteando entre bancos de areia até Assunção,
onde se encontram os passos arenosos mais críticos do rio, ao sul de
Corumbá, além de alguns passos rochosos, que dificultam a navegação
ao norte e ao sul da capital paraguaia
315
. Os trechos entre Cáceres e
Corumbá e entre Assunção e a confluência do rio Apa são considerados
os mais críticos no âmbito do projeto Hidrovia, em função da riqueza
ecológica, complexidade e fragilidade do Pantanal e fundamentalmente
de seu papel regulador de todo o sistema hidrológico Paraguai-Paraná
316
.
313
Foram desenhadas por Bruno Pellizzetti, para o governo brasileiro, embarcações
especiais, com calado baixo e maior manga do que a das convencionais, para substituir
os trens de pequenas barcaças que operam com dificuldade em decorrência do contínuo
desarme de trens em curvas fechadas, que eleva o custo do transporte a US$ 40 a
tonelada apenas para o trecho Cáceres/Corumbá. O uso das novas embarcações diminuiria
o custo do frete para US$ 11 a tonelada. Ver em Boscovich, 1999, op. cit., p. 319.
314
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca Del Plata. op. cit., pp. 25-28.
315
Idem, pp. 28-34.
316
ANGULO CABRERA, Gildo. La navegabilidad en el río Paraguay: proyectos portuarios
bolivianos. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración,
Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n. 763 – G-11, pp. 151-153, invierno 1991. Ver
também em MAZONDO, José Osvaldo. La Navegación en la Cuenca del Plata. In: Boletín del
Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración, op. cit., p. 232.
141
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
Apesar da existência de freqüentes obstáculos produzidos por
sedimentos de areia e numerosos meandros, o Paraguai permite o
tráfego comercial de baixo calado em longas distâncias, devido à
ausência de desníveis
317
.
1.2.1. C
ARACTERÍSTICAS DO CANAL TAMENGO
Afluente da margem direita do Paraguai, o Canal Tamengo
constitui o principal acesso da Bolívia à Hidrovia, com extensão de
10,5 km, localizado na Província de Germán Busch, um pouco acima
de Corumbá, ao conectar aquele rio à Lagoa de Cáceres. Conforma
fronteira com o Brasil, seus primeiros 7 km são de soberania
compartilhada e os 3,5 km restantes, de Arroyo Concepción à
desembocadura do Paraguai, são exclusivamente brasileiros. Apresenta
larguras de 80 a 100 m e suas profundidades permitem a navegação
de embarcações de calado de 2,75 m (8 pés), durante 9 meses do
ano, ficando interrompido seu trânsito durante os meses de estiagem e
em épocas de seca
318
.
Embora, habitualmente, o rio Paraguai alimente a Lagoa de
Cáceres, em alguns casos, o fluxo inverte-se e o canal leva água à
Lagoa. Conseqüentemente, qualquer modificação resultante do
alargamento ou aprofundamento do canal pode provocar alterações
inesperadas no equilíbrio hidrológico do sistema
319
. Em função disso,
o governo municipal de Corumbá e entidades ambientalistas chegaram
a impedir a dragagem de curto trecho do canal para permitir o calado
de 3,3 m (10 pés), que possibilitasse o deslocamento dos comboios
que transportam soja boliviana pelo Porto de Aguirres
320
.
317
BOSCOVICH, Nicolás. La Argentina en la Cuenca del Plata. In: DALLANEGRA
PEDRAZA, Luis (Coord.). Los Países del Atlantico Sur. Geopolítica de la Cuenca del
Plata. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 66.
318
I.I.E. op.cit., pp. 27 e 28.
319
Bloch, op. cit., p. 83.
320
Boscovich, 1999, op. cit., p. 113.
ELIANA ZUGAIB
142
1.3. CARACTERÍSTICAS DO RIO PARANÁ
O rio Paraná, com 3.700 km de extensão, o mais longo dos
três rios que formam o eixo platino, também nasce no planalto brasileiro
e orienta-se em direção ao sul, em busca do Rio da Prata. Em seu
curso superior, apresenta várias cataratas e quedas d’água, servindo
de limite entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina
321
. No Brasil, recebe
importantes tributários, entre os quais o Paranapanema, o Tietê, o Rio
Grande e o Paranaíba, cujas nascentes estão próximas ao Atlântico. A
partir da confluência com o rio Iguaçu, é compartilhado pela Argentina
e pelo Paraguai, até receber a contribuição do rio Paraguai, para então
se tornar exclusivamente argentino até sua desembocadura.
As condições naturalmente oferecidas pelo rio Paraná como
via de navegação são excepcionais, exceção feita a escassos trechos
do alto Paraná
322
. Estudo realizado pela Universidad Nacional del
Litoral (Argentina), e divulgado em julho de 1995, concluía a respeito
do trecho entre a represa de Yaciretá e Confluência, no alto Paraná:
En este tramo existen varios pasos con insuficiente profundidad
y/o ancho; se añade a esto la presencia de un fondo rocoso en un
sector de aproximadamente 20 km de extensión, inmediatamente
aguas abajo de la represa”
323
.
Depois de a ele juntar-se o rio Paraguai, apresenta nítida
conformação de rio de planície e vasta amplitude no leito maior, que
chega a adquirir mais de 20 km na região de Rosário, com grandes
extensões retas favoráveis ao trânsito de grandes comboios. O trecho
321
Castro, op. cit., p. 127.
322
Boscovich, 1983, op. cit., p. 77; Boscovich, 1999, op. cit., p. 210.
323
Boscovich, 1999, op. cit., p. 274. Referência ao Estudo elaborado pela Faculdade de
Engenharia e Ciências Hídricas, da Universidade Nacional do Litoral, da República
Argentina, sob a direção dos Engenheiros Héctor H. Prendes, Mario Schreider, Mario
L. Amsler e José Huespe. Divulgado em julho de 1995, o referido Estudo intitula-se
“Estudio de las Condiciones de Navegabilidad de los ríos Paraná y Paraguay, al Norte de
Santa Fe, en territorio argentino”.
143
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
superior do rio, no território argentino, conhecido como Paraná médio,
apresenta condições bastante favoráveis à navegação fluvial e tem
profundidades mínimas de 2,75m garantidos, em princípio, por
dragagens periódicas. Há, no entanto, alguns passos críticos arenosos,
cujas profundidades naturais variam muito, porém, em geral, não
registram níveis inferiores a 1,8m, durante todo o ano,
independentemente das obras de dragagem. Essas profundidades
naturais podem, na realidade, até chegar a aumentar substancialmente,
dado o efeito da autodragagem naquele trecho
324
. As saliências
rochosas, que poderiam representar riscos à navegação, se encontram
devidamente balizadas e a mudança de posição dos canais obriga a
constantes balizamentos dos passos na dragagem.
No baixo Paraná, trecho navegado por embarcações marítimas,
os canais de navegação são amplos e pouco sinuosos e não apresentam,
portanto, restrições à navegação de embarcações marítimas de 7,5 m
e 6 m (22 e 18 pés) de calado, respectivamente em Rosário e em
Santa Fé. No delta do Paraná, encontram-se numerosas ilhas,
canais e braços, com importante sedimentação de areia e as
profundidades são mantidas por dragagem de no mínimo 9,7 m,
no canal principal, utilizado para embarcações marítimas
325
.
1.4. B
REVE DESCRIÇÃO DO PANTANAL MATO-GROSSENSE E DE
SUA
FUNÇÃO REGULADORA
A bacia do Paraguai compreende imensa planície interior,
com relevo extremamente plano, disposição geomorfológica
peculiar que propiciou o surgimento de extenso grupo de
alagadiços, o Pantanal Mato-Grossense. Integralmente localizado
na região do alto Paraguai, ao norte de Corumbá, encontra-se
circundado de alguns dos mais importantes biomas sul-americanos,
324
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata. op. cit., pp. 34 e 35.
325
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata. op. cit., pp. 38-39.
ELIANA ZUGAIB
144
a floresta úmida amazônica, as savanas subúmidas do Brasil central,
a floresta úmida atlântica e a floresta semi-árida da fronteira
boliviano-paraguaia
326
.
Maior planície sazonalmente inundável da América do Sul,
cuja área pode alcançar 300.000 km², o Grande Pantanal, como
também é denominado, por ser constituído de grupo de alagadiços,
além de encerrar ecossistema e biodiversidade, em grande parte
ainda inalterados, suas inundações periódicas revestem-se de
essencial importância como agentes reguladores do regime
hidrológico dos rios que conformam a HPP
327
, ao produzirem
efeito retardador do fluxo de água proveniente da bacia superior,
que pode ser assim definido:
El Gran Pantanal actúa como una gigantesca esponja
que absorbe y retiene por tres o cuatro meses las aguas de
crecidas de verano y evita la coincidencia con las crecidas
del Paraná, que producirían efectos anuales desastrosos en
todo el Paraná Medio, el Inferior y el río de la Plata
328
.
Esse efeito serve, portanto, não apenas para manter a rica
biodiversidade do Pantanal, mas também beneficia a navegação, uma
vez que, ao evitar a coincidência de picos de estiagem e cheias dos
rios Paraguai e Paraná, abrevia a estação da seca ao longo do sistema
fluvial e previne inundações catastróficas no médio e baixo Paraná
329
.
A canalização e o realinhamento dos canais podem
comprometer a função de “esponja de água” exercida pelo Pantanal,
responsável pela excepcional estabilidade do fluxo de água do Paraguai,
assim como as obras de dragagem e retificação do rio podem ocasionar
326
Ponce, op. cit., p. 3. Menção a Tricart (1982) e Prance e Schaller (1982).
327
CAF, Los Ríos nos unen. Integración Fluvial Suramericana, op. cit., pp. 192, 193.
328
Boscovich, 1999, op. cit., p. 101.
329
Bloch, op. cit., p. 82.
145
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
o aumento da velocidade do fluxo de água e provocar erosão costeira.
Processo esse sujeito à aceleração causada pela intensificação do
tráfego. A esses riscos, some-se o da contaminação das águas também
decorrente do aumento do tráfego e da crescente urbanização ao longo
da via fluvial
330
.
2. A
RELEVÂNCIA DA HPP COMO VIA DE INTEGRAÇÃO FÍSICA E ECONÔMICA
DOS
PAÍSES PLATINOS
A associação dos cinco países sobre as bases do Mercosul e
em torno da utilização conjunta da Hidrovia tem importância
fundamental dos pontos de vista geopolítico e geoeconômico. Deixa
de lado velhas rivalidades e quebra isolamentos seculares, levando o
desenvolvimento ao interior subcontinental. Integra mercados, ao
constituir traçado norte-sul que une naturalmente os países platinos,
e engloba interesses econômicos e industriais convergentes do Cone
Sul.
2.1. Á
REA DE INFLUÊNCIA
331
: ASPECTOS ECONÔMICOS E SOCIAIS
RELEVANTES
A seguinte assertiva expressa com clareza e propriedade o valor
estratégico e as potencialidades que encerra a zona de influência da
HPP para o desenvolvimento sustentável dos territórios mediterrâneos
do Cone Sul:
330
Bloch, op. cit., pp. 81 e 85. Sobre os riscos provocados por eventuais intervenções
na região do alto Paraguai, ver em CAF, Los ríos nos unen, op. cit., p. 193; Bloch, op.
cit., pp. 81-89; Boscovich, 1999, op.cit., pp. 100-103.
331
Trata-se da área em que produtores e consumidores poderiam ter interesse em
utilizar a via de navegação para o transporte de mercadorias produzidas ou
consumidas em comparação com os modos de transporte alternativos (rodoviário
e ferroviário) disponíveis. Ver em HLBE. Estudos de Viabilidade Técnica,
Econômica e Institucional da Hidrovia Paraguai-Paraná. Resumo Executivo, p.
12.
ELIANA ZUGAIB
146
“El área de influencia de la Hidrovía Paraguay-
Paraná constituye una región de gran valor estratégico. Sus
potencialidades económicas, variedad morfológica y
climática, riqueza en materia de infraestructura portuaria,
potencialidad productiva, disponibilidad energética,
diversidad cultural y, finalmente, su situación geopolítica
de privilegio en el Cono Sur la convierten en una región
muy apta para la planificación de estrategias alternativas
de desarrollo sustentable”
332
.
Com base em estudos que levaram em consideração os
novos e projetados corredores de fluxos de mercadorias,
especialmente de exportação, claramente definidos para outros
modos competitivos do transporte fluvial, foram identificadas como
áreas de influência do projeto HPP, parte do estado do Mato Grosso
e o Mato Grosso do Sul, no Brasil; o Departamento de Santa Cruz,
na Bolívia; a totalidade do território do Paraguai; oito províncias
do Norte, do Nordeste e do Centro da Argentina (parte do NOA,
Formosa, Chaco, Santa Fé, Misiones, Corrientes, Entre Rios, e o
Norte da Província de Buenos Aires) além do Departamento de
Colônia, no Uruguai. Essa área de influência compreende extensão
de 720.000 km² e população de mais de 40 milhões de
habitantes
333
.
É interessante notar que, inicialmente, os “Estudos de
Viabilidade Econômica da Hidrovia Paraguai-Paraná”, realizados
pela INTERNAVE, haviam incluído, em princípio, na área de
influência em território brasileiro, o estado de Rondônia e 112
332
RUIZ ESTELLANO, Gualberto. Diagnóstico del Transporte Internacional y su
Infraestructura en América del Sur (DITIAS) – Modo Fluvial (Cuenca del Plata).
Montevideo: Asociación Latinoamericana de Integración, 2000. p.52.
333
CAF. Los Ríos nos unen. Integración Fluvial Suramericana. Santa Fé de Bogotá,
Colômbia: Jorge Perea Borda, noviembre, 1998, p. 181. Ver também em I.I.E., op. cit.,
p. 99.
147
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
municípios do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, a partir de
estimativas dos fluxos de transporte e das cargas cativas, ou seja,
aquelas que por conveniência econômica manifesta são transportadas
pela HPP
334
. No entanto, posteriormente, análise geral dos custos de
transportes alternativos indicou que a área de influência em território
brasileiro, para o transporte de grãos, principal mercadoria a escoar,
compreenderia apenas 25 municípios do estado do Mato Grosso.
Revelou a análise que, para os demais municípios, os custos de
escoamento pelos portos de Paranaguá e Santos eram muito mais
vantajosos e, no caso de Rondônia, a alternativa dos rios Madeira e
Amazonas (Porto Velho-Belém) mais econômica
335
.
A zona de influência da HPP cobre vastos territórios interiores
de uma das regiões mais ricas e desenvolvidas da América Latina, com
extensa área de terras cultiváveis e aproveitáveis para a agropecuária,
aí incluídas as novas fronteiras agrícolas brasileira e boliviana, por onde
se expandem vertiginosamente as plantações de soja. Encontram-se,
nos limites da zona de influência da HPP, importantes reservas de
petróleo e de gás natural (Argentina e Bolívia) que, em território
argentino, abarcam uma das regiões mais desenvolvidas e
industrializadas, onde estão as principais instalações industriais
siderúrgicas, petroquímicas e refinarias de petróleo. Engloba, igualmente,
as importantes jazidas de ferro e manganês de Urucum (Brasil) e Mutum
(Bolívia), cuja produção vem sendo canalizada por embarcações
especiais, a custos que lhe conferem maior competitividade no mercado
internacional, além dos afloramentos de calcário de Vallemi, no Paraguai,
próximos à desembocadura do rio Apa, que estão sendo aproveitados
334
INTERNAVE ENGENHARIA. Hidrovia Paraguai-Paraná. Estudo de Viabilidade
Econômica. Relatório Final, Volume III, fevereiro de 1990, item 3.4/1.
335
PAEZ, Rodolfo. Historia del Problema. Síntesis de la Solución. In: Boletín del Centro
Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración, Buenos Aires, año 110,
v. 109, suplemento n. 763 – G-11, pp. 334 a 336, invierno 1991. Ver também SGUT,
Martin. Integración en el Sector Transporte en el Cono Sur. Puertos y vías navegables.
Buenos Aires: BID-INTAL, 1997, pp. 59 e 60.
ELIANA ZUGAIB
148
industrialmente para a produção de cimento, calcário agrícola e cal,
em território boliviano. Além disso, as reservas de minério de ferro
poderão tornar-se a principal fonte de matéria-prima para as indústrias
siderúrgicas do Paraguai, da Argentina e do sul do Brasil
336
.
Essa zona oferece também oportunidades de sinergia com a
área energética e possibilidades de interconexões multimodais com
outros meios de transporte (ANEXO – Figura 5). O sistema Paraguai-
Paraná e seus tributários possuem potencial de geração de energia
elétrica de aproximadamente 60.000 megawatts, dos quais 40.000 já
estão sendo explorados
337
, além de extensa malha portuária (ANEXO
– Figura 6).
2.2. V
ANTAGENS COMPARATIVAS DO TRANSPORTE FLUVIAL
A respeito das vantagens comparativas do transporte fluvial,
afirma o relatório El Balance de la Economía Argentina en 2003:
Actualmente el comercio del MERCOSUR moviliza 45
millones de TM al año. Y sin obra alguna la Hidrovía
transportó 10 millones de TM, que de acuerdo a proyecciones
al 2010 alcanzará 20 milliones de TM. Por carretera o
ferrocarril (el 70% de la producción de la zona de influencia
del Alto Paraná) el costo es de US$ 50 a US$ 120, con una
duración de tres días hasta un puerto de ultramar (Brasil).
336
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata. op. cit., pp. 12-16.
337
SILVA, Eliezer Batista da. Infrastructure for Sustainable Development and Integration
of South America. [Estudo patrocinado pela Companhia Vale do Rio Doce (CVRD),
Corporación Andina de Fomento (CAF), AVINA Foundation, Bank of America,
Companhia Auxiliar de Empresas de Mineração (CAEMI) e Business Council for
Sustainable Development – Latin America (BCSD-LA)]. , April, 1996. pp. 42 e 43.
Veja também em FONSECA, Paulo Sérgio Moreira da. O Processo de Integração da
América Latina e do Caribe. [Palestra Proferida] In: IEPES/IRBr/IPEA/BID. Seminário
sobre a América do Sul. A organização do Espaço Sul-americano: seu significado político
e econômico. (2000: Brasília, DF). v.1, p. 137 e 138.
149
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
Mientras que por vía fluvial el costo es de US$ 15 a US$ 20
y con un tiempo estimado de 16 días aproximadamente
338
.
De acordo com o mesmo relatório, se realizadas as
intervenções de dragagem, balizamento e sinalização necessárias na
HPP, os tempos de percurso reduzir-se-iam consideravelmente, de
3 a 5 dias do Porto de Rosário a Assunção e 7 dias até Corumbá. De
Nova Palmira a Assunção a viagem tardaria 5 dias e até Corumbá,
apenas 8 dias, com a vantagem de menor custo de frete incidente no
produto de exportação, devido também à navegação noturna
ininterrupta.
Os vários estudos realizados são unânimes com respeito às
significativas vantagens comparativas do transporte fluvial em
relação ao ferroviário e ao rodoviário, sempre que se trate de
movimentar cargas não perecíveis de grande volume e peso e baixo
valor agregado, em distâncias superiores a 400 km. Essas vantagens
traduzem-se em baixos custos de frete; grande capacidade de
escoamento de carga; facilidade de transporte de cargas indivisíveis,
muito volumosas ou pesadas; economia de combustíveis e menor
impacto ambiental. A título de ilustração, e tendo em conta a
capacidade de carga para transportar equivalente a 1.600 toneladas,
por via fluvial, seria necessária apenas uma barcaça, enquanto, por
ferrovia, utilizar-se-iam 40 vagões e, por rodovia, 80 caminhões
339
(ANEXO – Tabela 3).
Em 1964, a Comissão Mista Brasil-EUA já havia chegado a
conclusões semelhantes ao mencionar o uso das hidrovias sul-
americanas, salientando como exemplo o transporte fluvial em grande
escala de manganês das minas de Urucum, nas proximidades de
338
I.I.E. op.cit., p. 106.
339
Bloch, op. cit., pp. 32-35. Menção ao documento da União Européia “Política de
Transporte y el Ambiente”. Veja também em I.I.E. op. cit., p. 98 e em Boscovich,
1999, op. cit., pp. 72 a 75, 109, 110 e 229.
ELIANA ZUGAIB
150
Corumbá, realizado por barcaças, através das rotas do Paraguai e
do Paraná, do Porto de Corumbá ao de Nova Palmira
340
. E, por sua
vez, relatório anterior da mesma Comissão Mista, publicado em 1955,
pelo Institute of Inter-American Affairs, sob o título Brazilian
Technical Studies, aconselhava:
Onde existem rios e onde suas características físicas são
tais que possa ser desenvolvido um transporte hidroviário sobre
uma porção substancial de seu curso, nenhum outro meio de
transporte a granel já utilizado provou ser tão econômico (...). É
um auxiliar poderoso na penetração econômica e na exploração
de áreas não-desenvolvidas (...) onde existem rios aproveitáveis
e onde o grosso da carga a ser movimentada cai dentro da primeira
categoria (...), o transporte hidroviário interior deve ser
340
Ver em Boscovich, 1999, pp. 109, 110 e Boscovich, 1983, pp. 81-84, em que
descreve as conclusões da Comissão Mista Brasil-EUA de 1964: “Un ejemplo de
transporte fluvial en gran escala en América del Sur es el mineral de Urucum (manganeso),
en las proximidades de Corumbá, estado de Mato Grosso, realizados a través de barcazas
de 2.000 toneladas c/u, en número de 10, que transportan 20.000 t por tren, empujadas
por un remolcador de 2.500 HP. El transporte se hace por las rutas Paraguay y Paraná
desde el puerto de Corumbá, en Mato Grosso, a través de 2.400 km al puerto uruguayo
de Nueva Palmira; la tripulación del convoy es de 21 personas y el viaje de ida y vuelta
se hace en 32 días, incluida carga y descarga; se gastan 162 ton. de combustible y exige
6.720 horas hombre(...) La vida útil de cada convoy de este tipo, sin apreciable gastos
de conservación y mantenimiento es de 30 años y su costo del orden de C.R.$
1.200.000.000. Para transportar la misma carga, a la misma distancia, serían necesarios
1.000 camiones haciendo dos viajes con una potencia total de 150.000 Hp, consumiendo
4.800 t de combustible, exigiendo 64.000 horas-hombre, una infra-estructura de caminos,
transporte de combustibles para abastecimiento – 25 por ciento del transporte total de
las 20.000 t de mineral – etc. La vida útil de un camión es de cinco años, considerando
el 50 por ciento de las piezas repuestas. De esta manera, mientras un convoy de
barcazas y remolcador se deprecia en 30 años, se deprecian 18.000 camiones a un precio
de C.R. $ 90.000.000.000 (...). De lo anterior surge que es necesario utilizar 60 veces
más potencia usando camiones en lugar de barcazas, lo mismo que 28 veces más
combustible, 9,5 veces más horas/hombre y 77 veces más capital fijo (amortización
camiones o barcazas). Esas sustanciales diferencias ponen de manifiesto la ventaja del
transporte fluvial para largas distancias – superior a 400/500 km – para cargas
especialmente de mucho volumen y peso y no perecederas. O sea, que no requieran un
menor tiempo de traslado que por otros medios más rápidos (tren, camión o avión)”.
151
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
desenvolvido de preferência a qualquer outro meio de
transporte
341
.
Não é por outra razão que o uso de vias fluviais constitui fator
básico da economia das nações desenvolvidas para transportar
matérias-primas para suas indústrias, o que se justifica, além de outras
vantagens, por sua capacidade de carga e seu custo por quilômetro
várias vezes inferior ao dos outros meios de transporte, o que implica
importante economia em investimento de materiais, combustível e mão-
de-obra
342
.
De acordo com estimativas do CIH, quando a Hidrovia estiver
funcionando plenamente, o transporte fluvial competirá com o rodoviário
em melhores condições. Calcula-se que a via fluvial oferecerá custo de
US$ 20 por tonelada, em relação aos US$ 50 a US$ 65 do rodoviário
e aos US$ 38 a US$ 45 do ferroviário
343
.
Embora se possa afirmar que o transporte fluvial é ideal para
produtos de grande volume em relação ao seu valor e que, por sua
natureza, não exigem transporte de curto prazo, não se pode perder
de vista que suas vantagens se fundamentam na existência de zonas
industriais e agrícolas desenvolvidas ao longo do rio; de porto importante
em sua desembocadura ou em suas proximidades; de adequadas
conexões com outros meios de transporte terrestre (ferrovias e
rodovias) e de centros de transferência de cargas, que permitam o
transporte multimodal
344
.
Além de reunir essas condições, a HPP representa meio para a
circulação de mercadorias entre as regiões mediterrâneas e vínculo
fundamental com a economia mundial, através do porto de Nova
Palmira. Encerra elementos relevantes do novo paradigma proposto
341
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Divisão da América Meridional (DAM-
I). Hidrovias e Interligação de Bacias Hidrográficas, Seção de Publicações, 1968, p.
16.
342
Boscovich, 1983, op. cit., p. 83.
ELIANA ZUGAIB
152
para o desenvolvimento da infra-estrutura da América do Sul, sobretudo
o de sinergia com a área energética, por seu potencial e capacidade
instalada, e propicia a formação de cadeias produtivas, ao abrigar em
sua zona de influência a um só tempo reservas naturais, concentração
de pólos industriais e mercado consumidor significativos.
2.3. P
ARTICULARIDADES DO PORTO DE NOVA PALMIRA E DO RIO DA
PRATA
Em 1983, o Contra-Almirante Jorge Fraga já assinalava em
seu livro La Argentina y el Atlántico Sur que a necessidade de
revitalizar a atração do Rio da Prata no âmbito de sua bacia, estava
associada à tendência ao progressivo aumento do uso de embarcações
de maior calado, na Argentina, em decorrência da regra básica de que,
quanto maior a tonelagem, menor o custo do frete. Com base nessa
tendência, poder-se-ia prever a prática, no futuro, do uso de navios de
calado da ordem de 12 a 15 m (45 a 55 pés). Essa observação levava,
por sua vez, à consideração das condições hidrográficas do rio, em
função das dificuldades apresentadas pelo Porto de Buenos Aires
345
,
cuja profundidade limita-se a 10 m (30 pés) e em cujo leito acumulam-
se depósitos significativos de sedimentos, provenientes sobretudo do
rio Bermejo, que obriga a realização de constantes obras de
dragagem
346
.
Essa constatação remete às discussões sobre a construção de
um porto de águas profundas, em Punta Médanos, que suprisse as
deficiências do de Buenos Aires. Autores uruguaios defendiam a
343
Bloch, op. cit., pp. 77 e 107. Outros cálculos estabelecem que a incidência do frete
passará do atual US$ 0,009 t/km a US$ 0,005 t/km, similar à que se registra no rio
Mississipi, nos EUA.
344
Bloch, op. cit., p. 31.
345
FRAGA, Jorge Alberto. La Argentina y el Atlántico Sur. Conflictos y Objetivos.
Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. pp. 104 e 105.
346
Fraga, 1993, op. cit., p. 120.
153
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
conveniência de se construir o referido porto em águas de jurisdição
uruguaia, como empreendimento binacional uruguaio-argentino, na
localidade de Coronilla, perto do limite com o Brasil, ou em La Paloma,
nas proximidades da cidade de Rocha, antiga aspiração do Uruguai.
O Paraguai e a Bolívia estiveram sempre mais próximos
diplomaticamente do Brasil do que o Uruguai no tratamento do tema
da Bacia do Prata. Assim, o Uruguai, mais independente, em função
de sua tradicional neutralidade, procurou valer-se da desfavorável
geografia marítima argentina e de suas dificuldades para lograr o controle
de um porto profundo na desembocadura do Prata, com vistas a
transformar sua condição de Estado “tampão” em de país “chave”:
Uruguay posee un gran valor por su posición ante la
difusión de los recursos del gran espacio regional al cual
pertenece. Observando éste – tanto en su visión de Cuenca
del Plata como en la relación Cono Sur – Uruguay se destaca
más cercano a la Argentina que al Brasil, recostándose sobre
sus costas el triángulo geoeconómico: Buenos Aires-
Córdoba-Asunción. Sin embargo, su equidistancia respecto
a Brasil y Argentina, le permite conformar una posición
estratégica importante, ya que también para Brasil, el frente
platense-atlántico uruguayo en función de la región le es
importante para un gran sector de su área platina
347
.
No entanto, pode-se dizer que o Uruguai coloca-se, em termos
estratégicos, em posição muito mais importante para a Argentina do
que para o Brasil, que domina com suas imensas costas todo o Atlântico
Sul. Para a Argentina, o Uruguai é vital porque controla sua artéria de
347
SÁNCHEZ-GIJÓN, Antonio. La Integración en la Cuenca del Plata. Madrid:
Ediciones Cultura Hispánica, 1990, p. 91. Menção a QUAGLIOTTI de BELLIS,
Bernardo. Uruguay en la Cuenca del Plata. In: DALLANEGRA PEDRAZZA, Luis
(Coord.). Los Países del Atlántico Sur. Geopolítica de la Cuenca del Plata”. Buenos
Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 162.
ELIANA ZUGAIB
154
comunicações com o resto do mundo, o rio da Prata. Estando o
mencionado triângulo geoeconômico próximo ao Uruguai, torna-se
evidente a vulnerabilidade da Argentina em relação àquele país vizinho,
o que não ocorre com o Brasil
348
.
Assim, com o intuito de transformar-se em país-chave, o Uruguai
investiu em tentativas de busca de alternativas próprias, e até mesmo
binacionais com a Argentina, para garantir a construção ou
aparelhamento de porto que competisse com os brasileiros da costa
atlântica, por posicionar-se mais próximo ao Prata. Nesse contexto,
alistou Nova Palmira, Fray Bentos e Montevidéu entre os sistemas de
transferência flúvio-marítimos (barcaça-navio), tratando de assegurar
a este último 13 m (40 pés) de calado, e passou a contemplar a
construção de porto de águas profundas em La Paloma ou em Coronilla.
Do ponto de vista argentino, eventual empreendimento
binacional poderia servir para frear as tentativas do Brasil de atrair a
produção rioplatense em direção a seus portos, mas não constituía
alternativa ao porto de águas profundas a que almejava a Argentina,
sob sua jurisdição, na desembocadura do Rio da Prata, cuja missão
seria atuar como fator de reativação do tráfego fluvial de toda a Bacia
do Prata
349
, a fim de manter o tradicional controle de sua
desembocadura.
Ao não se haver concretizado a construção do cogitado porto
de águas profundas em Punta Médanos, alternativas de revitalização
da navegação na Bacia, que oferecessem melhores resultados e maiores
vantagens do que o de Buenos Aires, surgiriam mais tarde no âmbito
do projeto HPP. Ademais dos portos brasileiros e uruguaios, apareceria
também projeto do Brasil, por intermédio de seu setor privado, de
porto pentanacional na desembocadura do Prata, em águas de 20 m
(60 pés) de profundidade e em posição que, segundo autores
argentinos, muito provavelmente, estaria em águas uruguaias, de
348
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 90.
349
Fraga,1983, op. cit., p. 105.
155
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
acordo com o princípio da eqüidistância aplicado pelo Tratado do
Rio da Prata para delimitar jurisdições adjacentes entre a Argentina
e o Uruguai
350
. A adoção desse princípio em detrimento do critério
do paralelo, que historicamente poderia parecer mais adequado na
interpretação argentina, foi considerada vitória do Uruguai, uma vez
que o Brasil ficava definitivamente afastado da banda oriental do Prata
e era subtraída da Argentina vasta porção de seu mar territorial,
juntamente com seus recursos (78.000 km²)
351
. A proposta de se
construir um terminal em águas profundas no Rio da Prata, como ilha
flutuante ou como instalação fixa, ademais da estabelecida para o
complemento de carga pelo Tratado do Rio da Prata e sua Frente
Marítima, que pudesse servir a HPP, tampouco foi levada a cabo.
Caso o fosse, provavelmente teria suscitado problemas nas relações
argentino-uruguaias, uma vez que o Uruguai aspirava a que processo
similar se efetuasse através dos portos de Montevidéu ou Nova
Palmira sobre o rio Uruguai
352
.
O Uruguai sempre colocou seus portos à disposição dos
países da Bacia do Prata que pudessem necessitá-los, no caso, a
Argentina, o Paraguai e a Bolívia. A vizinhança com a Argentina o
torna lógico, mas o Uruguai oferece colaboração também à Bolívia
e ao Paraguai, há aproximadamente 5 décadas. Com a construção
de doca oficial, a capacidade de transferência de cargas de Nova
Palmira elevara-se de 400.000 para 750.000 toneladas anuais
353
,
350
FRAGA, Jorge Alberto. El Sistema del Plata. Visión Geopolítica. In: Boletín del
Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración, Buenos Aires,
año 110, v. 109, suplemento nº 763-G-11,. p. 81, invierno, 1991. Ver também em
Paez, Rodolfo, op. cit., p. 330.
351
Fraga, 1983, op. cit., p. 101.
352
ALETTI AUFRANC, José Maria. La Cuenca del Plata.. In: Boletín del Centro
Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración, Buenos Aires, año 110,
v. 109, suplemento n . 763-G-11, p. 327, invierno 1991.
353
RUIZ ESTELLANO, Gualberto. La posición “humilde pero firme”, del Paraguay.
In: Revista de la Escuela Nacional de Inteligencia. Secretaría de Inteligencia de
Estado, República Argentina, vol. II, n. 2, pp. 106, 107, segundo cuatrimestre,
1993.
ELIANA ZUGAIB
156
transformando-se, à época, em um dos terminais passíveis de integrar
a HPP. Situado no outro extremo de Cáceres, a 3.442 km, o Uruguai
tinha seus portos já instalados, como é o caso de Nova Palmira e Fray
Bentos, e vocação para vender serviços, já que, por sua dimensão
territorial e pela natureza de seus solos, não chegaria a ser grande
exportador de grãos
354
. A pretensão uruguaia de converter Nova Palmira
em porto terminal de transferência de carga do sistema Paraguai-Paraná,
apoiada pelo Brasil, não seria, num primeiro momento, corroborada
pela Argentina, por razões óbvias, sob a justificativa de que se deveria
evitar o monopólio, que produz maiores custos e atritos entre os países
intervenientes
355
.
Em meio a essas circunstâncias, o Brasil surpreendeu com a
proposta de retomada do eixo natural Norte-Sul, mediante projeto de
melhoria das condições de navegabilidade da Hidrovia Paraguai-
Paraná, objeto do próximo capítulo.
Antes, porém, é interessante notar que a decisão de excluir o Rio
da Prata do Projeto da HPP, tomada na terceira reunião de consultas
sobre a Hidrovia, em que a chancelaria uruguaia logrou que se a denominasse
Hidrovia Paraguai-Paraná e, entre parênteses, Porto Cáceres- Porto de
Nova Palmira, acabaria gerando, no início, ressentimentos entre alguns
setores argentinos, que insistiam em a ela se referir como HPPP (Paraguai-
Paraná-Prata)
356
. Mais do que isso, deixariam aqueles setores, sobretudo
354
SANGUINETTI, Jorge. Conferencia sobre aspectos Socio-Políticos y Económicos
de la Hidrovía. In: Revista Geográfica, [S.l.] n. 114, pp. 81 e 82, jul.-dic. 1991.
355
CASTILLO, José Luis. Hidrovía Paraguay-Paraná. In: Boletín del Centro Naval: La
Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109,
suplemento n. 763-G-11, p. 307, invierno 1991.
356
VENESIA, Gualberto. Hidrovía Paraná-Paraguay. Disponível em <http://
www.desarrolloyregion.com/ampliar.asp?contentId=86>. Acesso em: 16 jun. 2004. Ver
também em Sanguinetti, op. cit., p. 82; MALINS, Luis Alberto. El aspecto comercial.
In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración,
Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n. 763-G-11, vol. 109, p. 310, invierno
1991; e RODRIGUEZ ZÍA, Jorge. Puertos Preciosos. Buenos Aires: Circulo Militar,
1993. pp. 123-127. Com respeito à questão comenta Zía que, ao necessitar escoar sua
produção por via mais econômica que a ferrovia e a rodovia até o porto de Santos,
157
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
nos meios militares e geopolíticos, transparecer desconfiança em relação à
intenção genuína do Brasil de retomar a HPP como via de integração, na
medida em que Nova Palmira poderia representar ameaça ao centripetismo
do porto de Buenos Aires, reavivando antigas rivalidades
357
. Essa
desconfiança aparece claramente em estudo realizado por Nicolás
Boscovich, em 1990, no qual deixava o seguinte registro:
Se pueden observar maniobras de marginamiento al
privilegiarse a Nueva Palmira como puerto terminal del
sistema; los peligros de que se incluya en los acuerdos la
construcción y administración multinacional de un puerto
profundo en jurisdicción del río de la Plata (penta-puerto
isla); la iniciativa de crear empresas navieras de bandera
boliviana y paraguaya con participaciones accionarias
internacionales; y la reiteración uruguaya para la creación
de un ente plurinacional para administrar la Hidrovía,
siendo que el tramo más importante está en territorio
argentino. No se debe caer en la ingenuidad de imaginar
que el Brasil, que siempre tuvo un claro pensamiento en la
concepción de sus grandes obras de infraestructura y ahora
debe renunciar a algunas de sus más caras ‘directrices
geopolíticas’ (...) no tratará de disminuir las crecientes
Brasil diseñó un plan de hidrovías que no pudo llevarse a cabo no más que en partes.
Entonces arregló con el Uruguay el uso del Puerto de Nueva Palmira sobre la
desembocadura del Río Uruguay en la Plata. Y de esa manera, teniendo asegurado con
un tratado el uso del Paraná-Paraguay, no necesita incluir el Plata en el futuro tratado
de la Hidrovía. (...) por tener su salida natural por el Plata deberá denominarse
PARAGUAY-PARANÁ-PLATA (HPPP) con absoluta propriedad.” É interessante notar
que o Estudo de Pré-factibilidade, op. cit., p. 39, considera que Nova Palmira “ya se
encuentra en el Río de la Plata”, contrariamente ao que afirma a maioria dos autores.
357
Em palestra proferida no âmbito de seminário internacional sobre hidrovias, realizado em
Harvard, em abril de 1996, o Vice-Ministro de Relações Exteriores da Argentina, Fernando
Petrella, mencionou que seu país poderia eventualmente considerar a inclusão do rio da
Prata no Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-Paraná. O ex-presidente Luis
Alberto Lacalle, que presidia o Painel, foi enfático em discordar do diplomata argentino.
ELIANA ZUGAIB
158
ventajas geoestratégicas que irá adquiriendo la Argentina
con la utilización plena y óptima de los corredores fluviales.
Maniobrará para diluir el poder de decisión de nuestro país
mediante el acuerdo para la creación de entes administrativos
y empresas multinacionales, y privilegiando en el
emprendimiento a los otros países más débiles de la región
358
.
Não obstante, há visões diferenciadas sobre essa questão. Se
em determinado momento pareceu que Nova Palmira fosse concorrente
dos portos argentinos, essa inferência não encontra fundamento na
realidade dos fatos, uma vez que, em toda a zona do baixo Paraná, a
Argentina tem capacidade portuária instalada para movimentar 30
milhões de toneladas enquanto Nova Palmira dispõe de instalações
para armazenagem de apenas um milhão e meio de toneladas
359
. O
atual Secretário-Executivo do Comitê Intergovernamental da Hidrovia
(CIH), Engenheiro Juan Antonio Basadonna, por sua vez, em palestra
proferida no Instituto de Estudios Regionales de Rosário, afirmou que
o Rio da Prata foi excluído do acordo da Hidrovia “porque os interesses
de Buenos Aires e Montevidéu não queriam dele depender”
360
.
Defendeu a tradicional posição do Uruguai de excluir o Rio da Prata daquele acordo multilateral.
Na ocasião, o diretor da Administração Nacional de Portos do Uruguai ponderou que
eventual inclusão do Rio da Prata no Acordo de Transporte da Hidrovia inevitavelmente
levaria à revisão do Tratado de limites do “Rio da Prata e sua Frente Marítima”, o que
poderia significar ameaça para vários dos benefícios alcançados pelo Uruguai com a assinatura
do mencionado tratado bilateral. É interessante notar também que, na III Reunião
Extraordinária do CIH, as delegações da Bolívia e do Paraguai insistiram na tese de que o
Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-Paraná deveria necessariamente abranger
o Rio da Prata, no que foram contestadas pelos representantes argentino e uruguaio.
358
BOSCOVICH, Nicolás. Hacia la integración fluvial en la Cuenca del Plata. In: Boletín
del Centro Naval. La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración. Suplemento
nº 763 – G-11, vol. 109, año 110, Buenos Aires, feb. 1993. pp. 112 e 113.
359
Venesia, op. cit., p. 6.
360
BASADONNA, Juan Antonio. Conferencias sobre Hidrovías: Integración y
Federalismo, geopolítica e Hidrodesarrollo. [Palestra proferida]. Ciclo de Conferências
organizado pelo Instituto de Estudios Regionales de Rosário, realizado em 24 de junho
de 2004, ao qual a autora deste trabalho esteve presente.
159
A HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ (HPP)
Não parece restarem dúvidas, no entanto, de que, ao ser lançada
a idéia de revitalização do eixo Norte/Sul, pelo Brasil, o que causou
reações iniciais de inconformidade entre vários autores argentinos,
criou-se a expectativa de recuperação do centripetismo da
desembocadura do Rio da Prata, em águas argentinas
361
.
Embora simbolizasse a alteração do paradigma da
confrontação, a gênese do projeto da Hidrovia deu-se em ambiente
de suspicácia e competitividade, que se reflete ainda hoje na dificuldade
de concertar posições, como se depreenderá dos próximos capítulos.
361
O Dr. Roberto M. de Luise, consultor do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento de Apoio ao Ministério das Relações Exteriores no Mercosul,
comentava a respeito da necessidade de definir onde seriam realizadas as transferências
de cargas na Hidrovia, em palestra proferida sobre “La Hidrovía y el Mercosur; tendencias
modernas hacia la integración”, que, embora o transporte fluvial seja, por definição,
mais econômico do que o terrestre, é mais caro que o marítimo e, portanto, os
transportadores procurarão sempre minimizar o trajeto por via fluvial em favor do
marítimo. Com base nesse raciocínio, ressaltou que os portos argentinos de Rosário
oferecem grandes possibilidades para a operação de embarcações de ultramar. In: Revista
de la Escuela Nacional de Inteligencia, Secretaría de Inteligencia de Estado, República
Argentina, vol. II, n. 1, p. 126, primer cuatrimestre, 1993.
CAPÍTULO IV
APRESENTAÇÃO DO PROJETO
HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
APRESENTAÇÃO DO PROJETO
HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
1. AS MOTIVAÇÕES E AS ORIGENS
1.1. O CONTEXTO DAS MOTIVAÇÕES
A HPP foi, historicamente, o eixo geopolítico de penetração
colonizadora e de transporte maciço de cargas nas regiões interiores
da Bacia do Prata. Durante séculos, mantiveram-se os rios que a
formam como principais vias naturais de comunicação e de comércio
de bens do hinterland da Bacia do Prata
362
.
A partir de meados do século XX, os interesses brasileiros
de promoção da integração nacional levaram o país a priorizar os
eixos de transporte no sentido Leste/Oeste, em detrimento do Norte/
Sul, dando início ao longo período de confrontação com a Argentina,
traduzido na disputa dos eixos transversais versus eixo longitudinal.
Essa iniciativa foi facilitada pelo baixo preço do petróleo até 1974 e
pela política de acúmulo de capital que permitiu ao Estado brasileiro,
protecionista e condicionado por visões geopolíticas, traçar sua
estratégia na área de transporte, sem levar em consideração a questão
362
SPALLANZANI, Plinio. Integración del Río Uruguay a la Hidrovía Paraguay-Paraná.
Navegación en la Cuenca del Río Uruguay. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía
Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento
n. 763-G-11, p. 238, invierno 1991.
ELIANA ZUGAIB
164
dos custos
363
. Grande parte da zona economicamente ativa tinha ainda
o privilégio de estar localizada nas proximidades da costa atlântica, o
que a tornava dependente dos portos do Rio Grande, Paranaguá, Santos
e Rio de Janeiro e dispensava, portanto, a otimização do uso da
Hidrovia
364
.
A partir dos anos 50, a concorrência competitiva do transporte
terrestre, especialmente o rodoviário, em relação ao fluvial, causou a
redução do tráfego nos rios Paraguai e Paraná a um quinto de seus
valores máximos registrados até então
365
, culminando com o quase
abandono da navegação no alto Paraguai, além do corte no alto Paraná,
ocasionado pela construção da represa de Itaipu. Essa situação viria a
agravar o lento processo de deterioração das condições oferecidas
pela via de navegação, que já carecia de obras de melhoramento,
inclusive no que diz respeito à infra-estrutura e à operação portuária
366
.
A ausência de investimentos na manutenção da infra-estrutura e no
desenvolvimento de políticas de transporte adequadas acentuou a
diminuição do volume de carga transportado pela via fluvial, e as
tentativas de recuperá-la nos anos
60 e 70, à parte os empecilhos de
ordem geopolítica, não se sustentavam em justificativas econômicas
claras
367
.
363
KOUTOUDJIAN, Adolfo. Demanda y geopolítica en la Hidrovía Paraguay-Paraná.
In: Revista de la Escuela Nacional de Inteligencia, Secretaría de Inteligencia de Estado,
República Argentina, vol. II, n. 1, p. 122, primer cuatrimestre, 1993.
364
MALINS, Luis Alberto. El Aspecto Comercial. In: Boletín del Centro Naval: La
Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109,
suplemento n 763-G-11, p. 310, invierno 1991.
365
Koutoudjian, op.cit., p. 122.
366
SANGUINETTI, Jorge. Conferencia sobre aspectos Socio-Políticos y Económicos
de la Hidrovía. In: Revista Geográfica, [S,l.], n. 114, p. 75, jul./dic. 1991.
367
GRUPO DE TRABAJO AD HOC DE LOS PAÍSES DE LA CUENCA DEL PLATA.
Hidrovía Paraguay-Paraná. Estudio de Pré-Factibilidad. [S.l.], nov. 1988. p. 4. A perda de
competitividade do transporte fluvial, que é, em princípio, mais econômico do que o
ferroviário e o rodoviário, estava também associada à concessão de subsídios a esses
meios de transporte e à utilização de embarcações precárias no alto Paraguai, por falta de
condições apropriadas para o uso de grandes comboios, além da inexistência de infra-
estrutura adequada para as operações de carga/descarga e de transbordo. Ver em Sanguinetti,
165
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
Na década de 80, superadas as rivalidades entre Brasil e
Argentina, e diante da forte tendência à polarização do mundo em
macro-centros de poder regional, a integração econômica e física
tornara-se um imperativo do desenvolvimento, incompatível com a
política de corredores de tráfego antagônicos. Elemento fundamental
do que viria a ser a futura geopolítica de complementação regional, a
integração econômica e física passaria a adquirir espaço prioritário nas
agendas externas brasileira e argentina, com a adesão gradual de outros
países e blocos regionais, como solução para problemas internos dos
países da região e para a sua inserção competitiva no mercado
internacional. Já não mais se esbarrava no obstáculo da preferência
atribuída pelo Brasil ao escoamento de sua produção pelos portos do
Atlântico, privilegiando a integração nacional em detrimento da regional
e da opção pelo meio de transporte mais econômico.
1.2. A
MOTIVAÇÃO ECONÔMICO-COMERCIAL: A FRONTEIRA AGRÍCOLA
NO
CENTRO-OESTE BRASILEIRO
Coincidentemente, na década de 80, colhiam-se os resultados
justamente da implementação da política de integração nacional,
fundamentada em incentivos concedidos pelo governo federal para
induzir o fluxo de migrações internas em direção às áreas remotas do
território brasileiro.
A resposta àquela política foi surpreendente. Já em meados da
década de 70, atraídos pelas facilidades de crédito agrícola, linhas
especiais de financiamento e redução da taxa de juros, entre outros
incentivos, começaram a afluir produtores de soja dos estados do sul
para a região de “Chapadão dos Parecis”, no Mato Grosso. E, em
apenas 10 anos, o Centro-Oeste (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul
op. cit., p. 75; BRAIDOT, Nestor P. Un proyecto actual, una realidad futura? In: Boletín
del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires,
año 110, v. 109, suplemento n 763-G-11, p. 285, invierno 1991.
ELIANA ZUGAIB
166
e Rondônia) passava a ser responsável por quase 50% da produção
de soja no Brasil. O aumento do cultivo de soja naquele Estado, cujo
potencial de expansão é de 30 milhões de hectares
368
, alçou o Brasil à
posição de segundo produtor mundial do cereal, superado pelos EUA,
e elevou a 11% a participação do produto na pauta de exportações
brasileiras, correspondentes a 1,5% do PIB do país
369
.
Com a expansão da fronteira agrícola no Centro-Oeste
brasileiro e, em menor medida, em regiões da Bolívia, do Paraguai e
do Nordeste argentino, o desenvolvimento acelerado da região interior
da Bacia do Prata e o crescente vínculo internacional de sua economia
passariam a exigir soluções de transporte competitivas. Essa
necessidade viria a justificar a revalorização da via fluvial, uma vez
que, se navegados de Corumbá ao Atlântico, em boas condições, os
fretes graneleiros flúvio-marítimos poderiam chegar a representar
economia da ordem de 50% em comparação a outros meios de
transporte terrestre
370
; sendo, portanto, a Hidrovia, o meio mais viável
de garantir competitividade aos produtos do hinterland platino, no
mercado europeu, em relação aos provenientes da América do Norte.
Nessas condições, as necessidades de desenvolvimento das
regiões mediterrâneas e interiores da Bacia do Prata constituíram um
368
Esse potencial de expansão corresponde a três vezes a área brasileira cultivada com
soja e o Estado do Mato Grosso é a região que apresenta maiores condições de expandir
o cultivo de soja, no curto prazo.
369
Essa resposta deveu-se às excelentes condições climáticas e do solo da região bem
como do desenvolvimento de pesquisa na área de criação de novas variedades de soja e
da afluência de expressiva massa de recursos humanos especializados emigrada de
outros centros produtores do país. Ao reunir essas qualidades, que lhe garantem alto
valor protéico e, conseqüentemente, maior rendimento industrial, a produção de soja do
Centro-Oeste passou a merecer a preferência dos compradores internacionais de grãos.
Ver em FENSTERSEIFER, Milton e SILVA, Ricardo Arioli. Mato Grosso, HPP e
Integración. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de
Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n 763-G-11, pp. 290 e 291,
invierno 1991. Os autores são ex-presidentes da Associação de Produtores de Grãos de
Chapadão dos Parecis.
370
Koutoudjian, op. cit., p. 122.
167
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
dos fatores de indução do processo de mudança concreta do antigo
paradigma de antagonismos para outro pautado pela almejada
complementaridade harmônica. Exemplo claro dessa nova realidade
foi a busca pelo Brasil de saída fluvial na direção Norte-Sul, o que
levou o país a propor projeto compartilhado para melhorar as condições
de navegação dos rios Paraguai e Paraná. A iniciativa era de interesse
também da Argentina, não apenas por questões de ordem geopolítica,
já consideradas anteriormente, mas sobretudo porque percebida como
indispensável para impulsionar o desenvolvimento econômico do Norte
(NOA) e do Nordeste (NEA) argentinos
371
, assim como também o
era para o Paraguai e as regiões do oriente boliviano
372
.
1.3. O
ENQUADRAMENTO POLÍTICO-DIPLOMÁTICO
O processo da Bacia do Prata teve início, em 1967, antes
mesmo da assinatura de seu tratado constitutivo, quando se realizou
em Buenos Aires, a convite do Governo argentino, a I Reunião de
371
BOSCOVICH, Nicolás. Geoestrategia para la Integración Regional. Buenos Aires:
Ciudad Argentina, 1999, p.95.
372
Porém, não se pode deixar de considerar que a idéia de revalorização da via fluvial foi,
na realidade, suscitada pelo Uruguai. Ao ensejo da visita realizada ao Brasil, em agosto
de 1987, o então Ministro dos Transportes do Uruguai, Doutor Jorge Sanguinetti, em
contato com seu homólogo brasileiro, propôs a utilização, pelo Brasil, dos portos de
Nova Palmira e/ou Fray Bentos, ambos com profundidades para grande calado, situados
nas proximidades da desembocadura do rio Paraguai, para o escoamento da produção do
Centro-Oeste brasileiro aos mercados internacionais. A oferta despertou grande interesse
no Ministério dos Transportes e na Portobrás, tendo em vista que a viabilização da
Hidrovia viria a suprir grave deficiência de meios de transporte nos Estados do Mato
Grosso e de Rondônia, produtores de soja, minério de ferro, manganês e madeira.
Julgava-se à época que a reabilitação da via fluvial exigiria obras de retificação, dragagem
e balizamento naquele curso d’água, estimadas inicialmente pela Portobrás em cerca de
US$ 100 milhões, envolvendo trabalhos não só no trecho brasileiro, como também nos
trechos compartilhados com a Bolívia e o Paraguai. O tema foi então considerado pela
XIV Reunião Ordinária dos Ministros de Transportes e Obras Públicas do Cone Sul,
que, em novembro de 1987, decidiu acolher com simpatia a proposta do Brasil de
convocar Reunião de Ministros de Transportes da Bacia do Prata, com a finalidade de
lançar bases para plano de desenvolvimento integral do sistema fluvial Paraguai-Paraná
e de suas áreas de influência.
ELIANA ZUGAIB
168
Chanceleres dos países que integram a região. Na oportunidade, foi
assinada Declaração Conjunta em que se destacava o propósito desses
cinco países de levarem a cabo estudo integral da Bacia, com vistas à
realização de programa de obras multinacionais, binacionais e nacionais.
No mesmo ato, os chanceleres anunciaram a criação de órgão
permanente para o acompanhamento e centralização de informações
relacionadas a iniciativas de interesse para a região, o Comitê
Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia do Prata (CIC),
que viria a surgir no âmbito da II Reunião de Chanceleres.
Além de aprovarem o Estatuto do CIC, os Chanceleres assinaram,
na ocasião, a Ata de Santa Cruz de la Sierra, pela qual encomendaram ao
Comitê a preparação de projeto de tratado que institucionalizaria o processo
de cooperação recém iniciado. Na mesma Ata, definiram as iniciativas
prioritárias, consubstanciando-se programa de projetos concretos,
específicos ou compartilhados pelos cinco países membros, para os quais
se aprovava a realização de estudos prévios a sua execução.
Dentre os projetos compartilhados, figurava o de medidas para
a melhoria das condições dos rios Paraguai, Paraná, Uruguai e Prata,
com vistas à sua navegação permanente; e, dentre os apresentados
individualmente pelos países membros, incluía-se o da modernização e
possível incorporação do Porto do Rio Grande ao sistema platino,
vitória diplomática cara ao Embaixador Pio Corrêa. De acordo com
os termos da referida Ata, decidiam os Chanceleres:
(...) Estudiar los problemas a resolver y proyectar las
medidas a tomar (dragado, remoción de obstáculos,
señalización, balizamiento, etc.) para permitir la navegación
permanente y asegurar su mantenimiento en los ríos Paraguay,
Paraná, Uruguay y de la Plata, especialmente en los tramos
de Corumbá-Asunción, Asunción-Confluencia, Confluencia-
Río de la Plata, Salto Grande-Nueva Palmira, y prever el
sistema más adecuado para la recuperación de las inversiones
169
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
que resulte necesario efectuar y la compensación de los
servicios que demande el cumplimiento de este programa (...)
Teniendo en cuenta la posición especial del puerto de Río
Grande, que brinda intensa cooperación al área de la Cuenca
del Plata a la que está conectada por ferrocarril y carretera,
se recomienda la promoción de estudios con vistas a su
modernización y posible integración al sistema (...)
373
.
As circunstâncias em que ocorreu a coexistência desses dois
projetos ilustra uma das razões de o processo da Bacia do Prata haver-
se prestado durante longos anos mais como foco para solucionar os
diferenda entre as posições adotadas pelo Brasil e pela Argentina do
que para o desenvolvimento dos objetivos consagrados no tratado
constitutivo da Bacia do Prata, que seria assinado em 1969, por ocasião
da I Reunião Extraordinária de Chanceleres.
Inspirado nos propósitos da Declaração de Buenos Aires e da
Ata de Santa Cruz de la Sierra, o Tratado estabelece em seu artigo 1
o
que “As partes contratantes convêm conjugar esforços com o objetivo
de promover o desenvolvimento harmônico e a integração física da
Bacia do Prata e de suas áreas de influência direta e ponderável”
374
,
em cujo âmbito se insere o projeto HPP, instrumento natural de
integração física da região
375
.
373
Acta de la II Reunión Ordinaria de Cancilleres de los Países de la Cuenca del Plata. In:
PARAGUAY. Cuenca del Plata. Conferencias de Cancilleres, Documentos Básicos
(1967-1977). IX Reunión de Cancilleres, Asunción,: Ministerio de Relaciones
Exteriores,pp. 52-53, 5/8 dic. 1977.
374
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Coleção de Atos Internacionais, no.633
– Tratado da Bacia do Prata. Rio de Janeiro, 1971. p. 3.
375
Idem, pp. 3 e 4. Para atingir os objetivos previstos no Artigo 1
o
. do Tratado da Bacia
do Prata, seu parágrafo único estipula que os países partes deverão promover a
identificação de áreas de interesse comum e a realização de estudos, programas e obras,
bem como a formulação de entendimentos operativos e instrumentos jurídicos que
julguem necessários e que propendam, inter alia, à facilitação e assistência em matéria
de navegação e ao aperfeiçoamento das interconexões rodoviárias, ferroviárias, fluviais,
aéreas, elétricas e de telecomunicações.
ELIANA ZUGAIB
170
Passados menos de dois anos, em junho de 1971, os
Chanceleres reunidos em Assunção, ao mesmo tempo em que
aprovavam a controvertida Resolução nr. 25 sobre o aproveitamento
dos rios internacionais, já declaravam, pela Resolução nr. 3, “de interés
prioritario para la Cuenca del Plata, los trabajos de mejoramiento
de los ríos Paraguay, Paraná, Uruguay y de la Plata, como vías
navegables para asegurar su uso permanente”
376
.
1.3.1. G
ÊNESE DO PROJETO HPP: PROCESSO INSTITUCIONAL RUMO À
INTEGRAÇÃO
A preocupação com as intervenções de melhoramento dos rios
do sistema platino era registrada desde a II Reunião de Chanceleres
dos Países da Bacia do Prata, antes mesmo da assinatura de seu tratado
constitutivo
377
. Como decorrência, foi aprovada na XVII Reunião
Ordinária de Chanceleres, a resolução nr. 210 (XVII), na qual se
reiterava ser “de interés prioritario de los países miembros el
376
Acta de la IV Reunión de Cancilleres de la Cuenca del Plata, realizada em Assunção,
em 3 de junho de 1971. In: PARAGUAY. Cuenca del Plata. Conferencias de Cancilleres.
Documentos Básicos (1967-1977). IX Reunión de Cancilleres. Asunción: Ministerio
de Relaciones Exteriores de Paraguay, p.80, 5/8 dic. 1977.
377
No entanto, há autores que enfatizam que o interesse em assegurar a navegação
contínua na HPP, em toda sua extensão, de Porto Cáceres, no interior do Mato Grosso,
a sua desembocadura, no Rio da Prata, foi expressamente manifestada, pela primeira
vez, na XIV Reunião Ordinária dos Ministros de Transporte e Obras Públicas do
Cone Sul, realizada, em La Paz, em 1987. PAEZ, Rodolfo. Historia del Problema.
Síntesis de la Situación. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná,
Factor de Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n 763-G-11, p.
331, invierno 1991. Ver também DURRIEU, Mario A. e VAIHINGER, Carlos A. Las
enseñanzas de Storni y la situación actual. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía
Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento
n. 763-G-11, p.217, invierno 1991; CASTILLO. Jose Luis. Hidrovía Paraguay-Paraná.
In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración,
Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento
n. 763-G-11, p.304, invierno 1991;
MAJAS, Antonio Pedro. Aspectos jurídicos e institucionais da Hidrovía Paraguai-
Paraná. In: Revista Marítima Brasileira. v. 111 (7/9 e 10/12), p. 149, jul./set. e out./
dez/ 1991.
171
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
desarrollo del transporte fluvial determinado por los ríos Paraguay,
Paraná y Uruguay
378
.
Tardariam, contudo, duas décadas até que o plano da retórica
cedesse espaço ao dos fatos concretos. A partir de então, o processo
de incorporação do Programa da Hidrovia ao sistema do Tratado da
Bacia do Prata, que culminaria com a aprovação das resoluções nrs.
238 e 239
379
, pela XIX Reunião de Chanceleres, em 1989, obedeceu
a uma cronologia surpreendentemente rápida, baseada em situação
econômica concreta e em ação política decidida, motivada pela
necessidade de integração, que já vinha sendo pressentida desde o
início da década de 80, porém não se havia materializado.
Os países envolvidos nesse objetivo comum tinham presente
que a Hidrovia não era simples projeto de transporte, mas espaço
econômico para a integração e o desenvolvimento da região. Essa
aproximação física estava ligada aos anseios de irmanar vínculos
políticos e de crescimento econômico através da inter-relação de
seus mercados. O Mercado Comum Europeu e a união comercial
entre Estados Unidos, Canadá e México davam mostras suficientes
de que a América Latina não poderia mais postergar o início do
processo de sua própria integração.
Ao unir os países platinos, a Hidrovia representava
necessidade histórica e econômica, devendo ser o primeiro passo
em direção à integração regional e continental. Constituía o núcleo
do surgimento e desenvolvimento dos espaços internos latino-
378
Resolução N. 210 (XVII), acordada por ocasião da XVII Reunião Ordinária dos
Chanceleres da Bacia do Prata. Texto mimeografado. Disponível nos arquivos do
Comitê Intergovernamental dos Países da Bacia do Prata (CIC). Note-se que a
Resolução N. 3 (IV), emanada da IV Reunião de Chanceleres dos Países da Bacia do
Prata, realizada em Assunção, em 3/6/1971, já explicitava os mesmos termos da
Resolução N. 210, de forma mais contundente: “Resolve: 1. Declarar de interés
prioritario para la Cuenca del Plata, los trabajos de mejoramiento de los ríos Paraguay,
Paraná, Uruguay y La Plata, como vías navegables para asegurar su uso permanente”.
379
O Programa da Hidrovia foi incorporado ao sistema do Tratado da Bacia do Prata
pela resolução n. 238 (XIX) e a resolução nr. 239 (XIX) criou o Comitê
Intergovernamental da Hidrovia Paraguai-Paraná (CIH).
ELIANA ZUGAIB
172
americanos, para integrar seus mercados e viabilizar a competitividade
conjunta da região com o resto do mundo. A demanda de solução
urgente para a crise econômica por que atravessavam os países da
Bacia do Prata também fundamentava a determinação política de seus
governantes, que se deparavam com a difícil tarefa de viabilizar maior
eficácia ao transporte de sua produção aos portos de ultramar,
sobretudo a graneleira ao norte da Hidrovia e as tradicionais exportações
de minério de ferro, para lograr maior margem de desenvolvimento.
Nesse sentido, a Hidrovia convertia-se em experiência piloto
capaz de demonstrar a viabilidade da integração, não apenas por
responder à necessidade quase vital do desenvolvimento das regiões
interiores, mas por catalisar a convergência de interesses públicos e
privados em função de problemas comuns, que demandavam soluções
conjuntas. Além de recuperar o protagonismo fluvial, a Hidrovia criava
expectativas de impulsionar as produções agropecuária e industrial da
região, gerar empregos, elevar a qualidade de vida das populações
ribeirinhas e incentivar a participação da iniciativa privada na promoção
de novos pólos de desenvolvimento nas regiões interiores.
Em meio a esse clima propício ao processo de integração
regional, em 4 e 6 de abril de 1988, realizou-se, em Campo Grande,
Encontro Técnico, em que os países da Bacia do Prata expressaram
seus pontos de vista e apresentaram projetos e medidas para dinamizar
o transporte nos rios Paraguai e Paraná, ao qual seguiu-se, nos dias 7
e 8 subseqüentes, o I Encontro Internacional para o Desenvolvimento
da Hidrovia Paraguai-Paraná
380
. Na ocasião, os Ministros de Obras
Públicas e Transportes da Bacia do Prata aprovaram a execução de
estudo de pré-viabilidade econômica com o intuito de organizar e
380
O Ministério dos Transportes da República Federativa do Brasil preparou documento
intitulado “Primeiro Encontro Internacional para o Desenvolvimento da Hidrovia
Paraguai-Paraná”, para subsidiar as discussões do encontro, no qual figura entre as
recomendações “a elaboração de estudo de viabilidade técnica e econômica, visando à
obtenção de financiamento” e a “realização de estudos e projetos de engenharia,
objetivando a concretização das obras”. Cópia do documento encontra-se disponível
nos arquivos da sede do CIC, em Buenos Aires.
173
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
consolidar a informação disponível em cada país e de identificar as
alternativas mais adequadas para o desenvolvimento da Hidrovia. Com
vistas a coordenar a elaboração do referido estudo e preparar proposta
de criação de Comissão Executiva da Hidrovia, para ser submetida à
XVIII reunião dos Chanceleres
381
, decidiram constituir Grupo de
Trabalho Ad Hoc, integrado por representantes dos cinco países, com
mandato até a conclusão do estudo de pré-viabilidade
382
.
Em novembro do mesmo ano, os Ministros de Obras Públicas
e Transportes, reunidos na cidade de Canela, Rio Grande do Sul,
tomaram conhecimento do documento preliminar denominado Estudio
de Pré-factibilidad: Hidrovía Paraguay-Paraná e decidiram manter
o mandato do Grupo de Trabalho Ad Hoc, que proporia as bases e
supervisionaria a elaboração de estudo de viabilidade econômica da
Hidrovia. Deliberaram ainda adiar a proposta de criação de
Comissão Executiva de caráter supranacional, cuja apresentação
estava prevista para a XVIII Reunião de Chanceleres, até que esse último
estudo estivesse concluído e se dispusesse de sua análise e avaliação
383
.
Não obstante aquela decisão, o Governo da Bolívia apresentou
projeto de resolução à XVIII Reunião de Chanceleres, pelo qual
sugeria que se declarasse, desta vez, a implementação da Hidrovia de
interesse prioritário para a Bacia do Prata, com base na resolução nr.
210 (XVII), ao mesmo tempo em que recomendava fixar prazos para
a instalação da Comissão Executiva (90 dias) e convocar sua primeira
reunião (180 dias, no máximo)
384
. Na mesma ocasião, propôs a Bolívia
381
GRUPO DE TRABAJO AD HOC DE LOS PAÍSES DE LA CUENCA DEL PLATA.
Hidrovía Paraguay-Paraná. Estudio de Pré-Factibilidad. [S.l.], nov. 1988. pp. 1 e 2.
382
Ibidem.
383
Acta de la reunión de los Ministros de Obras Públicas y Transportes de los Países
de la Cuenca del Plata. Canela, Rio Grande do Sul, 25 de noviembre de 1988. In:
BOLIVIA. Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes –
Hidrovía Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. p. 12.
384
BRASIL. Embaixada em Buenos Aires. Telegrama oficial nr. 434, de 16/03/89. Ver
também Nota da Embaixada da República da Bolívia VA-097/017/89, dirigida ao Comitê
Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia do Prata (CIC), em 16/03/89.
ELIANA ZUGAIB
174
a realização de Conferência de Armadores da Bacia do Prata, idéia
acatada e consubstanciada na resolução 227 (XVIII), e, em junho do
mesmo ano, apresentou aquele país o documento “Lineamientos de
Orientación para implementar la Res. 227 (XVIII) de la Reunión
de Cancilleres de la Cuenca del Plata”, sugerindo que a mesma fosse
cumprida no curtíssimo prazo
385
.
Não demoraria até que, em setembro de 1989, reunidos, na
cidade de Santiago do Chile, os Ministros de Obras Públicas e
Transportes da Bacia do Prata, com o propósito de tomar conhecimento
dos trabalhos do Grupo Ad Hoc, decidissem:
(...)teniendo en cuenta la importancia transcendental
para la región que tendría el proyecto de transporte
fluvial a través de la Hidrovía de los ríos Paraná-
Paraguay, y reconociendo la necesidad de dar pasos
concretos conducentes a realizar ese proyecto, declaran
que han concordado en impulsar al más alto nivel
político dicho proyecto como factor de integración de
los países de la Cuenca del Plata, comprometiendo la
voluntad de los gobiernos para su pronta
concreción(...)
386
.
Dentre as decisões tomadas na ocasião, figuravam ainda a
da criação do Comitê Intergovernamental da Hidrovia Paraguai-
Paraná (CIH), em substituição à Comissão Executiva prevista nas
Atas de Campo Grande (abril de 1988) e de Canela (novembro de
1988), e a do estabelecimento de Secretaria pro tempore, com
385
CIC. Nota n. 198/89, de 18 de julho de 1989, que encaminha a Nota VA-369/076/89
da Embaixada da República da Bolívia, de 28/06/89.
386
Acta de la Reunión de los titulares de Obras Públicas y Transportes de la Cuenca del
Plata, realizada na cidade de Santiago do Chile, em 1 de setembro de 1989. In: BOLIVIA.
Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes – Hidrovía
Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. p. 17.
175
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
sede em Buenos Aires, cuja atribuição era organizar e preparar as
reuniões do CIH
387
.
Ato contínuo, os Chanceleres dos Países da Bacia do Prata
emitiam, no mês seguinte, diante de reconhecida necessidade de se darem
passos firmes na concretização do projeto Hidrovia, a Declaração de
La Paz, em que endossavam a decisão política dos ministros de
transportes de impulsionar no mais alto nível a implementação da iniciativa.
Instavam ao mesmo tempo a Secretaria pro tempore a convocar o CIH,
no mais breve prazo, para agilizar as gestões junto aos organismos
nacionais e internacionais com vistas a deles obter assistência financeira
ao projeto e a assessoria necessária à adoção de fórmula jurídico-
institucional para seu funcionamento definitivo
388
.
Dando curso ao compromisso de elevar o projeto de melhoria
das condições de navegabilidade da HPP ao mais alto nível político,
como fator de integração dos países da Bacia do Prata, em 1
o
de
março de 1990, seus Presidentes emitiram a Declaração de Montevidéu,
pela qual, “animados del espíritu integracionista que caracteriza a
sus pueblos”
389
, decidiram instruir os chanceleres a organizar, em
387
Ibidem. As tarefas dessa Secretaria seriam desempenhadas por grupo interministerial
de apoio, formado por funcionários argentinos da Secretaria de Transportes do Ministério
de Relações Exteriores e Culto. Ver em CASTILLO, Jose Luis. Hidrovía Paraguay-
Paraná. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de
Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n 763-G-11, p. 305, invierno
1991.
388
Declaración de La Paz, emitida na cidade de mesmo nome, em outubro de 1989. In:
BOLIVIA. Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes –
Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto de Nueva Palmira). Santa Cruz
de la Sierra. Diciembre de 1991. p. 13. Em novembro de 1989, dois meses após a reunião
de Santiago, delegação da Secretaria pro tempore visitou a sede do BID para tratar de
uma série de passos preliminares. A intenção era criar condições para a preparação e
execução de projeto de cooperação técnica que dotasse o CIH e os governos intervenientes
de adequada capacidade para colocar em andamento o programa de intervenções na
Hidrovia. Ver em Castillo, op. cit., p. 305.
389
Declaración de Montevideo, emitida pelos Presidentes dos cinco países da Bacia do
Prata, na cidade de mesmo nome, em 1º de março de 1990. In: BOLIVIA. Ministerio de
Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes. Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto
Cáceres-Puerto de Nueva Palmira). Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991, p. 15.
ELIANA ZUGAIB
176
coordenação com a Secretaria pro tempore, em abril do mesmo ano, a
primeira reunião do CIH, com o intuito de se proceder à imediata execução
das ações necessárias à continuidade dos trabalhos consignados na Ata de
Santiago do Chile, a qual acabaria realizando-se no dia 07 de maio de 1990.
Essa breve resenha da cronologia dos fatos que deram origem
ao projeto Hidrovia, antes mesmo da criação do Mercosul, coloca em
evidência a convergência de interesses dos cinco países em torno do
desenvolvimento da Hidrovia como fator de integração, atribuindo-lhe
prioridade máxima, conforme explicitado em praticamente todas as
declarações de alto nível, presidenciais e ministeriais. Embora alguns
autores insistam em afirmar que o projeto Hidrovia foi impulsionado
pela iniciativa privada
390
, e, em certa medida, terá para isso contribuído,
não resta dúvida de que a rapidez com que foi incorporado ao Sistema
da Bacia do Prata corrobora a tese proposta de que seu surgimento
lhe confere sentido político como símbolo da transformação do padrão
geopolítico na região e como contribuição para dar conteúdo à nova
política de integração que começava a aflorar e que hoje se expressa
na prioridade atribuída pelo governo Lula à América do Sul.
2. P
ROJETO HIDROVIA: ANTECEDENTES, OBJETIVOS E INSTRUMENTOS DE
CONSECUÇÃO
2.1. ANTECEDENTE REMOTO
A Hidrovia foi historicamente o eixo de penetração de carga
no interior da Bacia do Prata e, durante séculos, a forma de transporte
390
Afirma Boscovich que o projeto HPP nasceu por impulso da iniciativa privada, em
reunião convocada pela Câmara de Comércio Argentino-Brasileira, em 1988, da qual
participaram empresários e produtores de Cuiabá, em que se negociaram vários acordos
setoriais, com a intervenção daquela Câmara binacional e da Secretaria de Indústria, Comércio
e Turismo do Estado do Mato Grosso. O documento emanado da reunião, estabelecia que
os mecanismos de intercâmbio acordados dependeriam em grande medida de solução
satisfatória para o problema do transporte e assinalava que a única solução possível era a via
navegável, mediante a utilização do rio Paraguai. Ver em Boscovich, op. cit., p. 93.
177
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
que monopolizou os tráfegos de importação e exportação da região. É
bem verdade que a Hidrovia sempre existiu e se prestou a usos
tradicionais por longos anos. Porém, a visão do valor estratégico da
via como projeto, hoje percebida em decorrência da necessidade de
desenvolvimento do hinterland da Bacia do Prata e de sua vinculação
com os mercados internacionais, já a havia tido o Marechal Eloy Portelli,
por ocasião da expedição realizada ao rio da Prata, em 1815. Deixava
ele, à época, o seguinte registro do que se poderia chamar proposta
de “projeto” da Hidrovia apresentada ao então Príncipe Regente:
La venida de esta tropa disfrazada con esta primera
intención [ocupar o Uruguai] no es la misión de la expedición
(...). La margen oriental del Río de la Plata y la continuación
por el río Paraná y el Paraguay parece que la destinó la
naturaleza para que fuera el límite natural del Brasil (...).
La Capitanía de Mato Grosso está alejada y es tal vez la
más importante del Brasil. Posee grandes recursos naturales.
Con el tiempo se verá aumentada la población. Para ello es
necesario el medio de promover la exportación fácil de sus
productos a las capitanías del mar Atlántico (...). Pero para
realizar esta navegación por la desembocadura del Río de la
Plata es necesario que toda la margen oriental el río Paraguay,
Paraná y Río de la Plata pertenezca sin el menor impedimento
a la corona de Portugal (...) quedando dentro de los límites
las ciudades de Asunción, Corrientes, Santa Lucía, Santa Fe,
Rosario, Colonia del Sacramento, Montevideo y Maldonado,
a fin de proteger nuestras fronteras con firmeza de las
continuas irrupciones de los pueblos que la habitan
391
.
391
Memorial sobre la Expedición al Río de la Plata y las ventajas que de ello pueden
resultar a las capitanías del centro del Brasil. Esse documento histórico, parte integrante
de coleção privada de documentos sobre questões platinas (1808-1825), em português
e em espanhol, de propriedade da Princesa Carlota Joaquina e doada por um de seus
herdeiros, no início do século XX, ao embaixador argentino em Portugal, Luis M.
ELIANA ZUGAIB
178
2.2 O PROJETO HIDROVIA: CONCEPÇÃO E OBJETIVOS
Passar-se-iam quase dois séculos até que os fatos confirmassem
a astuta e extemporânea “antevisão” do valor estratégico da via fluvial
como solução mais imediata e natural para o desenvolvimento da região
central do Brasil, proposta que encontra hoje, em parte, e em contexto
distinto, sua reedição no projeto Hidrovia.
Grande parte do delineamento da iniciativa, que viria a dar forma
ao programa conjunto de intervenções para a melhoria das condições
de navegabilidade dos rios Paraguai e Paraná, tem suas bases
assentadas no Estudio de Pré-factibilidad
392
, concluído em novembro
de 1988, que assim o define:
(...) la Hidrovía Paraguay-Paraná, más que un proyecto de
transporte, es una realidad existente que solamente requiere
su adecuación a los nuevos tráficos que están surgiendo, a
las nuevas tecnologías de navegación y de movimiento de
cargas en los puertos y una gestión unificada internacional
393
.
Considerava ainda o estudo serem o custo do transporte e a
confiabilidade elementos de grande importância para a viabilidade
econômica da Hidrovia, entendido esse último “como la garantía de
atención de las demandas en los momentos oportunos
394
.
Cantilo, foi trazido à luz por JORGE RODRIGUEZ ZÍA, em sua obra intitulada
Puertos Preciosos, Buenos Aires: Círculo Militar, 1993, pp. 125 e 126. Trata-se do
documento nr. 427 da referida coleção.
392
O Documento “Estudio de Pré-factibilidad: Hidrovía Paraguay-Paraná”, elaborado pelo
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata, consolida e complementa
os relatórios elaborados por cada um dos cinco países intervenientes sobre as áreas mais
importantes de seus territórios, com o objetivo de apresentar, de forma ordenada, os temas
por eles julgados mais relevantes para o estudo de viabilidade econômica da hidrovia.
393
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata. op. cit., p. 4.
394
Segundo estimativas do CIH, se a hidrovia vier a funcionar em plena capacidade,
o transporte fluvial concorrerá com o rodoviário, em melhores condições. Calcula-
179
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
Deduz-se dessas assertivas e das motivações de ordem político-
econômico-comercial, que levaram à proposta do projeto Hidrovia,
seu objetivo imediato. Sob a ótica do transporte, busca converter o
eixo fluvial em meio eficiente e competitivo, compatível com os novos
tráfegos e com as modernas tecnologias de navegação, carregamento,
descarregamento e manipulação de todo tipo de produtos e
mercadorias. Prevê portos interiores modernos, terminais para barcaças
e grandes estações de transferência flúvio-marítimas no trecho meridional,
para reduzir os tempos de navegação e os custos de fretes e de operação
portuária
395
. Criavam-se expectativas de que o projeto traria benefícios
significativos de redução de custos de transporte e aumento das
exportações da região, principalmente as de minério de ferro e de soja
396
.
Entendia-se, dessa forma, que a eficiência da via fluvial natural
dependia da otimização de suas condições de navegabilidade, de se “permitir
se que a via fluvial oferecerá custo de US$ 20 por tonelada, em relação aos US$ 50
a 65 por rodovia e os US$ 38 a 45 por trem. Outros cálculos estabelecem que a
incidência do frete passará do atual US$ 0,009 t/km a US$ 0,005 t/km, similar à que
se registra no rio Mississipi. Ver em BLOCH, Roberto Transporte Fluvial. Buenos
Aires: Ad Hoc, diciembre, 1999. p. 77. Por sua vez, afirma o Estudio de Pré-
factibilidad que estudos realizados pela BRASCEP para a Portobrás/Electrosur
(1982), dão conta de que mesmo em condições naturais a Hidrovia oferece valores
competitivos em relação a outros meios de transporte, pp. 114-116. Essa
preocupação decorria do fato de que as vias fluviais de corrente livre estão sempre
sujeitas às alternativas aleatórias do regime hidrológico, que impedem alcançar o
alto nível de confiabilidade, característico das vias fluviais canalizadas, em que os
níveis de água e, portanto, as condições de tráfego são totalmente controláveis
pelas represas. Nessas condições, as variações de fluxos de cargas durante o ano
devem ser compensadas por redes de armazenamento de cargas na origem e no
destino, que por essa razão adquirem o caráter de condição essencial para as vias
navegáveis de corrente livre, como é o caso do rio Paraguai, sujeito à grande variação
de regimes hidrológicos, como o demonstra a observação ao longo de mais de 70
anos no trecho Ladário/Assunção. Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la
Cuenca del Plata. op. cit., pp. 114 e 115.
395
Boscovich, 1999, op. cit., p. 87.
396
PANAYOTOU, Theodore. A Hidrovia Paraguai-Paraná: Perspectiva de um
Economista Ambiental. In: O Projeto de Navegação da Hidrovia Paraguai-Paraná.
Relatório de uma Análise Independente. Brasília: Fundação Centro Brasileiro de
Referência e Apoio Cultural (CEBRAC) e Environmental Defense Fund (EDF), Capítulo
Oito, p. 187, 1997.
ELIANA ZUGAIB
180
una navegación constante a grandes convoyes de empuje las 24
horas del día, durante todo el año, entendiéndose además condición
prioritaria para este objetivo, el balizamiento y la señalización
diurna y nocturna
397
. Ainda no âmbito da I Reunião do CIH, realizada
em Buenos Aires em 07 de maio de 1990, ao definirem esse objetivo
do projeto, seus membros decidiram, além de priorizar a navegação
da Hidrovia, considerá-la seu motor de impulso, uma vez que dela
dependeria a reação da demanda do transporte fluvial e,
conseqüentemente, a reativação portuária e a renovação da frota, duas
ações decorrentes daquele objetivo. Explicitavam, ao mesmo tempo,
os membros do CIH, que a prioridade se faria por meio de obras de
implantação e manutenção, que incluíam, entre outras, as de dragagem
inicial, modificação e alinhamento dos canais de navegação,
aprofundamento em bancos de areia e passos pouco profundos,
remoção de fundos rochosos, sinalização e balizamento
398
.
Portanto, o projeto, em sua concepção inicial, divide-se em
três componentes: (a) o acondicionamento de 3.442 km da via
navegável entre Cáceres e Nova Palmira; (b) o desenvolvimento de
sistema portuário que permita a cada país dispor de acesso competitivo
ao rio e (c) a utilização de frota adaptada às características da nova via
acondicionada
399
.
Reveste-se também a iniciativa de fundamental importância para
o Mercosul ampliado, seu objetivo de maior alcance. Permitirá operar
397
Informe Final de la Primera Reunión del Comité Intergubernamental de la Hidrovia
Paraguay-Paraná, realizada em Buenos Aires, em 7 de maio de 1990. In: BOLIVIA.
Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes – Hidrovía
Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. p.23.
398
Ver em BOLIVIA. Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas,
Informes – Hidrovía Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991.
p.23. Ver também em CCT (?). Términos de Referencia de los Estudios de Ingeniería y
Plan de Ejecución para la Hidrovía Paraguay-Paraná, desde el Puerto de Nueva
Palmira a Cáceres. [S.l.], [199?]. p.3.
399
COMISIÓN DE LA COMUNIDAD EUROPEA. Misión Hidrovía. Informe síntesis,
abril/mayo, 1993.
181
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
eixo físico de integração entre seus quatro membros plenos e a Bolívia
e oferece a possibilidade de elo de ligação com a infra-estrutura física
da CAN.
Ella [Hidrovia] es un escenario de convergencia entre
el Mercosur y la Comunidad Andina de Naciones y resulta a
ser, además, un eslabón decisivo en las conexiones
interoceánicas que pueden multiplicar indefinidamente las
posibilidades comerciales de nuestra región. (...) arteria
navegable que se proyectará como la real y verdadera
columna vertebral del comercio regional (...) la hidrovía
resulta ser la solución práctica que se encuentra al alcance
de la mano, para lograr un transporte competitivo y, por
ende, un comercio regional eficiente y sustentable (...) Pero
lo más trascendente de todo, (...) el embarque y transporte
por la hidrovía representa un marco, una referencia de
gravitante importancia para el proceso de integración
latinoamericano en la búsqueda del desarrollo armónico y
la integración física de nuestros países, como camino para
el desarrollo económico y comercial de nuestra región y el
bienestar de nuestros pueblos
400
.
2.3. O ENQUADRAMENTO INSTITUCIONAL
A preocupação com a criação de estrutura institucional para o
projeto Hidrovia esteve presente desde as primeiras reuniões
ministeriais. A idéia inicial em favor de Comissão Executiva
supranacional, consubstanciada nas atas do I Encontro Internacional
sobre a Hidrovia e da Reunião de Ministros de Obras Públicas e
400
ROJAS PENSO, Juan F. La Hidrovía y su impacto en el comercio de la región. In:
HIDROVÍA, LA INTEGRACIÓN POSIBLE. [S.l.], [199?]. Texto mimeografado, p. 3.
Texto disponível no arquivo da Embaixada do Brasil em Buenos Aires.
ELIANA ZUGAIB
182
Transportes dos Países da Bacia do Prata, realizada em Canela, em
novembro de 1988, foi substituída pela do Comitê Intergovernamental
da Hidrovia (CIH). Essa decisão, tomada por ocasião do encontro
ministerial de Santiago do Chile, em 1
o
de setembro de 1989, tinha o
propósito de conferir bases mais permanentes às tarefas executadas pelo
Grupo de Trabalho Ad Hoc. Instituído pela Resolução n. 239 (XIX) e
apoiado técnica e administrativamente por Secretaria, com sede na
cidade de Buenos Aires, o CIH é assim definido em seu regulamento:
(...) o órgão do Sistema do Tratado da Bacia do Prata encarregado
de coordenar, propor, promover, avaliar, definir e executar as ações
identificadas pelos Estados membros relativas ao Programa
Hidrovia Paraguai-Paraná (Porto de Cáceres-Porto de Nova
Palmira), assim como de gestionar e negociar, prévia anuência
das autoridades nacionais pertinentes de cada país, acordos de
cooperação técnica e subscrever aqueles que não forem
reembolsáveis, para o desenvolvimento de um sistema eficiente
de transporte fluvial, constituindo-se no foro de entendimento para
os assuntos relacionados com este tema (...)
401
.
Mais tarde, o CIH viria a instituir uma Comissão de Coordenação
Técnica (CCT), órgão consultivo conformado por engenheiros e especialistas
ambientais, que passaram a reunir-se com o intuito de apresentar programa
para melhorar as condições de segurança e confiabilidade da via fluvial, de
forma coordenada entre os cinco países, a partir de suas propostas de ação
nas áreas de infra-estrutura e de meio-ambiente
402
.
401
Estatuto do Comitê Intergovernamental da Hidrovia Paraguai-Paraná (Porto Cáceres-
Porto de Nova Palmira). In: BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Hidrovia
Paraguai-Paraná. Documentos Básicos. Brasília, 10 de março de 1998. Capítulo II,
Artigo 2, p.2.
402
BRASIL. Ministério dos Transportes. Termos de Referência. Projeto Básico da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Engenharia e Meio Ambiente, no trecho Corumbá/Ladário/
Santa Fé, Maio de 2001, p. 4. A CCT foi criada durante a XXV Reunião do CIH, como
órgão técnico-consultivo do CIH.
183
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
Desde o início, a Hidrovia suscitou grande interesse no setor
privado (armadores e operadores), elemento dinamizador do eixo
fluvial, o que levou à criação da Comissão Permanente de Transportes
da Bacia do Prata (CPTCP), em abril de 1989, em Santa Cruz de la
Sierra, por grupo de empresários dos cinco países relacionados com o
transporte marítimo e integrantes de suas respectivas Câmaras de
Comércio. A criação da CPTCP imprimiu, à época, ritmo acelerado
às ações do CIH, sobretudo pela colaboração prestada nos trabalhos
de harmonização das legislações dos cinco países, com o intuito de
permitir o livre acesso de seus armadores à Hidrovia
403
.
Ao setor privado, parte integrante do desenvolvimento da frota,
reserva-se papel determinante na gestão e organização dos portos, ao
exercer aquele segmento a função primordial de força multiplicadora
dos investimentos, com vistas a aumentar o efeito estruturante da via
fluvial
404
.
2.4. O
ENQUADRAMENTO JURÍDICO-LEGAL E NORMATIVO
Uma vez instalada a estrutura institucional do projeto Hidrovia,
uma das primeiras ações importantes do CIH foi dar início às
negociações de normas comuns aos cinco países relativas à navegação
e ao comércio fluvial. Em dezembro de 1991, por ocasião de sua VII
Reunião Ordinária, realizada em Santa Cruz de la Sierra, concluíam-se
403
MUÑOZ MENNA, Juan Carlos. El Sector Privado y la Hidrovía. In: Boletín del
Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires,
año 110, v. 109, suplemento n. 763-G-11, p. 302, invierno 1991. Ver também em
Castillo, op. cit., p. 312; Bloch, op. cit., pp. 92 e 93 e Boscovich, 1999, op.cit., p. 109.
404
Ao se reunirem, pela segunda vez, em Buenos Aires, em agosto de 1990, e tendo
presente esse fato, os membros do CIH destacaram a importância da participação do
setor privado no “Programa da Hidrovia” e acordaram que caberia a cada país estabelecer
o grau de seu envolvimento na execução das obras de melhoria da via fluvial. Informe de la
II Reunión del Comité Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná, realizada
em Buenos Aires de 14 a 17 de agosto de 1990. In: BOLIVIA. Ministerio de Relaciones
Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes. Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-
Puerto de Nueva Palmira). Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. pp. 34 e 35.
ELIANA ZUGAIB
184
as negociações do Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia
Paraguai-Paraná
405
, que, juntamente com seus seis Protocolos
Adicionais, seria assinado, em Las Leñas, República Argentina, em 26
de junho de 1992
406
, quando da VII Reunião Extraordinária do CIH,
e entraria em vigor em 13 de março de 1995
407
. Por ocasião da XXIII
Reunião do CIH, realizada em setembro de 2003, em Santa Cruz de
la Sierra, os países membros manifestaram intenção de prorrogar a
vigência do referido Acordo, que expira em março de 2005
408
. Durante
405
Por ocasião da III Reunião Extraordinária do CIH, realizada em 27 de setembro de
1991, em Buenos Aires, as delegações acordaram que a estrutura do regime de transporte
para a Hidrovia deveria ser flexível, abrangendo a aprovação de um acordo quadro que
contivesse princípios gerais e a celebração de Protocolos Adicionais sobre assuntos
específicos. Favoreceram também o princípio da liberalização e simplificação de normas
e procedimentos com vistas a reduzir substancialmente os custos de transporte e a
permitir maior competitividade. Recomendaram harmonizar as legislações e incluir no
Acordo normas destinadas a propiciar o máximo de segurança à navegação e a previnir
a contaminação. Ver em BRASIL. Embaixada em Buenos Aires. Telegrama nr. 1160, de
28/09/91.
406
Sem prejuízo de sua vinculação jurídica com o Tratado da Bacia do Prata, de 1969,
o Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-Paraná e seus Protocolos
Adicionais (sobre assuntos Aduaneiros, Navegação e Segurança, Seguros, Condições de
Igualdade de Oportunidades para uma maior Competitividade, Solução de Controvérsias
e Cessação Provisória de Bandeira) foram subscritos no âmbito da ALADI, como
Acordo de Alcance Parcial do Tratado de Montevidéu, assinado em 1980. Note-se que,
no início, a Argentina opôs-se à celebração do Acordo de Transporte e favoreceu a
institucionalização da Hidrovia por meio de um Tratado específico, em função de
interesses como reserva de bandeiras e praticagem defendidos por funcionários do
Ministério da Marinha que estiveram envolvidos no projeto Hidrovia desde o primeiro
encontro em Campo Grande, e também por entender o San Martín, sobretudo seu
negociador, à época, o Embaixador Felix Peña, que seria preferível não vincular o Acordo
ao Tratado da Bacia do Prata, cujos organismos considerava emperrados e anacrônicos
e, portanto, incapazes de levar adiante projeto do porte da HPP. Essa posição foi
flexibilizada na III Reunião Extraordinária do Comitê, tendo em vista a adoção de
política interna que visava à máxima desregulamentação possível para favorecer a redução
dos custos do transporte na Argentina.
407
O Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-Paraná e seus protocolos
adicionais foram aprovados pelo Congresso Nacional do Brasil, pelo Decreto Legislativo
n. 32 de 16 de dezembro de 1994 e passaram a vigorar a partir de sua ratificação e
notificação, em10 de janeiro de 1995.
408
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores,Circular Telegráfica, n. 47629/833, de
06/11/2003.
185
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
a Reunião Extraordinária do CIH, realizada em Buenos Aires, no dia
16 de setembro de 2004, as delegações aprovaram decisão na qual
expressaram a vontade de proceder à prorrogação do Acordo, por
período de 15 anos, a partir de sua protocolização na ALADI, o que
se fará pelo VII Protocolo Adicional
409
.
O referido enquadramento jurídico-legal da HPP fundamentou-
se no convencimento de que, para se lograr a integração regional, seria
necessário dispor de serviços de transporte e comunicações eficientes
e atualizados, para o que a Hidrovia se apresentava como meio
adequado, por constituir importante fator natural de integração física e
econômica da Bacia do Prata. Desde que garantidas, porém, a liberdade
de trânsito fluvial e de transporte de pessoas e bens; a livre navegação;
a eliminação das barreiras e das restrições administrativas, bem como
a supressão de regulamentação supérflua
410
.
O Acordo prevê como órgãos responsáveis por sua aplicação,
o CIH e a Comissão do Acordo (CA). Seguindo a metodologia do
Tratado da Bacia do Prata, o CIH funciona como seu instrumento
político, e a CA como seu órgão técnico, cujas funções se restringem a
estudar, propor, recomendar, zelar e informar o CIH sobre o
cumprimento das disposições do Acordo. Agregue-se a isso que cada
país tem direito a um voto e as decisões são tomadas por unanimidade,
com a presença de todos
411
.
O grande objetivo do instrumento celebrado em Las Leñas
consiste em facilitar a navegação e o transporte fluvial longitudinal ao
longo da HPP, mediante o estabelecimento de enquadramento normativo
comum que favoreça a eficiência e a modernização de tais atividades e
409
Ver em CIH. Acta de la Reunión Extraordinaria del Comité Intergubernamental de la
Hidrovía Paraguay-Paraná, realizada em Buenos Aires, nos dias 16 e 17 de setembro
de 2004; e em BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Despacho Telegráfico para
a ALADI nr. 326, de 18/10/04.
410
Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-Paraná (Porto de Cáceres-
Porto de Nova Palmira), Preâmbulo. In: BRASIL. Ministério das Relações Exteriores.
Hidrovia Paraguai-Paraná. Documentos Básicos. Brasília, 10 de março de 1998, p. 1.
411
Idem. p. 6.
ELIANA ZUGAIB
186
permita o acesso, em condições competitivas, aos mercados de
ultramar
412
. Por conseguinte, é aplicável à navegação, ao
transporte de bens e pessoas e ao comércio, ficando expressamente
excluídos de seu escopo o tráfego transversal
413
e a navegação
de cabotagem. O fenômeno mais destacado do espírito
integracionista do Acordo é o princípio de igualdade de
tratamento, consagrado em seu Capítulo III, do qual derivam os
seguintes elementos fundamentais: o tratamento idêntico e
recíproco para o movimento de embarcações dos países
signatários; a obrigação de compatibilizar e uniformizar legislações
para criar condições de igualdade de oportunidades e favorecer
a maior competitividade aos países signatários
414
.
Considera-se o Acordo de Transporte Fluvial como um dos
exemplos mais claros do novo Direito Internacional, condicionado pela
macro-regionalização dos recursos do planeta; pela adoção do
consenso como método da elaboração legislativa; pela defesa do
equilíbrio ecológico e pela queda das barreiras ideológicas
415
. No que
diz respeito à questão ambiental, o Capítulo XV, Artigo 34, garante
aos signatários o direito de adotarem medidas para proteger o meio
ambiente, de acordo com suas respectivas legislações, descartando o
risco de seu eventual nivelamento por baixo. Esse dispositivo torna
delicada a tarefa da Comissão do Acordo, incumbida de a um só tempo
412
ALZUETA, Adrián, M. Derecho de Navegación. Problemas Jurídicos derivados de
la Hidrovía Paraguay-Paraná. In: UNIVERSIDAD NACIONAL DEL LITORAL.
Secretaría de Posgrado y Servicios a Terceros. Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales.
Colección Jurídica y Social. pp. 6 e 8. Ver também em Bloch, op. cit., p. 71.
413
No entender do superintendente da Adminstração da Hidrovia do Paraguai (AHIPAR),
Dr. Fermiano Yarzon, o tráfego de barcaças no sentido transversal, que pode afetar as
margens dos rios, demandaria revisão do Acordo a fim de submetê-lo também à
regulamentação comum. Informação verbal prestada à autora por ocasião da Reunião
Extraordinária do CIH realizada, em Buenos Aires, nos dias 15 e 16 de setembro de
2004.
414
Ver em Alzueta, op. cit., p. 15 e Bloch, op. cit., p. 73.
415
Alzueta, op. cit., p. 3.
187
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
assegurar a modernização e a intensificação do tráfego na Hidrovia e
garantir a segurança e a proteção do meio ambiente
416
.
2.5. O
SIGNIFICADO PARA OS PAÍSES BENEFICIADOS
O sistema fluvial Paraguai-Paraná desempenha importante papel
para a integração e possibilita o desenvolvimento sustentável em sua
área de influência, ao integrar zonas de produção agrícola e mineral às
de processamento industrial situadas no estuário do Prata
417
.
Como assinalado no Capítulo I, o espaço regional integrado
requer sistema de transporte e comunicações que outorgue sustentação
material e logística à integração produtiva, comercial e tecnológica.
Nesse sentido, a Hidrovia é projeto de infra-estrutura e, como tal,
fator básico da integração regional e das relações comerciais intra e
inter-regionais. Os benefícios advindos das intervenções para a melhoria
das condições de navegabilidade dessa via fluvial natural poderá
conferir-lhe, assim, o caráter de coluna vertebral do comércio
regional
418
. Proporciona, por meio de considerável redução dos custos
de transporte, o aumento da competitividade e das possibilidades de
exportação dos produtos da região, alentando com isso o crescimento
das economias regionais e favorecendo a integração econômica, política
e social dos países que se encontram sob sua área de influência
419
. É
416
HAPPE, Barbara Maria. Os Caminhos da Sustentabilidade Cinco Anos depois da
Rio 92. O Papel Político, Econômico e Social do Projeto Hidrovía Paraná-Paraguai
(HPP) para o Brasil Marburg, Alemanha:Philipps- Universität Marburg. Fachbereich
Gesellschaftswissenschaften und Philosophie, Institut Für Politikwissenschaft, outubro,
1997, p. 24. Menção a comentário feito por um dos membros brasileiros da Comissão
do Acordo, F. Fixel.
417
BRASIL. Ministério dos Transportes. Termos de referência. Projeto Básico da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Engenharia e Meio Ambiente no trecho Corumbá/Ladário
– Santa Fé. Maio de 2001. Modelo Matemático, p. 3.
418
Rojas Penso, op. cit., p. 3.
419
BLOCH, Roberto D. Transporte Fluvial. Buenos Aires: Ad Hoc, diciembre, 1999.
pp. 68, 69.
ELIANA ZUGAIB
188
também projeto de importância geopolítica. Contribui para diminuir as
assimetrias, uma vez que, ao propiciar aos chamados países menores
a oportunidade de desenvolver suas economias, forjará maior equilíbrio
entre os membros do Mercosul, elemento indispensável ao processo de
integração.
É importante notar que, embora a iniciativa do projeto HPP
assente suas âncoras em interesses coincidentes quanto aos seus altos
objetivos – integração regional, obtenção de cooperação regional e
aproveitamento comercial mais eficiente da principal artéria do sistema
fluvial da Bacia do Prata – envolve interesses distintos quando se considera
a relação custo benefício do projeto para cada país. Esses interesses
adquirem ainda distintos matizes de acordo com as características da
localização geográfica e do perfil produtivo desses países.
2.5.1. A
RGENTINA
Na Argentina, o projeto Hidrovia encerra significado geopolítico
ao representar a restauração do eixo longitudinal, objetivo perseguido
ao longo de décadas de disputa com o Brasil, para, entre outras razões,
manter agregados ao seu território a mesopotâmia e as regiões do
Norte (NOA) e do Nordeste (NEA). Como assinalou Nicolás
Boscovich ao tecer comentário sobre os benefícios que traria a Hidrovia
para o Brasil e para a Argentina: “El Brasil verá extraordinariamente
facilitadas sus posibilidades de desarrollar sus regiones
mediterráneas – la ‘interiorización’ brasileña – y la Argentina soldar
geoeconómicamente el NOA, el NEA y la Mesopotamia a una
unidad espacial abarcativa de todo el país”
420
.
À parte essa conotação, constitui dado importante dispor a
Argentina da maior extensão de vias navegáveis do sistema Paraguai-
Paraná (1661 km), cuja otimização contribuirá para incrementar o
420
BOSCOVICH, Nicolás. El futuro argentino en la Cuenca del Plata. La Hidrovía Paraguay-
Paraná-Río de la Plata. In: Geopolítica, Buenos Aires, año XVI, n. 40, p. 41, 1990.
189
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
comércio com vasta zona do interior do país, ao permitir a integração
ferroviária/fluvial que converta zonas marginais em produtivas
421
.
O empreendimento da Hidrovia reveste-se, ainda, de
fundamental relevância, sobretudo por constituir o rio Paraná a coluna
vertebral da zona de maior desenvolvimento do país, uma vez que, ao
banhar o eixo Santa Fé/Rosário/Buenos Aires, abarca 85% do Produto
Interno Bruto e 75% da população argentinos
422
. Mais de 60% das
exportações agrícolas são embarcadas sobre o rio, representando
aproximadamente 25% do total das exportações do país
423
. Sua
passagem pela Argentina outorga-lhe também outro benefício relevante,
já que no trecho inferior do Paraná se localizam os portos com maiores
facilidades de transbordo e de armazenagem para o comércio de
ultramar
424
.
Embora a participação do país no projeto demande esforços
para oferecer alternativas portuárias à saída dos produtos da região
com destino a portos de ultramar, tendo em conta os 2.000 km de rios
que correm em território argentino, já eram realizados ao longo das
421
A Eclusa de Yaciretá possibilitará um crescimento agrícola em Missiones e, com as
privatizações, o ramal ferroviário que chega a Formosa e Barranqueiras poderá abrir
caminho à produção do NOA, permitindo, assim, a integração ferroviária/fluvial que
converta zonas marginais em produtivas. Ver em SAYAGO, Pablo Ferres. Cuenca del
Plata. Transporte Fluvial y Marítimo. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía
Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento
n 763-G-11, p. 247, invierno 1991.
422
BRAIDOT, Nestor P. Un Proyecto Actual, una realidad futura? In: Boletín del
Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires,
año 110, v. 109, suplemento n 763-G-11, p. 284, invierno 1991. Ver também em Grupo
de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca Del Plata, op. cit., p. 13.
423
Bloch, op. cit., p. 68. Comenta ainda Bloch (p.78) que 70% das exportações agrícolas
argentinas são transportadas pelos rios da Prata e Paraná. O transporte de cereais
costumava demandar 900 barcos anuais. Com o aumento da profundidade do rio, serão
necessários apenas 600 barcos. Um barco tipo Panamax com capacidade para 60.000 t
até pouco tempo podia carregar mais de 25.000 t nos portos do Paraná, e se o projeto
Hidrovia for implementado, poderá encher seus porões nesses portos. Ver também em
I.I.E. El Balance de la Economía Argentina, op.cit., p. 311.
424
SGUT, Martin. Integración en el Sector Transporte en el Cono Sur. Puertos y vías
navegables. Buenos Aires: BID-INTAL, 1997, p. 5.
ELIANA ZUGAIB
190
últimas décadas importantes investimentos na infra-estrutura de
armazenamento, recebimento e embarque de grãos e subprodutos,
fundamentalmente pelo setor privado
425
. Sendo a Argentina o país que
dispõe da maior frota em operação na Hidrovia, é de interesse que se
melhorem as condições de navegabilidade dos rios e se utilizem os
serviços de seus portos localizados ao longo de mais de 400 km do rio
Paraná
426
. Outra vantagem adicional que proporciona o projeto à
Argentina é a oportunidade de reduzir os custos diretos do país, uma
vez que os investimentos em infra-estrutura portuária do rio Paraná
poderão vir a ser compartilhados com o setor privado. Abre-se espaço
também à oportunidade de desenvolver economia de escala mais
eficiente, o que requer instalações portuárias adequadas e grandes
volumes de cargas, compatíveis com a tendência ao tráfego do comércio
marítimo internacional em grandes containers de uso múltiplo para
lograr redução de custos
427
.
2.5.2. B
OLÍVIA
A relevância da Hidrovia para a Bolívia extrapola os aspectos
econômicos. É sua oportunidade de conseguir a tão ansiada saída ao
mar que a liberte das limitações impostas por sua mediterraneidade
428
,
ainda que não abram os bolivianos mão da saída bioceânica como
deixou claro René Sanchez Maesse:
425
Braidot, op. cit., p. 285. O setor privado argentino está investindo 900 milhões de
dólares na ampliação da planta de produção de Rosário. Ver em BASADONNA, Juan
Antonio: depoimento [20 out.2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
426
CLEAVER, Vitória Alice. Discurso pronunciado na Escola Nacional de Inteligencia
de la República Argentina. Buenos Aires, 21 de abril de 1993, p. 16, disponível no
arquivo da Embaixada do Brasil em Buenos Aires. Veja também em MAZONDO, José
Osvaldo. La Navegación en la Cuenca del Plata. In: Boletín del Centro Naval: La
Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109,
suplemento n 763-G-11, p. 235, invierno 1991.
427
Sanguinetti, op. cit., p. 81 e Boscovich, 1990, op. cit., p. 41.
428
Mazondo, op. cit., p. 235.
191
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
La utilización plena de esta vía de agua constituye
una alternativa dinámica, con vistas a consolidar
definitivamente nuestro acceso al Atlántico. Todo ello, sin
apartarnos en ningún momento de las políticas orientadas
al derecho que nos asiste en el Océano Pacífico. (...) Para
Bolivia, la utilización de la Hidrovía Paraguay-Paraná
constituye la vía más efectiva para la implementación de un sistema
de transporte fluvio-marítimo intermodal, económico y
competitivo, que le permita la explotación de sus recursos
renovables y no renovables, con vistas a lograr el libre
intercambio de sus productos y potencial económico con los países
de la Cuenca del Plata y con el resto del continente, integrando
y proyectándola hacia un beneficioso comercio
429
.
A Hidrovia é fator essencial para o crescimento do país. Com
seu enclausuramento mediterrâneo, precisa da via fluvial para o
escoamento da produção agropecuária de Santa Cruz de la Sierra e
das minas de Mutum aos mercados internacionais, cuja utilização
permitirá também gerar fretes de retorno e baratear os custos de
importação
430
.
A necessidade de abastecimento da região Sul, especialmente
Santa Cruz de la Sierra, sua cidade industrial, é vital. O Departamento
de Santa Cruz é responsável pelo cultivo de mais de 45% das terras
agricultáveis bolivianas e mais de 40% da produção agropecuária
nacional, além de concentrar o maior potencial hidrocarbonífero do
país e as importantes jazidas de ferro e manganês de Mutum
431
.
429
SANCHEZ MAESSE, René. Nueva Tesis Geopolítica. In: Revista de la Escuela de
Inteligencia, Buenos Aires, Vol. II, n. 2, pp. 116 e 120, segundo cuatrimestre, 1993.
430
A Bolívia também precisa da HPP para baratear suas importações, como por exemplo,
os carregamentos de trigo que, ao ingressarem pelos portos do Chile, cuja infra-estrutura
é inadequada, se expõem muitos meses às intempéries e correm o risco de contaminação
e perda de valor. Ver em Braidot, op. cit., p. 287.
431
Boscovich, 1990, op. cit. p. 110.
ELIANA ZUGAIB
192
O caso da região oriental boliviana é análogo ao do Mato
Grosso. As alternativas que lhe restam são as ferrovias brasileiras ou
argentinas. Até pouco tempo atrás, o oriente boliviano dependia
economicamente da extração de minérios da zona ocidental, cuja
comercialização fazia-se primordialmente pelos portos do Oceano
Pacífico. Porém, o desenvolvimento da zona de Santa Cruz de la Sierra,
impulsionado pela exploração do petróleo e, mais recentemente, pelo
cultivo da soja, despertou o interesse pela valorização do transporte
fluvial
432
. Essa contingência explica, de certa forma, a precipitação do
governo boliviano de propor já na XVIII Reunião de Chanceleres que
se declarasse de interesse prioritário a implementação da Hidrovia.
Essas são as principais razões que explicam a prioridade
atribuída pelo governo boliviano à melhoria das condições de
navegabilidade do Canal Tamengo, mediante a dragagem de Porto
Aguirre à desembocadura do rio Paraguai.
2.5.2.1. P
OSTURA DO BRASIL NA SOLUÇÃO DOS PROBLEMAS DO
CANAL TAMENGO
A Hidrovia beneficia particularmente o oriente boliviano, região
que cresce em ritmo vertiginoso e já se converte em pólo de
desenvolvimento do país, que aos poucos diversifica sua economia, antes
atrelada à extração mineral. A esse respeito, afirmava Jorge Sanguinetti:
Y es por eso que Brasil actuó con generosidad también,
dejando viejos conflictos y confrontaciones para poder
buscar y darle a través de ese Canal Tamengo, las salidas
432
O escoamento da soja para o mercado europeu fazia-se por ferrovia brasileira até a
costa atlântica a um custo que, se bem elevado, era suportável tendo por base o preço
da mercadoria. A queda do preço da soja e o aumento considerável do custo do transporte
por via terrestre fez com que os bolivianos, por intermédio das Câmaras de Comércio,
impulsionassem com maior vigor o rompimento de sua mediterraneidade, mediante a
utilização da via fluvial, com saída ao Rio da Prata. Malins, op. cit., p. 311.
193
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
de Bolivia al río Paraguay, y a través del sistema del Río
Paraguay y Paraná, la salida al Atlántico
433
.
O acesso da região ao rio Paraguai, na fronteira com o Brasil,
é viabilizado pelo sistema Tamengo, hidrologicamente dependente desse
rio e pertencente quase integralmente ao Brasil
434
. As autoridades
bolivianas têm manifestado preocupação com problemas apresentados
principalmente em decorrência da redução do fluxo de água do Canal
Tuiuiú que deságua na Lagoa Cáceres, supostamente causada por
obstáculos de cimento no lado brasileiro. Alegam que estudos
hidrológicos indicam a possibilidade de a Lagoa de Cáceres vir a secar
e ameaçar sua única saída de acesso ao mar
435
.
O tratamento do assunto passou a ser recorrente nas reuniões
do CIH e, em setembro de 2003, por ocasião da III Reunião de
Comandos Navais Fronteiriços Brasil-Bolívia, decidiu-se pela realização
de estudos para o levantamento das causas do assoreamento do
Sistema Tamengo e possíveis soluções para a questão. Em maio de
433
Sanguinetti, op. cit., p. 80.
434
Para os territórios do Norte boliviano (zona de Beni), o acesso ao Oceano Atlântico,
por meio da Bacia do Amazonas é alternativo, já que não contam com acessos rodoviários
e ferroviários até La Paz ou Santa Cruz de la Sierra. A rede rodoviária brasileira oferece
opção para a saída dos produtos dessa região próxima ao porto de Manaus, onde
atracam embarcações de ultramar, com saída ao Atlântico. Bloch, op. cit., p. 162.
435
Assim como o sistema Tamengo inunda os campos por meio das enchentes do rio
Paraguai e de precipitações extraordinárias, também pode chegar a secar em épocas de
estiagem severa. Há evidência de que esteve completamente seco no período de 1960-
1969, ainda que o rio Paraguai tenha mantido os níveis críticos de água. ANGULO
CABRERA, Gildo. La Navegabilidad en el Río Paraguay: Proyectos Portuarios
Bolivianos. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de
Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n 763-G-11, p. 157, invierno
1991. Comenta ainda Angulo Cabrera que possíveis alternativas de saída ao Atlântico
seriam Puerto Busch ou a canalização do Bermejo que uniria grande parte do território
boliviano com um porto no curso das águas do rio Paraguai, proporcionando acesso
mais próximo ao Atlântico do que Puerto Busch ou o canal Tamengo, distância que seria
reduzida em 1300 km. Outras opções de a Bolívia ligar-se à Hidrovia seriam as Lagoas
de Uberaba, Gaiba e Mandiore, que se comunicam com o Paraguai por pequenos canais
brasileiros navegáveis temporariamente. Ver também em BRASIL. Ministério das
Relações Exteriores. Circular Telegráfica n. 42864/154, de 01/03/2002.
ELIANA ZUGAIB
194
2004, por sugestão do chefe da delegação brasileira, acordou-se
aprofundar os mencionados estudos, para o que foi criada Comissão
Mista Técnica Brasil-Bolívia, com a missão de realizar trabalhos de
investigação e apresentar propostas de solução para o problema, no
que diz respeito a aspectos hidrológicos e ambientais
436
.
Outra reivindicação do governo boliviano diz respeito à
flexibilização das limitações da dimensão de comboios que transitam
pelo Canal Tamengo, impostas pela Marinha do Brasil e justificadas
por questões de segurança de navegação e da possibilidade de que a
tomada de água da cidade de Corumbá possa afetar seriamente a vida de
cerca de 125 mil habitantes
437
. Embora essas regras sejam condicionadas
por questões de segurança
438
e não impliquem discriminação de bandeira,
representam custos excessivamente onerosos para os exportadores
bolivianos.
Nesse sentido, o governo boliviano formulou pedido para que
as Normas e Procedimentos da Capitania Fluvial do Pantanal fossem
revistas para permitir o tráfego de comboios maiores no trecho
compreendido entre o Farolete Balduíno e o sistema de captação de
água de Corumbá, com vistas a evitar que a obrigatoriedade de seu
desmembramento prejudique a economia do país. Em atenção ao pleito
do governo boliviano, o Brasil dispôs-se a diminuir o prazo de conclusão
dos estudos iniciados pelos dois países, destinados a avaliar a
possibilidade de mudança da configuração de comboios e de atribuir
436
MELO, Renato Batista de. Considerações sobre a Hidrovia Paraguai-Paraná.
BRASIL. Marinha do Brasil. Divisão de Assuntos Marítimos e Ambientais. Brasília, 1
set. 2004. pp.9 e 10. Texto mimeografado.
437
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica nr. 46065/321, de
19/05/2003.
438
As restrições aplicam-se não apenas à passagem na tomada de água da cidade de
Corumbá, mas a todo o trecho que se estende até o Farolete Balduíno, em função das
características do fundo rochoso do rio no espaço entre o Farolete e sua margem. Ver em
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Despacho telegráfico n. 415 para a
Embaixada em La Paz, de 06/10/2003, que relata as conversações mantidas entre os
chefes das delegações brasileira e boliviana à margem da XXXIII Reunião do CIH,
realizada em Santa Cruz de la Sierra, de 22 a 25 de setembro de 2003.
195
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
tratamento diferenciado às embarcações de acordo com o tipo de carga
transportada e do risco que representa para o meio ambiente
439
.
Embora as regras de tráfego de comboios tenham sido
alteradas, em reunião bilateral realizada em maio de 2004, não
atendem plenamente a reivindicação boliviana. A existência de
obstáculos na área – as reduzidas larguras e profundidades em
determinados trechos e épocas do ano, bem como a presença de
algumas construções, como o sistema de captação de água da cidade
de Corumbá e o Farolete Balduíno – constituem o principal
impedimento à passagem de comboios com 4 barcaças (2x2+1) em
tempo integral, como quer a Bolívia
440
.
O espírito de cooperação no atendimento das reivindicações
bolivianas foi consignado no Comunicado Conjunto dos Presidentes
Lula e Mesa:
(...) os presidentes coincidiram que a Hidrovia Paraguai-Paraná
constitui um eixo de desenvolvimento sócio-econômico binacional
e regional. Nesse sentido, determinaram o exame de medidas
que, preservando o meio ambiente, facilitem a navegação e as
operações fluviais nas águas jurisdicionais da Bolívia e do Brasil
e a busca de uma solução para a questão da tomada de água no
Canal Tamengo
441
.
O Comunicado, associado às iniciativas mencionadas, corrobora
a postura de colaboração do governo brasileiro na solução dos
problemas apresentados no Canal Tamengo.
439
Ver em BRASIL. Ministério das Relações Exteirores. Despacho telegráfico n. 415
para a Embaixada em La Paz, de 06/10/2003.
440
MELO, Renato Batista de. op. cit., p.8.
441
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Comunicado Conjunto dos Presidentes
da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da República da Bolívia,
Carlos D. Mesa. Brasília. 18 nov. 2003. Disponível em <www.mre.gov.br/portugues/
imprensa/nota_detalhe.asp?ID_RELEASE=2014>. Acesso em: 13 mar. 2004.
ELIANA ZUGAIB
196
2.5.3. BRASIL
O Brasil é o país da região que menos depende da Bacia do Prata
para seu desenvolvimento. Dispõe da maior e mais importante parte da Bacia
Amazônica, com 4,5 milhões de km²; extenso litoral de 8,5 mil km, bem
posicionado em relação aos EUA, à Europa e à África, além de possuir
potencial hidrelétrico que pode alcançar 100 milhões de kW, fora da região
platina, e grandes reservas de recursos naturais, vegetais e minerais
442
.
A HPP tem importância para o país como rota de exportação
alternativa
443
aos portos marítimos saturados da costa atlântica e pode conferir
competitividade à produção da região Centro-Oeste. Os principais produtos
transportados pela HPP são a soja e o minério de ferro. Em decorrência de
limitações ambientais impostas pela presença do Pantanal Mato-Grossense,
o excedente de produção de soja da zona de expansão da fronteira agrícola
encontra alternativa de escoamento aos mercados internacionais pela rota
Madeira/Amazonas, até o porto de Itacoatiara. Porém, a produção de
minério de ferro de Corumbá constitui carga cativa da Hidrovia e, portanto,
depende de seu funcionamento eficiente para expandir-se.
Nessas condições, poder-se-ia afirmar que a viabilização da
Hidrovia depende mais da participação do Brasil do que o Brasil da
Hidrovia, se considerarmos, também, que não pode a via de transporte
desenvolver-se, organizar-se e oferecer vantagens econômicas em
termos de redução de custos se não captar carga pesada abundante e
permanente: “los resultados de las evaluaciones económica y
financiera son altamente sensibles a los flujos generados de mineral
de hierro
444
. A exploração mineral constitui, nesse sentido, elemento
442
SCHILLING, Paulo. El Expansionismo Brasileño. Argentina: Gráfica Saavedra, 2ª
ed., diciembre, 1978, p. 133.
443
SGUT, Martín. op. cit., p. 5.
444
RATTNER, Henrique. Considerações Sócio-econômicas e Políticas sobre o Projeto
da Hidrovia Paraguai-Paraná. In: DUNNE, Thomas et al. O Projeto de Navegação da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Relatório de uma Análise Independente. Brasília: CEBRAC/
EDF, julho de 1997, p. 103. Menção ao Capítulo 14, pp.14-103, do Estudo HLBE.
197
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
fundamental de sua viabilização como via de transporte barato. Apenas
as colheitas de cereais, com seus ciclos de demanda, não são suficientes
para garantir seu desenvolvimento em condições competitivas
445
.
Se a importância da HPP é relativa para o Brasil como meio de
transporte, tendo em vista dispor o país de outras vias alternativas,
ainda que mais dispendiosas, reveste-se de relevância fundamental como
instrumento de consecução dos objetivos da política externa sul-
americana do Brasil. Elo físico natural de ligação entre os países do
Mercosul, capaz de dinamizar o intercâmbio de bens e serviços e de
pessoas dos países que o integram, constitui também o eixo de conexão
com a infra-estrutura dos países andinos e, portanto, “base para a
construção progressiva de uma comunidade sul-americana das
nações
446
.
2.5.4. P
ARAGUAI
A Hidrovia oferece ao Paraguai solução alternativa mais
econômica para sua mediterraneidade e a possibilidade de incrementar
suas exportações
447
. A utilização eficiente da Hidrovia permitirá reduzir
consideravelmente os custos das exportações paraguaias, sobretudo
as de soja, que vinham sendo concentradas na saída pelo porto de
Paranaguá
448
. A otimização da via fluvial traduz-se na expectativa de o
país integrar-se mais estreitamente com seus vizinhos e de lhe assegurar
445
FERRES SAYAGO, Pablo. Cuenca del Plata. Transporte Fluvial y Marítimo. In:
Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración,
Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n 763-G-11, p. 245, invierno 1991.
446
BRASIL. Ministério das Relações Exteirores. Circular Telegráfica n. 51389/1175,
de 15/07/2004, que transmite notas divulgadas à imprensa sobre decisões tomadas no
âmbito do Mercosul a respeito da construção progressiva de uma Comunidade Sul-
americana de Nações e do Aqüífero Guarani.
447
Mazondo, op. cit., 235.
448
ROJAS CUEVAS, Cayo Oscar. La Hidrovía: El gran desafio. In: Boletín del Centro
Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires, año 110,
v. 109, suplemento n 763-G-11, p. 186, invierno 1991.
ELIANA ZUGAIB
198
inserção internacional competitiva: “(...) para el Paraguay, es
indudable que la HPP se constituye en un proyecto de estratégica
importancia que genera muchas expectativas, teniendo en cuenta
su condición de país sin costa marítima. El desarrollo de la Hidrovía
permitirá por esta vía un acceso a los puertos de ultramar
449
.
Ainda no aspecto econômico, a HPP(...) revitalizará el uso
de sus puertos principales, Asunción (que debe ser el eje de la
Hidrovía por su lugar estratégico) Concepción y Villeta. Mejorará
[además] la navegabilidad de sus ríos interiores, enlaces fluvio-
ferrocarrileros como alternativas de transportes más económicos”.
O país contará, assim, com sistema de transporte fluvial mais competitivo
do que o dos corredores existentes, com a dinamização de sua
economia, ao gerar novas demandas:
El mejoramiento de los ríos Paraguay y Paraná
incrementará la demanda de transporte en forma
considerable. Solo en el tramo paraguayo, desembocadura
del río Apa-Asunción, generará una carga adicional
importante estimada en el doble de la actual, lo que
posibilitaría, con asistencia financiera adecuada, la
construcción de barcazas por empresarios del Paraguay con
las ventajas económicas que ello implica
450
.
Ao buscar via de transporte econômico para compensar sua
mediterraneidade, o Paraguai desenvolveu a segunda maior frota em
operação na Hidrovia, considerada imprescindível para incrementar
sua produção de soja. Do ponto de vista social, a HPP potencializará,
ainda, o incremento de fontes de trabalho, apresentando solução para
449
ARRIOLA, Javier (Jefe de Navegación Fluvial del Ministerio de Relaciones Exteriores
del Paraguay): depoimento [24 nov.2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Assunção, 2004.
450
Ibidem.
199
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
as comunidades ribeirinhas que se encontram à margem da atividade
econômica do país
451
.
2.5.5. U
RUGUAI
O Uruguai é entrada e saída da Bacia, uma vez que o talvegue do
Rio da Prata encontra-se em suas costas, as mais altas e mais profundas:
(...) esta región de la Cuenca del Plata, en particular el área
directamente vinculada con el Río de la Plata, es de suma
importancia por cuanto sirve de salida definitiva al “hinterland”
del Cono Sur, en materia fluvial a través de la hidrovía Paraguay-
Paraná, Uruguay y sus afluentes navegables; que cuenta además
con los puertos brasileños pero vía carretera que hace más
costoso el flete (Río Grande, Itajaí, Paranaguá y Santos para la
zona centro del hinterland, con sistema múltiple)
452
.
As condições favoráveis do território uruguaio, sem obstáculos
naturais e interposto entre São Paulo e Buenos Aires, habilitam-no a constituir
sua zona de união e centro de serviços da região platina
453
. Situado no
outro extremo de Cáceres (3442 km), o Uruguai dispõe dos portos de
Nova Palmira e de Fray Bentos, que constituem zonas francas, e facilitam
o exercício de sua vocação para vender serviços. Na avaliação de Jorge
Sanguinetti, esse seria o destino natural do país, por não chegar a ser
grande exportador de cereais pelas limitações impostas pela dimensão de
seu território e pelas características de seus solos
454
. Nutre, portanto, o
451
Ibidem.
452
QUAGLIOTTI de BELLIS, Bernardo: depoimento [30 out. 2004]. Entrevistador:
E. Zugaib. Montevidéu, 2004.
453
DALLANEGRA PEDRAZA, Luis. Situación Energética Argentina y la Cuenca del
Plata. In: DALLANEGRA PEDRAZA, Luis (Coord.). Los Países del Atlántico Sur.
Geopolítica de la Cuenca del Plata. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 18.
454
Sanguinetti, op. cit., p. 81.
ELIANA ZUGAIB
200
Uruguai a expectativa de receber boa parte da produção gerada na
Bacia e transportada pela Hidrovia com destino aos mercados externos.
O desenvolvimento de Nova Palmira poderá criar pólo
econômico significativo, utilizando o porto como trampolim
transoceânico
455
que lhe permita ser enclave industrial de
magnitude. Suas boas condições de acesso e sua localização o
perfilam como porto de transferência flúvio-marítima, que poderá
adquirir maior importância à medida que se aprofunde o canal
Martín Garcia. Há que se considerar, porém, que Nova Palmira
não é multifuncional, por não se encontrar conectada à rede
ferroviária
456
.
2.6. F
ONTES DE FINANCIAMENTO
Por decisão tomada no âmbito da I Reunião do CIH, os
investimentos em obras de manutenção na via fluvial devem ser
realizados “por cada uno de los países en su respectivo tramo o en
forma bilateral en tramos compartidos
457
. Dessa maneira, os
recursos financeiros para a implementação das decisões tomadas no
âmbito do CIH derivam dos orçamentos internos de cada país membro,
naquilo que for de estrita responsabilidade das autoridades nacionais,
em seus respectivos territórios, e de financiamentos levantados junto a
organismos financeiros internacionais, a exemplo do BID,
455
Braidot, op. cit., p. 288. Comenta o autor que o Uruguai vem impulsionando a
conformação de um ente ou empresa multinacional capaz de obter créditos internacionais
e de fixar as prioridades das obras de que necessita para otimizar o uso da Hidrovia,
entre as quais figura o projeto de instalação de altos fornos para processar o ferro de
Corumbá e planta processadora de cevada que satisfaria a demanda gerada pelas
cervejarias próximas ao canal fluvial.
456
Bloch, op. cit., pp. 98 e 99.
457
CIH. Informe de la Primera Reunión del Comité Intergubernamental de la Hidrovía
Paraguay-Paraná, realizada em Buenos Aires em 7 de maio de 1990. In: BOLIVIA.
Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes – Hidrovía
Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. p. 24.
201
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
FONPLATA
458
e CAF, no que diz respeito a obras de maior
envergadura e projetos de interesse comum, que se apliquem, em
princípio, a toda a extensão da Hidrovia.
O levantamento de fundos desses organismos foi canalizado,
até o momento, para a realização dos estudos de viabilidade do projeto
Hidrovia. Os primeiros estudos de pré-viabilidade técnico-econômica,
de engenharia, cartografia, balizamento, sinalização e de impacto
ambiental contaram com recursos da ordem de US$ 7,5 milhões
459
,
ao abrigo do Convênio sobre Cooperação não Reembolsável
460
, do
458
O Convênio Constitutivo do Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do
Prata (FONPLATA) foi assinado por ocasião da VI Reunião de Chanceleres da Bacia do
Prata, celebrada em Buenos Aires em 1974. Administrado por uma Assembléia de
Governadores e uma Diretoria-Executiva, o Fundo começou a operar em 1977, conta
com capital próprio, proveniente de quotas integralizadas pelos cinco países e capacidade
de endividamento externo, ou seja, de contratar acordos com agências financeiras,
nacionais e internacionais, assim como com organismos públicos ou privados de
assistência técnica. Sua criação gerou expectativas, no início, no que diz respeito à
possibilidade de levar a cabo projetos no âmbito da região. Não obstante, seu objetivo
é financiar a realização de estudos de pré-viabilidade, viabilidade e desenho final de
projetos, porém não para a construção de obras de infra-estrutura , que requerem
aportes substantivos. Ver em Dallanegra Pedrazza, Luis. Situación Energética Argentina
y la Cuenca del Plata, op, cit., pp. 15-16.
459
Cleaver, op. cit., p. 14.
460
No âmbito do Projeto PNUD RLA/90/012, o BID financiou a execução de estudos
referentes aos módulos A (cujo propósito foi empreender melhoramentos prioritários nas
condições de navegação dos segmentos mais importantes da Hidrovia Paraguai-Paraná
desde o Porto de Nova Palmira até Corumbá/Porto Quijaro) e B (que compreende dois
estudos: um de engenharia e o plano de execução para a Hidrovia; outro, de avaliação do
impacto ambiental do projeto). Para o estudo do módulo A foram reservados recursos da
ordem de US$ 1,1 milhão; para o módulo B (engenharia) cerca de US$ 2 milhões; e para o
módulo B (impacto ambiental), US$ 2, 8 milhões, além de US$ 200 mil para o plano
cartográfico. Incluindo outras ações menores, os recursos previstos no convênio de
cooperação técnica não reembolsável chegaram à casa dos US$ 7,5 milhões. A CEE
manifestou reiteradamente interesse em realizar o Estudo de Impacto Ambiental da
Hidrovia, por se tratar de tema de alta sensibilidade na Europa, à época, sobretudo depois
do acidente de Chernobyl. Foram, no entanto, apresentadas muitas dificuldades para a
compatibilização entre as regras dos dois organismos, sobretudo no que diz respeito à
licitação para a elaboração conjunta dos estudos, além do fato de que o empreendimento
conjunto atrasaria o cronograma de atividades acordado para o projeto do PNUD. Embora
a CEE tenha apresentado proposta de finanaciamento da totalidade do Estudo de Impacto
Ambiental, não teve condições de fornecer os esclarecimentos solicitados no prazo acordado.
ELIANA ZUGAIB
202
Projeto Regional RLA/90/012
461
, e de outro similar assinado com o
FONPLATA
462
. A necessidade de realização de estudos
complementares para a execução de futuras obras de dragagem e
balizamento na Hidrovia levou a CAF a aprovar, em 2003, a concessão
de fundos para cooperação técnica ao CIH, no valor de US$ 885 mil,
por meio do Projeto Regional RLA/02/010
463
.
As possibilidades de captação de recursos para as intervenções
de melhoria e a diversificação de suas fontes de financiamento tendem
a aumentar à medida que a IIRSA ingressa em etapa de implementação
e uma vez que a via fluvial foi considerada novo eixo de integração e
desenvolvimento regional e deverá ser priorizada por seu valor
estratégico
464
. A integração física regional, contemplada na IIRSA, é
importante tema da agenda da política externa brasileira para a América
do Sul no governo Lula, que tem empreendido esforços para que as
obras da iniciativa “saiam do papel”
465
. Em suas iniciativas, contribui
461
O Projeto Regional do PNUD/BID (RLA/90/012) de apoio ao desenvolvimento da
Hidrovia foi aprovado pelo CIH por ocasião de sua I Reunião Extraordinária, realizada em
21 de junho de 1991. O referido projeto envolveu recursos da ordem de US$ 700 mil em
cooperação técnica não reembolsável do PNUD e do BID para o Programa da Hidrovia.
462
PEREIRA RUÍZ DÍAZ, Porfírio. Discurso de abertura da VI Reunião do CIH,
realizada em Assunção, de 21 a 23 de agosto de 1991. In: BOLIVIA. Ministerio de
Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes – Hidrovía Paraguay-Paraná.
Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. p. 199.
463
CAF. Financiados estudios para desarrollo de la Hidrovía Paraguay-Paraná. In: CAF noticias.
11 mar. 2003. Disponível em <www.caf.com/view/index.asp>. Acesso em: 18 dez. 2004. A
Diretoria Executiva do FONPLATA, “consciente de la importancia de este emprendimiento
aprovou também financiamento para os projetos Estudios sobre el Desarrollo de las Zonas
Productivas en las Áreas de Influencia Portuarias (US$ 485 mil) e Realización de Estudios
para el Desarrollo de un Sistema de Información del Programa Hidrovía Paraguay – Paraná
(US$ 50 mil). SGUT, Martín. Puertos y vías navegables. Buenos Aires: BID-INTAL, 1997.
Disponível em <www.iadb.org>. Acesso em: 02 nov. 2003.
464
Ver em IIRSA. Ata da VI Reunión del Comité de Dirección Ejecutiva, ocorrida em 23 e 24
nov. 2004, em Lima, Peru. “Se indicó que la Hidrovía Paraguay-Paraná debe ser priorizada en
IIRSA dada su importancia estratégica, convocando al GTE respectivo a la brevedad posible”.
Ver em Acta de la V Reunión del Comité de Dirección Ejecutiva ocorrida em 04 e 05 dez. 2003,
em Santiago, Chile. Atas disponíveis em <www.iirsa.org >. Acesso em: 18 dez. 2004.
465
VALENTE, Rubens. Planos de Lula para integrar continente preocupam ONGs. In:
Folha de São Paulo, São Paulo, 26 out. 2003.
203
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
para que se imprima ao mecanismo “objetividade, dinamismo e
rapidez na obtenção de resultados”
466
e para viabilizar fontes de
financiamento. Para a consecução desses resultados e na tentativa
de agilizar o acesso a recursos “(...) se destacó el consenso entre
los países sobre la necesidad de que las instituciones del CCT
[Comisión de Coordinación Técnica] así como otras agencias y
bancos de desarrollo tales como el BNDES participen activamente
en la implementación de estos mecanismos
467
. Nesse âmbito, o
BNDES contempla liberar cerca de US$ 700 milhões para projetos
de interesse do governo argentino que estejam amplamente
contemplados na Iniciativa, dos quais US$ 80 milhões seriam
canalizados para a HPP
468
.
2.7. I
NTERCONEXÃO DA HPP COM A HIDROVIA TIETÊ-PARANÁ E
OUTROS
MODOS DE TRANSPORTE
O Estudio de Pre-factibilidad já aconselhava a extensão
natural da Hidrovia por seus tributários, a fim de permitir sua integração
com as vias fluviais secundárias, a ampliação da área de influência
direta da artéria principal e a geração de cargas hidroviárias em outras
zonas carentes de transporte, por meio intermodal
469
. No plano
nacional, a ligação mais importante faz-se com a Hidrovia Tietê-
Paraná (ANEXO – Figura 7), condição para que o projeto se torne
466
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica n. 48607/1423,
de 18/12/2003.
467
IIRSA. V Reunión del Comité de Dirección Ejecutiva, ocorrida em 04 e 05 dez. 2003,
em Santiago, Chile. Disponível em <www.iirsa.org >. Acesso em: 18 dez. 2004.
468
Além do BNDES, por determinação do presidente Lula, outros organismos (BID,
CAF e FONPLATA) já manifestaram interesse em financiar projetos da IIRSA. MARIN,
Denise Chrispim e FERNANDES, Adriana. CMN aprova incentivo a obras de integração
na América do Sul. In: O Estado de São Paulo, São Paulo, 30 jan.2004. A esse respeito,
comentava Antonio Juan Sosa, vice-presidente corporativo da CAF, que “nunca haviam
antes trabalhado tão intensamente [CAF e BNDES]”. Valente, op. cit. p. 2.
469
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata, op. cit., pp. 118 e
119.
ELIANA ZUGAIB
204
rentável para o Brasil
470
. Tal ligação, mediante a construção de sistema
de eclusas na represa de Itaipu, impensável há duas décadas devido à
hipótese de conflito bélico entre o Brasil e a Argentina, ou de rodovia,
possibilitaria o transporte eficiente entre São Paulo e Buenos Aires.
Esses sistemas hidroviários integrados conformariam área de influência
de 4,8 milhões de km², com 90 milhões de habitantes, representando
mais de 85% do PIB do Mercosul
471
. Caso se venham a superar os
obstáculos geográficos, dentre os quais o de salto de quase 115 m em
Itaipu, as hidrovias Paraguai-Paraná e Tietê-Paraná poderão ainda
conectar-se com as Bacias dos rios Tocantins, Tapajós, Madeira,
Amazonas, Negro e, a partir desta última, com o rio Orinoco
472
.
No plano regional, uma das possibilidades mais concretas seria
a conexão entre as cidades de Paraná e Santa Fé por rodovia até
Valparaíso, que, uma vez pavimentada até o mencionado porto chileno,
garantiria o tráfego permanente entre a Argentina e o Chile
473
. O
desenvolvimento dos portos interiores na Hidrovia estabelece pontos
de transbordo. A ligação da HPP com o Chile pode ser também
viabilizada até Antofagasta, pela ferrovia General Belgrano, na região
de Barranqueras (Resistencia-Chaco)
474
. Contemplam-se ainda duas
470
Ver em Happe, op. cit., p. 27. A Hidrovia Tietê-Paraná exerce influência em área de
1,5 milhões de km², 75 milhões de habitantes e responde por cerca de 70% do PIB
brasileiro. Fator de indução do desenvolvimento econômico regional, permite também
maior integração entre a região oeste de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas
Gerais e Paraná.
471
CAMPOS, Welber Vinicius Alça, FREGONA, Marcelo José, XAVIER, Plínio.
Capacidade Real de Transporte da Hidrovia Tietê-Paraná (Trecho Tietê). In:
SEMINÁRIO DE FORMATURA – ESCOLA DE ENGENHARIA DE LINS, [S.d.],
São Paulo. Disponível em <www.seminarioformatura.hpg.ig.com.br/index.htm>. Acesso
em: 27 nov. 2001.
472
Bloch, op. cit., pp. 108 e 109.
473
RUIZ ESTELLANO, Gualberto. Diagnóstico del Transporte Internacional y su
Infraestructura en América del Sur (DITIAS) – Modo Fluvial (Cuenca del Plata).
Montevideo: Asociación Latinoamericana de Integración, 2000. p.48.
474
SANT’ANNA, José Alex. Transporte Terrestre. Argentina : BID-INTAL, 1997.
p.73. Em encontro mantido no Rio de Janeiro, em 16 de março de 2004, os presidentes
Lula e Kirchner deixaram registro, no documento assinado naquela ocasião intitulado
205
APRESENTAÇÃO DO PROJETO HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
outras formas de interconexão com o Chile, por ferrovia, caso o sistemas
fluviais Tietê-Paraná e Paraguai-Paraná venham a se unir. Uma delas,
Tietê-Paraná/Paraguai-Paraná/Antofagasta, pela linha férrea Salta-
Socompa-Antofagasta, via corredor dos Libertadores, na altura de
Santa Fé-Rosário. A outra, Tietê-Paraná/Paraguai-Paraná/Valparaíso,
via San Francisco, Córdoba e Mendonza, pelo Corredor Transandino
Central, até Valparaíso.
“Ata de Copacabana”, de sua vontade política de “tomar todas as medidas necessárias
para a construção de uma linha ferroviária que, atravessando as províncias de Corrientes
e Misiones, se conecte com a rede brasileira, nos Estados do Mato Grosso do Sul e São
Paulo, possibilitando unir, através do Norte argentino e pelo mesmo caminho, os portos
brasileiros do Atlântico, potencializando, por sua vez, o desenvolvimento do corredor
ferroviário da mesopotâmia argentina”.
CAPÍTULO V
OS ESTUDOS DE VIABILIDADE TÉCNICA,
ECONÔMICA E AMBIENTAL DAS
MELHORIAS
NA INFRA-ESTRUTURA
DE
TRANSPORTE DA HIDROVIA
A celeridade que caracterizou a incorporação do Programa da
HPP ao Sistema da Bacia do Prata - motivada à época sobretudo pela
necessidade de se promover a integração do Cone Sul como única saída
para o desenvolvimento da região e sua inserção competitiva no mercado
internacional - não encontrou paralelo nos encontros e atividades que se
seguiram para definir os parâmetros técnica e economicamente mais
apropriados, que deverão nortear a elaboração, licitação e execução
dos projetos finais das futuras obras previstas na Hidrovia.
Essa percepção era antecipada, em 1993, com certa
desconfiança, por autores argentinos, como o deixou transparecer
Adolfo Koutoudjian ao advertir sobre a morosidade do programa de
futuras obras na HPP:
El excesivo énfasis en los estudios de factibilidad o
integración puede desviar la atención de la verdadera
esencia del problema, que no es otra que lograr un óptimo
eje de transporte que, con el tiempo, podrá ser un eje de
desarrollo y soldadura de la integración del MERCOSUL
475
.
OS ESTUDOS DE VIABILIDADE TÉCNICA, ECONÔMICA E
AMBIENTAL DAS MELHORIAS NA INFRA-ESTRUTURA DE
TRANSPORTE
DA HIDROVIA
475
KOUTOUDJIAN, Adolfo. Demanda y geopolítica en la Hidrovía Paraguay-Paraná.
In: Revista de la Escuela Nacional de Inteligencia. Secretaría de Inteligencia de Estado
de la República Argentina, vol. II, n. 1, p. 121, primer cuatrimestre, 1993.
ELIANA ZUGAIB
210
1. O PROGRAMA DA HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
A I reunião do CIH realizou-se ainda sob o clima de entusiasmo
que levara à revalorização da Hidrovia como meio de transporte
competitivo. Na ocasião, alcançou-se consenso sobre algumas questões
que viriam a constituir o alicerce das negociações para definir os
parâmetros da execução das futuras obras na HPP.
Versavam essas questões sobre matéria de navegabilidade, meio
ambiente e modalidade de financiamento das obras. Decidiu-se atribuir
enfoque global à Hidrovia e priorizar a melhoria de suas condições de
navegabilidade
476
, por meio de obras de implantação e de
manutenção
477
, para permitir “una navegación constante a grandes
convoyes de empuje las 24 horas del día, durante todo el año
478
.
476
A navegabilidade foi considerada o motor propulsor da Hidrovia, uma vez que dela
depende a reação da demanda do transporte fluvial e conseqüentemente a reativação portuária
e o reequipamento da frota. Ver em CIH. Informe Final de la Primera Reunión del Comité
Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto Nueva Palmira).
In: BOLIVIA. Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes –
Hidrovía Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. p. 23.
477
De acordo com o documento Plano De Ação Integrado (PAI). Matriz de Atividades,
emanado da 5ª Reunião do CCT, em maio de 1998, e incorporado a sua ata na forma de
Anexo III, ficou estabelecida a diferenciação dos conceitos de “obra” e de “serviço”,
conforme o objeto material do empreendimento. Por exemplo, consideram-se serviços
na Hidrovia a sinalização náutica e a dragagem, enquanto o derrocamento é uma obra. As
“obras/serviços de implantação da Hidrovia” caracterizam-se pela institucionalização
da Hidrovia em trechos de rios naturalmente navegados, com regras e regulamentos
específicos, empresas de navegação regulamentadas e obrigadas a cumprir as regras de
segurança de navegação e de transporte, portos e terminais públicos, infra-estrutura
viária (balizamento/sinalização, gabarito de navegação, etc.), poder de polícia, entre
outros. As “obras/serviços de manutenção da Hidrovia” dizem respeito à conservação
da capacidade da via previamente disponível, dentro das regras de procedimentos
tradicionalmente adotados, enquanto que as “obras de melhoramento da Hidrovia”
caracterizam-se pela execução de um novo projeto de ampliação da infra-estrutura da
via fluvial, com o fim de possibilitar a navegação de comboios maiores. Texto
mimeografado. Documento disponível nos arquivos do CIH, em Buenos Aires.
478
CIH. Informe Final de la Primera Reunión del Comité Intergubernamental de la
Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto Nueva Palmira). In: BOLIVIA.
Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes – Hidrovía
Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. p. 23.
211
Os Estudos de Viabilidade
Buscava-se estabelecer programa de ação coordenada entre os cinco
países para otimizar o potencial da navegação. Procurou-se, para isso,
conhecer as alternativas – e sua viabilidade técnica, econômica e
ambiental - para assegurar a navegação durante todo o ano, com
segurança e confiabilidade, mesmo em períodos de águas baixas,
diminuindo-se assim o risco de interrupção prolongada da navegação,
como já havia ocorrido no passado.
Acordou-se que a avaliação do impacto ambiental das obras
deveria ser considerada para a Hidrovia como um todo e o
financiamento das intervenções custeado pelos usuários, por meio da
cobrança de taxa ou pedágio
479
. Essa era a modalidade indicada para
a recuperação dos investimentos que deveriam ser feitos individualmente
pelos países em seus respectivos territórios ou de forma conjunta nos
trechos compartilhados
480
.
Indicavam-se, ao mesmo tempo, alguns projetos prioritários
para serem executados no curto prazo
481
. Com o propósito de evitar
atrasos na execução desses projetos, as delegações acordaram, quando
da II Reunião do Comitê, considerar dois módulos distintos para
diferençar as intervenções prioritárias de curto prazo (Módulo A), das
479
Idem. pp. 23 e 24.
480
Idem. p. 24.
481
Foram os seguintes os projetos prioritários indicados: (a) pela Argentina, balizamento
e sinalização, para permitir a navegação diurna e noturna desde Confluência até a
desembocadura do rio Paraná no rio da Prata, e dragagem de passos críticos localizados
no mesmo trecho, para permitir a navegação com, no mínimo, 10 pés de calado durante
todo o ano; (b) pela Bolívia, melhoramento da navegabilidade do sistema Tamengo,
assinalando, ao mesmo tempo, apoio à execução do projeto de Porto Busch, e balizamento
e sinalizaçào do corredor Man-Césped; (c) pelo Brasil, balizamento e sinalizaçào diurna
e noturna no trecho brasileiro (Corumbá-Cáceres), estudo de impacto ambiental e estudos
acerca da navegabilidade; (d) pelo Paraguai, balizamento e sinalização diurna e noturna
desde Confluência até Assunção, dragagem de passos críticos, nesse mesmo trecho,
para permitir a navegação com, no mínimo, 10 pés de calado durante todo o ano, e
derrocamento de Remanso Castillo e (e) peloUruguai, balizamento e sinalizaçào diurna
e noturna no acesso de Nova Palmira. Ver em BOLIVIA. Ministerio de Relaciones
Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes – Hidrovía Paraguay-Paraná. Santa
Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. p.25.
ELIANA ZUGAIB
212
de médio e longo prazos (Módulo B), metodologia que viria a ser
adotada na elaboração dos estudos de impacto ambiental e de
viabilidade técnico-econômica do programa de futuras obras na
Hidrovia.
Essa divisão de trabalho foi proposta pelo Brasil para solucionar
dificuldade de ordem política, surgida no grupo técnico, que consistia
na oposição pelos demais países membros à elaboração de estudos
mais aprofundados, temendo atraso na liberação de recursos para o
financiamento do projeto de futuras obras. Para atender à solicitação
da Bolívia, que contou com o apoio do Brasil, fundamentada na decisão
de “tratar de homogeneizar los parámetros físicos mínimos actuales
de la Hidrovía
482
, passou-se a denominar “módulo A1 los proyectos
prioritarios del tramo Asunción/Santa Fe, incluyendo además el
Canal Tamengo, y como módulo A2 los proyectos prioritarios del
tramo Asunción/Puerto Quijarro”
483
.
As atividades do Programa da Hidrovia tiveram início com o
estudo de engenharia relativo às obras e ações de curto prazo e de
menor envergadura, destinadas à melhoria das condições de navegação,
previstas no Módulo A, por meio das quais se buscavam a restauração
dos canais existentes no trecho Santa Fé/Corumbá/Porto Quijarro e a
sinalização entre Nova Palmira e Corumbá
484
. O Módulo B1, iniciado
482
CIH. Informe Final de la Primera Reunión del Comité Intergubernamental de la Hidrovía
Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto Nueva Palmira). In: BOLIVIA. Ministerio de
Relaciones Exterior y Culto. Tratado, Actas, Informes – Hidrovía Paraguay-Paraná.
Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991. p. 24. Trecho homogêneo é o segmento da
HPP pelo qual se processa, com segurança, confiabilidade e com as mesmas características
técnicas, a navegação comercial de grande porte. A HPP é formada pelos seguintes trechos
homogêneos: a) Nova Palmira-Santa Fé – característica predominante da navegação
marítima; b) Sante Fé-Assunção – característica predominante da navegação flúvio-
marítima; c) Assunção-Corumbá – navegação fluvial; e d) Corumbá-Cáceres – navegação
fluvial. Ver em CCT. VIII Reunião da CCT, ocorrida em 19 nov. 1999. [S.l.].Anexo V
“Projeto para a determinação dos níveis de referência (Termo de Referência). Texto
mimegrafado. Disponível nos arquivos do CIH, em Buenos Aires.
483
Idem. p. 36.
484
CAF. Los ríos nos unen. Integración Fluvial Suramericana. Santafé de Bogotá,
D.C., Colombia: Editora Guadalupe Ltda., noviembre 1998. p. 179.
213
Os Estudos de Viabilidade
em março de 1996, incluiu estudos de problemas de maior envergadura,
de alcance de médio e longo prazos, como o de viabilidade das obras
de engenharia na Hidrovia e de sinalização do trecho Cáceres /
Corumbá. Ao mesmo tempo, o Módulo B2 daria início a Estudo de
Impacto Ambiental, pelo qual se perseguia, de maneira especial, a
proteção do Pantanal Mato-Grossense e do Delta do Paraná, em
território argentino, devendo-se para tanto, caracterizar a situação
vigente naquelas áreas de interesse, no que diz respeito a seus aspectos
físicos, bióticos, sócio-econômicos e culturais
485
.
Em vista do interesse que os estudos despertaram nos vários
segmentos da sociedade, em especial as entidades ambientalistas,
considerou-se também necessária a criação de Conselho ou Foro
Consultivo que os vinculasse ao Programa da Hidrovia, com vistas a
imprimir-lhe transparência, idéia consubstanciada na Declaração
Conjunta dos Chanceleres dos Países da Bacia do Prata, emitida em
Montevidéu, por ocasião de sua V Reunião Extraordinária, em 14 de
dezembro de 1997. O referido Foro ou Conselho Consultivo, integrado
por entidades representativas da sociedade civil com interesses comuns
diretos ou indiretos na Hidrovia
486
, inaugurava espaço de participação
em que aqueles setores pudessem propor, examinar e sugerir ao Comitê
ações ou modificações nos aspectos organizacionais, institucionais,
operacionais e jurídicos do Programa da Hidrovia. As sugestões de
atualização dos programas por órgãos não governamentais e pela
sociedade civil seriam submetidas à apreciação da CCT e a posterior
aprovação do CIH
487
. Tal procedimento permitiu ampla troca de idéias
485
Idem. pp. 179 e 181.
486
Como representantes com interesses diretos mencionem-se a comunidade indígena,
aborígene e ribeirinha, os armadores, os operadores portuários e os trabalhadores. O
grupo de interesse indireto corresponde à Sociedade Civil em geral, ou seja, Municípios
e/ou Prefeituras, Universidades, ONGs e outras representações que por sua atividade
específica se relacionem com a Hidrovia.
487
CCT. Plan de Acción Integrado (PAI). Matriz de Atividades. O referido documento figura
como Anexo III da Ata da 5ª. Reunião da CCT, realizada em Buenos Aires, no período de 27
a 29 de maio de 1998. p. 1.
ELIANA ZUGAIB
214
e de informações, processo transparente e participativo que constituiu,
sem dúvida, iniciativa pioneira na região.
Na mesma Declaração, os Chanceleres registravam a importância
de o CIH formular “Programa de Ação com base nos estudos técnicos
disponíveis, que preveja um planejamento seqüencial de melhoramentos,
conforme as demandas da navegação e do transporte fluvial dentro dos
parâmetros ambientais adequados”
488
. Com base nessa manifestação,
foram elaborados, no âmbito da CCT, o Plano de Ação Integrado (PAI),
o Plano de Gestão Ambiental (PGA) e os termos de referência para a
elaboração do Estudo Institucional-Legal, de Engenharia, Ambiental e
Econômico Complementar para o desenvolvimento das obras da Hidrovia
Paraguai-Paraná. O PAI e o PGA, que nortearão intervenções dos cinco
governos na HPP, foram aprovados na VII Reunião da CCT, realizada
em 27 de maio de 1999, e referendados pelas decisões 6/RJ/5-99 e 7/
RJ/5-99, tomadas na Reunião Extraordinária de Chefes de Delegação
do CIH, realizada em 28 de maio de 1999.
O Programa de Melhoramento da Infra-estrutura da Hidrovia
Paraguai-Paraná (PMHPP) e o PGA, descritos abaixo, passariam a
constituir os principais componentes do Programa da Hidrovia, cujas
atividades seriam previstas e programadas, como se mencionou
anteriormente, em planos de curto, médio e longo prazos
489
.
1.1. P
LANO DE GESTÃO AMBIENTAL (PGA)
A preocupação com o aspecto ambiental permeou o processo
negociador do projeto de execução de futuras obras na Hidrovia desde
as primeiras reuniões do CIH e da CCT. Ao se reunirem pela primeira
488
CIC. Declaração Conjunta dos Chanceleres dos Países da Bacia do Prata, emitida por
ocasião da V Reunião Extraordinária dos Chanceleres dos Países da Bacia do Prata, realizada
em Montevidéu, em 14 de dezembro de 1997. p. 1.
489
CCT. Programa de la Hidrovía Paraguay-Paraná. O documento figura como Anexo II
à Ata da 5ª. Reunião da CCT, realizada em Buenos Aires, no período de 27 a 29 de maio de
1998, e tem por objetivo definir as ações de curto, médio e longo prazos na Hidrovia. p. 1.
215
Os Estudos de Viabilidade
vez, os integrantes do CIH definiram uma série de parâmetros básicos
para o desenvolvimento da melhoria das condições de navegação pela
Hidrovia, dentre os quais, o de que “la evaluación del impacto
ambiental (...) debe ser considerada en forma global para toda la
Hidrovía, sin que ello implique la postergación de obras prioritarias
que puedan ser efectuadas en forma inmediata y que no ocasionen
un perjuicio ecológico incontrolable”
490
.
Essa preocupação intensificou-se no processo negociador e as
exigências de ordem ambiental adquiriram caráter mais estrito devido,
em grande parte, à rigidez da legislação brasileira. Assim, durante a 3
a
Reunião da CCT, foram lançadas as bases do que viria a ser o Plano
de Gestão Ambiental, dentre cujos componentes figuraria o Programa
de Monitoramento, Controle e Mitigação de Impactos Ambientais, que
inclui a implementação de Estações de Monitoramento Ambiental
(EMA), cujas atividades devem preceder o início das ações ou obras
do PAI. Indicava-se, na V Reunião da CCT, a necessidade de se
adequarem os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) existentes para
servirem de instrumento decisório da aprovação das obras de
envergadura para o melhoramento da HPP. O Brasil reiterava, naquela
ocasião, a necessidade de se atribuir enfoque global a todas as
intervenções na Hidrovia tanto no que diz respeito às ações de
manutenção das condições de navegabilidade, quanto às intervenções
de maior magnitude.
Essas manifestações de preocupação com a preservação
ambiental culminaram com a conclusão do PGA, na VII Reunião da
CCT, que reflete o conjunto de ações propostas pelos países para
monitorar, mitigar e/ou promover medidas de compensação para as ações
de melhoramento e infra-estrutura, no âmbito de suas soberanias
exclusivas e compartilhadas. O PGA foi definido para a totalidade da via
navegável e sua implementação, avaliação e acompanhamento obedece
490
CIH. Informe Final de la Primera Reunión del Comité Intergubernamental de la
Hidrovía Paraguay-Paraná, op. cit. p. 24.
ELIANA ZUGAIB
216
a linha de ação constituída de duas fases. A primeira delas refere-se às
ações imediatas de levantamento e avaliação, que consideram as
intervenções diretas na Hidrovia. Para essas ações, resultantes do PAI,
buscar-se-á, sempre, não comprometer a qualidade ambiental, antes,
durante e após sua implementação, mediante a habilitação ambiental
prévia das ações propostas em cada país. A segunda consiste da
implementação de programas ambientais. As ações previstas no PAI
devem ser paralelas, integradas, relacionadas e iniciadas de acordo
com o planejamento que cada país estabeleça em função de seus
procedimentos técnicos, administrativos e legais, no âmbito de sua
jurisdição
491
.
1.2. P
LANO DE AÇÃO INTEGRADO (PAI)
O PAI, de caráter dinâmico, é formado pelo conjunto de obras
e respectivos estudos de viabilidade técnica e ambiental, inscritos em
“Matriz de Atividades” pelos países beneficiários da Hidrovia, cuja
intenção, inicialmente, era desenvolvê-los no prazo de 5 anos, a partir
de 1998. A Matriz corresponde, portanto, à consolidação dos
programas de trabalho dos diversos países, compatibilizados no âmbito
da CCT, e aprovados pelos Chefes de Delegação do CIH, com vistas
a que o resultado final das ações propostas pelos países em seus
respectivos territórios guarde harmonia entre os diversos trechos
homogêneos da Hidrovia. As propostas originalmente inscritas no PAI
refletem a visão de cada país sobre os melhoramentos necessários à
Hidrovia, de acordo com suas disponibilidades físico-financeiras. Para
os trechos compartilhados, subentende-se que, ao serem as ações
491
CIH. Plan de Gestión Ambiental - Anexo III del Informe Final de la Reunión
Extraordinaria de Jefes de Delegación del Comité Intergubernamental de la Hidrovía
Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra, 28 maio 1999. Ver também em COINHI.
Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario para
el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, junio de 2004. Vol. VI, Capítulo
12, Gestión Ambiental, p. 55.
217
Os Estudos de Viabilidade
propostas inscritas no PAI, já exista acordo prévio entre as partes
interessadas
492
. Permite aos cinco países manter atualizada “Matriz de
Atividades”, parte operacional do PMHPP
493
, traçado para cada um
dos trechos homogêneos da Hidrovia e concebido de forma sistêmica
e integrada: “El Plan de Acción Integrado (...) constituye la
expresión de la decisión de abordar con una visión de conjunto,
las acciones que emprendan los países en procura de mejorar las
condiciones de navegabilidad de la Hidrovía
494
.
O objetivo que se propõe o PMHPP é o de “mejorar las
condiciones de seguridad y confiabilidad para la navegación de
embarcaciones de características similares a las ya existentes, de
una manera coordinada entre los cinco países
495
. O PMHPP tem
492
CCT. Plan de Acción Integrado (PAI). Matriz de Atividades. op. cit. p. 1.
493
Por ocasião da 2ª. Reunião da Comissão de Coordenação Técnica (CCT), realizada em
Buenos Aires, nos dias 24 e 25 de novembro de 1997, a delegação brasileira apresentou
proposta das ações previstas no trecho Rio Apa/Cáceres no âmbito do “Programa de
Melhoramentos da Hidrovia Paraguai-Paraná, de Curto Prazo”, entendido como conjunto
de ações nas áreas de infra-estrutura viária, de operação dos portos, de segurança da
navegação e em condições ambientalmente sustentáveis. A proposta brasileira foi elaborada
em resposta à solicitação contida no Inciso X da Ata da XXV Reunião do CIH, apoiada no
Inciso VI da Ata da 1ª. Reunião da CCT. O documento apresentado e elaborado pelo
Ministério dos Transportes, intitulado “Proposta de Programa de Melhoramentos da
Hidrovia Paraguai-Paraná – Curto Prazo” descreve cada ação de melhoramento e de
manutenção para o período de três anos (1997 a 1999) e fornece previsões para os dois
anos subseqüentes (2000 e 2001). Com base nos resultados apresentados pelos Estudos
realizados pelo HLBE/TGCC, “o programa para o melhoramento da Hidrovia do Paraguai
foi definido prioritariamente para o trecho da foz do rio Apa a Corumbá, mantendo-se
nos padrões atuais o que vai desde aquela cidade até Cáceres”. Ver em “Proposta de
Programa de Melhoramentos da Hidrovia Paraguai-Paraná – Curto Prazo” p. 4. O referido
documento consta como anexo da Ata da 2ª Reunião da CCT acima mencionada.
494
CIH. Declaración de Jefes de Delegación de la Hidrovía Paraguay-Paraná, por
ocasión de la Reunión Extraordinaria de Jefes de Delegación del Comité Intergubernamental
de la Hidrovía Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra, 28 maio 1999.
495
BRASIL. Ministério dos Transportes. Secretaria de Transportes Aquaviários.
Departamento de Hidrovias Interiores. Termos de Referência. Projeto Básico de
Engenharia para a Definição das Obras e Serviços Necessários à Manutenção da
Hidrovia Paraguai-Paraná, p. 4. Menção ao comunicado de imprensa emitido pelos
chefes de delegação que compõem o CIH, por ocasião de sua XXVIII reunião realizada
em Cuiabá, em 27 de outubro de 2000, no qual o conceito do PMHPP foi reiterado.
ELIANA ZUGAIB
218
como premissa manter as condições naturais dos rios e, portanto,
compõe-se de
(...) tareas de dragado en los pasos críticos existentes – tal
como se viene realizando desde hace muchos años – como
así también de señalización y balizamiento, que buscan
aprovechar las condiciones naturales del río con mínimas
acciones en determinados puntos del actual curso
navegable
496
.
O Programa Hidrovia corresponde, assim, ao conjunto das
ações de melhoramento de infra-estrutura e de gestão ambiental
compatibilizadas pela CCT que cada país pretende realizar no âmbito
de sua soberania. Essas ações visam a “mejorar el tráfico y aumentar
la seguridad, garantizando el transporte efectivo de mercancías
en la región, además de conservar el medio ambiente de acuerdo a
los criterios de desarrollo sostenible”
497
.
2. E
STUDOS CONCLUÍDOS E EM ANDAMENTO
As características do programa de intervenções na HPP
evoluíram muito desde as tratativas iniciais e os primeiros estudos
realizados pela INTERNAVE, que não levavam em conta, na medida
necessária, os aspectos ambientais. As reações negativas provocadas
por seus resultados levaram o CIH a considerar os aspectos ambientais
como uma das vertentes mais importantes do programa. Com esse
objetivo, foram tomadas medidas para que os termos de referência
dos estudos que se seguiram passassem a contemplar, de forma
496
Ibidem.
497
CCT. Programa de la Hidrovía Paraguay-Paraná. O documento figura como Anexo
II da Ata da 5ª. Reunião da CCT, realizada em Buenos Aires, no período de 27 a 29 de
maio de 1998, p. 1.
219
Os Estudos de Viabilidade
adequada, a prioridade atribuída à análise dos impactos ambientais.
Desde então, os princípios do desenvolvimento sustentável, de
transparência e de participação pública
498
foram decididamente
incorporados ao Programa da Hidrovia.
Uma das primeiras medidas concertadas entre Brasil, Argentina,
Paraguai, Uruguai e Bolívia, vinculadas à HPP, foi a tomada de decisão
de encomendar estudos integrais de viabilidade técnico-econômica e
de impacto ambiental das obras de manutenção e de melhoramento da
via fluvial
499
. Essa decisão cristalizou-se no âmbito do CIH com a
assinatura, em 1991, de acordo de cooperação técnica regional
celebrado com o PNUD e de convênio de cooperação técnica não
reembolsável com o BID, por meio dos quais foi financiada, com a
contribuição do FONPLATA, grande parte dos estudos realizados para
dar cumprimento ao objetivo primordial do Programa da Hidrovia,
que consistia em incrementar as boas condições de navegabilidade
desde o Porto de Cáceres até o de Nova Palmira, com vistas a
mejorar la calidad de vida de las comunidades nativas y
498
Reunidos em Punta del Este, em 7 de dezembro de 1995, os Presidentes da República
Argentina, da República Federativa do Brasil, da República do Paraguai, da República
Oriental do Uruguai e o Vice-Presidente da República da Bolívia procederam a uma avaliação
do projeto Hidrovia Paraguai-Paraná. Na ocasião, emitiram Declaração Conjunta em que
ressaltaram a importância do processo de participação pública por meio da discussão
ampla e aberta dos aspectos mais relevantes em matéria ambiental para a elaboração dos
estudos de base desse projeto”. Foram realizadas três reuniões de participação pública, em
Maldonado, Uruguai (dezembro de 1995); em Assunção, (agosto de 1996) e em Campo
Grande, Brasil (novembro de 1996). Veja relato da segunda reunião de participação pública,
realizada em Assunção, em 24/07/96, ocasião em que foram discutidos os relatórios
preliminares das consultoras HLBE/TGCC.
499
A decisão dos Estados membros de efetuar os estudos integrais e com a participação das
comunidades permitiu submeter o programa à análise dos setores regionais e internacionais
interessados no mesmo, por meio de consultas por internet e da promoção de várias reuniões
de participação pública nos países da Bacia do Prata entre 1995 e 1997, nas cidades de
Maldonado (Uruguai), Assunção (Paraguai), Campo Grande (Brasil), Paraná (Argentina) e
Santa Cruz de la Sierra (Bolívia). Foram também realizados Seminário Hidrológico no
Instituto de Ciência e Técnica Hídricas, na cidade de Buenos Aires, em 19 de novembro de
1996, com a participação de prestigiosos especialistas dos EUA e da Europa; Seminário
Indígena realizado, em Corrientes, Argentina, em 3 e 4 de abril de 1997, além de diversos
outros eventos auspiciados pela ALADI nos países membros da Bacia do Prata.
ELIANA ZUGAIB
220
ribereñas, a partir de la recuperación de las economías
regionales”
500
.
A magnitude do projeto original
501
viria a sofrer alterações ao
longo das negociações, em função de limitações de ordem ambiental,
sobretudo no trecho brasileiro Cáceres/Corumbá, que levariam à decisão
de manter as condições naturais de seu canal navegável e, portanto, de
atribuir tratamento diferenciado aos diversos trechos da Hidrovia
502
. Com
base nessa decisão, a composição dos comboios, águas acima de
Assunção, passaria a ter configuração reduzida, devido às restrições de
calado, da largura do canal navegável e das curvas mais fechadas naquele
trecho do rio Paraguai. De fato, por ocasião da Reunião Extraordinária
de Chefes de Delegação, realizada em Buenos Aires, em 22 de agosto
de 1995, a Delegação do Brasil obteve acordo para que a elaboração
dos estudos de viabilidade das futuras obras na Hidrovia considerasse a
natureza diferenciada dos diversos ecossistemas existentes na região do
Pantanal e a suprimisse de todo e qualquer plano de obras
503
.
500
CIH. Secretaría Ejecutiva. Programa Hidrovía Paraguay-Paraná. Síntesis.
Documento anexo à Nota SEHPP/AR Nr. 048/98, da Secretaria Executiva do CIH, 25 de
fevereiro de 1998. pp. 1 e 4. Documento disponível na Embaixada do Brasil em Buenos
Aires.
501
A idéia inicial era tornar navegável o curso de água de extensão total de 3.442 km,
conformado pelos trechos sucessivos dos rios Paraguai e Paraná desde a cidade de
Cáceres (Mato Grosso), até Nova Palmira (Uruguai), a uma profundidade mínima de 10
pés, 24 horas por dia, durante todo o ano.
502
CCT. Programa de la Hidrovía Paraguay-Paraná, op.cit. p.2.
503
CIH. Informe Final de la Reunión Extraordinaria de Jefes de Delegación del Comité
Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná. Buenos Aires, 22 de agosto de 1995.
Decidiram, ainda, naquela oportunidade, criar comissão de técnicos especialistas dos cinco
países, sob a denominação “Unidade Coordenadora”, encarregada de monitorar a elaboração
dos referidos Estudos, concebidos para considerar além da dragagem e da sinalização, suas
implicações em extensa zona de influência direta no curso navegável. Foram, assim, criadas
por ocasião da XXII Reunião do CIH, realizada entre os dias 19 e 23 de 1996, em Santa Cruz
de la Sierra, a Comissão Especial (COE) e a Unidade Coordenadora, respectivamente, pelas
Decisões 9/XXII e 10/XXII. Não se contemplam obras de retificação do rio ou de alteração
de suas características morfológicas. CIH. Secretaría Ejecutiva. Programa Hidrovía Paraguay-
Paraná. Síntesis. Documento anexo à Nota SEHPP/AR Nr. 048/98, da Secretaria Executiva
do CIH, 25 de fevereiro de 1998, p. 5.
221
Os Estudos de Viabilidade
Na avaliação de Theodore Panayotou, o programa de obras na
HPP encerra aspecto inovador em relação a outros empreendimentos de
desenvolvimento de semelhante porte, uma vez que seus estudos de
viabilidade econômica e impacto ambiental foram concebidos para serem
conduzidos conjuntamente, com o propósito de incorporar as considerações
sobre o meio ambiente desde as etapas iniciais do processo de
planejamento
504
.
Por sua configuração de análise integral, aquele programa de estudos
gerou a expectativa, à época, de que, uma vez finalizado e, supostamente,
nos prazos estabelecidos, o CIH se encontraria “en los umbrales de la
ejecución de las obras, que permitirán mejorar notablemente la
navegación, particularmente la seguridad del tráfico, intensificando
el comercio intra y extra-regional, con la significación que este tiene
en la calidad de vida de los pueblos
505
. Essa expectativa viria a ser
frustrada em decorrência dos resultados apresentados pelos primeiros
estudos, considerados insuficientes, o que demandou sua complementação,
atrasando muito o início da fase de execução das obras de melhoramento.
2.1. E
STUDOS CONCLUÍDOS
2.1.1. ESTUDO DE P-VIABILIDADE. GRUPO DE TRABALHO AD
HOC. NOVEMBRO DE 1988
Em cumprimento à atribuição que lhe fora conferida quando de
sua criação, no I Encontro Internacional para o Desenvolvimento da
504
PANAYOTOU, Theodore. A Hidrovia Paraguai-Paraná: A Perspectiva de um
Economista Ambiental. In: DUNNE, Thomas et. al. O Projeto de Navegação da Hidrovia
Paraguai-Paraná. Relatório de uma Análise Independente. Brasília: CEBRAC/EDF,
jul. 1977. p. 187. Comenta ainda o autor que pelo menos em termos de metodologia, a
realização de estudos prévios representa um passo adiante, diferente da prática usual de
produzir estudos de impacto ambiental simplesmente como uma “cortina de fumaça”,
uma vez que todas as decisões sobre a implantação do projeto já tenham sido tomadas.
505
CIH. Secretaría Ejecutiva. Programa Hidrovía Paraguay-Paraná. Síntesis.
Documento anexo à Nota SEHPP/AR Nr. 048/98, da Secretaria Executiva do CIH, 25 de
fevereiro de 1998. p. 6.
ELIANA ZUGAIB
222
HPP, o Grupo de Trabalho Ad Hoc procedeu à consolidação e
complementação dos estudos de pré-viabilidade econômica da
Hidrovia, preparados pelos cinco países a respeito de áreas de seus
respectivos territórios, atribuindo especial importância a sua utilização
integrada. Refletiram os mencionados estudos os temas julgados por
aqueles países de maior relevância para a análise de viabilidade
econômica das intervenções na Hidrovia, que viria a ser conduzida
pela empresa brasileira Internave Engenharia
506
. Tratava-se de
levantamento do estado da arte não se destinando, portanto, a análises
propositiva e conclusiva.
Ressaltava o estudo que a Hidrovia se encontra “en su estado
natural”, havendo sido realizadas, até 1988, poucas obras em seu
curso, tais como limpeza do leito, dragagens esporádicas de manutenção
e remoção de rochas em pontos mais críticos. Indicava ainda que as
boas condições naturais de navegação na Hidrovia devem-se ao efeito
regulador do Pantanal Mato-Grossense, ao baixíssimo declive dos rios
e à defasagem do regime pluviométrico entre as bacias dos tributários
do Paraguai e do Paraná
507
. Embora a Hidrovia já se encontrasse
balizada e sinalizada, à época, desde Nova Palmira até Cáceres, não o
era de forma homogênea e existiam trechos muito deficientes,
especialmente para a navegação noturna, no rio Paraguai, ao norte de
Corumbá
508
.
De acordo com os dados disponibilizados pelo estudo,
trafegavam pela HPP, em 1987, aproximadamente 600 embarcações
fluviais e flúvio-marítimas, em sua maioria com mais de 30 anos, algumas
com casco de madeira, obsoletas e em condições precárias, com
capacidade total para transportar cerca de 500.000 tpb (ANEXO –
Tabelas 4 e 5), dispondo a Argentina de 70% daquela capacidade
509
.
506
GRUPO DE TRABAJO AD HOC DE LOS PAÍSES DE LA CUENCA DEL PLATA.
Hidrovía Paraguay-Paraná. Estudio de Pré-Factibilidad. [S.l.], nov. 1988. pp. 1 e 2.
507
Idem. p. 20.
508
Idem. pp. 46-48.
223
Os Estudos de Viabilidade
Estimava-se ainda que o maior movimento de carga nos principais portos
do trecho brasileiro (Corumbá/Ladário), naquele ano, correspondia a
carregamentos de minério de ferro (80%), além de manganês (7%), de
cimento (6%) e outros. Do total da carga movimentada naqueles portos
(474.301 toneladas), 96,1% desciam o rio e apenas 3,9% faziam o
percurso de subida
510
. Esse movimento representava aproximadamente
50% do total da carga movimentada em todos os portos do trecho
brasileiro da Hidrovia, que atingia 948.602 t (ANEXO – Tabela 6).
Ainda de acordo com o Estudo, foram movimentadas, 1.015.000 t e
1.913.000 t, nos trechos paraguaio e argentino, respectivamente.
Considerando-se que a movimentação de cargas bolivianas incluíam-se
nas estatísticas dos portos brasileiros e argentinos, trafegaram na Hidrovia,
em 1987, 3.876.602 t de carga
511
(ANEXO – Tabela 7).
2.1.2. E
STUDO DE VIABILIDADE ECONÔMICA. INTERNAVE
ENGENHARIA. JANEIRO DE 1990
Reunidos em Assunção, em outubro de 1988, os representantes
dos países no Grupo Ad Hoc aceitaram o oferecimento do Brasil para
elaborar o Estudo de Viabilidade Econômica da Hidrovia Paraguai-
Paraná. Encomendados à Internave Engenharia, em 1989, os trabalhos
foram iniciados em abril do mesmo ano e concluídos e aprovados pelo
mencionado Grupo, em janeiro de 1990
512
.
509
Considerava-se a frota suficiente para o fluxo de mercadoria ao longo da Hidrovia,
com a ressalva de que na época da safra de cereais o transporte entre os portos nacionais
argentinos monopolizava a frota do país, deixando descoberto o transporte de minérios
brasileiro e boliviano e de cimento paraguaio. Grupo Ad Hoc de los Países de la Cuenca
del Plata, op. cit., pp. 74 e 81.
510
Idem. pp. 84 e 85. Veja também BRASIL. Ministério dos Transportes. I Encontro
Internacional para o Desenvolvimento da Hidrovia Paraguai-Paraná. Campo Grande,
MS, abril, 1988. p. 25.
511
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata, op. cit., pp. 83, 89 e 90.
512
INTERNAVE Engenharia. Hidrovia Paraguai-Paraná. Estudo de Viabilidade
Econômica. Relatório Final. Vol. I, pp.1.1/1-2.
ELIANA ZUGAIB
224
O objetivo dos estudos realizados pela Internave foi o de
“examinar as possibilidades de se utilizar a Hidrovia mais plenamente
como um fator capaz de promover maior aceleração ao processo de
desenvolvimento e integração econômica da Região”
513
, e recuperar o
valor estratégico da via natural que atravessa economias importantes.
Esse propósito se refletiria na análise parcial
514
, centrada quase
exclusivamente em aspectos geoeconômicos, com vistas à avaliação
das potencialidades e restrições ao desenvolvimento integrado da
região. Portanto, as conclusões a que chegaram os consultores,
dissociadas das prováveis implicações ambientais do projeto,
confirmavam a viabilidade do empreendimento, cujos investimentos
foram estimados em US$ 250 milhões
515
.
Não obstante, recomendavam os consultores a realização de
uma série de estudos de natureza diversa, dentre os quais o de impacto
ambiental das obras fluviais e portuárias e o de aumento de tráfego
para toda a Hidrovia, suas regiões marginais e áreas portuárias. O
produto final deveria incluir Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e
Relatório de Impacto no Meio Ambiente (RIMA), com indicações de
medidas de mitigação dos impactos negativos
516
. Outra preocupação
registrada entre as recomendações do Estudo foi a de desenvolvimento
de projeto de rebocadores e chatas adaptados às condições
particulares da Hidrovia, tendo em vista algumas características como,
513
Idem. pp. 2/2.
514
A análise era de caráter parcial no sentido de que não levava em devida conta aspectos
ambientais, porém, considerava o sistema hidroviário como um todo, isto é, hidrovia,
frota e portos, por entender que o projeto de melhoria da Hidrovia por si só não seria
suficiente para atrair cargas potenciais.
515
INTERNAVE Engenharia, op.cit. Vol. III, pp. 5.1/10 e 5.1/13. Concluía também o
Estudo que os trabalhos mais dispendiosos para se alcançar a melhoria das condições de
navegabilidade correspondiam aos trechos Cáceres/Ponta do Morro (412 km) em
território brasileiro, e Foz do Rio Apa/Assunção (542 km), em território Paraguaio. No
decorrer de 10 anos, os custos atingiriam, respectivamente, US 10.800/km e US$ 13.300/
km.
516
Idem. pp. 5.2/1 a 5.2/4.
225
Os Estudos de Viabilidade
por exemplo, a grande quantidade de vegetação flutuante e fundo
arenoso com muitos passos rasos, que justificavam a elaboração de
projetos específicos de embarcações
517
. Fizeram também parte do rol
de verificações pelos Consultores que: (a) as limitações à navegação
eram devidas, em maior parte, às restrições de calado em certos
períodos do ano ou em anos de condições hidrológicas desfavoráveis
e (b) os trechos que requererão maior dispêndio em melhoramento
seriam Cáceres/Ponta do Morro e Foz do Apa/Assunção. As maiores
obras demandadas na Hidrovia seriam a abertura do Canal Tamengo e
o derrocamento do Passo de Remanso Castilho (km 1645 do trecho
Assunção/Vallemí), duas operações sensíveis do ponto de vista do
impacto ambiental
518
.
Outra conclusão que evidenciava o caráter parcial da análise
realizada era a de que, ao final da implementação do plano de
melhoramentos da via fluvial, previsto para o ano 2000, deveriam poder
trafegar, durante todo o ano, entre Nova Palmira e Ponta do Morro,
comboios com até 24.000 t de carga e, entre Ponta do Morro e Cáceres,
comboios com até 13.500 t de carga, de forma contínua, dia e noite, e
sem necessidade de desmembramento. Constatava-se igualmente que
os fluxos de carga no Rio Paraguai eram muito pequenos em relação à
capacidade da via fluvial e que o movimento de subida em geral era
menor do que o de descida, exceto no extremo superior entre Ladário
e Cáceres, trecho em que o tráfego já era muito reduzido e não havia
fluxo de carga de descida
519
.
Apesar das deficiências apresentadas, a Argentina qualificou
positivamente o estudo, porém, manifestou-se favorável a iniciar as
obras pelas alternativas técnicas de menor porte e aumentar o valor
dos investimentos de acordo com as necessidades, uma vez que aquele
país não se encontrava na ocasião em condições de comprometer-se
517
Idem. p. 5.2/17.
518
Idem. p.5.1/10.
519
Idem. p.5.1/3-13.
ELIANA ZUGAIB
226
com a realização das obras de grande envergadura recomendadas e
entendidas à época como “faraônicas”.
A conclusão a que chegaram os estudos de que o projeto, que
visava a implantar canal de 50 metros de largura por 3 metros de
profundidade em toda a extensão de Santa Fé a Cáceres
520
, era física
e economicamente viável provocou forte reação por parte de ONGs
que, um ano mais tarde, fariam realizar análises do potencial de custos
e benefícios ambientais do projeto Hidrovia. Esses estudos
independentes viriam a demonstrar a inviabilidade do projeto quando
levados em consideração os custos ambientais nele envolvidos,
sobretudo os decorrentes de grave efeito adverso sobre o Pantanal
521
.
As pressões exercidas pelas organizações, com base nas
considerações feitas por cientistas independentes, e a inconsistência
dos estudos, em função do caráter parcial das análises, levaram o BID
a rejeitar o relatório da Internave Engenharia e a solicitar outro, mais
aprofundado e completo, sobre a viabilidade do projeto.
Em março de 1995, o CIH encomendou dois novos estudos,
com 18 meses de duração cada um, os quais seriam administrados
520
PAINEL DE ESPECIALISTAS. Resultados e Recomendações. In: DUNNE, Thomas
et al. O Projeto de Navegação da Hidrovia Paraguai-Paraná. Relatório de uma Análise
Independente. Brasília: CEBRAC/EDF , jul. 1997. p. 15.
521
HUSZAR, P. et al. Realidade ou ficção? Uma Revisão dos Estudos Oficiais da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Sumário Executivo. Toronto, Canadá: WWF, 1999. p. 3. A
“Wetlands for the Americas” solicitou uma análise do potencial de custos e benefícios
ambientais do projeto Hidrovia, preparado por um grupo multidisciplinar de cientistas
que, além de demonstrar que o projeto não era viável quando levados em consideração
os custos ambientais potenciais, ressaltava a existência de outros custos ambientais
potenciais que deveriam ser examinados no momento em que fosse efetuada avaliação
mais completa do projeto. Dentre eles, o relatório deu especial importância ao grave
efeito adverso que o projeto teria sobre o Pantanal. Sobre o assunto, ver em BUCHER,
E.H., et al. Hidrovia: An initial environmental examination of the Paraguay-Paraná
waterway. Manomet, MA: Wetlands for the Americas Publication, 1993. p.10. Outro
relatório sobre os aspectos econômicos do projeto Hidrovia foi preparado pelo WWF,
o qual demonstrava que, com base em termos puramente econômicos, o projeto não
representaria bom investimento para os países interessados. Sobre o assunto, ver em
CEBRAC, ICV, WWF (eds.) et al. Quem paga a conta? Análise da viabilidade
econômico-financeira do projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná. Brasil. 1994.
227
Os Estudos de Viabilidade
pelo Escritório das Nações Unidas para Serviços de Projetos (UNOPS)
e cujas análises deveriam estar vinculadas a fim de identificar e calcular
o impacto ambiental e, desse modo, oferecer visão completa dos custos
e benefícios do projeto de futuras obras na Hidrovia. O primeiro estudo,
Análise Econômica e de Engenharia, foi levado a cabo pelo consórcio
de empresas de consultoria Hidroservice, Louis Berger e EIH (HLBE),
e o segundo, Estudo de Impacto Ambiental (EIA), realizado pelo consórcio
Taylor Engineering Inc., Golder Associates Ltd., Consular Consultores
Argentinos Associados S.A. e Connal Consultora Nacional (TGCC).
É interessante notar que na V Reunião do CIH os consultores
do BID já alertavam também para a possibilidade de ser solicitado o
aprofundamento de estudo global em áreas específicas, como a do
Pantanal, e revelavam que algumas representações junto ao CIH haviam
exercido pressão para abreviar os prazos de tramitação, com o objetivo
de chegar rapidamente à fase de execução das obras. Não obstante,
sensibilidades relacionadas a aspectos ambientais causariam
considerável atraso na conclusão dos estudos.
2.1.3. E
STUDO DE VIABILIDADE TÉCNICO-ECONÔMICA. CONSÓRCIO
HLBE. DEZEMBRO DE 1997
A contratação dos estudos dos Consórcios HLBE e TGCC
fez-se também ao abrigo do Convênio assinado com o BID, em
setembro de 1991
522
, cujos termos de referência dividiram o Projeto
em três módulos: (a) Módulo A, referente a projetos de melhoria de
curto prazo para o trecho da Hidrovia compreendido entre Santa Fé e
522
Os Estudos contaram com aportes do BID, do FONPLATA, do PNUD e dos
Governos dos países envolvidos. Ver em SUGUT, Martín. Integración en el Sector
Transporte en el Cono Sur. Puertos y vías navegables. Buenos Aires: BID-INTAL,
1997. p. 59. Para a execução dos projetos definidos nos três módulos de estudos, o
convênio assinado com o BID previu a constituição de Unidade Coordenadora com a
atribui;áo de acompanhar as atividades previstas, com o apoio de especialistas dos
setores de engenharia fluvial, transporte fluvial e terrestre, dragagem e balizamento,
avaliação de projetos e meio ambiente.
ELIANA ZUGAIB
228
Corumbá, incluindo o Canal Tamengo, com o objetivo principal de
restaurar el sistema de navegación existente”
523
. Esses estudos
de viabilidade técnico-econômica incluíam também a elaboração
de desenhos finais de engenharia e documentos de licitação das
obras e serviços de navegação de menor envergadura destinados a
melhoramentos na Hidrovia, por meio de dragagem em areia e alguns
derrocamentos em 92 passos críticos
524
nos principais canais de
navegação no trecho Santa Fé/Corumbá/Puerto Quijarro (Canal
Tamengo) e de aperfeiçoamento do sistema de sinalização entre
Nova Palmira e Corumbá, para adaptá-lo aos padrões modernos e
permitir a navegação noturna; (b) Módulo B1, referente à
preparação de plano e programa seqüencial de desenvolvimento
de médio e longo prazos para toda a Hidrovia, inclusive o trecho
Corumbá-Cáceres, ia além da etapa de “restauração”, com o
propósito de lograr um sistema fluvial que constituísse alternativa
competitiva em relação aos outros modos de transporte, por meio
da “plena realização de seu potencial”
525
. O referido plano incluiu
também obras de navegação, desenvolvidas nos estudos do Módulo
A, e a sinalização completa do trecho Corumbá-Cáceres e (c)
Módulo B2, referente a estudo abrangente e avaliação do impacto
ambiental que as obras de implantação poderão causar sobre a
macro-região, desenvolvidos pelo TGCC
526
. Em função das
523
CCT (?). Términos de Referencia de los Estudios de Ingeniería y Plan de Ejecución
para la Hidrovía Paraguay-Paraná, desde el Puerto de Nueva Palmira a Cáceres.
[S.l.] [199?]. p.6.
524
Os passos críticos correspondem a trechos considerados restritivos à navegação. Ver
em HIDROSERVICE, LOUIS BERGER, EIH. Estudios de Ingeniería y Viabilidad
Técnica y Económicas del Mejoramiento de las Condiciones de Navegación de la Hidrovía
Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto Nueva Palmira). Informe Final. Resumen
Ejecutivo, 1996. p.21. Cópia eletrônica disponibilizada pelo Secretário Executivo do
CIH.
525
CCT (?). Términos de Referencia de los Estudios de Ingeniería y Plan de Ejecución
para la Hidrovía Paraguay-Paraná, desde el Puerto de Nueva Palmira a Cáceres, op.
cit., p. 6.
526
Hidroservice Louis Berger, EIH. op. cit., p.2.
229
Os Estudos de Viabilidade
diferentes características morfológicas do leito do rio, foram propostos,
para cada ponto crítico, intervenções como dragagem de sedimentos,
derrocamento, retificação de curvas e meandros, balizamentos e obras
fixas para redução de manutenção
527
.
Observa o estudo que, no período 1974-1993, foram registradas,
no trecho Confluência-Corumbá, com curtos períodos de baixas pouco
pronunciadas, profundidades suficientes para a navegação livre, permitindo
a passagem de embarcações com 3 m (10 pés) de calado. Essa situação
permitiu que se desenvolvesse a navegação no trecho Assunção/Corumbá,
pouco utilizado anteriormente por falta de profundidade, assim como
contribuiu para melhorar também a navegação entre Assunção e Nova
Palmira. As boas condições de navegabilidade deram origem ao
desenvolvimento de atividades mineiras e agrícolas na área de influência
da Hidrovia, águas acima de Assunção, dependentes em grande medida
do transporte hidroviário e que representaram em 1993, fluxo total da
ordem de 2.000.000 t de cargas a granel (minério de ferro e manganês,
soja e subprodutos, trigo, petróleo e derivados, calcário e clinquer,
madeira e outros)
528
. Advertiam, no entanto, os consultores, que não se
descarta a possibilidade de que a ocorrência de períodos críticos
registrados anteriormente ao ano de 1974 venha a se repetir, o que
causaria a interrupção do transporte e, portanto, o colapso das atividades
econômicas em amplas áreas da Bolívia, do Paraguai e do Brasil. Essa
previsão de colapso das atividades fundamenta-se sobretudo na
constatação de que boa parte da carga transportada é cativa da Hidrovia,
ou seja, não dispõe de modos alternativos econômicos, como é o caso
do minério de ferro e manganês das minas do entorno de Corumbá
529
.
527
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia
Legal. Considerações sobre a Avaliação de Impacto Ambiental do Desenvolvimento da
Hidrovia Paraguai-Paraná”, Brasília, [S.d.]. p. 2.
528
Hidroservice Louis Berger, EIH, op.cit., p.9.
529
Para o rio Paraguai, águas acima de Assunção, não há documentação formal que
estabeleça a obrigatoriedade de dragado e manutenção da via navegável. Águas abaixo,
no trecho Santa Fé/Assunção, existe um Acordo entre a Argentina e o Paraguai que
ELIANA ZUGAIB
230
Henrique Rattner, contudo, já observava, à época, que o custo
de implementação das obras no trecho Assunção/Corumbá
(investimentos iniciais e manutenção) correspondiam a 72% do custo
total das intervenções na Hidrovia. Dadas as indefinições sobre quem
arcaria com os custos do projeto e a falta de análise mais detalhada
sobre as possibilidades de transporte da produção do Centro-Oeste
do Brasil e da própria produção do Paraguai e da Bolívia (grãos, clinquer
e minérios), a viabilidade daquele trecho para o horizonte do projeto
era passível de questionamento:
O fato de a Hidrovia Paraguai-Paraná não constar das
prioridades do governo brasileiro, de seu retorno econômico ser
duvidoso para o Brasil, e de seus impactos ambientais sobre a região
do Pantanal Mato-Grossense serem graves e muito prováveis,
apesar de difícil quantificação econômica, aumentam as dúvidas
sobre o projeto, especialmente acerca do trecho Assunção-
Corumbá
530
.
Outro ponto a ser destacado nos estudos é o fato de importantes
alternativas de transporte não haverem sido levadas em consideração
em suas análises, como por exemplo a ferrovia Santa Cruz de la Sierra/
Corumbá/Bauru e as Hidrovias Madeira-Amazonas e Araguaia-
Tocantins, projetos com potencial para desviar carga da HPP,
diminuindo sua rentabilidade. Especialmente no caso do corredor
compromete a manutenção da via navegável para embarcações de até 3 m (10 pés) de
calado. A preocupação em evitar colapso das atividades econômicas no trecho Assunção/
Corumbá levou o Consórcio HLBE a propor que o Acordo de Transporte Fluvial pela
Hidrovia Paraguai-Paraná de 1992 fosse ampliado para incluir o compromisso formal
dos cinco Estados Membros de executar e manter as obras que permitam assegurar a
navegabilidade da Hidrovia. Hidroservise Louis Berger, EIH, op.cit., pp. 9-10.
530
RATTNER, Henrique. Considerações Sócio-econômicas e Políticas Sobre o Projeto
da Hidrovia Paraguai-Paraná. In: DUNNE, Thomas et al. O Projeto de Navegação da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Relatório de uma Análise Independente. Brasília: CEBRAC/
EDF, jul. 1997. pp. 103, 104. Ver também SCUDDER, Thayer e CLEMENS, Michael.
A Hidrovia Paraguai-Paraná: Um Exame dos Estudos de Viabilidade e Avaliação Ambiental
no Contexto de Desenvolvimento Regional. In: DUNNE, Thomas et al. O Projeto de
Navegação da Hidrovia Paraguai-Paraná. Relatório de uma Análise Independente.
Brasília: CEBRAC/EDF, jul.1997. pp. 51-90; e Panayotou, op. cit., pp. 185-207.
231
Os Estudos de Viabilidade
Madeira-Amazonas e do complexo Araguaia-Tocantins
531
, a omissão
fazia-se difícil de compreender por especialistas independentes, tendo
em conta haver sobreposição na área de influência
532
no Mato Grosso
e os projetos constarem à época da lista de empreendimentos de
infra-estrutura de alta prioridade pelo governo brasileiro, sendo que
a Madeira-Amazonas já se encontrava em operação
533
.
Dentre as alternativas de transporte em desenvolvimento na
região, apenas a Ferronorte, que liga Cuiabá à região Centro-Sul do
Brasil, foi incluída na análise. O HLBE e o TGCC mostravam que a
ferrovia absorveria o transporte de grãos (soja) produzidos no Mato
Grosso e inviabilizaria economicamente o trecho Corumbá-Cáceres
se entrasse em operação antes de 2020. Não obstante, endossavam
implicitamente as obras no trecho do Rio Paraguai acima de Corumbá,
na hipótese de que os custos de transporte pela Ferronorte viessem
a subir e os trabalhos previstos no Módulo B1 fossem realizados:
531
Em 1997, foi inaugurado terminal graneleiro no porto de Itacoatiara, no Estado do
Amazonas, com capacidade inicial para movimentar cerca de 300 mil toneladas de
soja provenientes da região Centro-Oeste do Brasil, através de transporte
rodoferroviário, que inclui o aproveitamento dos rios Madeira e Amazonas, com
previsão à época de reduzir os custos da soja exportada em relação à soja embarcada
nos portos de Santos e Paranáguá em US$ 30,00 por tonelada. O complexo Araguaia-
Tocantins, interligado ao sistema ferroviário Norte-Sul/Carajás, permitiria o
deslocamento da produção agrícola da região Centro-Oeste do Brasil até o terminal de
Ponta da Madeira, em São Luís do Maranhão, onde se encontra o terminal de Itaqui,
por onde são embarcados os minérios da região de Carajás. Esse sistema multimodal
hidrorodoferroviário poderia também vir a ser utilizado para o transporte de minérios
da região. Menção a matérias publicadas pela Folha de São Paulo, em 26/10/97, p. 2-
12 e Gazeta Mercantil, em 21/01/97, p. A-2. (Cf. Rattner, op. cit., pp. 102-103).
532
O Estudo HLBE e TGCC define área de influência como aquela em que produtores
e consumidores poderiam ter interesse em utilizar a via de navegação para o transporte
de mercadorias produzidas ou consumidas, em comparação com os modos de transporte
alternativos (rodoviário e ferroviário) disponíveis. Como se vê, as alternativas
hidroviárias que se encontravam em desenvolvimento (Madeira/Amazonas e Araguaia/
Tocantins) foram omitidas da análise. Ver em Hidroservice, Louis Berger, EIH, op.
cit., p. 12.
533
Painel de Especialistas. Capítulo Um. Resultados e Recomendações, op. cit., p.
38. Ver também em SGUT, Martín. Integración en el Sector Transporte en el Cono
Sur. Puertos y vías navegables. Buenos Aires: BID-INTAL, 1997. p. 60.
ELIANA ZUGAIB
232
(...) las proyecciones del tráfico hidroviario correspondiente
[Cáceres/Corumbá], se han basado en las condiciones de
navegación actuales, sin mejoras, que representan un costo de
transporte relativamente elevado, del orden de US$ 50 por t
para el viaje Cáceres-Nueva Palmira, resultando en una baja
atractividad de la Hidrovía, por lo que las cargas se desvían a
los modos alternativos, carretero y ferroviario. Una vez que
hayan sido consideradas estas mejoras (en los trabajos del
Módulo B1), se agregará, posiblemente, un flujo importante
de soja al tráfico de la Hidrovía, mejorando su economía
534
.
Embora as conclusões do relatório estivessem, até certo ponto,
em conformidade com a intenção do Brasil de não realizar obras
estruturais ou de dragagem naquele trecho, em pleno Pantanal,
baseavam-se em fundamentos econômicos que justificavam a
inviabilidade de investimentos no trecho em função de futura entrada
em operação da Ferronorte. Não refletiam, portanto, a posição
brasileira e levariam o Brasil a solicitar revisão das conclusões no âmbito
da análise do relatório preliminar, para que viessem a ser fundamentadas
em razões ambientais e no fato de que as expectativas de evolução da
carga no trecho em questão poderão ser atendidas pelas condições
atuais da via, com melhorias no que se refere apenas à sinalização,
balizamento e manutenção, não se justificando, assim, a previsão de
obras estruturais
535
.
Ao admitirem o baixo atrativo do trecho Cáceres/Corumbá,
para o transporte de soja da área de expansão da fronteira agrícola
e considerando-se que parte substancial do trecho Assunção/
Corumbá correspondia a carga cativa, minérios de ferro e de
manganês, concluíam os consultores que os resultados das
534
Hidroservice, Louis Berger, EIH, op.cit., p.26.
535
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Despacho telegráfico n. 1406, de 15/
11/96.
233
Os Estudos de Viabilidade
avaliações econômica e financeira eram altamente sensíveis aos
fluxos gerados de minério de ferro
536
. É importante notar que o
estudo indicava que o cultivo intensivo da soja era fato novo e
registrava “taxas explosivas” nas regiões do Mato Grosso, Santa
Cruz e Norte da Argentina. Nas demais regiões produtoras, o Mato
Grosso do Sul e o Paraguai, “el cultivo de soja puede ser
considerado tradicional y ya se muestra estabilizado (inclusive
con permanencia del área cultivada)”
537
.
As críticas ao relatório preliminar dos Estudos do HLBE pelas
delegações, que o classificavam como “muito vago, impreciso e
incompleto (...) em nenhum momento mostra o relatório de que bases
e de que cálculos derivam suas conclusões
538
, coincidiriam em
grande parte com as que teceriam mais tarde as ONGs com respeito
ao relatório final, cujas conclusões afirmavam que as conseqüências
para o meio ambiente da região seriam insignificantes
539
e que o projeto
536
Hidroservice, Louis Berger, EIH, op.cit., pp.32 e 37.
537
Hidroservice, Louis Berger, EIH, op.cit., p.15. As obras de dragagem consideradas
para o Canal Tamengo constituíram um dos pontos mais sensíveis na condução dos
estudos, pelos impactos ambientais negativos que poderiam produzir e por tratar-se da
maior obra individual de toda a Hidrovia. Assim, na II Reunião da Comissão Especial do
CIH (COE), outubro de 1996, foram levantadas preocupações com a alternativa de
configuração ótima de comboios selecionada pela Consultora para operar no Canal
Tamengo. Sugeria-se, àquela altura, a elaboração de estudo adicional e de Impacto
Ambiental complementar das obras de dragagem previstas para aquela localidade, onde
foram utilizados critérios diferentes dos aplicados aos outros trechos da Hidrovia, por
considerar-se que a entrada e saída do Canal não eram adequadas para o movimento de
comboios de configuração 4x4, alternativa proposta pela Consultora, e poderia afetar a
tomada de água de Corumbá, sendo necessária também a apresentação de plano de
mitigação. CIH. Acta de la II Reunión de la Comisión Especial del CIH (COE), realizada
em Buenos Aires, no período de 7 a 9 de outubro de 1996. Anexo III “Consultas”, p. 11.
Na referida reunião, foi analisado o relatório preliminar dos Estudos de viabilidade
econômica realizados pela HLBE. Veja também BRASIL. Embaixada do Brasil em
Buenos Aires, telegrama nr. 1452, de 11/10/96.
538
BRASIL. Embaixada do Brasil em Buenos Aires, telegrama nr. 1452, de 11/10/96.
539
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, junio de
2004. Vol. IX, Plan de Gestión Ambiental, p. 12.
ELIANA ZUGAIB
234
seria viável tanto do ponto de vista econômico quanto de
engenharia
540
.
2.1.4. E
STUDOS DE IMPACTO AMBIENTAL (MÓDULO B2).
C
ONSÓRCIO TGCC. FEVEREIRO DE 1998
O Estudo de Impacto Ambiental (Módulo B2), elaborado pelo
Consórcio liderado pela empresa Taylor, apresenta diagnóstico do meio
físico, antrópico e biótico da região, analisa a viabilidade das
intervenções propostas quanto aos aspectos ambientais e sugere
programas de mitigação e controle para minimizar seus eventuais
impactos.
No âmbito de sua XXIII Reunião, realizada na cidade de
Corrientes, Argentina, nos dias 3 e 4 de abril de 1997, o CIH aprovou,
pela decisão 8/XXIII, o Relatório Final do Módulo 2 e dispôs que os
países membros o submetessem à consideração de seus órgãos
competentes. A avaliação do impacto ambiental das obras propostas
pelo estudo indicava que
540
Com base nessa conclusão, o Consórcio recomendava a seguinte alternativa: de
Santa Fé a Assunção, comboios de 4x5, em canal de 90 metros de largura, 3 metros
de calado e capacidade de até 36.000 t; e no trecho de Assunção a Corumbá/
Ladário, comboios de 4x4, em canal de 90 metros de largura, 2,6 metros de calado
e capacidade de 24.000 t. Os consultores recomendaram inicialmente a composição
ótima de comboios de 4x4 para o trecho Santa Fé-Assunção. Porém, a pedido do
países beneficiários, foi estudada posteriormente a viabilidade da composição
4x5, com calado de 3 m ao sul de Assunção e 4x4, com calado de 2.6 m até
Corumbá/Ladário. Os resultados econômicos dessa alternativa mantiveram-se
muito próximos do valor ótimo. Ver em CIH. Acta de la 2ª. Reunión de la Comisión
Especial del CIH (COE), realizada em Buenos Aires, nos dias 07, 08 e 09 de
outubro de 1996. De Corumbá/Ladário a Cáceres, trafegam comboios com formação
de 2x3, com restrições em alguns trechos, compostos por chatas de 45 m de
comprimento por 12 m de largura, com calado de 1,5 m e capacidade para até
4.000 t de carga. BRASIL. Ministério dos Transportes. Secretaria de Transportes
Aquaviários. Departamento de Hidrovias Interiores. Termos de Referência. Projeto
Básico de Engenharia para a Definição das Obras e Serviços Necessários à
Manutenção da Hidrovia Paraguai-Paraná. Maio 2001. pp. 2 e 3. Ver também
Hidroservice, Louis Berger, EIH, op. cit., p.31.
235
Os Estudos de Viabilidade
(...) el impacto del Proyecto en el medio físico será de muy
escasa significación, muy inferior a las modificaciones que
se producen por las variaciones naturales del río (...) los
únicos impactos serán producidos durante la ejecución de
las obras, pero los mismos estarán acotados en magnitud y
a pequeñas áreas en la zona de trabajo
541
.
Os resultados do estudo, portanto, apontaram no sentido da
viabilidade ambiental do projeto, uma vez que os efeitos foram
considerados em geral de reduzida intensidade, localizados e
temporários, não tendo sido comprovadas hipóteses de modificação
perceptível do regime hidrológico dos rios ou de danos ao Pantanal
542
.
A análise feita pelo IBAMA dos documentos Diagnóstico
Integrado Preliminar e Avaliação do Impacto Ambiental dos
Melhoramentos da Hidrovia Paraguai-Paraná, no entanto, concluiu que
“o mesmo não atendia à legislação ambiental brasileira e não apresentava
detalhamento dos meios físico, biótico e sócio-econômico,
recomendando a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental – EIA/
RIMA”
543
. O Ministério do Meio Ambiente confirmava essa avaliação
em apresentação feita no âmbito da II Reunião da Comissão de
Coordenação Técnica (CCT), realizada em Buenos Aires, nos dias 24
e 25 de novembro de 1997, ao registrar
Verificou-se que os estudos apresentados carecem de dados e
informações para determinar as intervenções físicas passíveis de ser
(sic) executadas. Para tanto, torna-se necessária a complementação
541
Hidroservice, Louis Berger, EIH, op.cit., pp.34 e 36.
542
BARROS, Sebastião do Rego. Controvérsia sobre a Hidrovia Paraguai-Paraná. In:
Gazeta Mercantil, 28/4/97, p. A3.
543
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Parecer Técnico s/n, de 30 de julho de
2004, p. 1. Cópia disponibilizada por meio eletrônico. Consta como Anexo ao documento
Parecer Conjunto dos Ministérios do Meio Ambiente e dos Transportes sobre os
Estudos Complementares realizados pelo COINHI.
ELIANA ZUGAIB
236
de estudos anteriormente à definição e/ou execução de qualquer tipo
de intervenção
544
.
As autoridades ambientais brasileiras encontraram, portanto,
razões para incerteza ao analisar os resultados do estudo e foram
levadas à posição de gradualismo e cautela quanto à definição das
obras na Hidrovia
545
.
Quando as versões preliminares dos dois estudos (HLBE e
TGCC) foram publicadas em 1996, o WWF solicitou sua revisão,
elaborada por grupo multidisciplinar de peritos internacionais e iniciada
em fevereiro de 1997
546
. A intenção do WWF não foi prover estudo
de impacto ambiental (EIA) alternativo, mas, “chamar a atenção
para uma série de equívocos conceituais, processuais e de medição,
bem como erros de cálculo na análise econômica e de engenharia
que, uma vez corrigidos, modificariam substancialmente as
conclusões do HLBE”
547
. Comprovariam a inviabilidade econômica
544
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Considerações sobre a Avaliação de Impacto
Ambiental do Desenvolvimento da Hidrovia Paraguai-Paraná. Brasília, [S.d.]. p. 7.
Consta como Anexo II da Ata da II Reunião da Comissão de Coordenação Técnica
(CCT), realizada, em Buenos Aires, nos dias 24 e 25 de novembro de 1997.
545
“O Brasil elaborou uma proposta de trabalho que consiste, em primeiro lugar, no
aprofundamento dos estudos, pelo desenvolvimento de modelo de simulação matemática
para a previsão de níveis de água ao longo do trecho brasileiro da Hidrovia, de Corumbá ao
Rio Apa, de forma a melhor caracterizar as necessidades de eventual dragagem nos passos
críticos identificados pelo estudo de viabilidade técnica. Com base nessas informações, e na
previsão do fluxo de transporte para os próximos cinco anos seriam definidos os projetos de
dragagem, os quais seriam acompanhados dos correspondentes estudos de impacto
ambiental”. Ver em VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Subsídios sobre as posições brasileiras
em relação à Hidrovia Paraguai-Paraná. Brasília, 26 de novembro de 1997, p. 6.
546
Sobre avaliações críticas dos estudos realizados pelos consórcios HLBE e TGCC,
ver em HUSZAR, P. et al. Realidade ou ficção: Uma Revisão dos Estudos Oficiais da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Sumário Executivo. Toronto, Canadá: WWF, 1999;
DUNNE, Thomas et al. O Projeto de Navegação da Hidrovia Paraguai-Paraná.
Relatório de uma Análise Independente. Brasília: CEBRAC/EDF, jul. 1997 e SOLBRIG,
Otto et al. Bright Future or Development Nightmare? Cambridge, MA: David Rockefeller
Center for Latin American Studies, Harvard University, 1996.
547
HUSZAR, P. et al. Realidade ou ficção: Uma Revisão dos Estudos Oficiais da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Coordenado por André Leite. Toronto, Canadá: WWF,
1999, p. 5.
237
Os Estudos de Viabilidade
do projeto e a incidência de impactos ambientais superiores aos
considerados pelo TGCC. Concluíam que a abordagem parcial dos
estudos de viabilidade econômica do HLBE privilegiava obras de maior
envergadura e o relatório final do EIA conduzido pelo TGCC
apresentava resultados otimistas em relação ao potencial impacto
ambiental, baseados em análise restrita às modificações e à sinalização
do canal fluvial, excluindo as intervenções de melhoria das instalações
portuárias e de embarque de carregamentos
548
. Consideravam os
críticos que as imperfeições metodológicas apontadas nos estudos não
os credenciavam para embasar segura tomada de decisão política sobre
o investimento no projeto HPP. Além disso, criticavam o fato de estarem
os estudos centrados na busca da eficiência econômica, negligenciando
o conceito da eqüidade. Nessas condições, os impactos das obras
deveriam acentuar os problemas advindos da má distribuição da renda
na região. Recomendava, assim, a ONG, que os planos de dragagem
em grande escala do rio Paraguai, no trecho Cáceres-Corumbá, fossem
suspensos e submetidos à elaboração de EIA mais abrangente e
descartadas as intervenções irreversíveis, como a retirada de rochas e
a diminuição do curso do rio
549
.
2.1.5. E
STUDO INSTITUCIONAL-LEGAL, DE ENGENHARIA, AMBIENTAL E
ECONÔMICO-FINANCEIRO COMPLEMENTAR ENTRE PUERTO QUIJARRO (CANAL
TAMENGO), CORUMBÁ E SANTA FÉ. COINHI. JUNHO DE 2004
Reunidos em Buenos Aires nos dias 16 e 17 de novembro de
2000, os Chefes de Delegação do CIH concordaram quanto à
necessidade de se elaborar projeto para as futuras obras de engenharia
na Hidrovia como um todo e a ele incorporar o PGA, referendado na
XXVIII Reunião, em outubro de 2000, em Cuiabá. Para atender a esse
objetivo, fizeram-se necessários estudos complementares sobre os
548
Idem. pp.13, 15 e 17.
549
Idem. pp. 29, 30 e 33.
ELIANA ZUGAIB
238
componentes ambiental, técnico-econômico e institucional-legal do
projeto Hidrovia
550
, encomendados ao Consórcio Integração
Hidroviária (COINHI), por intermédio do PNUD e financiados pela
CAF
551
. Para acompanhar e analisar os trabalhos do Consórcio, foi
constituída a Comissão de Contraparte Técnica (CCT), composta por
técnicos dos cinco países
552
.
A licitação pública do estudo, concluída em março de 2003,
teve como objeto central, além da elaboração do projeto executivo
para levar a cabo os trabalhos de melhoria da navegação na Hidrovia,
excluindo-se o trecho entre Cáceres e Corumbá: (a) propor
mecanismos institucionais e legais para possibilitar a contratação e
realização das obras de melhoria da navegação, no trecho Porto
Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá e Santa Fé; b) elaborar os
documentos para a licitação das obras de dragagem e sinalização da
Hidrovia; c) atualizar e/ou complementar os estudos de engenharia,
ambientais e econômico-financeiros, com o intuito de propor plano de
ação que contemplasse o redimensionamento das obras, a estimativa
550
BRASIL. Ministério dos Transportes. Secretaria de Transportes Aquaviários.
Departamento de Hidrovias Interiores. Termos de Referência. Projeto Básico de
Engenharia para a Definição das Obras e Serviços Necessários à Manutenção da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Maio 2001. Refere-se ao trecho Corumbá/Ladário/Santa
p. 2.
551
O Acordo de Cooperação Técnica celebrado entre o CIH, a CAF e o PNUD para a
realização do Estudo Institucional-Legal, de Engenharia, Ambiental e Econômico
Complementar para o Desenvolvimento de Obras na Hidrovia Paraguai-Paraná, entre
Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá e Santa Fé, foi assinado por ocasião da
XXXI Reunião do CIH, realizada em Buenos Aires, no período de 18 a 20 de setembro
de 2002. Ver em BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica n.
44249/819, de 27/09/2002.
552
A criação da Comissão de Contraparte Técnica (CCT) foi aprovada por ocasião da
XXIX Reunião do CIH, realizada em Montevidéu nos dias 23 e 24 de agosto de 2001.
No caso do Brasil, a CCT é integrada por representantes dos Ministérios das Relações
Exteriores, dos Transportes, da Administração da Hidrovia do Paraguai (AHIPAR), do
Meio Ambiente e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA). Ver em BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular
Telegráfica n. 41767/653, de 30/08/2001. Não confundir com a Comissão de Coordenação
Técnica (CCT) criada anteriormente, e que tem a mesma composição.
239
Os Estudos de Viabilidade
de seus custos de realização e de manutenção e a avaliação da
possibilidade de financiar parcial ou totalmente a execução dos trabalhos
através de pedágio, a ser pago pelos usuários. Os estudos de engenharia
incluíram a realização de levantamentos e o projeto de obras em 22
passos críticos
553
(ANEXO – Tabela 8).
Para o componente ambiental, a licitação estabeleceu a
necessidade de realizar levantamentos ambientais, de determinar o
quadro da situação e de propor estratégia de desenvolvimento de plano
de gestão que considerasse a redução do alcance do projeto original,
do qual foi excluída a realização de obras no trecho Cáceres-Corumbá,
além das responsabilidades a serem atribuídas ao concessionário das
obras
554
. O objetivo específico do componente ambiental foi o de
(...) recopilar la información de base de los 22 pasos
críticos seleccionados, permitiendo así la elaboración de
un diagnóstico integrado para cada paso a fin de presentar
un Plan de Gestión Ambiental, a ser cumplido por el
Concesionario, que permita en el futuro, la ejecución de
obras de dragado y balizamiento en la Hidrovía Paraguay-
Paraná, bajo principios ambientalmente sustentables
555
.
O cronograma curto imposto pelos Termos de Referência,
240 dias, de maio de 2003 a janeiro de 2004, impediu o Consórcio
de satisfazer o desejo do Brasil, do Paraguai e da Bolívia de realizar
avaliações de impacto ambiental, exigência das legislações internas
daqueles países
556
. A brevidade do prazo estabelecido não poderia,
553
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, junio de
2004. Vol. I – Información Ambiental, Capítulo 1 , p. 7.
554
Idem. p. 10.
555
Idem. p. 11.
556
Ibidem.
ELIANA ZUGAIB
240
de qualquer forma, gerar a expectativa de análise aprofundada que
requer estudo amplo e global
557
. A identificação de impactos ambientais
a que se procedeu corresponde a mera avaliação ambiental preliminar,
um screening
558
. Além disso, a análise realizada para os 22 passos
críticos, previamente selecionados pelos países, não pode ser
extrapolada para o restante do total de 92 passos críticos identificados
anteriormente pelo Consórcio HLBE/TGCC, os quais “exigirão estudos
ambientais específicos, de acordo com suas condições e contextos,
caso venham a requerer algum tipo de intervenção”
559
.
A avaliação dos Ministérios dos Transportes e do Meio
Ambiente sobre o Relatório Final dos Estudos, entregue em julho de
2004, foi a de que o Componente Ambiental apresentou “várias lacunas
e omissões”, que já haviam sido identificadas nos relatórios parciais.
Nessas condições, concluíram os técnicos que o referido componente
só pode ser considerado como “avaliação ambiental preliminar” e não
substitui o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto
Ambiental (RIMA). O parecer conjunto daqueles Ministérios
recomendou a aceitação dos estudos, com ressalvas, podendo ser
utilizados apenas como subsídio não vinculativo ao processo decisório
da execução das obras, “não constituem endosso ou autorização
automática de qualquer obra no território brasileiro”
560
.
557
Os próprios consultores fazem a observação de que todos os componentes tiveram
que iniciar suas tarefas ao mesmo tempo, em função do curto prazo concedido para a
conclusão dos Estudos, o que impediu que insumos básicos para o Componente Ambiental,
tal como o projeto de dragagem, fossem conhecidos com antecedência.
558
COINHI, op.cit., Vol. VII – Diagnóstico Ambiental Integrado, p. 11.
559
COINHI, op. cit., Vol. IX – Plán de Gestión Ambiental, pp. 13, 14, 19. Conforme
observam os próprios consultores, a limitação do conceito de integralidade é decorrência
da circunscrição do objeto do Estudo aos 22 passos críticos, definida pelos Termos de
Referência. Ver em COINHI, op. cit., Vol. I – Información Ambiental, Capítulo 1, p. 11.
560
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente e dos Transportes. Parecer Conjunto sobre
o “Estudo Institucional-Legal, de Engenharia, Ambiental e Econômico Complementar
para o desenvolvimento das obras na Hidrovia Paraguai-Paraná no trecho
compreendido entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá e Santa Fé”. Brasília,
02 de agosto de 2004, p. 2. Ver também em BRASIL. Ministério do Meio Ambiente,
241
Os Estudos de Viabilidade
De acordo com dados disponibilizados no relatório final do
componente econômico-financeiro, foram transportadas pela
Hidrovia, em 2002, 8.122.962 t, que correspondem a
aproximadamente 32% do total de 25.300.000 t dos produtos e pares
de origem-destino considerados pelo estudo
561
. Embora quase 32%
das cargas da zona de influência transitem pela HPP, se a produção
de soja brasileira e argentina não fosse considerada, essa percentagem
atingiria 82% (ANEXO – Tabela 9). O restante das cargas
consideradas na referida tabela é em geral cativo da HPP, à exceção
da farinha de soja da Bolívia, da madeira e do item “outros”, por
serem inelásticas ao preço. A carga originada na Argentina
corresponde a 35% do tráfego hidroviário, seguida pelo Paraguai
(28%), Brasil (26%) e Bolívia (12%)
562
. Os estudos constataram
que o incremento da produção do complexo soja, registrado entre
2002 e 2003, na zona de influência no Brasil (17,4%) e na Argentina
(15%) e as projeções para os próximos anos não se refletiram em
aumento de tráfego direcionado para a HPP. Isso porque a grande
parte da produção e exportação de ambos países não é usuária da
via fluvial e essa situação deverá manter-se no futuro, dada a
localização das áreas de produção do cereal e da disponibilidade de
outras vias de escoamento
563
(ANEXO – Tabela 10). No caso do
Parecer Técnico, s/n, de 30 de julho de 2004; BRASIL. Ministério dos Transportes.
Nota Técnica nr. 07/2004 – DFNIT/SFAT, de 16 de julho de 2004; e BRASIL. Ministério
das Relações Exteriores. Despacho Telegráfico n. 977, de 10/09/2004, que contém as
instruções à delegação brasileira à reunião da CCT e à reunião extraordinária do CIH,
realizadas em Buenos Aires, no período de 14 a 17 de setembro de 2004, para analisar
o Relatório Final do COINHI.
561
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Vol. II, p. 14, 26-31.
562
Idem. p. 107.
563
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, junio de
2004. Componente Económico-Financiero. Adenda. p. 7.
ELIANA ZUGAIB
242
Brasil, a área de expansão da fronteira agrícola encontra-se no Mato
Grosso, que tem utilizado como via de transporte a Hidrovia Madeira/
Amazonas e a BR 163 (Cuiabá a Santarém), que oferecem vantagens
em relação à Hidrovia, cujo trecho Cáceres/Corumbá é navegado
por comboios de capacidade reduzida
564
.
Assim, uma das principais conclusões a que chegou o estudo
é a de que “las cargas que aprovecharán la HPP son
fundamentalmente aquellas que han usado la misma vía
tradicionalmente, no aparecen cargas nuevas significativas
565
.
As curvas de demanda de transporte são inelásticas para a maior
parte das cargas que são relativamente cativas, conclusão a que já
havia chegado também o Consórcio HLBE. No caso do minério de
ferro, poderia surgir aumento de carga se o preço do transporte pela
Hidrovia chegasse a ser inferior a US$ 8 por tonelada
566
. Nessas
condições, o estudo leva a crer que, do ponto de vista estritamente
financeiro, el proyecto no es rentable, requiere un subsidio inicial
y subsidios para cada año de la concesión
567
, ao exigir investimento
564
MAGGI, Blairo Borges. Conferência de imprensa concedida na Embaixada do
Brasil em Buenos Aires, em 28/07/04. Ver também GALVÃO, Anderson (Céleres
Consultora): depoimento por telefone [04 ago. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos
Aires, 2004.
565
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Componente Económico-Financiero. p. 145. Convém lembrar que, conforme registrado
na página 82 do Estudio de pré-factibilidad de la Hidrovía Paraguay-Paraná, elaborado
sob a coordenação do Grupo de Trabalho Ad Hoc, op. cit., o primeiro transporte de soja
pela via fluvial foi realizado, em caráter experimental, em 1987. Utilizou-se integralmente
a Hidrovia, de Cáceres até Nova Palmira, havendo sido feito, em Ladário, transbordo da
carga para chatas de maior capacidade do que as utilizadas no transporte águas acima.
Esse transbordo poderia haver sido evitado com a utilização de embarcações adequadas
à via (chatas, formação de comboios).
566
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Componente Económico-Financiero. pp. 116 e 132.
567
Idem. p. 146.
243
Os Estudos de Viabilidade
inicial e de manutenção significativos, que ocasionariam desvios de carga
e perda de benefícios econômicos, se fossem cobertos apenas por
recursos arrecadados com pedágio.
3. R
EAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL ÀS RECOMENDAÇÕES DOS ESTUDOS
Os estudos da Internave e do consórcio HLBE/TGCC sofreram
duras críticas de organizações ambientalistas, notadamente o WWF, a
Coalizão Rios Vivos
568
e a Wetlands for the Americas
569
. Opunham-se
seus dirigentes às recomendações de obras de maior envergadura pela
Internave. Argumentavam, no caso das recomendações apresentadas
pela HLBE, que os dados e a metodologia utilizados pelos consultores
eram insuficientes ou inadequados e não poderiam, portanto, validar
as conclusões sobre a viabilidade da Hidrovia quando levado em conta
o impacto ambiental das obras propostas. De modo geral, uma das
principais críticas formuladas por essas organizações era a de que “os
trabalhos realizados não se coadunavam com a realidade ambiental
568
“A Rios Vivos é uma coalizão de organizações não governamentais e comunidades
articuladas para conter os processos de degradação cultural, social e ambiental e
implementar políticas sustentáveis que possibilitem criar uma nova relação entre o
homem e o ambiente. Diferencia-se pela capacidade de coordenar ações locais, regionais
e internacionais. Atua diretamente com a mobilização das comunidades tradicionais e
indígenas na defesa de seus ecossistemas. Seus membros estão na América Latina, na
Europa e nos Estados Unidos. A Rios Vivos é hoje uma das mais importantes redes da
América Latina, sendo um referencial para as ações da sociedade civil. Centenas de
organizações, comunidades, instituições de pesquisa e cientistas estão conectados através
da Coalizão. O objetivo principal da Coalizão Rios Vivos é o fortalecimento das alianças
entre as organizações, redes e a sociedade civil na perspectiva de promover mudanças
no atual modelo de desenvolvimento”. Informação disponível em
<www.riosvivos.org.br>. Acesso em 23 dez. 2004.
569
Wetlands for the Americas é programa levado a cabo pela ONG Wetlands International
a leading global non-profit organisation dedicated solely to the crucial work of wetland
conservation and sustainable management. Well-established networks of experts and
close partnerships with key organisations provide Wetlands International with the
essential tools for catalysing conservation activities worldwide. Our activities are based
on sound science and have been carried out in over 120 countries”. Informação disponível
em <www.wetlands.org>. Acesso em 23 dez. 2003.
ELIANA ZUGAIB
244
dos países membros, sobretudo no Brasil, onde está localizada a área
de proteção ambiental do Pantanal”
570
. Essas considerações
resultariam, mais tarde, em dezembro de 2000, na ação civil pública
impetrada pelos Ministérios Públicos Federal e do Estado do Mato
Grosso, em função da qual o Presidente do Tribunal Regional Federal
da 1
a
Vara Federal do Mato Grosso decidiu que o EIA global deverá
preceder o início de qualquer intervenção na Hidrovia
571
.
As pressões exercidas pelas ONGs fundamentavam-se na
premissa de que as recomendações emanadas dos estudos
constituíam posição governamental. Não observavam que tais
recomendações limitavam-se à opinião técnica dos consultores e
serviriam como referência para possíveis ações que viessem a ser
empreendidas pelos países intervenientes. Nessas condições, antes
mesmo de concluídos os estudos de viabilidade técnica, o BID era
acusado de já haver liberado financiamento para a execução das
obras.
A posição de confronto dessas organizações foi atenuada, em
certa medida, graças à postura aberta e de diálogo com as ONGs
implantada pelo Brasil dentro do CIH, quando assumiu sua presidência,
em 1995
572
. O processo de consultas estabelecido entre o CIH e as
ONGs constituiu um turning point para o movimento conservacionista,
chamado a atuar nas discussões sobre a Hidrovia de forma ativa e não
reativa.
Obedecendo a essa linha de ação, realizou-se em Buenos Aires,
em 22 de agosto de 1995, Reunião Extraordinária do CIH, para avaliar
570
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Despacho Telegráfico n. 443, 20/06/
2003.
571
CONSULTOR JURÍDICO. Decisão descumprida. In: Revista Consultor Jurídico, 23 de
março de 2001. Disponível em <http://conjur.uol.com.br/textos/4851>. Acesso em 23 ago.
2004.
572
Em encontro mantido com representantes do Itamaraty, à época, a então presidente do
WWF, Kathryn Fuller, manifestou claramente estar confiante que o projeto incluía sólida
preocupação com a questão ambiental e que poderia vir a ser um exemplo de aplicação do
conceito de desenvolvimento sustentável.
245
Os Estudos de Viabilidade
a campanha de oposição à Hidrovia, promovida por ONGs
ambientalistas
573
. Na ocasião, foram identificadas como preocupações
básicas questões de natureza técnica relacionadas a hipóteses de
execução de obras de maior envergadura, tais como retificação do
curso do rio Paraguai, derrocamentos e dragagens excessivas, tendo
em conta seus prováveis impactos sobretudo no Pantanal Mato-
Grossense. As conversações mantidas no encontro resultaram na
coincidência de posições adotadas pelos representantes do CIH e
das ONGs sobre várias questões, consignadas no Comunicado
emitido ao final da Reunião. Entendiam inter alia que a elaboração
dos estudos de viabilidade das futuras obras na Hidrovia deveriam
considerar a natureza distinta dos diversos ecossistemas existentes
na região banhada pelos rios Paraguai e Paraná; a necessidade de
sua preservação e de se atribuir tratamento diferenciado à região do
Pantanal, onde as intervenções na via fluvial limitar-se-iam às obras
de sinalização, balizamento, melhoria das comunicações e medidas
de segurança à navegação, mantendo-se as características naturais
do ecossistema
574
.
Os termos comuns a que chegaram as ONGs nessa reunião
não eliminaram por completo o potencial de divergência, que
poderá vir à tona quando da divulgação dos estudos
complementares. A coalizão “Rio Vivos”, a título de exemplo,
protestou, por carta, contra a decisão do CIH de encomendar a
elaboração dos referidos estudos
575
, ainda que tivessem excluído
o trecho Cáceres/Corumbá.
573
Foram convidadas a participar da reunião a WWF, a Wetlands for the Americas e a
Rios Vivos, que congregam número expressivo de pequenas organizações de cunho
regional, além do CEBRAC, cuja atuação restringe-se ao Brasil. Estiveram também
presentes na reunião representantes do BID e do PNUD, entidades co-responsáveis
pela coordenação dos estudos de viabilidade técnica e impacto ambiental que estavam
sendo elaborados à época.
574
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Fax circular n. 115, de 30/08/95.
575
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica n. 45470, de 14/
03/2003.
ELIANA ZUGAIB
246
4. ESTUDOS EM ANDAMENTO
4.1. PROJETO “MISSÃO PORTOS”/ UNIÃO EUROPÉIA (UE)
O Projeto “Missão Portos”, estabelecido em cooperação
técnica com a UE, contempla prioritariamente aspectos ligados à
modernização, ao acesso e ao aparelhamento dos portos da Hidrovia.
A UE contribuiu com fundos para a realização dos estudos com o
intuito de estabelecer programa para atender às necessidades de infra-
estrutura de treze portos da HPP, selecionados pelos cinco países por
constituírem elementos básicos, elos dos corredores multimodais que
se devem desenvolver na zona de influência da Hidrovia.
O objetivo dos estudos é identificar os melhores projetos de
investimento dos pontos de vista financeiro, econômico, social e ambiental
para cada um dos portos selecionados, cuja documentação serviria de
subsídio para a elaboração dos termos de referência que constituem a base
para a licitação dos projetos de engenharia
576
. O estudo foi dividido em três
fases: (a) prognóstico de tráfego, inventário da situação vigente e auditoria
ambiental, (b) projeto de investimento, de acordo com a fase anterior e (c)
capacitação de pessoal, para os níveis gerencial, médio e operacional
577
.
Os resultados e propostas decorrentes da missão de técnicos de
alto nível enviada pela UE aos países da região, entre 4 de abril e 16 de
maio de 1993, constaram de relatório apresentado durante a Reunião
Extraordinária de Chefes de Delegação do CIH, realizada em Buenos
Aires, em 25 de fevereiro de 1994. Na mesma ocasião, considerou-se
que o programa de cooperação Desenvolvimento das Áreas Produtivas
nos Hinterlands Portuários, proposto pelo FONPLATA
578
, poderia
576
CIH. Secretaría Ejecutiva. Programa Hidrovía Paraguay-Paraná. Síntesis.
Documento anexo à Nota SEHPP/AR Nr. 048/98, da Secretaria Executiva do CIH, 25 de
fevereiro de 1998. p. 6.
577
CAF. Los ríos nos unen. Integración Fluvial Suramericana, op. cit., p. 181.
578
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Despacho Telegráfico n. 1068, de 25/
10/94.
247
Os Estudos de Viabilidade
constituir valioso aporte como complemento ao programa contemplado com
a UE, ao enfatizar o desenvolvimento das regiões interiores sob a influência
dos portos situados ao longo da Hidrovia. Em dezembro de 1997, iniciavam-
se os estudos sobre o desenvolvimento dessas zonas produtivas, por meio
de cooperação técnica não reembolsável do FONPLATA, com o objetivo
de captar os aspectos operativo-comerciais de cada um dos portos
previamente selecionados pelos países intervenientes
579
.
Durante a XXXIII Reunião do CIH, seus representantes decidiram
realizar gestões junto à Secretaria Executiva da UE para dar continuidade
à segunda fase do estudo
580
. Está prevista a vinda de missão técnica da
UE, no primeiro semestre de 2005, ocasião em que se negociará a segunda
fase do projeto, relativa ao estudo de obras de engenharia de cinco portos:
Nueva Palmira (Uruguai), Barranqueras (Argentina), Concepción
(Paraguai), Puerto Busch (Bolívia) e Ladário (Brasil)
581
.
4.2. S
ISTEMA DE INFORMAÇÃO DA HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
Encontra-se igualmente em execução, com a participação da
Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) e a contribuição
do FONPLATA, estudo para a implementação do Projeto “Sistema
de Informação da Hidrovia Paraguai-Paraná”
582
. O referido Sistema é
579
CIH. Secretaría Ejecutiva. Programa Hidrovía Paraguay-Paraná. Síntesis.
Documento anexo à Nota SEHPP/AR n. 048/98, da Secretaria Executiva do CIH, 25 de
fevereiro de 1998. p. 6.
580
Embora o Brasil não se oponha ao projeto de cooperação com a UE, o licenciamento
de novas obras no trecho brasileiro da Hidrovia está sujeito à prévia realização de
estudos de impacto ambiental a serem encomendados pelo Ministério dos Transportes/
AHIPAR, conforme determinação do acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal
da Primeira Região, em 20/03/2001. Ver em BRASIL. Ministério das Relações Exteriores.
Circular Telegráfica n. 47629/833, de 06/11/2003.
581
BASADONNA, Juan Antonio (Secretario Ejecutivo - CIH): depoimento [21 dez. 2004].
Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
582
CIH. Secretaria Executiva. Nota SEHPP/AR n. 50/98 dirigida ao Presidente da Diretoria
Executiva do Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA), Dr.
Luis Fernando Terrazas Salas, [S.d.]. Na referida nota, o Secretário Executivo, Jesus G. Gonzalez
e o Secretário-Geral da ALADI, Antonio J.C. Antunes tecem comentários sobre o Projeto.
formado por Banco de Dados integrado, no qual será concentrado
todo tipo de informação de interesse para o projeto Hidrovia, tais como
dados técnicos, econômicos e estatísticos da via fluvial a serem
colocados à disposição do usuário.
De acordo com os termos de referência preparados pela ALADI
e do Convênio de Cooperação Técnica Não Reembolsável da
Hidrovia, assinado entre o CIH e o FONPLATA
583
, a execução do
referido Sistema foi concebida em três módulos, o primeiro dos quais
correspondeu à realização de estudo para desenhar o Sistema, cujo
objetivo é “suministrar a los usuarios interesados, tanto
gubernamentales como del sector privado, las informaciones
necesarias, oportunas y actualizadas, que permitan realizar los
controles, evaluaciones y previsiones requeridas para una operación
optimizada de esta vía fluvial”
584
. O segundo remete à celebração
de acordos que assegurem o provimento da informação e o desenho
detalhado do Sistema. O terceiro se propõe consolidar e manter a
operação do Sistema de Informação. A fase de implementação,
contudo, não chegou a ter seguimento.
583
O referido Acordo (Convenio OCT/NR/CIH-3/980) foi assinado por ocasião da
XXVII reunião do CIH, realizada em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, em abril de 1999.
Ver em BRASIL. Consulado em Santa Cruz de la Sierra. Telegrama n. 100 , de 13/04/99.
584
ALADI. Términos de Referencia (Proyecto). Perfil del Sistema de Información de la
Hidrovía Paraguay-Paraná. Montevidéu, s/n e [S.d.]. p. 1. Ver também FONPLATA,
nota CITE: SE/CIH-019/98, de 8 de julho de 1998 e seus anexos, Convenio sobre
Cooperación Técnica No Reembolsable OCT/NR/CIH-3/98 e Términos de Referencia;
FONPLATA, nota CITE:SE/CIH-20/98, de 8 de julho de 1998 e seu anexo Acuerdo
entre la Secretaría Ejecutiva del Comité Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-
Paraná (CIH) y la Secretaría General de la Asociación Latinoamericana de Integración
(ALADI).
ELIANA ZUGAIB
248
CAPÍTULO VI
O ESTÁGIO ATUAL DE IMPLEMENTAÇÃO DO
PROJETO
HIDROVIA E SEUS REFLEXOS NA
MELHORIA
DAS CONDIÇÕES DE
NAVEGABILIDADE
1. ESTÁGIO ATUAL
Quando os países platinos decidiram empreender ação conjunta
para revalorizar a HPP como meio de transporte barato capaz de
impulsionar e dar conteúdo ao emergente processo de integração, além
de aumentar o potencial exportador dos principais produtos da região,
encontrava-se a via fluvial “en su estado natural
585
e, de modo geral,
em “condiciones de navegabilidad bastante satisfactorias”
586
. Essas
condições naturais de navegabilidade, variáveis nos diversos trechos
da Hidrovia, atribuem-se ao efeito regulador do Pantanal Mato-
Grossense, ao baixo declive dos rios Paraguai e Paraná e à defasagem
do regime pluviométrico de suas bacias tributárias, fatores que
contribuem para simplificar as obras de melhoramento da
navegabilidade no curso daqueles rios
587
.
O transporte fluvial na região chegou a seu ponto máximo nas
décadas de 1950 e 1960, quando foi realizada quantidade considerável
O ESTÁGIO ATUAL DE IMPLEMENTAÇÃO DO
PROJETO
HIDROVIA E SEUS REFLEXOS NA MELHORIA
DAS
CONDIÇÕES DE NAVEGABILIDADE
585
GRUPO DE TRABAJO AD HOC DE LOS PAÍSES DE LA CUENCA DEL PLATA.
Hidrovía Paraguay-Paraná. Estudio de Pré-Factibilidad. [S.l.], nov. 1988. p. 20.
586
Ibidem.
587
Ibidem.
ELIANA ZUGAIB
252
de obras de dragagem de manutenção e outras vinculadas à melhoria
das condições de navegação
588
, como limpeza do leito, retirada de rochas
em pontos mais críticos e obras fixas de caráter experimental
589
. A partir
de então, aquele sistema entrou em declínio ao perder competitividade
para os meios rodoviário e ferroviário, cuja expansão se fazia com base
em subsídios governamentais. O declínio do uso da Hidrovia viria
acompanhado da redução das obras de melhoria da navegação,
principalmente as de dragagem de manutenção, que passaram a ser
realizadas de forma irregular e esporádica. Em decorrência da suspensão
das obras de manutenção, “los canales de navegación han retornado
a su comportamento morfológico natural
590
, havendo-se deteriorado
as condições de navegabilidade no sistema fluvial dos rios Paraguai-
Paraná, o que provocou, em alguns trechos, graves limitações de calado
e interrupção do tráfego em épocas de estiagem. As incertezas geradas
por essas condições agravaram a subutilização da via fluvial, cuja
revalorização no final da década de 80 demandou esforços conjuntos
para elevar sua eficiência. Com esse objetivo, os cinco países beneficiários
da via navegável encomendaram estudos para identificar os problemas
apresentados e desenvolver programa prioritário de medidas corretivas.
Tratava-se de restaurar o sistema de navegação existente, com
intervenções de curto prazo, que incluíam dragagem, possivelmente
modificações menores no canal de navegação nos trechos de Santa Fé
a Corumbá e Canal Tamengo, e melhoria do sistema de sinalização de
Nova Palmira a Corumbá de forma a permitir a navegação noturna
591
.
588
CCT (?). Términos de Referencia para el Mejoramiento de las condiciones de
Navegación en la Hidrovía Paraguay-Paraná desde el Puerto de Santa Fe a Corumbá
y en el Canal Tamengo, Módulo A (obras de curto prazo), encomendados ao Consórcio
HLBE. [S.l.] [199?].p.4.
589
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata. op. cit., p. 20.
590
CCT (?). Módulo A, op.cit., p.4.
591
CCT (?). Términos de Referencia para el Mejoramiento de las condiciones de Navegación
en la Hidrovía Paraguay-Paraná desde el Puerto de Santa Fe a Corumbá y en el Canal
Tamengo, Módulo B (obras de médio e longo prazos), encomendados ao Consórcio HLBE.
[S.l.] [199?]. p. 6.
253
O Estágio atual de Implementação do Projeto
As ações de médio e longo prazos, por sua vez, foram destinadas ao
desarrollo de la hidrovía más allá de la etapa de ‘restauración’, a
fin de lograr un sistema fluvial de primera clase que proporcione
una alternativa competitiva al sistema vial y ferroviario
592
.
Contemplavam-se, para atingir esse objetivo, obras de melhoria
em toda a Hidrovia por meio de programa seqüencial que permitisse a
plena realización del potencial de ese medio de transporte
593
.
No entanto, é preciso não perder de vista que o projeto original sofreu
redimensionamento no curso das negociações, ao haver sido o trecho
Cáceres/Corumbá excluído de todo e qualquer plano de obras
594
.
Esse plano consiste hoje em melhorar as condições de
navegação na Hidrovia para convertê-la em curso natural de transporte
eficiente e competitivo, reduzindo-se o tempo de navegação e os custos
de frete. Para tanto, deve abarcar três setores, os rios propriamente
ditos, as frotas e os portos. Espera-se que o setor público se ocupe
principalmente das vias navegáveis e o setor privado fundamentalmente
das frotas e dos portos
595
.
O Paraná é um típico rio de planície, com pouco declive e
quase não apresenta obstáculos à navegação. Já o rio Paraguai, entre
Corumbá e Assunção, é serpenteado e a maior concentração de passos
críticos à navegação de toda a hidrovia encontra-se em território
paraguaio, dentre os quais os de Arrecifes, Guggiari e Remanso Castillo,
592
Ibidem.
593
Ibidem.
594
As principais críticas das ONGs ao primeiro estudo de viabilidade econômica da Hidrovia
de que seus resultados não se coadunavam com a realidade ambiental dos países membros,
sobretudo no Brasil, onde está localizada a área de proteção ambiental do Pantanal Mato-
Grossense, provocaram ações no Ministério Público. Essas ações resultaram no Acórdão
proferido em janeiro de 2001 pelo Tribunal Federal Regional da Primeira Região. A decisão,
formulada com base no princípio da “precaução”, proibiu a realização de qualquer obra no
trecho brasileiro da HPP (dragagem de profundidade, obras portuárias de todo o tipo,
modernização das vias de acesso, etc.) enquanto não fosse concluído Estudo de Impacto
Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) de Cáceres à desembocadura do
Rio Apa. Sobre os desdobramentos do assunto, ver Capítulo VII deste trabalho.
595
BLOCH, Roberto D. Transporte Fluvial. Buenos Aires: Ad Hoc, diciembre 1999. p. 69.
ELIANA ZUGAIB
254
sendo este último o de maior importância para a navegação. A
eliminação desses setores de formação rochosa, especialmente nas
imediações da ponte Remanso Castillo, demandará o uso de explosivos
e escavações além de melhoria de acesso à ponte. Por sua vez, o
trecho entre o rio Apa e Assunção é considerado o mais difícil, podendo
a navegação ser interrompida durante mais de seis meses em anos de
seca
596
. Não seria, portanto, exagero afirmar que o Paraguai possui a
chave da HPP, uma vez que aquele trecho é o que requer maiores
trabalhos de dragagem e sinalização. Nessas condições, a solução dos
problemas apresentados entre o rio Apa e Assunção significa a abertura
do caminho para os demais países beneficiários da Hidrovia. “Sin
solucionar el tramo río Apa/Asunción, no hay navegación
continuada, y por lo tanto no hay ‘hidrovía’ tal como se la ha
concebido
597
.
Do ponto de vista da execução das futuras obras mínimas de
engenharia previstas na Hidrovia e objeto dos referidos estudos, pode-
se afirmar que o projeto se encontra ainda em fase incipiente. Embora
os estudos complementares tenham sido concluídos e entregues, seus
resultados ainda não foram formalmente aceitos pelo CIH e o início
das obras depende da definição dos chamados “grandes temas”
598
,
dentre os quais estão contemplados a natureza da entidade
administradora da execução das obras, do procedimento de sua
licitação e da modalidade de seu financiamento.
Não obstante, ações paralelas de manutenção da via fluvial
empreendidas pelos países em seus respectivos territórios já se têm
596
CCT (?). Módulo A, op.cit., pp.7 e 8.
597
FERRES SAYAGO, Pablo. Cuenca del Plata. Transporte Fluvial y Marítimo.
In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de
Integración, Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento n
.
763- G- 11, p. 247,
invierno 1991.
598
CIH. Ata da Reunião Extraordinária do CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias
16 e 17 de setembro de 2004. Ver também em BRASIL. Embaixada em Buenos Aires.
Telegrama n. 2095, de 24/09/04.
255
O Estágio atual de Implementação do Projeto
traduzido em impactos positivos na melhoria de suas condições naturais
de navegabilidade.
1.1. I
NTERVENÇÕES DE MANUTENÇÃO EM CURSO NA HIDROVIA
Os estudos de impacto ambiental e de viabilidade técnico-
econômica das possíveis alternativas de aproveitamento ótimo da
Hidrovia já representam considerável esforço no sentido de reunir base
de conhecimento para definir a ação coordenada entre os cinco países,
com vistas à melhor utilização do potencial de navegação com o menor
impacto ambiental. Independentemente da conclusão dessa primeira
fase, os países membros do CIH têm realizado obras de dragagem de
manutenção, balizamento e sinalização em seus respectivos trechos
para manter o canal navegável. Mais do que isso, foram tomadas
também medidas de melhoria no trecho inferior da Hidrovia. Em 1996
já se haviam iniciado as obras de dragagem no trecho Santa Fé/Oceano,
para elevar a profundidade do canal a 32 pés
599
.
No trecho brasileiro da HPP, as obras de melhoria das condições
de navegabilidade têm sido realizadas com regularidade pela
Administração da Hidrovia do Paraguai (AHIPAR) e pela Marinha do
Brasil
600
. As ações compreendem: (a) sinalização dos trechos Cáceres/
599
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Vol. VI, Información Ambiental. p. 64.
600
Os trabalhos de manutenção das condições de navegação desenvolvidos pela AHIPAR
e pelo Comando da Marinha do Brasil, no trecho brasileiro da Hidrovia, foram
enfaticamente elogiados pelo Presidente da “Comisión Permanente de Transporte de la
Cuenca del Plata” (CPTCP), entidade que reúne os armadores que navegam pela Hidrovia,
Dr. Horacio López, cuja postura tem sido sempre muito crítica em relação ao Brasil. O
elogio foi feito por ocasião da Reunião Extraordinária do CIH, realizada em Buenos
Aires, nos dias 16 e 17 de setembro de 2004. Ver em BRASIL. Embaixada em Buenos
Aires. Telegrama n. 2095, de 24/09/04. De modo igualmente enfático, Horacio López
afirmou ter sido o Brasil “el país que más invertió en el mantenimiento de la Hidrovía”.
LÓPEZ, Horacio (Presidente da CPTCP): depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador:
E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
ELIANA ZUGAIB
256
Corumbá, pela AHIPAR, e Corumbá/Foz do rio Apa, pela Marinha
do Brasil; (b) dragagem de manutenção; (c) serviços e projetos de
proteção do meio ambiente e (d) preparação de cartas eletrônicas até
a foz do rio Apa, com a possibilidade de que se venham a estender até
Assunção
601
. A AHIPAR tem implementado ainda sistema de controle
da água, das matas ciliares e da segurança das embarcações
602
. Além
dessas iniciativas, o Ministério dos Transportes destinará R$ 30 milhões
em 2005 para a reativação do porto de Ladário, cujas intervenções
deverão respeitar controle ambiental
603
. Os esforços de recuperação
do porto prevêem logística de incorporação de serviços aduaneiros
ininterruptos
604
.
Como resultado do espírito de colaboração com que o Brasil
tem procurado solucionar os obstáculos à navegação no Canal Tamengo,
conforme visto no capítulo IV, foram realizados estudos de viabilidade
para a solução das dificuldades apresentadas pela atual infra-estrutura
de tomada de água da cidade de Corumbá, havendo o governador do
Mato Grosso do Sul, José Orcírio Miranda dos Santos, demonstrado
interesse em transformá-la em subaquática
605
. A iniciativa encontra-se
na fase de convocatória para a licitação do projeto executivo das obras
de sua modificação
606
.
Em território argentino, a dragagem do trecho do rio Paraná,
compreendido entre a desembocadura do Rio da Prata e o porto de
Santa Fé, tem sido feita por meio de contrato de concessão a consórcio
601
CIH. Ata da Reunião Extraordinária do CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias 16
e 17 de setembro de 2004. Ver também em BRASIL. Embaixada em Buenos Aires.
Telegrama n. 2095, de 24/09/04.
602
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Despacho Telegráfico n. 986, de 10/
09/04.
603
Ibidem.
604
CIH. Ata da Reunião Extraordinária do CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias
16 e 17 de setembro de 2004. Ver também em BRASIL. Embaixada em Buenos Aires.
Telegrama n. 2095, de 24/09/04.
605
BRASIL. Embaixada em La Paz. Telegrama n. 1176, de 03/09/04.
606
BRASIL. Embaixada em Buenos Aires. Telegrama n. 2095, de 24/09/04.
257
O Estágio atual de Implementação do Projeto
privado que prevê a manutenção de sua profundidade a 32 pés para a
navegação de navios oceânicos
607
. Tendo em conta essa concessão, o
projeto de intervenções na HPP limitou-se, no que se refere à dragagem,
ao trecho águas acima de Santa Fé, estendendo-se as obras de ajuda
à navegação até Nova Palmira.
No rio Paraguai, águas acima de Assunção, não há obrigatoriedade
formal de dragagem e manutenção da via navegável, o que levou o Consórcio
HLBE a recomendar, a exemplo do disposto nas Convenções dos rios
Reno e Danúbio, que o Acordo de Transporte Fluvial fosse ampliado para
incluir o compromisso formal dos cinco países de executar e manter as
obras que assegurem a navegabilidade na via fluvial
608
. Ao contrário, águas
abaixo, no trecho Assunção/Santa Fé, existe acordo celebrado entre a
Argentina e o Paraguai que garante a manutenção da via navegável para
embarcações de até 10 pés de calado
609
.
A dragagem de manutenção do trecho do Paraná,
compartilhado pela Argentina e pelo Paraguai, tem sido feita por ação
conjunta, mediante acordo assinado pelos dois governos, tomando-se
como referência as condições e definições estabelecidas pelo Estudo
realizado pelo consórcio HLBE para o módulo A
610
.
607
HLBE. Estudo de Viabilidade Técnico-Econômica da Hidrovia Paraguai-Paraná. Resumo
Executivo. [S.l.], 1997. p. 2. Cópia eletrônica disponibilizada pelo Secretário Executivo do
CIH. Ver também em BLOCH, Roberto D., op. cit., p. 78.
608
HLBE, op.cit., pp. 10 e 11. A questão da garantia das condições de navegabilidade é
considerada de vital importância para as atividades econômicas e comerciais da área de influência,
uma vez que é condicionante do cumprimento dos contratos comerciais de exportação e
importação e da manutenção de preços do frete nos mercados nacionais e internacionais.
609
Uma vez terminados os estudos e por decreto presidencial argentino n. 1106/
97, de 24/10/97, avaliaram-se as condições para a extensão do contrato existente
de dragagem e sinalização até Santa Fé e dessa localidade até Assunção, pelo rio
Paraguai. Ver em HLBE, op.cit., p. 10.
610
PARAGUAY. Ministerio de Relaciones Exteriores. Programa de la Hidrovía
Paraguay-Paraná. Descripción de los Tramos, p. 1. O documento consta como
anexo ao Fax VAME/DGI/n. 61/98, dirigido ao então Secretário Executivo do
CIH, Sr. Jesus Gonzalez, de 18/06/98. Ver também em BID/INTAL. Programa
Hidrovía Paraguay-Paraná. Análisis de Compatibilización de Legislación.
Módulo I: Tratados Internacionales de Navegación. Serie Compatibilización de
ELIANA ZUGAIB
258
A decisão da Argentina de manter unilateralmente a dragagem
e o balizamento que permitam a navegação de ultramar de Santa Fé
até o oceano tenderia a incorporar nova variante ao Acordo de
Transporte pela Hidrovia Paraguai-Paraná que seria a de realizar o
transbordo de comboios de barcaças em qualquer um dos portos
profundos do Paraná inferior com o intuito de diminuir ainda mais
o frete para os produtos que saiam ou entrem do exterior, sem
necessidade de chegar até Nova Palmira
611
.
No Uruguai, têm sido realizadas reformas significativas no porto
de Nova Palmira que compreendem o melhoramento dos silos e da
maquinaria e a ampliação das docas, com reflexos positivos na
movimentação de carga. Há ainda investimento estrangeiro em porto
complementar na zona de Barranca de Los Loros
612
.
1.2. I
MPLEMENTAÇÃO DO ACORDO DE TRANSPORTE FLUVIAL PELA
HIDROVIA PARAGUAI-PARANÁ
Ao CIH coube a tarefa de implementar o objetivo, consagrado
no Acordo de Transporte Fluvial, de propiciar sua utilização em
Legislación. Buenos Aires, noviembre de 1990. O documento consta como anexo
da carta do Sr. Eduardo A. Zalduendo ao Diretor do BID, datada de 16 de
novembro de 1990, e apresenta uma análise dos tratados e acordos internacionais
assinados entre os países beneficiários da Hidrovia e entre estes e países extra-
regionais, relacionados com a utilização dos rios Paraguai-Paraná. Menciona o
documento, na página 8, que a Argentina e o Paraguai já mantinham desde
fevereiro de 1941 acordo sobre dragagem e balizamento do rio Paraguai a uma
profundidade mínima de 6 pés (1,83 m), o qual foi mais tarde substituído por
acordo de 1969 que criou uma Comissão Mista Técnica, com sede em Assunção,
e previa a manutenção de profundidade de 2,135 m no trecho do rio Paraguai
entre Assunção e Confluência.
611
ALZUETA, Adrián M. Derecho de Navegación. Problemas Jurídicos derivados de la
Hidrovía Paraguay-Paraná. In: Colección Jurídica y Social, n. 31, Secretaria de Posgrado
y Servicios a Terceros, Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, Universidad Nacional
del Litoral, agosto de 1995, pp. 21 e 22.
612
QUAGLIOTTI DE BELLIS, Bernardo: depoimento [30 out. 2004]. Entrevistador:
E. Zugaib. Montevidéu, 2004.
259
O Estágio atual de Implementação do Projeto
conformidade com os princípios de liberdade de navegação, livre
trânsito, livre participação das bandeiras no tráfego entre os países
signatários, igualdade e reciprocidade de tratamento, segurança de
navegação e proteção do meio ambiente. O Comitê tem desenvolvido
trabalho nesse sentido, empenhando-se em estabelecer normas
uniformes de modo a permitir que a navegação se realize com o menor
índice de risco possível, a eliminar travas e procedimentos que dificultem
a operação da via navegável e a corrigir assimetrias entre as legislações
nacionais em matéria de cobrança de taxas, incentivos, capacitação
profissional e exigências relativas à tripulação.
Por ocasião da V Reunião Extraordinária dos Chanceleres dos Países
da Bacia do Prata, realizada em Montevidéu, em 14 de dezembro de 1997,
foram aprovados por Resolução Única, 11 Regulamentos
613
do referido
Acordo, adotados pelo CIH, dentre os quais figuram os relativos ao Regime
Único de Dimensões de Comboios e o Regulamento Único de Balizamento.
A esses 11 Regulamentos somaram-se, mais tarde, outros três
614
, finalizados
durante a XXVIII Reunião do CIH, realizada em Cuiabá, em 2000.
613
A Declaração Conjunta emanada da IV Reunião Ordinária dos Ministros de Transportes,
Comunicações e Obras Públicas da América do Sul, de 28 de novembro de 1997, elevou à
consideração da V Reunião Extraordinária dos Chanceleres da Bacia do Prata (Montevidéu,
14/12/97) a necessidade de incorporação imediata dos regulamentos acordados no âmbito do
CIH aos ordenamentos jurídicos de cada um de seus países membros, para garantir a
igualdade de oportunidade a todos os usuários da Hidrovia e assegurar sua eficiência e
confiabilidade. O conjunto de 11 Regulamentos, aprovados pelos Chanceleres e
protocolizados na ALADI é composto de: Regulamento Único para o Transporte de
Mercadorias sobre o Convés das Embarcações; Regulamento Único de Balizamento; Glossário
Uniforme dos Serviços da Hidrovia; Regulamento para Prevenir Abalroamentos na Hidrovia;
Regulamento para Determinação da Arqueação das Embarcações; Plano de Comunicações
para a Segurança da Navegação na Hidrovia; Regime Único de Dimensões Máximas de
Comboios; Regulamento Único para designação de Borda-Livre das Embarcações da Hidrovia;
Regulamento Sobre a Adoção de Requisitos Exigíveis Comuns para a Matrícula de
Embarcações, Inscrição de Contratos de Utilização e Intercâmbio de Informação sobre
Matrícula de Embarcações, Altas, Baixas e Modificações; Regulamento Único de Vistorias
e Inspeções de Embarcações e Regime Único de Infrações e Sanções da Hidrovia.
614
Os três Regulamentos adicionais finalizados na Reunião do CIH, realizada em Cuiabá
são: Regulamento de Segurança para as Embarcações da Hidrovia Paraguai-Paraná; Regime
Uniforme sobre Praticagem na Hidrovia e Planos de Formação e Capacitação para o
Pessoal Embarcado na Hidrovia.
ELIANA ZUGAIB
260
A referida Resolução previa em seu artigo 2
o
que os governos
dos países membros procedessem à incorporação dos regulamentos
em seus respectivos ordenamentos jurídicos internos. Em cumprimento
ao referido artigo, o Uruguai já concluiu os trâmites de internalização
de todos os regulamentos. O Brasil e a Bolívia já assimilaram os 11
primeiros e o processo de incorporação dos regulamentos 12, 13 e 14
encontra-se em fase final de tramitação nos dois países
615
. O Paraguai
616
e a Argentina têm enfrentado dificuldades para internalizar tais
regulamentos, sobretudo os relativos a Dimensões Máximas dos
Comboios, a Infrações e Sanções e a Inspeção das Embarcações
617
,
sob a justificativa de que estariam desatualizados
618
. Não deixa, no
entanto, essa postura, de encobrir as pressões exercidas pelos
armadores locais para que se aumentem as dimensões máximas dos
615
CIH. Ata da Reunião Extraordinária do CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias
16 e 17 de setembro de 2004. Ver também em BRASIL. Embaixada em Buenos Aires.
Telegrama n. 2095, de 24/09/04. No Brasil, a tradução do regulamento Nr. 12 encontra-
se em fase de revisão, uma vez que a palavra “pilotaje” foi traduzida inadequadamente
e os regulamentos n. 13 e n. 14 encontram-se em processo de protocolização.
616
Durante a reunião preparatória à V Reunião Extraordinária dos Chanceleres da Bacia
do Prata, o Paraguai procurou evitar a aprovação in toto do conjunto dos regulamentos
e introduzir menção a fatores condicionantes com relação ao processo de incorporação
dos regulamentos ao ordenamento jurídico interno de cada país. (Cf. BRASIL. Embaixada
em Montevidéu. Telegrama n. 1262, de 18/12/97).
617
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica n. 47629/833, de
06/11/2003, que relata os trabalhos da XXXIII Reunião do CIH, realizada em Santa
Cruz de la Sierra, de 22 a 25 de setembro de 2003. Comenta ainda a referida circular
telegráfica que, diante da intenção do Paraguai e, em menor grau da Argentina, de
modificar os regulamentos que ainda não internalizaram, o Brasil assumiu a posição de
princípio de não aceitar modificações nos regulamentos já aprovados pelo CIH, antes
de serem incorporados aos ordenamentos jurídicos de todos os países membros. Essa
posição tinha por objetivo evitar que se colocasse em risco o trabalho legislativo do CIH
e se abrisse perigoso precedente de insegurança jurídica para os usuários da Hidrovia.
Revogava ainda a decisão tomada pela delegação brasileira na XXIX Reunião do CIH de
rever, a pedido da delegação argentina, pelo menos três regulamentos: Regime Único de
Dimensões Máximas de Comboios; Regime Único de Infrações e Sanções na Hidrovia e
Regime Único de Segurança.
618
MELO, Renato Batista de. Considerações sobre a Hidrovia Paraguai-Paraná.
BRASIL. Marinha do Brasil. Divisão de Assuntos Marítimos e Ambientais. Brasília, 1
set. 2004. p.3. Texto mimeografado.
261
O Estágio atual de Implementação do Projeto
comboios, principalmente nos trechos paraguaio
619
e argentino e se
flexibilizem as normas de segurança na Hidrovia
620
.
1.3. I
MPACTOS DAS OBRAS/SERVIÇOS DE MANUTENÇÃO E DA
HARMONIZAÇÃO
DA LEGISLAÇÃO
Os efeitos positivos das obras/serviços de manutenção
desenvolvidas ao longo da Hidrovia já se traduzem em termos de
melhores condições de navegabilidade na via fluvial, maior segurança
para o usuário e o conseqüente aumento do volume de carga
transportada e de investimentos pelo setor privado na infra-estrutura
da HPP
621
. Os dados sobre os efeitos concretos das obras de
manutenção são eloqüentes ao observar-se que o Mercosul movimenta
atualmente 45 milhões de toneladas ao ano, das quais 10 milhões foram
619
No caso do Paraguai, o Diretor da Marinha Mercante, Maidana Benítez, reconheceu,
por ocasião da Reunião de Ministros dos Transportes e Obras Públicas da Bacia do
Prata, realizada em 25 de abril de 2000, em Montevidéu, que as dificuldades de
internalizar os regulamentos do Acordo no ordenamento jurídico paraguaio decorrem,
em grande medida, da oposição do setor privado. (Cf. BRASIL. Embaixada em
Montevidéu. Telegrama n. 458, de 28/04/2000). Na avaliação do Presidente da CPTCP,
a lo mejor hay que hacer algunas obras de retoque para convoyes más grandes, pero
yo creo que con las dimensiones actuales la Hidrovía funciona perfectamente. Veremos
si con el tiempo es necesario o es posible aumentar los convoyes y retocar el río”.
LÓPEZ, Horacio (Presidente da CPTCP): depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador:
E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
620
Renato Batista de Melo, op.cit., pp.3 e 4.
621
De acordo com dados fornecidos pelo Ministro dos Transportes do Uruguai, Dr.
Cáceres, em 2000, os investimentos privados realizados para aprimorar a infra-estrutura
da HPP atingiam a ordem de US$ 600 milhões, o que contrastava com o até então
reduzido investimento estatal na via navegável. (Cf. BRASIL. Embaixada em
Montevidéu. Telegrama nr. 458, de 28/04/2000). “El mejoramiento de los ríos Paraguay
y Paraná incrementará la demanda de transporte en forma considerable. Sólo en el
tramo paraguayo, desembocadura del río Apa-Asunción, generará una carga adicional
importante estimada en el doble de la actual, lo que posibilitaría, con asistencia financiera
adecuada, la construcción de barcazas por empresarios del Paraguay con las ventajas
económicas que ello implica”. ARRIOLA, Javier (Jefe de Navegación Fluvial/Ministerio
de Relaciones Exteriores de Paraguay): depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador: E.
Zugaib. Buenos Aires, 2004.
ELIANA ZUGAIB
262
transportadas pela HPP
622
e que as projeções para o ano 2020 indicam
a elevação desse volume para 20 milhões de toneladas
623
. No que diz
respeito ao trecho brasileiro da Hidrovia, o rio Paraguai é navegável
24 horas por dia durante todo o ano, havendo sido registrados aumentos
contínuos na movimentação de carga que passou de 948.602
toneladas
624
, em 1987, para 2.290.268 toneladas no primeiro semestre
de 2004
625
(ANEXO – Gráfico 1).
Tomando-se por base os dados relativos a 1987,
disponibilizados no Estudo de Pré-viabilidade e colocados em evidência
no Capítulo V, verifica-se que o movimento total de carga na Hidrovia
622
Há discrepância entre os dados coletados de fontes governamentais e da iniciativa
privada, daí a diferença entre os dados apresentados pelo Estudo COINHI e pelo El
Balance de la Economía Argentina. Segundo o governo paraguaio, “los principales
resultados se obtuvieron luego de la firma del Acuerdo de Transporte Fluvial por la
Hidrovía Paraguay-Paraná, en el 1992, iniciándose una etapa con un aumento
considerable del volumen de carga transportada por la Hidrovía, aumento de la flota
de los países, mejoramiento de los puertos del Estado y creación de puertos privados;
debido principalmente a la confianza que generó este sistema de transporte, dando un
impulso a la actividad económica de la región, como la producción de soja, entre otras
(...).Según los datos con los que contamos, a la fecha, el Programa Hidrovía Paraguay-
Paraná ha logrado un desarrollo sin precedentes en estos ríos. Entre 1988 y 2000 el
transporte de mercaderías se multiplicó aproximadamente por diez, pasando de 1,2 a
casi 12 millones de toneladas al año. En cuanto al volumen transportado, la soja y sus
derivados son los productos más importantes, seguidos por el hierro y los combustibles.
El tráfico de bajada supera cuatro veces al de subida, y el 80 % de este último
corresponde a los combustibles. Sin embargo, el tonelaje que circula es todavía
notoriamente inferior al tonelaje potencial. Por este motivo, los países de la Hidrovía
deben seguir impulsando el avance del Programa con la intención de desarrollar un
sistema competitivo”. ARRIOLA, Javier (Jefe de Navegación Fluvial/Ministerio de
Relaciones Exteriores de Paraguay): depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador: E.
Zugaib. Buenos Aires, 2004.
623
INSTITUTO DE INVESTIGACIONES ECONÓMICAS (I.I.E.). El Balance de la
Economía Argentina. Alizanzas Inter-Regionales. Córdoba, Argentina: Talleres Gráficos
de Ediciones Eudecor SRL, 2003, p. 106.
624
BRASIL. Ministério dos Transportes. I Encontro Internacional para o
Desenvolvimento da Hidrovia Paraguai-Paraná. Campo Grande, MS, abril de 1988.
p. 26.
625
BRASIL. Ministério dos Transportes. Companhia Docas do Estado de São Paulo.
Administração da Hidrovia do Paraguai (AHIPAR). Gráfico Anual de Movimentação
de Cargas na Hidrovia. Documento digitalizado.
263
O Estágio atual de Implementação do Projeto
mais do que duplicou se comparado com os níveis atuais, passando de
3.880.000 t
626
para 8.122.962 t, em 2002
627
.
Os sucessos registrados em termos de aumento de carga em
2003, ainda que a tendência prevista para 2004 fosse de estabilização,
provocou reação positiva no setor privado que atualmente investe na
ampliação da frota
628
. De acordo com dados fornecidos pela CPTCP,
desde 1988 até setembro de 2004, o setor privado desenvolveu 53
instalações portuárias, 3 na zona de Nova Palmira (Uruguai), 3 em
Puerto Quijarro (Bolívia), 23 no Paraguai, 7 no Brasil e 17 na Argentina.
As embarcações que operam na Hidrovia triplicaram durante o mesmo
período, configurando frota em operação de 1015 barcaças e 100
rebocadores
629
. Esses investimentos não se detiveram, estando
previstos 12 novos projetos portuários adicionais: 5 na Bolívia, 2 no
Uruguai e 5 na Argentina, e deverão multiplicar-se caso se realizem as
futuras obras de melhoramento na Hidrovia
630
. As significativas reformas
realizadas no porto de Nova Palmira já se traduzem em crescimento
de 57,4% de sua movimentação, em 2002, e em 53,1% em 2003
631
.
Faltaria ainda, no entanto, garantir a previsibilidade do tempo
de navegação, hoje um dos fatores de competitividade para a colocação
dos produtos, sobretudo as commodities, no mercado internacional
632
.
626
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata, op. cit., pp. 85, 86,
89 e 90.
627
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Componente Económico-Financiero. p.14.
628
Idem, p.8.
629
LOPEZ, Horacio. Texto de Intervenção feita no âmbito da Reunião Extraordinária do
CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias 16 e 17 de setembro de 2004. p. 1.
630
Ibidem.
631
QUAGLIOTTI DE BELLIS, Bernardo: depoimento [30 out. 2004]. Entrevistador:
E. Zugaib. Montevidéu, 2004.
632
(...) el sector privado necesita (...) previsibilidad. Hay muchos contratos que son a
término, que deben cumplirse, y que las fechas son obligatorias. Y no puede depender
de que el río tenga 1 o 2 pies más o menos, y en base a eso perder un contrato
ELIANA ZUGAIB
264
Essa garantia só poderá ser dada se realizado o projeto de obras
mínimas na Hidrovia, o que dependerá não apenas da conclusão da
fase dos estudos de viabilidade técnica e impacto ambiental, mas
também do consenso em torno dos chamados grandes temas, objeto
do item 2 abaixo.
Assim como as obras de manutenção contribuem para a melhoria
das condições de navegabilidade na Hidrovia, os esforços de
harmonização das legislações e normas nacionais em matéria de
navegação e comércio pelos rios Paraguai e Paraná têm desempenhado
importante papel para o estabelecimento da desregulamentação
633
e
regras comuns de disciplina da utilização da via fluvial. Os regulamentos
e protocolos aprovados e internalizados até o momento no ordenamento
jurídico dos cinco países têm-se traduzido em maior segurança da
navegação, proteção da vida humana e preservação do meio ambiente
634
.
2. O
BSTÁCULOS A SEREM TRANSPOSTOS
Os principais obstáculos a serem transpostos na fase de
transição da etapa dos estudos para a da execução das obras são os
internacional. Eso es inaceptable. Hay contratos que en este momento no se están
aceptando por eso”. D’AMATO, Eduardo (Ministerio de Relaciones Exteriores y
Culto de Argentina/Comité Intergubernamental de la Hidrovia Paraguay-Paraná /
Delegación Argentina): depoimento [19 out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos
Aires, 2004.
633
Antes da assinatura do Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-Paraná
um comboio que descia de Corumbá a Buenos Aires tinha que apresentar 14 documentos
diferentes. (Cf. ROJAS CUEVAS, Cayo Oscar. La Hidrovia el Gran Desafío. In: Boletín
del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración, Buenos
Aires, año 110, v. 109, suplemento n. 763-G-11, p. 189, invierno 1991. “(...) con la
vigencia del Acuerdo de Transporte Fluvial se ha generado un escenario de seguridad
jurídica cuyos resultados son elocuentes, hoy se habla de más de 10 millones de toneladas,
más de un millón de toneladas estáticas de oferta de bodegas, inversión privada que
supera los mil millones de dólares en flota, puertos y otros servicios”. FERRUFINO,
Leonidas (Asesor de la Presidencia del CIH/Bolivia): depoimento [4 out. 2004].
Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
634
Renato de Melo Batista, op.cit., p. 15.
265
O Estágio atual de Implementação do Projeto
que compõem os “grandes temas”. Dentre eles, de particular importância
e sensibilidade é a definição de futura entidade administradora da
Hidrovia, preocupação explicitada desde as primeiras discussões acerca
de sua revalorização, no I Encontro Internacional para o
Desenvolvimento da Hidrovia Paraguai-Paraná
635
. O assunto
ressurgiria, em várias oportunidades
636
, na agenda das reuniões que
se seguiram antes e depois da incorporação do programa da Hidrovia
ao Sistema da Bacia do Prata.
A sensibilidade política da questão, um dos indicadores mais
representativos do grau de superação do antigo modelo geopolítico
pautado pela lógica dos antagonismos em favor de outro de integração
e complementação, faria com que a decisão sobre a natureza da
entidade administradora da Hidrovia, a ser tomada em alto nível,
fosse sistematicamente postergada. Ao mesmo tempo, não houve
evolução da posição brasileira com respeito à tese da
supranacionalidade condizente com o progressivo aprofundamento
do processo de integração, conforme evidenciará o capítulo VIII. A
maior flexibilização de outros países, por sua vez, parece estar ligada
a interesses diretos no uso mais intenso da Hidrovia e, portanto, na
635
BRASIL. Ministério dos Transportes. I Encontro Internacional para o
Desenvolvimento da Hidrovia Paraguai-Paraná. Campo Grande (MS), abril de 1988.
pp. 36-37.
636
Lançada a preocupação de se estabelecer mecanismo adequado para uma gestão
eficiente da Hidrovia baseada em visão sistêmica e estratégica do transporte fluvial
internacional, o assunto viria a ressurgir em várias oportunidades, como, por exemplo,
na IV Reunião do Grupo Ad Hoc (criado pelos Ministros dos Transportes e Obras
Públicas dos Países membros da Bacia do Prata, em Campo Grande, em 1988),
realizada em Assunção, nos dias 17 e 18 de agosto de 1989; nos estudos de pré-
viabilidade, de viabilidade e complementares do programa da Hidrovia; nos estudos
encomendados ao INTAL e intitulados Alternativas jurídico-institucionales para el
funcionamento definitivo del Comité de la Hidrovía Paraguay-Paraná (1991); na IV
Reunião do CIH, realizada em Colônia do Sacramento, no período de 27 de fevereiro
a 01 de março de 1991; na XII Reunião do CIH, realizada em dezembro de 1993; na
reunião dos chefes de delegação do CIH, realizada em Buenos Aires, em novembro de
2000 e na Reunião Extraordinária do CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias 16 e 17
de setembro de 2004.
ELIANA ZUGAIB
266
agilização do processo decisório que permita abreviar o prazo de
concretização das obras, eliminando-se o obstrucionismo inerente à
negociação multilateral.
2.1. O
BSTÁCULOS DE NATUREZA INSTITUCIONAL-LEGAL
A gênese do Tratado da Bacia do Prata foi marcada, num
primeiro momento, por divergências entre os principais protagonistas,
que se manifestaram firmemente em defesa de processos decisórios
baseados nos princípios da soberania (Brasil) e da supranacionalidade
(Argentina), como instrumentos para fazer prevalecer seus interesses
nacionais na região. Tratava-se, para o Brasil, de vencer o embate
para que o princípio da responsabilidade jurídica dos Estados tivesse
primazia sobre qualquer regra ou mecanismo de aplicação compulsória
que limitasse o poder soberano nacional
637
.
Um breve paralelo entre o processo de gênese do Tratado da
Bacia do Prata e o de institucionalização do Programa da HPP permite
verificar a presença de elementos semelhantes, presentes nas discussões
sobre a natureza a ser atribuída à entidade administradora da HPP e
no Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-Paraná.
2.1.1. A
QUESTÃO DA SUPRANACIONALIDADE NA GÊNESE DO TRATADO
DA
BACIA DO PRATA
A expressão de interesse dos países da Bacia do Prata por seu
estudo e aproveitamento, manifestada em alto nível, antecedeu em várias
décadas o processo de sua institucionalização. Desde o início do século,
expressou-se a vontade de conceber projetos conjuntos e de favorecer
programas nacionais de benefício regional. Várias reuniões latino-
637
A vitória da diplomacia brasileira nesse embate ficou consagrada na Declaração de Assunção
sobre Aproveitamento de Rios Internacionais, assinada por ocasião da IV Reunião de
Chanceleres dos Países da Bacia do Prata, realizada na capital paraguaia, em 1971.
267
O Estágio atual de Implementação do Projeto
americanas ocuparam-se do assunto, havendo-se destacado a Conferência
Regional dos Países do Prata, realizada em Montevidéu em 1941.
A Declaração Conjunta emanada da reunião de Presidentes,
realizada em Punta del Este, no período de 12 a 14 de abril de 1967,
constituiu a base política para a continuidade dos esforços empreendidos
com vistas à institucionalização do grupo de países que compõem a Bacia
do Prata
638
. Registrava a Declaração a importância da ação multilateral
voltada para projetos de infra-estrutura, como meio de promover a
integração da América Latina, e recomendava a elaboração de sistemas
conjuntos de projetos relativos a bacias hidrográficas, dentre as quais a
do Rio da Prata era citada expressamente.
Porém, cronologicamente, pode-se dizer que o processo da
Bacia do Prata teve seu início institucional com a celebração, em 1967,
da I Reunião de Chanceleres dos países que integram a região. A
Declaração Conjunta assinada naquela oportunidade destacava o
propósito dos países platinos de realizarem estudo integral da Bacia,
com vistas ao programa de obras multinacionais, binacionais e nacionais.
No mesmo ato, os chanceleres anunciaram a criação de órgão
permanente para o acompanhamento e centralização de informações
relacionadas com as iniciativas de interesse para a região, o CIC, cujo
estatuto viria a ser aprovado na II Reunião de Chanceleres
639
. Durante
o primeiro encontro, “já se formava o embrião de um dos princípios
básicos, em que, por iniciativa nossa [Brasil], iria basear-se todo o
processo decisório no foro da Bacia do Prata: o da unanimidade”
640
.
638
SÁNCHEZ-GIJÓN, Antonio. La integración en la Cuenca del Plata. Madrid: Instituto
de Cooperación Iberoamericana, Ediciones de Cultura Hispánica, 1990, p. 135. Menção
a BETIOL, Laércio. Itaipu: Modelo Avançado de Cooperação Internacional na Bacia
do Prata. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1983. p. 34.
639
Declaración Conjunta de los Cancilleres de los Países de la Cuenca del Plata, Buenos
Aires, 27 de febrero de 1967, assinada por ocasião da I Reunião de Chanceleres da Bacia do
Prata. In: PARAGUAY. Cuenca del Plata.Conferencias de Cancilleres. Documentos Básicos
1967-1977. IX Reunión de Cancilleres, Asunción, 5/8 de diciembre de 1977. p. 43.
640
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Informação sobre o Aproveitamento dos Rios
Internacionais na Bacia do Prata, MRE: Divisão da América Meridional (DAM-I), [S.d.]. p. 2.
ELIANA ZUGAIB
268
Foi em Santa Cruz de la Sierra que o Brasil conseguiu
estabelecer a base fundamental da evolução do processo institucional
do Prata. A preocupação globalizante da Declaração da I Reunião que
previa “o estudo conjunto e integral da Bacia”
641
foi substituída por
programa de projetos compartilhados pelos cinco países ou específicos
apresentados por um ou mais países, o que atendia aos interesses do
Brasil, favorável a procedimento de identificação de áreas prioritárias
e contrário à idéia de planejamentos globais, como queria a Argentina.
Alterava-se, assim, a deliberação inicial de se fazer realizar estudo global
da Bacia para então discutir e estudar os diversos casos. A partir da II
Reunião, os projetos prioritários de integração deveriam ser negociados
caso a caso, de acordo com sua especificidade
642
. Mais do que isso,
de acordo com a ata da Reunião, os critérios de prioridade “no
prevalecerán contra las razones de carácter político que los
gobiernos encuentren valederos para decidir la ejecución de
proyectos determinados
643
.
Na ocasião, ficava também institucionalizado o regime de
reuniões periódicas de chanceleres, em “caráter de autoridade
superior para trazar la política a ser seguida con vistas al desarrollo
641
I Reunión de Cancilleres de los Países de la Cuenca del Plata (Buenos Aires, 27 de
fevereiro de 1967). Declaración Conjunta. In: PARAGUAY. Ministerio de Relaciones
Exteriores. Cuenca del Plata. Conferencias de Cancilleres. Documentos Básicos 1967-
1977. IX Reunión de Cancilleres, Asunción, 5/8 de diciembre de 1977. p. 43.
642
A partir de então, ficava modificado o enfoque metodológico do sistema. O quadro
geral da Bacia seria analisado com a junção das diversas partes, ou seja, os projetos
prioritários. Estabelecia-se a primazia do método indutivo sobre o dedutivo. O próprio
Tratado da Bacia do Prata define claramente o caráter indutivo que se decidiu imprimir
ao processo, ao sintetizar a finalidade dos Estados signatários de “promover o
desenvolvimento harmônico e a integração física da região” e ao prescrever a metodologia
a ser seguida, ou seja, “a identificação de áreas de interesse comum, a realização de
estudos, projetos e obras, bem como a formulação de entendimentos operativos e
instrumentos jurídicos julgados necessários”.
643
Acta de la II Reunión de Cancilleres de los Países de la Cuenca del Plata (Santa Cruz
de la Sierra, Bolivia, 18-20 de Mayo de 1968). In: PARAGUAY. Ministerio de Relaciones
Exteriores. Cuenca del Plata. Conferencias de Cancilleres. Documentos Básicos 1967-
1977. IX Reunión de Cancilleres, Asunción, 5/8 de diciembre de 1977. p. 54.
269
O Estágio atual de Implementação do Projeto
armónico y equilibrado de la región”
644
e os chanceleres
encarregavam o CIC de preparar projeto de tratado para “afianzar
la institucionalización de la Cuenca del Plata
645
. Assim, uma vez
fixados os primeiros parâmetros do esquema de cooperação que se
iniciava, a criação do CIC e a adoção da regra da unanimidade e do
método indutivo, as discussões levadas a cabo na elaboração do
tratado encomendado pelos chanceleres centrar-se-iam
fundamentalmente em considerações sobre a natureza que deveria
assumir a instituição destinada a agregar o grupo de países da Bacia
do Prata.
A adoção daqueles parâmetros viria a limitar
646
as pretensões
argentinas de impor, por meio de processo decisório supranacional,
a consagração de arcabouço jurídico para regulamentar os usos dos
rios internacionais e assim colocar freio aos avanços brasileiros na
área energética graças a vigoroso programa de aproveitamento
hidrelétrico no alto Paraná. Nessa nova fase, a posição da Argentina
seria condicionada ao revisionismo em relação à que havia assumido
ao impulsionar o início do processo da Bacia do Prata.
Nessas condições, ao longo do processo de discussões,
Bolivia y Paraguay se inclinaban por una Asociación de los Países
de la Cuenca del Plata, organismo que tendría carácter
supranacional. La tesis de los países mayores era opuesta a la
cesión de soberanía”
647
. O representante boliviano sustentava a
posição de que
644
Idem, p. 51.
645
Idem, p. 52.
646
O Brasil optou pela participação ativa no processo da Bacia do Prata por entender
que a alternativa de dele marginalizar-se resultaria na falta de oposição de maior peso às
iniciativas da Argentina de tentar fazer valer suas teses jurídicas. Essa decisão permitiu
que se modificasse o sentido e a orientação que aquele país desejava imprimir ao sistema
do Prata. (Cf. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. A Questão do
Aproveitamento dos Rios Internacionais na Bacia do Prata. Brasília: Divisão da América
Meridional I (DAM-I), [S/d.])
647
Sánchez-Gijon, op. cit., p. 135.
ELIANA ZUGAIB
270
la Cuenca del Plata debería funcionar como una entidad
destinada a ir perfeccionando cada vez más sus mecanismos,
agregando, por ejemplo una secretaría técnica, y llegando
a construir en cierto modo una organización comunitaria,
que pueda tener facultades, con el tiempo, para tomar
decisiones supranacionales
648
.
Por sua vez, o representante argentino defendia
la necesidad de que fueran los gobiernos los verdaderos
actores de todo este proceso de la Cuenca. La creación de
un organismo me parece podría traer como consecuencia el
hecho de que la figura de los gobiernos quedara de alguna
manera algo diluída dentro de la organización que por
voluntad de los mismos gobiernos se crearía (...)
649
.
Seguindo a mesma linha da posição argentina, o Ministro das
Relações Exteriores, Juracy Magalhães, deixava clara a posição
brasileira, antes mesmo de iniciadas as discussões sobre o assunto, ao
afirmar, em 1967:
El carácter esencial de ese esfuerzo común es el de
coordinar, bajo la égide de cada estado, las actividades que
puedan repercutir en toda el área, sin sacrificio de la
soberanía, de la fisionomía de cada país y de los
particularismos regionales que enriquecen, de manera a
veces misteriosa, el espíritu de la comunión nacional
650
.
648
Ibidem. Menção à Ata n. 48 do CIC, pp. 12-13.
649
Sánchez-Gijón, op. cit., p. 135. Menção à publicação Tratado de la Cuenca del
Plata. BID-INTAL, nr. 5, Buenos Aires, junio 1983, pp. 6-7.
650
Idem, p. 136. Menção à publicação Boletín de Integración. Buenos Aires, INTAL,
diciembre 1967. p. 629.
271
O Estágio atual de Implementação do Projeto
A própria relação de forças característica da dinâmica do
relacionamento entre os integrantes da Bacia do Prata à época, que
tão bem se reflete na terminologia “os dois grandes” e os “países
menores” empregada pelos geopolíticos para defini-la, explicaria a
prevalência no âmbito do CIC da posição defendida pelo Brasil
651
e
pela Argentina favorável a evitar que os Estados se obrigassem
juridicamente a qualquer tipo de conduta, abrindo mão do exercício
de sua soberania.
Com isso, o Tratado da Bacia do Prata, que viria a ser assinado
em 1969, não contemplou a criação de organismo novo, ficando
firmemente estabelecido o critério da prioridade nacional sobre qualquer
interpretação supranacional. A garantia de soberania irrestrita e a
legitimidade da liberdade de ação dos Estados ficavam consignadas
no artigo VI do Tratado, segundo o qual “o estabelecido no presente
Tratado não impedirá as Partes Contratantes de concluir acordos
específicos ou parciais, bilaterais ou multilaterais, destinados à
consecução dos objetivos gerais de desenvolvimento da Bacia”
652
. Esse
mesmo artigo viria a ser atualmente invocado para justificar proposta
de manter a execução das obras e a administração da Hidrovia no
âmbito da Bacia do Prata, como forma, entre outras razões, de evitar
esquemas supranacionais, conforme se verificará neste capítulo.
A oposição do Brasil e da Argentina à aplicação do conceito
de supranacionalidade ou de personalidade jurídica internacional ao
próprio Sistema permeou as considerações sobre a natureza jurídica
do Tratado da Bacia do Prata, havendo prevalecido uma vez mais a
651
O maior poder de influência do Brasil em relação à Argentina, à época, explica-se
como assinalado no capítulo II deste trabalho, pelo fato de dispor da condição privilegiada
de país de “águas acima”, ou seja, dispunha do controle das nascentes do rios e da
possibilidade de operar simultaneamente os dois eixos da Bacia do Prata, o Norte-Sul e
o Leste-Oeste.
652
Tratado da Bacia do Prata. In: BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Hidrovia
Paraguai-Paraná. Documentos Básicos. Brasília: MRE, Seção de Publicações. Coleção
de Atos Internacionais, nr. 633, 10 de março de 1988. p. 8.
ELIANA ZUGAIB
272
tese brasileiro-argentina de atribuir-lhe caráter de “una simples unión
de Estados
653
. O regime institucional criado pelo Tratado não tem
personalidade internacional
654
, não é uma organização internacional,
mas mero sistema de órgãos
655
.
2.1.2. S
UPRANACIONALIDADE VERSUS SOBERANIA NO ÂMBITO DO
ACORDO DE TRANSPORTE FLUVIAL
Embora negociados em contextos distintos, as características
do Tratado da Bacia do Prata e as do Acordo de Transporte Fluvial
guardam semelhanças em alguns aspectos. Ambos fundamentam-se
na regra da unanimidade e no princípio da autodeterminação dos
Estados, que impõem limitações ao estabelecimento de entidade
supranacional. Essas limitações encontram-se implícitas, no caso do
Acordo de Transporte Fluvial, em seu artigo 34, segundo o qual
“nenhuma das disposições do presente Acordo poderá limitar o direito
dos países signatários de adotar medidas para proteger o meio
653
Sánchez-Gijón, op.cit., p. 138. Menção a NOHLEN, Dieter y FERNÁNDEZ B.
Mario. Cooperación y Conflito en la Cuenca del Plata. In: Estudios Internacionales, nº
55, Santiago do Chile, jul-sept. 1981. p. 418.
654
Diz-se que uma entidade é sujeito de direito internacional ou tem personalidade
internacional quando se lhe é atribuído algum direito, faculdade ou obrigação no
ordenamento jurídico internacional. Ver em RAVINA, Arturo Octavio (Coord.), et al..
La organización institucional de la Hidrovía Paraguay-Paraná como programa de
navegación internacional. In: Integración Latinoamericana. Hidrovia Paraguay-Paraná:
viejo cauce para una integración renovada, Buenos Aires, INTAL, año 16, n. 168, p.
27, jun. 1991. Tenha-se em mente que o CIC é o único órgão do Sistema do Prata a ter
personalidade jurídica.
655
Sabchez-Gijón, op.cit., p. 138. Menção a ZEBALLOS, Carlos A. El sistema de la
Cuenca del Plata: aspectos institucionales. In: El derecho de la integración en América
Latina 1979-1982. INTAL-BID, Buenos Aires, 1983, p. 236; CAUBET, Christian G.
Diplomacia, geopolítica e direito na Bacia do Prata. In: Política e Estratégia”, vol. 2,
nr. 2, p. 339, abril-junho, 1984. “Essa opinião era compartilhada pelo INTAL, que
julgava ser o CIC o único órgão do sistema com personalidade internacional, o que leva
à avaliação de que é um tratado próximo a uma declaração de intenções, porque flexível,
aberto, não compromete especificamente a nada e não estabelece prazos de execução
programática”.
273
O Estágio atual de Implementação do Projeto
ambiente, a salubridade e a ordem pública, de acordo com suas
respectivas legislações internas”
656
.
O próprio artigo 25 do Acordo, que dispõe que cada país terá
um voto e as decisões serão tomadas por unanimidade e com a
presença de todos o países signatários, “implica el derecho de veto y
se convierte en un mecanismo que puede impedir la adopción de
aquellas medidas necesarias para el avance del Proyecto
657
.
A exemplo do ocorrido quando das decisões tomadas para o
estabelecimento do Tratado da Bacia do Prata, preferiu-se “continuar
con el ejercício pleno y absoluto de la soberanía de los estados
ribereños y en general con el principio tradicional de que la ley del
lugar rige el acto
658
.
Ao se decidir pela criação do Comitê Intergovernamental da Hidrovia
(CIH) e da Comissão do Acordo (CA), como instrumentos político e técnico
de sua implementação, foi obedecida a tradicional metodologia adotada no
âmbito da Bacia do Prata. O Acordo não deixou espaço para a criação de
entidade independente com função de administradora responsável pelo
funcionamento da Hidrovia. Eventual solução dessa natureza, que “hubiera
llevado indirectamente a la internacionalización de los ríos”
659
, figura
favorável à criação de entidades supranacionais, foi descartada.
656
Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-Paraná. In: BRASIL. Ministério
das Relações Exteriores. Hidrovia Paraguai-Paraná. Documentos Básicos. Brasília: MRE,
Seção de Publicações. Coleção de Atos Internacionais, nr. 633, 10 de março de 1998. p. 9.
657
RAVINA, Arturo Octavio. Algunos aspectos críticos del Acuerdo de Transporte
Fluvial por la Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Nueva Palmira). In: Integración
Latinoamericana. Integración: un escenario multidimensional, Buenos Aires, INTAL,
año 17, n. 185, p.50, Dic., 1992.
658
ALZUETA, Adrián M. Derecho de Navegación. Problemas Jurídicos derivados de la
Hidrovía Paraguay-Paraná. In: Colección Jurídica y Social, n. 31, Secretaria de Posgrado
y Servicios a Terceros, Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales, Universidad Nacional
del Litoral, agosto de 1995. pp. 21 e 22.
659
Ibidem. Ainda de acordo com Alzueta, com base nas diferentes experiências havidas
em matéria de regulamentação do uso de vias fluviais navegáveis que atravessam vários
países, os especialistas concordam que a solução ideal é a internacionalização daquelas
vias, uma vez que permite a criação de figuras supranacionais que exercem autoridade
sobre o curso navegável e atuam acima do princípio da autodeterminação dos Estados.
ELIANA ZUGAIB
274
2.1.3. POSIÇÕES SOBRE A NATUREZA DA ENTIDADE ADMINISTRADORA
DA
HPP NO CIH
A exemplo do ocorrido no caso do Tratado da Bacia do Prata,
a preocupação com a natureza da entidade que virá a assumir as funções
de administradora da Hidrovia esteve presente desde os primeiros
contatos que levaram à decisão de declarar o projeto de interesse
prioritário. Ficava também clara, desde a gênese do processo de
institucionalização do Programa da Hidrovia, a divisão de posições do
Brasil e dos demais países beneficiários da revalorização da via fluvial
com respeito a essa questão.
As diferenças não refletem, no entanto, maior ou menor grau
de resistência dos países à superação do paradigma da confrontação,
uma vez que o posicionamento em favor de entidade dotada de maior
independência parece estar muito mais atrelado ao grau de interesse
que tem cada um deles na Hidrovia e à vantagem que podem tirar do
projeto.
O documento preparado pelo Ministério dos Transportes do
Brasil para o I Encontro Internacional para o desenvolvimento da
Hidrovia Paraguai-Paraná já chamava a atenção para o fato de que a
gestão multilateral eficiente da HPP pressupõe visão sistêmica do
transporte fluvial internacional e sugeria a criação de um “Conselho
Administrativo-Operacional-Regional dos países ribeirinhos, semelhante
ao que, há muitas décadas, existe na Europa – como as Comissões
Internacionais do Reno e do Danúbio”
660
. Esse parece ter sido
pronunciamento isolado, ao longo de todo o processo negociador, em
que o Brasil se declarou favorável a esquema de administração da
Hidrovia baseado em acordo multilateral independente. Mais tarde, a
própria definição da Hidrovia constante do Estudo de Pré-viabilidade
traria à tona a importância “de una gestión unificada
660
BRASIL. Ministério dos Transportes. I Encontro Internacional para o Desenvolvimento
da Hidrovia Paraguai-Paraná. Campo Grande (MS): abril de 1988. p. 37.
275
O Estágio atual de Implementação do Projeto
internacional”
661
, considerada um dos elementos-chave da eficiência
da via fluvial.
Na IV Reunião do Grupo Ad Hoc, criado pelos Ministros de
Transportes e Obras Públicas dos Países membros da Bacia do Prata,
realizada em Assunção nos dias 17 e 18 de agosto de 1989, o tema da
possível criação de comissão permanente para a administração da Hidrovia
tomou forma ao constar da lista de sugestão de temas para a agenda da
Reunião dos Ministros que se realizaria no Chile, em 1 de setembro de
1989
662
. Decidiriam os Ministros de Transportes e Obras Públicas que os
países membros do CIH “consultarán y pedirán asesoramiento y
asistencia para, entre otros aspectos, proponer fórmulas jurídico-
institucionales para resolver el funcionamiento definitivo del Comité
663
.
Em 1991, o INTAL/BID concluía estudo encomendado sobre a possível
estrutura de entidade administradora da Hidrovia que pudesse vir a ser adotada
pelos governos. Esse estudo
664
fundamentou-se em documento denominado
Guía de conversaciones
665
, resultante de consultas mantidas com as
autoridades governamentais dos cinco países platinos.
661
Grupo de Trabalho Ad Hoc de los Países de la Cuenca del Plata, op. cit., p.4.
662
GRUPO DE TRABALHO AD HOC DE LOS PAÍSES DE LA CUENCA DEL PLATA..
Acta de Asunción N. 3, IV Reunião do Grupo Ad Hoc, realizada em Assunção nos dias 17
e 18 de agosto de 1989, disponível no arquivo do CIC. Sugeria também o grupo que, no caso
em que se decidisse pela criação de uma comissão permanente, os Ministros de Transporte
e Obras Públicas solicitariam ao INTAL assessoria sobre o funcionamento da referida
comissão. Em caso negativo, o Grupo Ad Hoc prepararia o regulamento do funcionamento
da Comissão Executiva prevista na Ata de Campo Grande.
663
Acta de la Reunión de los Ministros de Obras Públicas y Transportes de la Cuenca del
Plata, realizada em Santiago do Chile em 1 de setembro de 1989. In: BOLIVIA. Ministerio
de las Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes. Hidrovía Paraguay-
Paraná (Puerto Cáceres-Puerto Nueva Palmira). Santa Cruz de la Sierra, Bolivia, Diciembre
1991. pp. 17 e 18.
664
O referido estudo, intitulado Alternativas jurídico-institucionales para el
funcionamiento definitivo del Comité de la Hidrovía Paraguay-Paraná foi publicado
em Buenos Aires, em 1991, sob a referência BID/INTAL/DP 445/91, publ. n. 360.
665
O documento “Guía de conversaciones”, elaborado pelo INTAL, contém resenha
explicativa das atribuições e competências passíveis de serem atribuídas à eventual
entidade administradora da Hidrovia, com vistas a estabelecer a finalidade do referido
organismo e definir seu status institucional.
ELIANA ZUGAIB
276
As respostas dadas pelos Estados à “Guía de conversaciones
quanto ao perfil da entidade que se ocuparia da Hidrovia foram díspares
e levaram o INTAL a concluir que seria impossível apresentar modelo
que pudesse ser aceito por todos os países
666
. Alguns consideraram
que tal entidade deveria ter natureza eminentemente coordenadora,
enquanto outros a contemplavam na forma de organismo executivo,
dotado de certo poder regulador. No entanto, a maioria das respostas
coincidia em que “el futuro Ente de la Hidrovía tendrá, al menos,
algún derecho o alguna obligación en el plano del derecho
internacional
667
, o que significa que, em princípio, a maioria dos países
estaria disposta a fundamentar juridicamente a entidade em um tratado
internacional e que deveria ela carecer, pelo menos em um primeiro
momento, de faculdades supranacionais, posição semelhante à
assumida pela Bolívia
668
em relação ao Tratado da Bacia do
Prata, conforme mencionado anteriormente.
Diante desse quadro, por ocasião de sua IV Reunião, os
membros do CIH optaram pela “Alternativa E”
669
apresentada
666
INTAL/BID. Alternativas jurídico-institucionales para el funcionamiento definitivo
del Comité de la Hidrovía Paraguay-Paraná . Buenos Aires: INTAL/BID/DP 445/91,
publ. n. 360, p. 30.
667
RAVINA, Arturo Octavio (Coord.) et al. La organización institucional de la Hidrovía
Paraguay-Paraná como programa de navegación internacional. In: Integración
Latinoamericana. (Hidrovia Paraguay-Paraná: viejo cauce para una integración
renovada). Buenos Aires: INTAL, año 16, n. 168, p. 26, junio de 1991. Ver também em
INTAL/BID. Alternativas jurídico-institucionales para el funcionamiento definitivo del
Comité de la Hidrovía Paraguay-Paraná. Buenos Aires: INTAL/BID/DP 445/91, publ.
n. 360, pp. 27-29.
668
“(...) todos los países están de acuerdo en la necesidad de promover un trabajo
integral de obras en la Hidrovía, no obstante, no se tiene diseñado una estructura
supranacional que tenga la capacidad de sostener una propuesta de este orden”.
FERRUFINO, Leonidas (Asesor de la Presidencia del CIH/Bolivia): depoimento [4
out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
669
CIH. Informe Final de la Segunda Parte de la IV Reunión del Comité
Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto Nueva
Palmira), realizada em Buenos Aires no período de 06 a 09 de abril de 1991. In: BOLIVIA.
Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes. Hidrovía
Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto de Nueva Palmira). Santa Cruz de la Sierra.
277
O Estágio atual de Implementação do Projeto
pelo INTAL, de caráter transitório que utilizaria instituições
existentes e daria origem à elaboração de regulamento provisório
para o funcionamento do Comitê
670
. Sem solução de
continuidade, a natureza de estrutura permanente deveria seguir
sendo estudada.
A posição assumida pelo Brasil na reunião visava a manter
o status quo institucional da Hidrovia, de forma a que o CIH
permanecesse como entidade informal coordenadora, e a postergar
a avaliação do mecanismo futuramente necessário a sua
administração para quando avançassem as tarefas de
responsabilidade do Comitê. Essa postura fundamentava-se em
razões de ordem financeira e em função de admitida importância
relativa da HPP para o país, embora se reconhecesse o interesse
em melhorar as condições institucionais e de navegabilidade da
Hidrovia para torná-la alternativa eficiente e econômica ao
escoamento da produção do Centro-Oeste. Por um lado,
dificuldades de ordem econômico-financeira não permitiam
vislumbrar a atribuição de prioridade aos investimentos na iniciativa,
em horizonte de cinco anos. Por outro, os benefícios imediatos que
Diciembre de 1991, p. 77. Ver também em INTAL/BID. Alternativas jurídico-
institucionales para el funcionamiento definitivo del Comité de la Hidrovía Paraguay-
Paraná . Buenos Aires: INTAL/BID/DP 445/91, publ. n. 360, pp. 44-49. RAVINA,
Arturo Octavio (Coord.) e al. La organización institucional de la Hidrovía Paraguay-
Paraná como programa de navegación internacional. In: Integración Latinoamericana.
(Hidrovía Paraguay-Paraná: viejo cauce para una integración renovada). Buenos
Aires: INTAL, año 16, n. 168, pp. 39-41, junio de 1991.
670
CIH. Informe Final de la Segunda Parte de la IV Reunión del Comité
Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná, op. cit., p. 77. Ver também em
Informe de la Comisión n. 1 de Asuntos Jurídicos. In: BOLIVIA. Ministerio de Relaciones
Exteriores y Culto Tratado, Actas, Informes. Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto
Cáceres-Puerto de Nueva Palmira). Santa Cruz de la Sierra. Diciembre de 1991, pp. 79
e 80. Durante a Primeira Parte da IV Reunião do Comitê, realizada em Colônia do
Sacramento, nos dias 27 e 28 de fevereiro e 1 de março de 1991, foi considerado o
documento “Análise das Formas Jurídicas Relativas à Regulamentação das Atividades
dos Estados com Relação ao Programa da HPP (Porto Cáceres-Porto Nova Palmira)”,
com vistas a definir os objetivos, composição e natureza jurídica de possível entidade
internacional encarregada de implementar o programa da Hidrovia.
ELIANA ZUGAIB
278
pudessem advir para o país do uso da Hidrovia não justificavam
investimentos no trecho brasileiro. Entendia-se que a baixa competitividade
do Brasil na Hidrovia em função do desequilíbrio em termos de
quantidade de tonelagem de porte bruto então existente entre nossa frota
e as da Argentina e do Paraguai sugeriam que apenas quando o País
alcançasse maior participação nos fluxos de carga daquele curso d’água
justificar-se-iam investimentos de vulto no seguimento brasileiro.
A posição brasileira de manter o status quo institucional da
Hidrovia prevaleceria sobre a orientação contrastante seguida por países
como o Uruguai e, em menor escala a Argentina, que pretendiam
transformar o CIH em entidade jurídica, administrativa e gestora, dotada
de competência mais ampla e de maior independência.
A posição da Argentina e dos demais países em favor da criação
de órgão formal para a Hidrovia, por meio de tratado específico, que
à época visava sobretudo a ultrapassar de uma só vez a difícil tarefa
de
compatibilização legislativa, apresentava nuanças, revelando-se o
Uruguai defensor explícito do conceito da supranacionalidade
671
.
O Uruguai viria a ser o único país a não se manifestar em favor
da institucionalização da Hidrovia por meio da inclusão do CIH no
âmbito do Tratado da Bacia do Prata. A Argentina, por sua vez, venceu
as resistências iniciais
672
e concordou em associar-se ao projeto de
671
Exemplificam essa postura: (a) o pronunciamento do Chanceler Gros Espiell, na I
Parte da IV Reunião do CIH, em Colônia, em 1991, quando propôs a constituição de
comissão de juristas dos cinco países da região para elaborar projeto de tratado multilateral
para a Hidrovia e, por esse instrumento, criar-se-ia um órgão administrador dotado de
natureza formal; (b) os comentários técnicos da delegação uruguaia, tecidos em 1996,
sobre os estudos desenvolvidos pelo consórcio HLBE Recomendaciones para la
Organización Administrativa y Gerencial de la Implementación del Proyecto em que se
sugeria “asimismo podría ser que el CIH cambiara su formulación actual para constituirse
en un Ente Supranacional del estilo de la Comisión Administradora del Río Rhin, Danubio,
etc”. Carta dirigida pela delegada do Uruguai, Dra. Adela Marina Legazgue ao então
Secretário Executivo do CIH, Sr. Jesús González, datada de 5 de junho de 1996.
672
A área política da Chancelaria argentina encontrava dificuldades para aceitar a posição
brasileira, em decorrência de interesses conflitantes. Sofria pressões de armadores,
portuários, do próprio porto de Buenos Aires em relação aos portos a montante e vice-
279
O Estágio atual de Implementação do Projeto
resolução, de iniciativa brasileira, submetido à XIX Reunião de
Chanceleres para a incorporação do Comitê ao sistema platino,
alinhando-se também à posição brasileira de manter a regra da
unanimidade para a tomada de decisões na esfera do CIH.
Os comentários sobre a posição que o Brasil deveria assumir
com respeito à institucionalização da HPP, tecidos por nossos
Embaixadores em Buenos Aires e em Montevidéu à época, eram eivados
de resquícios dos traços que caracterizaram o padrão de comportamento
norteado pela lógica dos antagonismos. Recomendavam eles que a
definição da posição brasileira deveria ter como ponto de partida a
experiência julgada inestimável do sistema do Prata.
O Embaixador em Montevidéu ia além em suas considerações
ao propor solução salomônica para a divergência de posições defendidas
pelo Brasil e pelo Uruguai, semelhante à que hoje se cogita como proposta
na fase de transição, e que será explicitada adiante. No seu entender,
seria viável conciliar a posição uruguaia com a brasileira, que favorecia a
permanência do projeto no sistema da Bacia do Prata, onde já se
encontravam consagradas nossas teses sobre recursos naturais
compartilhados e sobre os rios internacionais de curso sucessivo.
versa, envolvendo nesse debate os governos provinciais e o governo federal. Esses
interesses eram canalizados pelo San Martin e pela Subsecretaria de Transportes do
Ministério da Economia, onde alguns funcionários eram defensores intransigentes de
temas como a reserva de bandeiras e praticagem, opondo-se conseqüentemente à
celebração de acordo de transportes em favor da institucionalização da Hidrovia por
meio de tratado específico. A própria Secretaria-Executiva do CIH havia sido ocupada
por pessoa ligada a empresas de dragagem, que exercia o cargo de diretor de construções
portuárias e vias navegáveis em função de sua participação na campanha eleitoral de
Menem. O Embaixador Felix Peña, negociador argentino, também preferia não vincular
a Hidrovia ao Tratado da Bacia do Prata, cujos organismos considerava emperrados e
anacrônicos, sem condições de levar adiante projeto de tamanha envergadura. Durante
as discussões mantidas na IV Reunião do CIH, a argentina voltou a insistir, no plenário
e na reunião de chefes de delegação, na proposta de constituir grupo de juristas para
estudar o tema da institucionalização do CIH, por meio da celebração de tratado
multilateral independente para a Hidrovia. A delegação brasileira considerava prematura
a negociação de um tratado para a Hidrovia antes de se avançar no processo de eliminação
das travas burocrático-institucionais que impediam o funcionamento fluido da Hidrovia.
ELIANA ZUGAIB
280
Acreditava ele que, ao abrigo do artigo VI do Tratatado
da Bacia do Prata, o qual prevê a celebração de acordos
específicos voltados para o desenvolvimento da região, poderia
ser negociado instrumento multilateral específico para a Hidrovia,
como defendia o Uruguai, o qual estaria subordinado ao Tratado
da Bacia do Prata, como pretendia o Brasil. Portanto, a
negociação de instrumento multilaterial dessa natureza, vinculado
ao sistema institucional da Bacia do Prata, na qualidade de acordo
de hierarquia jurídica inferior, não implicava alteração do referido
Tratado, por força de seu artigo VI, nem tampouco do estatuto
do CIC, que poderia permanecer seu órgão de coordenação em
nível político.
Sugeria, ainda, que o CIH poderia vir a ser o órgão
administrador da Hidrovia, uma vez que o novo instrumento lhe
conferiria natureza formal, sobretudo de caráter técnico, ao
subordiná-lo às decisões das reuniões de chanceleres no âmbito
do Tratado. Em última análise, ao ter presente que o sistema da
Bacia do Prata passava, naquele momento, por uma reavaliação,
com vistas ao seu revigoramento, julgava o chefe da missão
diplomática brasileira no Uruguai que o projeto Hidrovia poderia
vir a dar-lhe novo impulso, por sua envergadura, por estar
plenamente compreendido nos objetivos básicos do Tratado e por
ser catalisador do interesse de todos os países membros.
As divergências de posições já manifestadas nas
respostas dadas ao INTAL denotam as dificuldades que
encerram futuras negociações sobre o assunto e justificam a
atitude de postergá-las sucessivamente, a partir de 1991, época
em que se lhe foi atribuída a devida ênfase para depois arrefecer
e reaparecer esporadicamente no âmbito das reuniões do CIH.
O tratamento da questão viria a ser retomado quando dos
estudos de viabilidade e complementares, transformando-se em
um dos principais obstáculos a serem transpostos na fase de
281
O Estágio atual de Implementação do Projeto
transição para a etapa de execução de futuras obras na
Hidrovia
673
.
O tema voltou a ser suscitado pela Secretaria Executiva do
CIH no documento “Hipóteses para por em marcha as obras da
Hidrovia Paraguai-Paraná”, analisado na Reunião dos Chefes de
Delegação do CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias 16 e 17
de novembro de 2000. Propunha a Secretaria a criação de uma
“Comissão Administradora”, com poderes para tomar decisões de
caráter compulsório, contratar a execução de obras, gerenciar os
bens patrimoniais e ditar normas sobre a navegabilidade na Hidrovia.
Fiel à tradicional posição defendida pelo Brasil, o chefe da delegação
brasileira manifestou-se energicamente contrário à proposta,
induzindo ao consenso sobre sua inviabilidade
674
. Posteriormente,
em reunião realizada em janeiro de 2004, a CCT deu por concluída
a tarefa do Consórcio COINHI com respeito ao componente
institucional-legal, por entenderem as delegações que a análise da
criação de organismo comitente deveria ser feita no mais alto nível,
após a conclusão dos estudos
675
.
Procurou o Consórcio apresentar alternativas realistas que
evitassem a figura de entidade supranacional, por esbarrarem em
resistências, e que dispensassem a aprovação parlamentar pelos
Estados membros. Dentre as opções apresentadas, está
673
Ver Ata da Reunião Extraordinária do CIH, realizada em Buenos Aires nos dias 16 e
17 de setembro de 2004.
674
Justificava o chefe da delegação brasileira em sua intervenção que a proposta era
inadmissível porque implicava que um órgão supranacional, com grande autonomia,
poderia decidir sobre obras em território nacional, sobretudo em região de grande
sensibilidade ambiental, bem como sobre as normas a que deveriam submeter-se as
empresas transportadoras brasileiras. Ademais, representaria duplicação de esforços
com respeito às atribuições do CIC, que dispõe de mandato para decidir sobre projetos
na Bacia do Prata. Ver também em BRASIL. Ministério das Relações Exteriores.
Despacho Telegráfico n. 948, para a Embaixada em Buenos Aires, de 17/11/2003 e
Despacho Telegráfico n. 49, para a Embaixada em Buenos Aires, de 21/01/04.
675
BRASIL. Embaixada do Brasil em Buenos Aires. Telegrama n. 163, de 26/01/
2004.
ELIANA ZUGAIB
282
contemplada a Alternativa C
676
, que sugere a assinatura de acordo
executivo no âmbito do Tratado da Bacia do Prata, a ser
instrumentalizado pela Reunião de Chanceleres, pelo qual se
aprovaria a execução do programa de melhoria na HPP e se
outorgariam as faculdades de entidade comitente a um de seus
órgãos.
Além de atender aos interesses brasileiros, a proposta do
COINHI assemelha-se à apresentada pelo Secretário-Geral do
CIC
677
, que sugere a assinatura de acordo executivo multilateral
específico e de alcance parcial, fundamentado no Artigo VI do
Tratado da Bacia do Prata, e prevê prazo de 33 meses para licitar
e executar as obras de melhoria na HPP. Ao justificar a proposta,
lembra que
esta ha sido la solución tradicionalmente adoptada por
los países-parte para crear los entes o comisiones
binacionales que se encargan de la administración de
ciertos ríos o tramos de vías navegables que forman
parte de la Cuenca o para la construcción y
admnistración de emprendimientos hidroeléctricos y otras
676
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun.
2004. Componente Institucional y Legal (CIL), pp.44-48.
677
O Secretário-Geral e Diretor do Programa Marco do CIC propôs que o CIC retome
papel protagônico na coordenação das atividades realizadas no âmbito de sua competência
institucional e que assuma a função de administrar a execução de projetos e programas
que se realizem nos territórios soberanos dos países da Bacia, dentre os quais, o da
HPP, considerado exemplo emblemático de iniciativas essenciais e prioritárias para a
região, cuja concretização tem sido protelada. Sugere para o caso específico da
administração da HPP, a assinatura de Acordo Executivo no âmbito do Tratado da Bacia
do Prata, protocolizado como Acordo de Alcance Parcial pela ALADI. (Cf. CIC. Nota
N. 365/04S, de 16/07/2004 do Secretário-Geral do CIC, Hélio de Macedo Soares, dirigida
à Presidenta em Exercício, Embaixadora Maria M. Lorenzo Alcalá, Representante Político
Titular perante o CIC. O Brasil reagiu, preliminarmente, em favor da proposta, apontando
como uma das vantagens o fato de que a comissão de administração de aportes financeiros
dos projetos permaneceria na região, o que fortaleceria o próprio CIC.
283
O Estágio atual de Implementação do Projeto
obras realizadas en el ámbito de la misma. A difirencia
de los acuerdos binacionales, lo que proponemos es la
firma de un Acuerdo Ejecutivo (Executive Agreement)
de caráter multilateral para aprobar el plan maestro de
obras, licitar, adjudicar y administrar el mantenimiento
de la HPP en el tramo entre Santa Fe, Corumba, Puerto
Quijarro, Canal Tamengo. En suma, un acuerdo
ejecutivo, multilateral, específico, y de alcance parcial
porque se aplicará a un tramo de la HPP, tal como lo
prevé el artículo VI del Tratado
678
.
A reação preliminar do Brasil a essa proposta foi, em
princípio, favorável
679
, dentre outras razões, pelo fato de que
fortaleceria o próprio CIC, uma vez que a comissão de
administração de aportes financeiros dos projetos permaneceria na
região. Essa solução coincide com a posição externada pela alta
chefia do Itamaraty em 1991 a propósito do processo de
institucionalização da HPP de que é preciso transformar os velhos
símbolos da confrontação em símbolos de cooperação (...). A
vitalidade do sistema do Prata pode, a meu ver, ser rapidamente
recuperada, não só através da incorporação imediata do Programa
Hidrovia, mas por intermédio de uma reformulação do FONPLATA
e do CIC para gerar projetos que possam repercutir rapidamente
na infra-estrutura física da Bacia
680
.
É interessante notar que, na mesma época, no âmbito das
negociações sobre a regulamentação do CIH, a delegação argentina
privilegiava a alternativa que o colocava sob o guarda-chuva do
678
CIC. Nota N. 365/04S, de 16/07/2004 do Secretário-Geral do CIC, Hélio de Macedo
Soares, op. cit., p.3.
679
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Despacho Telegráfico para a Embaixada
em Buenos Aires, n. 816, de 21/07/2004.
680
BRASIL. Embaixada em Buenos Aires. Telegrama n. 989, de 16/08/91.
ELIANA ZUGAIB
284
Tratado da Bacia do Prata e propôs a elaboração de projeto de
resolução que previa a transferência das funções do CIH para o CIC,
reformado em sua composição e funções e conseqüentemente da
Secretaria do CIH para a do CIC.
O posicionamento que os países vierem a assumir diante das
alternativas apresentadas denotará o interesse em imprimir maior ou
menor agilidade à implementação do PMHPP e poderá também refletir
as assimetrias de suas constituições quanto à adaptação ao emergente
Direito da Integração
681
. As constituições do Paraguai (1992) e da
Argentina (1994), posteriores à assinatura do Tratado de Assunção
(1991), são as que desenvolveram em maior medida normas
constitucionais sobre o Direito da Integração, sendo a paraguaia a única
a mencionar expressamente a admissão de uma ordem jurídica
supranacional
682
.
A decisão sobre o delicado tema da delegação de
competências a organismo comitente constituirá, ademais, importante
indicador da real natureza integradora do projeto da Hidrovia, uma
vez que:
(...) todo proceso de integración se concreta a partir del
acto por el cuál un Estado delega potestades. Esto no
significa, necesariamente, cesión de soberanía, sino de
681
Diz-se do Direito da Integração que “es el conjunto de normas, conductas y valores
que rigen los procesos de integración, involucrando en ellos a las instituciones que
posibilitan su desarrollo”. (Cf. COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería,
Técnico y Económico Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía
Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe
final, jun. 2004. Componente Institucional y Legal (CIL). p. 6).
682
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Componente Institucional y Legal (CIL). pp. 9-17. Sobre o Paraguai, ver em ARRIOLA,
Javier (Jefe de Navegación Fluvial/Ministerio de Relaciones Exteriores de Paraguay):
depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
285
O Estágio atual de Implementação do Projeto
facultades y atribuciones sin cuya delegación cualquier
proceso de integración resulta ilusorio. El punto neurálgico
de la integración está ahí. La superficialidad o intensidad
del vínculo de integración, guarda directa proporción con
la proporción de facultades delegadas. A mayor delegación,
más profundo és el relacionamiento; a menor transferencia,
más débiles serán los lazos de integración
683
.
2.2. OBSTÁCULOS DE NATUREZA ECONÔMICO-FINANCEIRA
As obras e intervenções de manutenção das condições de
navegabilidade dos rios que conformam a Hidrovia, de responsabilidade
de cada Estado ribeirinho, diferem das projetadas para melhorar as
condições de navegação na via fluvial. Neste último caso, a obrigação
de arcar com o ônus financeiro delas decorrentes não é da
responsabilidade exclusiva dos países ribeirinhos, mas pressupõe a
cobrança de pedágio ou outra forma de imposto, em princípio,
estabelecido na proporção do uso realizado da Hidrovia
684
.
A seleção da melhor alternativa econômica para o projeto de
futuras obras implicará buscar forma de financiamento que atenda a
um só tempo aos critérios de maximização da eficiência econômica e
de eqüidade na distribuição dos custos incorridos nos diferentes trechos
nele contemplados
685
. As dificuldades decorrerão da necessidade de
conciliar a diferença de custos das obras de melhoria em cada trecho
683
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Componente Institucional y Legal (CIL). p. 12.
684
RAVINA, Arturo Octavio (Coord.) et al. La organización institucional de la Hidrovía
Paraguay-Paraná como programa de navegación internacional. In: Integración
Latinoamericana. Hidrovia Paraguay-Paraná: viejo cauce para una integración
renovada. INTAL, año 16, n. 168, p. 23, junio de 1991.
685
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
ELIANA ZUGAIB
286
da Hidrovia e o próprio enfoque integral que se imprimiu ao projeto, a
partir dos estudos complementares. As futuras obras são consideradas,
assim, como uma unidade e, portanto, executadas de uma só vez.
É marcante a disparidade de custos entre o trecho mais curto,
Assunção/Rio Apa, e o mais longo, Assunção/Santa Fé, onde incidem,
respectivamente, a maior e a menor taxa de investimento por
quilômetro
686
. Caso não se chegue a uma solução que atenda aos
princípios da maximização da eficiência econômica e da eqüidade na
distribuição dos custos, deparar-nos-íamos com o absurdo de o projeto
multinacional, de natureza eminentemente integradora, criar categorias
de beneficiários e perdedores, dentre os quais o mais prejudicado seria
o Paraguai e o mais aquinhoado a Argentina. Tal situação acentuaria as
assimetrias entre os países, comprometendo o desenvolvimento
harmônico da região, espírito do artigo 1
o
do Tratado da Bacia do
Prata, marco institucional do projeto. Daí a importância e complexidade
da questão, que colocará à prova o exercício do espírito de
cooperação, em que necessariamente se terá que abrir mão de
vantagens próprias em benefício do todo.
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun.
2004.Componente Económico-Financiero. pp. 128, 132-135.
686
No trecho 2 (Assunção/desembocadura do rio Apa), totalmente incluído em território
paraguaio e considerado o mais curto em extensão (25% da extensão total do projeto),
estão previstas as maiores taxas de investimento por quilômetro (41% do total e 21.1
mil US$/km). Essa situação contrasta com a do trecho 1 (Santa Fé/Assunção), o mais
longo dos três contemplados no estudo (47% da extensão total do projeto), parte do
qual se encontra sob a soberania exclusiva da Argentina e parte sob soberania
compartilhada com o Paraguai. Nessa extensão, o investimento por quilômetro atinge a
menor taxa (16% do total e 4,4 mil US$/km). O terceiro e último trecho começa na
desembocadura do rio Apa, termina em Corumbá e inclui o Canal Tamengo. Sua porção
norte encontra-se em território brasileiro, é compartilhado em alguns trechos com a
Bolívia e o Paraguai e é exclusivamente boliviano apenas no Canal Tamengo. Representa
27% da extensão total do projeto e prevê investimentos (42% do total) e valor médio
por quilômetro (25.7 mil US$/km) intermediários, se comparados com os outros trechos.
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun.
2004.Componente Económico-Financiero. p. 129.
287
O Estágio atual de Implementação do Projeto
2.3. NECESSIDADE DE COMPLEMENTAÇÃO INTERMODAL
Além dessas dificuldades ainda por superar, impõe-se a
necessidade de complementação intermodal, condição para se
alcançarem a eficiência e a competitividade da via fluvial. Nesse
sentido, as conclusões finais do estudo de viabilidade econômica
realizado pela Internave coincidiam com as observações feitas no
I Encontro Internacional para o Desenvolvimento da Hidrovia
Paraguai-Paraná, de que a gestão da Hidrovia deveria buscar a
complementação intermodal
687
. Ressaltavam os consultores que
a própria natureza do transporte hidroviário impõe o conceito da
intermodalidade como condição de sua eficiência e
competitividade, uma vez que, ao evitar onerosas rupturas de
carga, as plataformas intermodais garantem o baixo custo do
transporte. Nesse sentido, a Hidrovia pode vir a ser meio
estruturante da malha viária da região e, por isso, requer plano
coordenado de investimentos nos demais modos de transporte,
nos acessos e nos terminais intermodais
688
.
Mais recentemente, os estudos complementares realizados
pelo COINHI apontaram a importância dos investimentos nos
meios de transporte complementares para alimentar e estimular o
tráfego na Hidrovia. De acordo com os estudos, existem projetos
687
BRASIL. Ministério dos Transportes. I Encontro Internacional para o
Desenvolvimento da Hidrovia Paraguai-Paraná, realizado em Campo Grande,
MS, abril de 1988. p. 38. Ver também em INTERNAVE ENGENHARIA. Hidrovia
Paraguai-Paraná. Estudo de Viabilidade Econômica. Relatório Final, Vol. II. São
Paulo, fevereiro de 1990, p. 2.10/3. Apontam as conclusões do Estudo que a baixa
eficiência da Hidrovia estava relacionada a questões relativas à navegabilidade
crítica em muitos trechos, de pouca confiabilidade em seu todo, e relacionadas
com a falta de intermodalidade, em especial com o setor ferroviário, mas também
com a malha rodoviária.
688
INTERNAVE ENGENHARIA. Hidrovia Paraguai-Paraná. Estudo de
Viabilidade Econômica. Relatório Final, Vol. III. São Paulo, fevereiro de 1990, p.
5.2/25.
ELIANA ZUGAIB
288
de transporte dentro da área de influência da HPP que, se concretizados,
poderão mudar as características da rede de transporte atual.
Dentre esses, alguns podem vir a se tornar competitivos
689
e
outros complementares
690
. Esses últimos dependerão de melhoramentos
na infra-estrutura de transporte que complementem a utilização da HPP.
Trata-se de obras que permitirão reduzir os custos de transporte ou de
transferência em alguns trechos ou entroncamentos
691
.
689
O estudo complementar realizado pelo Consórcio COINHI considerou como projetos
competitivos da Hidrovia: (a) a extensão da ferrovia Ferronorte, projeto de longo prazo,
cujo objetivo é ligar Santos a Santarém e Porto Velho, com bitola de 1,60 m. O
empreendimento está progredindo por trechos, havendo chegado atualmente até o Alto
Araguaia. Sua extensão em uma primeira etapa está prevista para chegar até Cuiabá
(MT); (b) a construção do trecho ferroviário Santa Cruz de la Sierra-Cochabamba, na
Bolívia, que permitiria a conexão bioceânica entre Santos e Arica; (c) as eclusas de
Itaipu (provisoriamente a construção de um anel rodoviário para salvar a represa). Já
foram instalados dois portos, águas acima e águas abaixo da represa; (d) a construção da
BR 163 de Sinop a Santarém; construção das rodovias de Campo Novo do Parecis e de
Sorriso a Cachoeira Rasteira; implementação da Hidrovia do rio Tapajós do último
ponto a Santarém. Esses são projetos que se está impulsionando no Brasil com o fim de
facilitar a saída dos produtos do Estado do Mato Grosso pelo rio Amazonas e (e) os
corredores de integração da IIRSA: eixos Porto Alegre/Jujuy/Antofagasta; Bolívia/
Paraguai/Brasil; Brasil/Bolívia/Paraguai/Chile/Peru. Ver em COINHI. Estudio
Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario para el
Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004. Componente
Económico-Financiero. pp. 74-75.
690
O estudo complementar realizado pelo Consórcio COINHI considerou como projetos
complementares à Hidrovia: a pavimentação da rodovia Santa Cruz-Puerto Suárez; a
pavimentação de 70 km entre Cuiabá e Puerto Piuvá (com esta obra evitar-se-ia a
sinuosidade do Rio Paraguai na zona do Pantanal); a adequação do ramal ferroviário de
Campo Grande a Ponta Porã de Novoeste e a pavimentação do trecho Ponta Porã-Porto
Murtinho; o melhoramento da infra-estrutura e da operação da Ferrovia Belgrano Cargas
na Argentina; a repavimentação da BR-267 entre Rio Brilhante e Porto Murtinho; o
Terminal Multimodal de Porto Murtinho; o Terminal Multimodal de Porto Esperança
e a recuperação de Porto Busch e construção de acesso terrestre. Ver em COINHI.
Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario para
el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, junio de 2004.Componente
Económico-Financiero. pp. 72-73.
691
O efeito de simulação da pavimentação da rodovia Santa Cruz-Puerto Suárez e o
melhoramento da ferrovia Belgrano indicaram significativo aumento da participação
porcentual da Hidrovia a partir de 2009. Também a título de exemplo, a definição da
289
O Estágio atual de Implementação do Projeto
3. POSIÇÃO DOS PAÍSES MEMBROS DO CIH SOBRE A UTILIZAÇÃO DA
HIDROVIA
A posição assumida pelos países platinos no processo de
negociação no âmbito do CIH decorre do grau de importância
econômico-comercial, geopolítica e ambiental da Hidrovia para cada
um deles, assim como dos obstáculos de ordem técnica e ambiental à
navegação contínua enfrentados em seus respectivos territórios. São
igualmente determinantes dessas posições as pressões exercidas por
grupos de interesse do setor privado e de organizações ambientalistas.
Esses fatores refletem-se nas visões diferenciadas que têm os países
da utilização do sistema Paraguai-Paraná e de seus benefícios e explicam
a tendência demonstrada por alguns a buscar maiores vantagens
econômicas (maximização) e outros o equilíbrio entre os ganhos
econômicos e a preservação ambiental (otimização).
Existe, no entanto, interesse comum dos cinco países na
utilização da Hidrovia como meio de transporte competitivo que poderá
contribuir para o desenvolvimento de suas regiões interiores e para
dinamizar o processo de integração regional, manifestado por meio da
vontade política de seus dignatários, plasmada em diversas declarações
conjuntas
692
. Conforme observaram os consultores da Internave:
zona de influência dos estudos complementares excluía áreas pertencentes ao Estado de
Mato Grosso, uma vez que seu objeto se limitava ao trecho Corumbá/Santa Fé. No
entanto, decidiu-se agregá-las posteriormente, tendo em conta que, potencialmente,
podem gerar tráfego na Hidrovia, dependendo das condições de acesso. COINHI. Estudio
Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario para el
Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004. Componente
Económico-Financiero. pp. 6, 68, 72, 73 e 98.
692
Declaração de Santa Cruz de la Sierra, assinada por ocasião da XIII Cúpula Ibero-
americana, em 15 de novembro de 2003, pela qual os presidentes determinavam aos chefes
de delegação do CIH que realizassem os máximos esforços a fim de que as obras recomendadas
nos estudos complementares começassem a ser executadas ainda em 2004; Consenso de
Buenos Aires, assinado por ocasião da Visita de Estado do Presidente Lula à Argentina em
16 de outubro de 2003; Ata de Copacabana, assinada quando do encontro de trabalho
mantido pelos Presidentes Lula e Kirchner, no Rio de Janeiro, em 16 de março de 2004.
ELIANA ZUGAIB
290
a base geoeconômica [da Bacia do Prata] oferece um quadro
de complementaridade singular, quando se observa a região como
um todo. Esta singularidade sugere fortemente a possibilidade
de uma ação integrada, a nível econômico e sob inspiração
política, que dê maior competitividade às economias nacionais e
amplie espaços para o desenvolvimento social. Mesmo onde
existam atividades econômicas idênticas, no setor agropecuário,
mineral, industrial ou de serviços, a soma de competências poderá
representar sinergia na área econômica
693
.
Apesar do interesse comum e da base geoeconômica
complementar, as vantagens advindas da utilização da via fluvial são
percebidas diferentemente, determinando nuanças desse interesse que
se traduzem na diferenciação de posições dos países beneficiários
da Hidrovia. Nessas condições, de modo geral, a importância da via
fluvial adquire magnitude para a Argentina por sua dimensão
econômica; para a Bolívia e para o Paraguai, sobretudo, por sua
dimensão geopolítica, em função de sua mediterraneidade, e para o
Uruguai por sua vocação de provedor de serviços. No caso específico
do Paraguai, as implicações financeiras e ambientais decorrentes da
concentração de pontos críticos em seu território são atenuantes de
sua posição, exigindo-lhe maior cautela. Para o Brasil, a importância
da HPP é relativa como via de escoamento da produção da região
Centro-Oeste, tendo em conta dificuldades de ordem ambiental e a
disponibilidade de outros meios alternativos de transporte. Reveste-
se, no entanto, de maior relevância do ponto de vista político, ao
constituir um dos elementos indispensáveis ao processo de integração
regional.
O trecho mais extenso da Hidrovia encontra-se em território
argentino e as províncias sob sua maior influência representam a
693
INTERNAVE ENGENHARIA, op.cit., Vol. II, p. 2.10/2.
291
O Estágio atual de Implementação do Projeto
parcela principal das atividades econômicas do país (85%)
694
e sua
maior concentração populacional (2/3). Além disso, a navegação
fluvial, no contexto da Bacia do Prata, constitui vantagem
comparativa da Argentina
695
, uma vez que detém o país seus maiores
caudais, destituídos de obstáculos naturais, exceção feita a alguns
curtos trechos do alto Paraná, a que se somam os benefícios do
centripetismo geofluvial em sua desembocadura oceânica, a que se
referia Therezinha de Castro
696
. O benefício do centripetismo
acentua-se hoje em razão do programa de melhoria das condições
de navegabilidade da HPP e da existência de portos mais bem
aparelhados.
No caso da Bolívia, a área com maior interesse na Hidrovia é o
Departamento de Santa Cruz de la Sierra que contém um terço da
superfície territorial do país, para onde se tem deslocado a atividade
econômica em busca de recursos energéticos e terras agricultáveis
697
.
Além de constituir a principal artéria para escoar a produção de grãos,
pelo fato de dar-lhe acesso único ao mar, a Hidrovia assume dimensões
“dramáticas, uma vez que representa eixo de integração determinante
para o país”
698
.
694
BRAIDOT, Nestor P. Un proyecto actual, una realidad futura? In: Boletín del
Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración, Buenos Aires,
año 110, v. 109, . suplemento n 763-G-11, p. 285, invierno 1991.
695
BOSCOVICH, Nicolás. Geoestrategia para la Integración Regional. Buenos Aires:
Ciudad Argentina, 1999, p. 63.
696
Ao se referir à época colonial, Therezinha de Castro comenta que “La ubicación de
Buenos Aires confirmaba que cuando las corrientes fluviales como los ríos Paraguay,
Paraná y Uruguay, divergentes en sus nacientes, convergen hacia el sur en una única
dirección, conforman un centro geopolítico común”. CASTRO Therezinha de, Brasil y
la Cuenca del Plata. In: DALLANEGRA PEDRAZA, Luis (Coord.). Los Países del
Atlántico Sur. Buenos Aires: Editorial Pleamar, 1983. p. 131. Essa realidade geopolítica
da época colonial adquire maior relevância na atualidade em decorrência da priorização
do transporte fluvial na Bacia do Prata com os projetos de melhoria das condições de
navegabilidade.
697
INTERNAVE ENGENHARIA. Hidrovia Paraguai-Paraná. Estudo de Viabilidade
Econômica. Relatório Final, Vol. II. São Paulo, fevereiro de 1990, p. 2.10/1.
698
BRASIL. Embaixada em Buenos Aires. Telegrama n. 2271, de 11/11/2003.
ELIANA ZUGAIB
292
O Paraguai, contido integralmente na área de influência da Bacia,
conduziu seu processo de crescimento mais recente fundamentando-o
quase que exclusivamente no aproveitamento energético dos recursos
hídricos e de terras férteis agricultáveis
699
, cuja produção depende
inteiramente do escoamento fluvial, dada sua mediterraneidade. Como
agravante, encontra-se em seu território a maior concentração de passos
críticos à navegação. Essa situação, aliada à posição central que ocupa
na Bacia, confere-lhe a possibilidade de lançar mão de sua tradicional
política pendular para eliminá-los
700
.
Para o Uruguai, assim como para a Argentina, a HPP é via de
comunicação com o interior, além de serem seus portos marítimos
entrepostos naturais para o transbordo de todo o transporte fluvial da
região. O Rio da Prata é traço dominante da economia e do intercâmbio
uruguaio com os outros países. Ao lançar a idéia da revalorização da
Hidrovia, o Uruguai respondia a sua vocação natural na área de serviços
e tinha como objetivo dotar os portos orientais, especialmente Nova
Palmira e Fray Bentos, de melhores condições de atendimento. Com
isso, alimentavam as autoridades uruguaias à época a expectativa de
que o projeto viesse a gerar aumento significativo da demanda
internacional pelos serviços portuários do país. Ao mesmo tempo, a
iniciativa servia ao propósito de aproximar o Uruguai do Paraguai e da
Bolívia, que se mostrava especialmente sensibilizada pela idéia em
decorrência de sua mediterraneidade.
701
699
INTERNAVE ENGENHARIA, op.cit., Vol. II, p. 2.10/1.
700
Nesse sentido, com respeito às obras de curto prazo no território nacional, o Paraguai
parte da premissa de que a Hidrovia “existe y está en funcionamiento” e desenvolve suas
atividades nos trechos compartilhados com base em acordos bilaterais com os países
limítrofes, a Argentina e o Brasil. No que diz respeito às obras de melhoria das condições
de navegabilidade, adere ao consenso como membro do Programa da Hidrovia no
entendimento de que as obras serão feitas em sua totalidade de acordo com o princípio
do desenvolvimento sustentável. CCT. Acta de la 2
a
Reunión de la Comisión de
Coordinación Técnica, realizada em Buenos Aires, nos dias 24 e 25 de novembro de
1997.
701
É importante notar que se criavam expectativas exageradas com a estimativa do
então Presidente do BID, Enrique Iglesias, de que com investimentos da ordem de US$
293
O Estágio atual de Implementação do Projeto
Com isso, elucidava o Embaixador do Brasil no Uruguai, à
época, que as expectativas criadas extrapolavam os benefícios na
área de serviços portuários, a iniciativa concorreria também para
valorizar o papel do Uruguai na Bacia do Prata.
A Argentina também reivindica para seus portos a condição
de entreposto de transbordo desde o início das negociações, o que
aparece claramente nos comentários ao relatório preliminar aos
estudos realizados pela Internave, em que censurava a omissão da
possibilidade de transferência em plataforma fixa ou flutuante no
Paraná de las Palmas (Zona Campana – Canal Mitre) que permitiria
atuar com vantagem em relação a Nova Palmira, uma vez que: (a)
permite a transferência direta a navios de até 32 pés de calado; (b)
os percursos para os comboios de empurre são menores para os
portos do Paraná e ainda menores para os correspondentes a navios
de ultramar
702
. Essa posição traduz-se hoje nas pressões sobretudo
das autoridades e do setor privado provinciais para elevar a 40 pés de
calado a dragagem dos portos de Santa Fé
703
.
700 milhões gerar-se-iam condições para movimentar cerca de 15 milhões de toneladas
em relação aos 5 milhões que se acreditava trafegar pela Hidrovia em 1990. Esperava-se
que a Hidrovia viesse a desempenhar papel semelhante ao do rio Reno na Europa e que
seria um catalisador do desenvolvimento sub-regional, multiplicando as implantações
de indústrias e de pólos de expansão econômica em seu curso. Considerava o Embaixador
do Brasil no Uruguai, à época, que o projeto Hidrovia significava um capítulo importante
do relacionamento bilateral com o Brasil, na medida em que o êxito da iniciativa dependeria
da geração de carga no trecho brasileiro para viabilizá-la e, portanto, possível frustração
nesse sentido poderia ter efeitos negativos no relacionamento bilateral.
702
Comentários da delegação argentina ao Relatório preliminar da primeira etapa do
Estudo de Viabilidade Econômica da HPP, elaborado pela Internave. O referido
documento “Diagnóstico” foi analisado na Reunião do Grupo Ad Hoc (criado em Campo
Grande em 1988), realizada em Foz do Iguaçu, nos dias 13 e 14 de julho de 1989. Os
Comentários estão disponíveis nos arquivos do CIC.
703
Encontro sobre “Fortalecimento das Relações das Regiões do Mercosul para o
Maior uso das Hidrovias”, realizado em Rosário, Argentina, no dia 27 de agosto de
2004, sob a coordenação do Secretário-Geral do CIC, Hélio de Macedo Soares, e do
Presidente da Bolsa de Comércio de Rosário, Federico Boglione, do qual a autora deste
trababalho participou como ouvinte. O relato do encontro está registrado no Telegrama
da Embaixada do Brasil em Buenos Aires, n. 1845, de 30/08/2004.
ELIANA ZUGAIB
294
Esses são alguns dos elementos que permitem ilustrar que
Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai tendem implicitamente a
privilegiar as vantagens econômicas do uso da Hidrovia e, nesse
sentido, indiretamente, buscaram sua maximização. No caso
específico da Argentina e do Uruguai, torna-se evidente que o aumento
de tráfego tem reflexos diretos no movimento de seus principais
portos, particularmente os de Buenos Aires, Montevidéu e Nova
Palmira
704
.
Nessas condições, o Brasil passou a ser voz uníssona em defesa
do melhor equilíbrio entre as maiores vantagens econômicas e o menor
impacto ambiental e conduziu ao consenso sobre a otimização do uso
da Hidrovia. Essa posição fundamenta-se na questão ambiental, que
adquiriu maior sensibilidade depois que o Pantanal Mato-Grossense
foi declarado “Reserva da Biosfera Mundial”
705
, e na situação
privilegiada, ressaltada anteriormente, de ser o único país a se beneficiar
a um só tempo do eixo longitudinal e dos corredores transversais que
levam ao Atlântico, priorizados no Plano Plurianual, o que acaba por
relativizar a importância da HPP. Como detentor do controle das
nascentes dos rios que conformam a Hidrovia, mantém maior poder
de influência em relação aos países a jusante, que podem ser afetados
por eventuais intervenções no trecho brasileiro.
Essas circunstâncias e o processo decisório por unanimidade
706
explicam, até certo ponto, o êxito do Brasil de promover a aproximação
das posições em torno da questão ambiental, reorientando a direção
que se pretendia imprimir inicialmente ao programa mais voltado para
704
MELO, Renato Batista de. Considerações sobre a Hidrovia Paraguai-Paraná.
Brasília: Ministério da Defesa. Comando da Marinha do Brasil. Divisão de Assuntos
Marítimos e Ambientais, 01/09/2004. p. 13.
705
A sensibilidade internacional com relação à Hidrovia ampliou-se consideravelmente
com a declaração da UNESCO que concedeu ao Pantanal Mato-Grossense o status de
Reserva da Biosfera Mundial, em 09 de novembro de 2000.
706
É preciso levar em consideração também que o fato de os organismos internacionais
de fomento terem passado a condicionar o financiamento a obras de infra-estrutura ao
bom manejo ambiental contribuiu para o consenso em torno da questão ambiental.
295
O Estágio atual de Implementação do Projeto
a maximização do uso da Hidrovia
707
. No entanto, a ênfase atribuída
pelo Brasil ao componente ambiental como determinante do
componente técnico-financeiro, que levou à realização de estudos de
viabilidade e de impacto ambiental mais aprofundados, não deixou de
ser percebida pelos demais países como forma de obstrucionismo dos
avanços para a fase de execução das obras.
Essa percepção pode ser depreendida das críticas de que o
Brasil não estaria mais disposto a continuar apoiando o programa da
Hidrovia, feitas por ocasião da XXIX Reunião do CIH e que já havia
ficado clara no discurso de abertura da XVI Reunião do Comitê, pelo
Chanceler paraguaio, Embaixador Luis María Ramirez Boettner, em
que afirmava:
Deseo referirme al aspecto ambiental, hoy día tema
de moda y que fuera olvidado en el pasado por los países
más desarrollados y que ahora son fervorosos defensores
del medio ambiente y queriendo imponer normas de esta
naturaleza a los países en vía de desarrollo, muchas vezes
frenando el progreso de estos países. Esperamos que en la
evalución que se haga del impacto ambiental, que no primen
ideas quizás no enteramente ambientalistas y que nos frenan
en nuestro desarrollo
708
.
707
“(...) Internave quería hacer una ruta (...).En ese momento se hablaba de rectificar
curvas, de modificar las riveras, de hacer cuencos para pasar las embarcaciones, y
era una obra de mil millones de dólares”. LÓPEZ, Horacio (Presidente da CPTCP):
depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004. “Se ha
soñado inicialmente en una autopista fluvial, se han llevado a efecto varios estudios, no
obstante, el pensamiento más racional es el que han encarado los gobiernos con una
propuesta concreta ‘obras mínimas necesarias para garantizar la navegación
permanente durante los 365 días del año’”. FERRUFINO, Leonidas (Asesor de la
Presidencia del CIH/Bolivia): depoimento [4 out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib.
Buenos Aires, 2004.
708
RAMIREZ BOETTNER, Luis María. Discurso de abertura da XVI Reunião do
CIH, realizada em Assunção, nos dias 20 e 21 de outrubro de 1994. Disponível nos
arquivos do CIC.
Os elementos aqui ressaltados ajudam a compreender os
esforços empreendidos pela diplomacia brasileira para conduzir os
demais países ao consenso que garantiria a primazia do componente
ambiental sobre o econômico-financeiro e do método integral sobre o
fragmentado, como se pretende demonstrar no próximo capítulo.
ELIANA ZUGAIB
296
CAPÍTULO VII
A POSIÇÃO BRASILEIRA: CONDICIONANTES E
CONSEQÜÊNCIAS
PARA O DESENVOLVIMENTO
DO
PROJETO HPP (COMPONENTE AMBIENTAL)
1. A POSIÇÃO BRASILEIRA NAS NEGOCIAÇÕES NO CIH
1.1. A
NTECEDENTES
A posição brasileira na coordenação de esforços para levar a
cabo as intervenções de melhoria das condições de navegabilidade da
HPP esteve fortemente marcada, no início das negociações no âmbito
do CIH, por vestígios do paradigma geopolítico da confrontação. Esses
vestígios faziam-se claros na coexistência entre a opção por imprimir
caráter multinacional à iniciativa de revalorizar a HPP e a determinação
de manterem-se os mecanismos vigentes no âmbito da Bacia do Prata,
que durante décadas garantiram a prevalência dos interesses nacionais
sobre os regionais, por meio da tomada de decisão soberana sobre os
projetos desenvolvidos em território nacional. Os principais mecanismos
que asseguravam essa tomada de decisão materializavam-se no método
indutivo e na regra da unanimidade. Ilustrativas dessa situação são as
instruções à delegação brasileira por ocasião da I Reunião do CIH.
Ao mesmo tempo em que se afirmava que o Brasil considerava
a Hidrovia mais como um mecanismo de integração física regional do
que como meio de acesso ao fluxo comercial transoceânico, justificava-
se que a decisão sobre as intervenções na via fluvial deveria obedecer
A POSIÇÃO BRASILEIRA: CONDICIONANTE E CONSEQÜÊNCIAS
PARA
O DESENVOLVIMENTO DO PROJETO HPP
(C
OMPONENTE AMBIENTAL)
ELIANA ZUGAIB
300
ao método indutivo, atrelando-se à posição adotada tradicionalmente
pelo país na Bacia do Prata. A justificativa fundamentava-se no fato de
que, por se tratar de amplo programa, composto por inúmeros projetos,
dever-se-ia aprovar cada iniciativa proposta em função dos interesses
regionais e dos recursos financeiros disponíveis para sua execução.
Seguindo o mesmo raciocínio, os estudos de impacto ambiental
deveriam, em princípio, ser efetuados para cada projeto aprovado e
não para a Hidrovia como um todo
709
.
A posição brasileira viria a refletir-se no critério do gradualismo
adotado na I Reunião do CIH para priorizar as obras e na ressalva de
que a avaliação do impacto ambiental, embora fosse considerada de
forma global, não implicaria a postergação de obras prioritárias que
pudessem ser levadas a cabo imediatamente “sem ocasionar prejuízo
ecológico incontrolável”
710
. Essa ressalva assemelhava-se aos
argumentos que haviam levado o Brasil a conter a tese argentina da
consulta prévia e a garantir a realização de empreendimentos bilaterais,
águas acima, estigmatizados na construção de Itaipu. A referida conduta,
típica do paradigma da confrontação, permeava também os resultados
da II Reunião do Comitê, realizada em Buenos Aires, em agosto de
1990, quando os países resolveram reservar-se o direito de executar
obras em seus respectivos territórios, mediante o sistema que lhes
parecesse mais conveniente, dentro do enquadramento político e
normativo comum
711
.
709
Essa posição contrapunha-se com o disposto no artigo 225, inciso IV, parágrafo 4
o
da
Constituição Federal, recém promulgada à época.
710
CIH. Informe Final de la Primera Reunión del Comité Intergubernamental de la Hidrovía
Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto de Nueva Palmira). In: BOLIVIA. Ministerio
de Relaciones Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes. Hidrovía Paraguay-Paraná
(Puerto Cáceres-Puerto de Nueva Palmira). Santa Cruz de la Sierra (Bolivia). Diciembre,
1991. p. 24.
711
CIH. Informe de la II Reunión del Comité Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-
Paraná (Puerto Cáceres-Puerto de Nueva Palmira). In: BOLIVIA. Ministerio de Relaciones
Exteriores y Culto. Tratado, Actas, Informes. Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-
Puerto de Nueva Palmira). Santa Cruz de la Sierra (Bolivia). Diciembre, 1991. p. 35.
301
A POSIÇÃO BRASILEIRA
Procurava o Brasil, ao mesmo tempo, garantir a preservação de
outro traço emblemático das disputas brasileiro-argentinas, os fluxos de
comércio conquistados, os chamados corredores de exportação.
Depreende-se essa atitude da argumentação do chefe da delegação
brasileira na II Reunião do CIH de que a importância atribuída à Hidrovia
não deveria implicar diminuição do uso das demais modalidades de
transporte na região, particularmente a malha terrestre já existente no Brasil,
que possibilitava o acesso dos países mediterrâneos ao Oceano Atlântico
712
.
Não se tratava de garantir a intermodalidade necessária à eficiência do
transporte fluvial, mas de evitar a perda dos fluxos de comércio do
hinterland em direção aos portos marítimos da costa atlântica brasileira.
Essa posição já era aconselhada pelo chefe da missão em
Montevidéu, que defendia a associação do tratamento do tema Hidrovia
às ligações rodoferroviárias no Brasil por entendê-las importantes para
os fluxos comerciais e para a integração regional. Com base nessa
argumentação, propunha iniciativa que visasse ao aperfeiçoamento
conjunto dos sistemas rodoviários da Bacia do Prata que, somada aos
objetivos do Projeto Libertadores
713
, viria a reequilibrar os esforços
uruguaios de apresentar a HPP como alternativa excludente das demais
opções de transporte da região e assegurar que o tratamento do tema
não fosse feito em detrimento dos corredores de exportação em território
brasileiro
714
. Não obstante a presença desses vestígios, inauguravam-se
712
O esforço de convencimento foi feito pelo chefe da delegação brasileira, Embaixador
Thompson Flores, a propósito do pedido do chefe da delegação uruguaia, Dr. Jorge Sanguinetti,
de atualização do Estudo da Internave sobre os custos dos diversos modos de transporte.
713
O Projeto Libertadores buscava a integração de 16.000 km de vias férreas dos países
do Cone Sul, do Brasil ao Chile, abrangendo quatro ramais ferroviários: (a) o corredor
transcontinental, do Brasil a Arica; (b) o corredor dos Libertadores, de Buenos Aires a
Antofagasta; (c) o corredor atlântico, do Brasil à Argentina, passando pelo Paraguai e
pelo Uruguai e (d) o corredor transandino central, de Valparaíso a Buenos Aires.
714
Recorde-se a esse propósito que, como evidenciado no Capítulo IV deste trabalho,
a motivação da proposta brasileira de revalorizar a Hidrovia surgiu de idéia uruguaia de
utilizar o porto de Nova Palmira como alternativa para aliviar os portos já saturados da
costa atlântica, o que convinha ao Uruguai como alternativa para revitalizar o setor
serviços, sua vocação natural.
ELIANA ZUGAIB
302
as negociações sobre o projeto Hidrovia com ampla coincidência entre
nossa postura e a do governo argentino, que ocupava a Secretaria
Pro-Tempore da Hidrovia, sobretudo no que diz respeito ao
enquadramento institucional da HPP no âmbito do Tratado do Prata.
A preocupação ambiental e de colaboração com a Bolívia na
solução dos problemas no Canal Tamengo também estiveram presentes
desde a primeira reunião de coordenação interna da parte brasileira
sobre o projeto Hidrovia, realizada no Itamaraty, em 28 de março de
1990. Na ocasião, o representante do Ministério dos Transportes aludiu
à necessidade de se elaborar estudo de impacto ambiental da Hidrovia,
porém, como passo necessário para se solicitar financiamento da
iniciativa a entidades internacionais. Justificava o funcionário que seria
preferível proceder-se a estudos parciais e paulatinos de impacto
ambiental, de forma a não prejudicar a continuidade do projeto. A
preocupação com o componente ambiental viria, no entanto, a evoluir
qualitativamente, refletindo-se no consenso em torno da otimização do
uso da Hidrovia e na sustentabilidade do projeto.
Identificavam-se também naquela reunião preparatória, dentre
os temas prioritários, a melhoria da navegação, em que se incluíam
obras de derrocamento e dragagem em passos críticos, balizamento e
sinalização, além de solução para o Canal Tamengo, considerado
fundamental para proporcionar à Bolívia saída ao rio Paraguai. No
encontro interno que se seguiu, os representantes do Departamento
Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) e do Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)
manifestaram preocupação com a possibilidade de que eventuais futuras
obras de correção e retificação do rio Paraguai viessem a alterar o
equilíbrio hídrico daquele curso d’água e de seus afluentes, sobretudo
no trecho Cáceres/Corumbá, onde se encontra o sensível ecossistema
do Pantanal Mato-Grossense. Essa prudência levaria a delegação
brasileira a restringir a indicação de obras e projetos prioritários de
curto prazo (Módulo A) ao balizamento e sinalização diurna e noturna
303
A POSIÇÃO BRASILEIRA
entre Cáceres e Corumbá, a estudo de impacto ambiental e a estudos
gerais sobre a navegabilidade no trecho brasileiro
715
.
Mais tarde, por ocasião da II Reunião do CIH, a propósito do
critério adotado na reunião anterior do Comitê de homogeneizar a
navegabilidade da via fluvial em todo o seu percurso, o Brasil já
colocava a questão do impedimento legal de implementar qualquer
obra no trecho brasileiro antes de concluído o diagnóstico de impacto
ambiental, elemento que condicionaria a evolução de nossa posição e
do próprio projeto executivo como um todo. A importância relativa da
Hidrovia para o Brasil e a ênfase atribuída à preservação ambiental
levantaram em algumas ocasiões suspicácia de que não estaríamos mais
dispostos a continuar apoiando o projeto.
A primeira delas surgia no âmbito da V Reunião do CIH, em
maio de 1991, quando, para afastar sinalizações erroneamente
interpretadas no sentido de perda de interesse do Brasil pelo projeto,
os negociadores brasileiros deixaram claro ao lado argentino, em
reunião de alto nível, disposição de negociar tratado-quadro de natureza
política para a Hidrovia e o propósito de não reduzir o ritmo das
negociações do Acordo de Transporte Fluvial pela HPP, instrumento
jurídico imprescindível à eliminação dos entraves burocrático-
institucionais a sua transformação em meio de transporte eficiente e
competitivo
716
.
A desconfiança com respeito ao autêntico propósito do governo
brasileiro em levar adiante o projeto ressurgiria em outras ocasiões,
dentre as quais, a XXIX Reunião do CIH, cujo tema central era a
celebração do acordo CIH/CAF para o financiamento dos estudos
715
CIH. Informe Final de la Primera Reunión del Comité Intergubernamental de la
Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto de Nueva Palmira), op. cit., .p. 25.
716
Essa posição era reforçada pelo apoio emprestado à proposta boliviana de elevar o
assunto ao mais alto foro platino, incluindo-o na agenda da Reunião dos Chanceleres, o
que servia também ao propósito de sinalizar a renovação dos vínculos do programa da
Hidrovia com o Tratado da Bacia do Prata, considerado pedra angular do excelente
relacionamento que prevalecia entre os países da região.
ELIANA ZUGAIB
304
complementares relativos às futuras obras de melhoria e à gestão
ambiental na Hidrovia. Uma vez mais era reafirmado o compromisso
do Brasil com as ações e programas da HPP, declaração secundada
pelo Uruguai e pela Bolívia
717
, e justificada no fato de o país despender
aproximadamente US$ 9 milhões por ano com manutenção,
investimentos e estudos ambientais no trecho brasileiro, além de
implementar o Programa Pantanal, com investimentos da ordem de
US$ 165 milhões destinados a beneficiar o meio-ambiente, as
populações ribeirinhas e, por extensão, os usuários da HPP
718
.
Alguns dos elementos que marcaram a gênese da posição
brasileira diluir-se-iam, como é o caso da convicção dos benefícios do
método indutivo e da preocupação de que o programa de melhoria da
HPP reduzisse a importância dos eixos de transporte transversais em
território nacional. Quanto ao método indutivo, não houve abdicação
do direito de decisão sobre as obras realizadas em território nacional,
mas o que se poderia chamar de solução de compromisso entre os
métodos indutivo e dedutivo. Com a criação do PAI, os países
mantiveram o poder de decisão soberana sobre as obras nacionais,
evitando, porém, que o projeto se reduzisse a uma simples somatória
de intervenções nacionais, ao lançar mão do mecanismo de sua
compatibilização no âmbito da CCT, com base no enfoque integral. O
abandono da preocupação de que a HPP se tornasse concorrente dos
eixos transversais ocorreria, mesmo porque, com o tempo, verificar-
se-ia que os fluxos de carga transportados pela HPP são cativos em
717
O Chefe da delegação uruguaia registrava os avanços logrados durante a presidência
pro tempore do Brasil representados na conclusão dos termos de referência para os
estudos complementares, o que permitiu a transição para a fase da licitação do consórcio
que o realizaria. O Chefe da delegação boliviana, por sua vez, ratificou o interesse
brasileiro na Hidrovia referindo-se à Declaração Presidencial de Tarija, divulgada por
ocasião da visita do então Presidente Fernando Henrique Cardoso à Bolívia, no período
de 26 a 28 de junho de 2001, que reafirma a prioridade da HPP para os dois países, com
especial menção ao Canal Tamengo, de vital importância para a Bolívia (Cf. BRASIL.
Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica, n. 41767, de 30/08/2001).
718
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica, n. 41767, de 30/
08/2001.
305
A POSIÇÃO BRASILEIRA
sua maioria
719
e, portanto, sua viabilidade econômica não depende,
em princípio, do desvio de carga de outros meios de transporte
720
.
Alguns dos elementos aqui apontados fariam parte do fio condutor
de nossa posição em defesa dos interesses nacionais e regionais no projeto
Hidrovia, constituindo o componente ambiental sua linha mestra.
1.2. F
UNDAMENTOS DA POSIÇÃO BRASILEIRA (COMPONENTE AMBIENTAL)
Pode-se afirmar que a posição brasileira acerca da utilização da
Hidrovia repousa hoje sobre três premissas: (a) a Hidrovia Paraguai-Paraná
não é projeto novo, mas via de transporte e comunicação que sempre existiu
e cumpriu ao longo da história importantes funções econômicas e de ocupação
territorial
721
; (b) encontra-se em seu estado natural e em condições suficientes
para a navegação
722
de embarcações adaptáveis ao rio
723
; (c) as ações
719
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Componente Económico-Financiero. Vol. II, pp. 107 e 145.
720
Ao contrário, a elevação do volume de carga no curso da HPP parece depender muito
mais da dinamização da atividade econômico-produtiva que engendra em sua área de
influência, com os benefícios que traz em seu bojo para as populações ribeirinhas. Em
uma série de artigos escritos em 1999, o Vice-Ministro de Relações Econômicas
Internacionais da Bolívia e ex-Secretário-Geral da ALADI, Dr. Isaac Maidana, tece
comentários sobre os benefícios do projeto para aquele país, graças a sua vertente
integracionista. Menciona, entre outros, dados ilustrativos da iniciativa como fator
dinamizador do desenvolvimento econômico-social e estratégico dos países beneficiários,
que a produção de soja boliviana, escoada pela Hidrovia, cresceu de 134 mil toneladas
em 1988 para mais de um milhão de toneladas em 1998. (cf. CONSULADO DO
BRASIL em SANTA CRUZ DE LA SIERRA. Telegrama n. 159, de 09/06/99).
721
BARROS, Sebastião do Rego. Controvérsia sobre a Hidrovia Paraguai-Paraná.
In: Gazeta Mercantil, São Paulo, página A3, 28 abr, 1997.
722
GRUPO DE TRABAJO AD HOC DE LOS PAÍSES DE LA CUENCA DEL PLATA.
Hidrovía Paraguay-Paraná. Estudio de Pré-Factibilidad. [S.l.], nov. 1988. p. 20.
723
HUGO, Mauricio. Hidrovia Paraguai-Paraná. Um Projeto Sinônimo de Polêmica. In:
Rumos do Desenvolvimento. Novembro/1997, p. 13. Referência à declaração da então
chefe da DAM-I, Conselheira Maria Luiza Ribeiro Viotti, de que “nossa idéia é procurar
adaptar as barcaças ao rio e nunca o contrário, o que significa que serão mínimas as
obras no Rio Paraguai”. Essa posição vem sendo reiterada nos pronunciamentos do
Ministro Pedro Fernando Brêtas Bastos, na qualidade de chefe da delegação brasileira.
ELIANA ZUGAIB
306
coordenadas dos cinco países na via fluvial devem buscar o equilíbrio que
permita sua melhor utilização econômica com o menor impacto
ambiental
724
.
A posição defendida pelo Brasil de que a HPP é via natural
navegável que sempre existiu e que o sistema Paraguai-Paraná
apresenta, no trecho brasileiro, condições naturais de navegação
suficientes para o trânsito de embarcações adaptáveis ao rio encontra
sustentação não apenas em evidências históricas. Fundamenta-se
também em dados estatísticos recentes sobre os impactos positivos
das obras de manutenção, atualmente realizadas pelos cinco países,
traduzidos na dinamização do tráfego pela Hidrovia e nos investimentos
do setor privado em instalações portuárias e na renovação e ampliação
da frota.
Os rios Paraguai e Paraná são de inegável importância
histórica e estratégica para os países da Bacia do Prata. Desde a
época colonial, esses rios são utilizados, em estado natural, como
via de transporte de mercadorias e de acesso à região. A própria
fundação da cidade de Assunção, em 1537, constitui evidência do
valor histórico-estratégico da Hidrovia para a região platina. No
Brasil, o rio Paraguai favoreceu, desde o século XVII, a penetração
de bandeiras à procura de ouro e de trabalho indígena
725
. Núcleos
de ocupação territorial, as cidades de Cáceres e Corumbá (então
chamada Albuquerque) surgiram, em 1778, em torno da criação
de gado bovino, e, em 1898, foi fundado Porto Murtinho, cuja
724
VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Roteiro para intervenção na Audiência Pública
convocada pela Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da
Câmara dos Deputados. Brasília, 21 ago.1997. p. 6. Texto mimeografado. Essas premissas,
por sua vez, encontram fundamento na realidade histórica, nas características
morfológicas e hidrológicas naturais do rio Paraguai, nas peculiaridades da função exercida
pelo Pantanal Mato-Grossense e na singularidade de sua fauna e flora, assim como nas
diretrizes ambientais plasmadas no ordenamento jurídico interno e no compromisso
com o desenvolvimento sustentável da região, assumido na Rio 92.
725
FAUSTO, Boris. Historia Concisa de Brasil. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica de Argentina, S.A., 2003, 1ª. edición en español, 2003, p. 46.
307
A POSIÇÃO BRASILEIRA
principal atividade era o embarque do mate no rio Paraguai. A partir
de então, o transporte pelo rio tem sido fator presente na ocupação
e no desenvolvimento da região. Apenas décadas mais tarde foram
viabilizadas as conexões terrestres com os pólos dinâmicos da
economia na costa atlântica brasileira
726
. Como descreve Nicolás
Boscovich:
La Hidrovía Paraguay-Paraná es un corredor
existente, de uso intensivo en épocas pasadas. Corumbá,
ciudad histórica al margen del río Paraguay y frente a la
localidad boliviana de Puerto Suárez, fundada en 1778,
recibía navíos de mediano porte que navegaban el río de la
Plata, el Paraná y el Paraguay llevando el trigo y el cemento
argentino junto con los finos tejidos y productos para
consumo de Francia e Inglaterra (...). El transporte de
mineral en la región tiene, así mismo, más de 50 años. El
hierro y el manganeso de las minas de Urucum, que
abastecen a las siderúrgicas argentinas, llegaban al Japón
en operaciones con transbordo en Nueva Palmira. Después
de la guerra, los convoyes “Urucum” de la United Steel Co.
comenzaron con el tráfico fluvial de mineral, construyéndose
instalaciones de transbordo en ese puerto uruguayo. Bolivia
también recibía a comienzos de siglo buques ultramarinos,
y Miguel Suárez Arana fundó Puerto Suárez con un muelle
para navíos procedentes de Rotterdam, Hamburgo y otros
puertos europeos
727
.
726
VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Notas para a Exposição da Conselheira Maria Luiza
Viotti, Chefe da Delegação Brasileira junto ao Comitê da Hidrovia Paraguai-Paraná,
na Reunião de Participação Pública, realizada em Campo Grande, em 30 de novembro
de 1996, p.1. Cópia enviada à Embaixada do Brasil em Buenos Aires, pelo fax ARTBREM
28, de 17/02/97.
727
BOSCOVICH, Nicolás. Geoestrategia para la Integración Regional. Buenos Aires:
Ciudad Argentina, 1999. pp. 87 e 88.
ELIANA ZUGAIB
308
O rio Paraguai entre Corumbá e Cáceres constitui trecho
crítico
728
por incluir o Pantanal Mato-Grossense, de vital importância
para a manutenção da diversidade biológica e da regulação dos
recursos hídricos de toda a bacia do Paraguai-Paraná, que produz
efeito positivo na navegação, ao estender o período de águas profundas.
“Qualquer mudança drástica no ecossistema poderá afetar os cinco
países beneficiários da Hidrovia e provocar impacto ambiental
importante”
729
. Advém também daí o poder de influência do Brasil, ao
deter o controle das nascentes dos rios que compõem a Hidrovia.
Nessas condições, nos sistemas de corrente livre, como o do Paraguai-
Paraná, a capacidade de tráfego é condicionada pela limitação de calado
e pelos obstáculos naturais que dificultam e restringem a passagem de
embarcações, formando gargalo no tráfego normal
730
. Não obstante,
728
As condições de navegação diferem nos trechos Cáceres/Barra Norte do Bracinho e Barra
Norte do Bracinho/Corumbá, em decorrência de suas características morfológicas distintas.
No caso específico dos dois trechos mencionados, esses obstáculos apresentam-se nos
segmentos de curvaturas muito acentuadas, que exigem o desdobramento dos comboios ou
não permitem o cruzamento de embarcações e, portanto, limitam a capacidade de tráfego.
INTERNAVE ENGENHARIA. Hidrovia Paraguai-Paraná. Estudo de Viabilidade
Econômica. Relatório Final, Vol. I, São Paulo, 1990, p. 2.3/141. No primeiro trecho, onde se
encontra o Porto de Cáceres, o rio Paraguai segue curso sinuoso entre colinas baixas em vale
e planície aluvial bem definidos, e apresenta durante três meses do ano calado máximo entre
1,2 e 1,5 m, em anos secos e normais, sendo que nos nove meses restantes pode flutuar entre
1,5 e 2,3 m. No segundo trecho, o rio possui morfologia completamente distinta, é bastante
estreito, variando sua largura entre 40 e 100 m. O calado máximo flutua entre 1,3 e 2,4 m,
durante seis meses em anos secos, e entre 1,8 e 2,7 m em anos normais. Para os outros seis
meses, o calado disponível varia entre 2,4 m e 2,9 m em anos secos e entre 2,7m e 3,2 m em
anos normais. Enquanto a capacidade máxima de empuxo no primeiro trecho, limitada por
curvas acentuadas, é de 22 metros de largura por 150 m de comprimento, no segundo, a
largura reduz-se para 11 metros, mantendo-se o comprimento. CCT (?). Términos de
Referencia de los Estudios de Ingeniería y Plan de Ejecución para la Hidrovía Paraguay-
Paraná, desde el Puerto de Nueva Palmira a Cáceres. Módulo B (obras de médio e longo
prazos), encomendados ao Consórcio HLBE.[ S.l.] [199?]. pp. 8-9.
729
CCT (?). Términos de Referencia de los Estudios de Ingeniería y Plan de Ejecución para
la Hidrovía Paraguay-Paraná, desde el Puerto de Nueva Palmira a Cáceres. Módulo B
(obras de médio e longo prazos), encomendados ao Consórcio HLBE. [S.l.] [199?]. p. 7.
730
Cabe assinalar que a capacidade de tráfego está intimamente ligada à espera das
embarcações nas passagens difíceis e, portanto, o fluxo muito elevado de comboios
condicionados a esperas acaba tornando o transporte antieconômico.
309
A POSIÇÃO BRASILEIRA
“as exigências da navegação fluvial e as características dos rios permitem
o seu aproveitamento econômico nas condições de ‘corrente livre’”
731
.
A versatilidade do transporte na Hidrovia, que admite o uso de
comboios compostos por barcaças e um empurrador, passíveis de
configurações variadas, permite atribuir tratamento diferenciado à região
do Pantanal.
Esse aproveitamento viabiliza-se, no entender das autoridades
brasileiras, por meio da utilização racional do sistema Paraguai-Paraná,
que pressupõe a adaptação das embarcações ao rio e não o contrário,
o que significa que serão mínimas as intervenções no rio Paraguai,
ficando descartados custos ambientais que pudessem advir de obras
estruturais. O uso de embarcações apropriadas, aliado às obras de
instalação e melhoria da sinalização, balizamento e dragagem de
manutenção já permitem garantir, no trecho brasileiro, franca navegação
aos comboios, durante o ano todo, 24 horas por dia
732
e maior segurança
e confiabilidade do transporte
733
.
Outra área sensível do ponto de vista ambiental no trecho
Cáceres/Corumbá é o Canal Tamengo, de jurisdição compartilhada
com a Bolívia e de vital importância econômica para esse país, por
constituir a única conexão entre seus principais centros de transporte
regional, os Portos Suárez e Aguirre, e o sistema fluvial Paraguai/Paraná,
através do Porto de Ladário, no Brasil. Parte de sistema hidrológico
complexo, o Canal liga o rio Paraguai com a Lagoa Cáceres e atua
731
Trata-se de opinião emitida pelo engenheiro Luiz Eduardo Garcia, na qualidade de
assessor técnico principal junto ao CIH. VARGAS, Rosely. O Caminho das Águas. In:
Revista de Negócios. Ano VI, n. 57, p. 19, abril, 1997.
732
CIH. Ata da Reunião Extraordinária do CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias
16 e 17 de setembro de 2004.
733
LÓPEZ, Horacio (Presidente da CPTCP): depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador:
E. Zugaib. Buenos Aires, 2004. Transitam hoje pelo rio Paraguai comboios, cuja
composição é limitada a até 16 barcaças de 1500 toneladas métricas. Daí a importância
de tornar o Paraguai navegável também durante a noite, de forma a garantir o tráfego
ininterrupto de embarcações e, em última análise, aumentar o potencial de transporte.
HUGO, MAURICIO. Hidrovia Paraguai-Paraná. Um Projeto Sinônimo de Polêmica.
In: Rumos do Desenvolvimento. Novembro/1997, p. 12.
ELIANA ZUGAIB
310
como seu mecanismo de deságüe. Dependendo, portanto, do
diferencial do nível das águas entre o rio e a Lagoa, a direção do
fluxo hidráulico pode reverter-se, causando dificuldades. Nessas
condições, qualquer mudança no equilíbrio hidrológico do sistema
decorrente de eventual ampliação do Canal Tamengo poderia
provocar impacto ambiental grave em áreas imediatas, inclusive no
abastecimento de água potável para a população de Corumbá
734
. A
importância atribuída pelos governos brasileiro e boliviano ao tema
está refletida no Comunicado Conjunto dos Presidentes Luiz Inácio
Lula da Silva e Carlos D. Mesa, de 18 de novembro de 2003, no
qual fazem a seguinte menção à HPP:
Os Presidentes coincidiram que a Hidrovia Paraguai-Paraná
constitui um eixo de desenvolvimento sócio-econômico binacional e
regional. Nesse sentido, determinaram o exame de medidas que,
preservando o meio ambiente, facilitem a navegação e as operações
fluviais nas águas jurisdicionais da Bolívia e do Brasil e a busca de uma
solução para a questão da tomada de água no Canal Tamengo
735
. (grifo
da autora)
2. A
EVOLUÇÃO DA POSIÇÃO BRASILEIRA E SUA INFLUÊNCIA NO PROCESSO
NEGOCIADOR
As características do programa de melhoria das condições de
navegabilidade da Hidrovia evoluíram desde as primeiras tratativas e
734
As profundidades das águas do Canal variam entre 1,0 m e 6,0 m, de acordo com os níveis
do rio Paraguai, o que o limita a utilização sazonal, que corresponde geralmente ao período de
janeiro a junho, coincidente com a época da colheita. Portanto, as dimensões máximas de
empuxo aceitáveis naquele trecho correspondem às do trecho Assunção/Corumbá, 38 m de
largura, 280 m de comprimento e calado de 2,4 m. CCT (?). Términos de Referencia para el
Mejoramiento de las condiciones de Navegación en la Hidrovía Paraguay-Paraná desde el
Puerto de Santa Fe a Corumbá y en el Canal Tamengo, Módulo A (obras de curto prazo),
encomendados ao Consórcio HLBE. [S.l.] [199?]. pp. 8-10.
735
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Comunicado Conjunto dos Presidentes da
República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da República da Bolívia, Carlos D.
Mesa. Brasília. 18 nov. 2003. Disponível em <www.mre.gov.br/portugues/imprensa/
311
A POSIÇÃO BRASILEIRA
estudos de viabilidade técnico-econômica, que não levavam em conta,
na medida necessária, os aspectos ambientais nele envolvidos.
As repercussões negativas no Brasil e no exterior causadas pelas
conclusões a que chegaram esses estudos induziriam à construção de
consenso, no âmbito do CIH, em torno da relevância do componente
ambiental, transformando-o em uma de suas vertentes mais importantes.
Com o objetivo de imprimir caráter sustentável ao projeto, atentou-se
para que os termos de referência dos estudos posteriores passassem a
priorizar a análise dos impactos ambientais; reforçou-se a capacidade técnica
do CIH na matéria, com a contratação de especialista em meio ambiente e
a criação de grupo assessor ambiental, constituído por representantes das
autoridades ambientais dos cinco países e, em agosto de 1995, foram
iniciadas consultas com entidades ambientalistas interessadas na Hidrovia
736
.
nota_detalhe.asp?ID_RELEASE=2014>. Acesso em: 13 mar. 2004. O governo brasileiro tem
procurado formas de atender a reivindicação das autoridades bolivianas para que se flexibilizem
as Normas de Procedimento da Capitania Fluvial do Pantanal, a fim de viabilizar o tráfego de
comboios formados por 4 balsas, no trecho compreendido entre o Farolete Balduíno e o
sistema de captação de água da cidade de Corumbá, em lugar de 2 permitidas atualmente. Na
avaliação das autoridades bolivianas, a obrigatoriedade de desmembramento dos comboios no
Canal Tamengo prejudica a economia do país. No entanto, a principal dificuldade de atender
integralmente as necessidades da Bolívia deve-se à existência de obstáculos naturais e artificiais
naquela área. Além de apresentar larguras e profundidade reduzidas, em alguns trechos e em
algumas épocas do ano, conta com a presença de construções como o sistema de captação de
água da cidade de Corumbá e o Farolete Balduíno. Portanto, a alteração das normas para
permitir a passagem de comboios com configuração (2x2+1) em regime de tempo integral
dependeria da eliminação desses obstáculos artificiais. MELO, Renato Batista de. Considerações
sobre a Hidrovia Paraguai-Paraná. Brasília: Marinha do Brasil. Divisão de Assuntos
Marítimos e Ambientais, 1º de setembro de 2004. pp.7-9. Note-se que, por ocasião da reunião
bilateral Brasil/Bolívia, realizada em Santa Cruz de la Sierra, nos dias 20 e 21 de maio de 2004,
ficou decidido que quando o nível de água no canal for igual ou maior a 1,5 m, a navegação será
permitida para comboios de dimensão 2x2+1, com empurrador de dois eixos e potência de 900
HPs. Em caso de propulsores que não cumpram esse requisito técnico, ficou mantida a
dimensão máxima anterior, ou seja, 2x1+1. Por outro lado, quando o nível de água do canal for
inferior a 1,5 m, só será permitida a navegação de comboios no formato 1x1+1.
736
VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Notas para a Exposição da Conselheira Maria Luiza
Viotti, Chefe da Delegação Brasileira junto ao Comitê da Hidrovia Paraguai-Paraná,
na Reunião de Participação Pública, realizada em Campo Grande, em 30 de novembro
de 1996, pp. 4 e 5. Cópia enviada à Embaixada do Brasil em Buenos Aires, pelo fax
ARTBREM 28, de 17/02/97.
ELIANA ZUGAIB
312
Nesse processo de consultas à sociedade civil, a reunião
realizada em dezembro de 1995 em Maldonado (Uruguai) constituiria
ponto de inflexão nos rumos do projeto ao resultar em acordo entre o
CIH e as organizações não-governamentais sobre algumas questões.
De especial importância foi o entendimento de que a elaboração dos
estudos técnicos passaria a levar em consideração a natureza diversa
dos ecossistemas da região e a conferir tratamento diferenciado ao
Pantanal, buscando preservar suas características naturais
737
. Ficava
assim iniciado o processo de incorporação do princípio do
desenvolvimento sustentável ao projeto.
No caso do Brasil, o compromisso com a preservação do meio
ambiente passou a ser expresso no mais alto nível
738
e o consenso alcançado
no âmbito do CIH refletiu-se no plano interno na visão convergente das
autoridades competentes de que deveriam ser descartadas intervenções de
caráter estrutural no trecho do Pantanal. Essa percepção emanava não apenas
das considerações de ordem ambiental, mas também da convicção de que a
melhoria das condições de navegação no trecho brasileiro poderia ser lograda
mediante ações de sinalização, balizamento e obras de manutenção
739
. Os
dados estatísticos referentes ao aumento do fluxo de tráfego na Hidrovia e
aos investimentos do setor privado na renovação e ampliação da frota
confirmam hoje essa convicção. Efetivamente, os Termos de Referência dos
estudos previstos para o Módulo B-2, realizados pelo Consórcio TGCC,
incluíram a exigência de proposta de medidas de mitigação de eventuais
impactos e de conservação ambiental e a adoção, como metodologia de
737
Estes mesmos pontos já haviam sido colocados pelas organizações não-
governamentais durante a primeira reunião que mantiveram com os representantes do
CIH, em Buenos Aires, em 22 de agosto de 1995. Ver em BRASIL. Ministério das
Relações Exteriores. Comunicado à Imprensa, Infocred n. 417, de 30/08 de 1995.
738
CARDOSO, Fernando Henrique. Carta dirigida aos Deputados Richard S. Howit,
Wolfgang Kreissl-Dörfler, Laura Gonzales Alvarez e Honório Novo, Membros do
Parlamento Europeu e das Comunidades Européias. Brasília, 5 de setembro de 1995.
739
Viotti.. Notas para a Exposição da Conselheira Maria Luiza Viotti, Chefe da
Delegação Brasileira junto ao Comitê da Hidrovia Paraguai-Paraná, na Reunião de
Participação Pública, realizada em Campo Grande, op. cit., p. 6.
313
A POSIÇÃO BRASILEIRA
trabalho, do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do respectivo Relatório
de Impacto Ambiental (RIMA), de acordo com as legislações dos países
envolvidos, o que atendia aos interesses brasileiros
740
.
Não obstante, as discussões em torno do projeto Hidrovia
voltaram a acirrar-se em agosto de 1997, quando organizações não-
governamentais, como o WWF, divulgaram amplamente as conclusões
de relatório independente
741
. Apontavam impactos ambientais negativos
decorrentes das alternativas de projeto executivo propostas pelos
consórcios HLBE e TGCC. Dentre esses impactos, figuravam o
rebaixamento do leito do rio Paraguai e a conseqüente destruição de
parte do Pantanal Mato-Grossense
742
, além de trazer poucos benefícios
econômicos para as populações envolvidas.
740
CCT (?).Términos de Referencia para la Evaluación del Impacto Ambiental en el
Desarrollo de la Hidrovía Paraguay-Paraná. Módulo B2, encomendados ao Consórcio
HLBE. [S.l.] [199?].pp. 1-4. Foram encaminhados à Embaixada do Brasil em Buenos
Aires, por Circular Postal DAM-I n. 163/95, de 31/08/95.
741
Sobre o assunto ver em: PANAYOTOU, Theodore. A Hidrovia Paraguai-Paraná:
Perspectiva de um Economista Ambiental. In: DUNNE, Thomas et al. O Projeto de
Navegação da Hidrovia Paraguai-Paraná. Relatório de uma Análise Independente.
Brasília: Fundação Centro Brasileiro de Referência e Apoio Cultural (CEBRAC) e
Environmental Defense Fund (EDF), Capítulo Oito, 1997; WWF. Realidade ou Ficção:
Uma Revisão dos Estudos Oficiais da Hidrovia Paraguai-Paraná. Toronto, Canadá:
WWF, 1999; e SOLBRIG, Otto, et al. Hidrovía: Bright Future or Development
Nightmare? Cambridge, MA: Harvard University, 1996.
742
A propósito das conclusões a que chegaram cientistas independentes de que as obras
de melhoria propostas pelos consórcios HLBE/TGCC causariam rebaixamento do rio
Paraguai, com efeitos adversos no Pantanal, comentava o Engenheiro Luiz Eduardo
Garcia, na qualidade de assessor técnico do CIH à época, que “para a navegação,
quanto mais profundo o canal, ou seja, mais alto o nível d’água, melhor. Isto é: quanto
maior a quantidade de água, guardados alguns limites, melhor. O Pantanal exerce um
efeito regulador sobre a quantidade de água (alguns o definem como efeito ‘esponja’),
liberando vagarosamente a água armazenada durante as cheias ao leito principal,
permite que o nível de água mais abaixo no Rio Paraguai, mantenha-se mais alto por
períodos mais longos, mesmo durante a época das secas, o que favorece enormemente
a navegação por períodos mais longos. Assim sendo, quem poderia propor, em sã
consciência, intervenções no rio para exatamente diminuir esse efeito, e como
conseqüência direta, resultar na diminuição dos níveis de água, que é exatamente o
contrário que se pretende conseguir?”. Ver em Carta dirigida pelo Engenheiro Luiz
Eduardo Garcia ao então Ministro Conselheiro na Embaixada do Brasil em Buenos
Aires, Pedro Mota, em 28 de agosto de 1997. Disponível no arquivo da Embaixada.
ELIANA ZUGAIB
314
As críticas das organizações não-governamentais aos resultados
insatisfatórios emanados dos estudos conduzidos pelos consórcios
HLBE e TGCC, somadas às apresentadas pelo Corpo de Engenheiros
das Forças Armadas dos EUA a respeito do Estudo de Impacto
Ambiental
743
, marcaram fortemente os trabalhos da XXV Reunião do
CIH
744
. O impacto dessas críticas, até então subestimado, serviu para
conscientizar as delegações da importância de se adotar atitude mais
cautelosa em relação às recomendações dos estudos e à implementação
imediata das obras, posição que a delegação brasileira defendia, sem
prejuízo da prioridade que atribuía ao melhoramento do potencial de
navegação pela Hidrovia
745
. Assim, decidiram as delegações, naquela
ocasião, elevar o tratamento da temática do meio ambiente à Reunião
de Chanceleres
746
.
As recomendações e conclusões do MMA sobre os resultados
dos estudos relativos ao impacto ambiental do desenvolvimento da
HPP (Módulo B2) seriam decisivas para a reorientação do projeto ao
indicar a necessidade de que fossem complementados:
Verificou-se que os estudos apresentados carecem de
dados e informações para determinar as intervenções físicas
743
Por solicitação do então Presidente do Paraguai, Wasmosy, ao então Presidente dos
EUA, Bill Clinton, os técnicos do Corpo de Engenheiros das Forças Armadas dos EUA
procederam a apreciação do Estudo de Impacto Ambiental realizado pelo Consórcio
Taylor e Associados, com o objetivo específico de analisar alternativas à proposta de
derrocamento de Remanso Castillo, um dos passos mais críticos, localizado nas
proximidades de Assunção. (Cf. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular
telegráfica n. 32950, de 22/10/97).
744
A avaliação de que, embora os referidos estudos representassem importante
diagnóstico da região, não apresentavam fundamento suficiente para a conclusão de que
os impactos das obras propostas seriam reduzidos e moderados, coincidia com os
comentários do Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia
Legal (MMA).
745
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular telegráfica n. 32950, de 22/
10/97.
746
CIH. Informe Final de la XXV Reunión del Comité Intergubernamental de la Hidrovía
Paraguay-Paraná, realizada em Montevidéu, nos dias 9 e 10 de outubro de 1997.
315
A POSIÇÃO BRASILEIRA
passíveis de serem executadas. Para tanto, torna-se necessário
(sic) a complementação de estudos anteriormente à definição e/
ou execução de qualquer tipo de intervenção. Em função das
conseqüências que advirão dos derrocamentos e retificação de
canal ao longo da Hidrovia, entendemos que os modelos
hidrológicos apresentados nos estudos deverão ser mais
detalhados quanto à dinâmica fluvial da bacia dos rios Paraguai
e Paraná, anteriormente à realização desse tipo de obras
747
.
A questão ambiental foi então interiorizada nas discussões nos
níveis técnico e político e estaria na base da mudança de enfoque que
marcaria a partir de então a condução das negociações no âmbito do
CIH. O desenvolvimento da Hidrovia passaria a ser norteado pelo respeito
ao meio ambiente e na medida de sua justificativa econômica e do real
benefício para as populações em sua área de influência, porém não sem
que antes se vencessem resistências que provocaram verdadeiro embate,
levando o Brasil de posição de isolamento à de catalisador do consenso
em torno dessa questão.
Na II Reunião da Comissão de Coordenação Técnica (CCT),
os países já apresentavam propostas de seus respectivos planos de ação
de curto prazo para o melhoramento da Hidrovia, em que a preocupação
com a adoção de Plano de Gestão Ambiental e, em especial, com a
definição de critérios e parâmetros de preservação ambiental a serem
adotados por todos os países, passava a dominar as discussões técnicas,
elevando-se o tema à instância política máxima. A esse propósito, dadas
as disparidades das legislações ambientais internas, a Secretaria Executiva
do CIH recomendava, como já o havia feito anteriormente, “elaborar
en forma conjunta una legislación ambiental unificada, aplicable a
747
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia
Legal. Considerações sobre a Avaliação de Impacto Ambiental do Desenvolvimento da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Brasília, [S.d.]., p. 7. Consta como Anexo II da Ata Final
da 2ª Reunião da Comissão de Coordenação Técnica (CCT), realizada em Buenos
Aires, nos dias 24 e 25 de novembro de 1997.
ELIANA ZUGAIB
316
la Hidrovía
748
, ou seja, adotar “en lo posible un Regulamento Único,
que permita ejecutar las acciones o actividades relacionadas con
la Hidrovía en igualdad de criterio en toda la extensión de la
misma
749
. Não deixava de ser esse um subterfúgio para contornar as
dificuldades que seriam impostas pela rigidez da legislação brasileira
sobre a matéria.
Reunidos em Montevidéu, os Chanceleres dos Países da Bacia
reafirmavam a relevância atribuída à HPP como “fator de crescimento
econômico e de melhoramento das condições de vida das comunidades
da região, e que contribui ao processo de integração em curso entre
seus países”. Ratificavam ainda sua disposição de propiciar o
desenvolvimento da HPP por meio da ação coordenada e em
“consonância com a necessária preservação do meio ambiente”. Com
esse objetivo, destacaram a importância da criação do Foro
Consultivo
750
e da formulação pelo CIH de Programa de Ação com
base nos estudos técnicos disponíveis, “que preveja um planejamento
seqüencial de melhoramentos, conforme as demandas da navegação e
do transporte fluvial dentro dos parâmetros ambientais adequados”
751
.
748
SECRETARIA EJECUTIVA DEL CIH. Programa de Mitigación, Monitoreo, Control
y Minimización de Impactos Ambientales, p. 3. Consta como anexo da Acta de la 2ª
Reunión de la Comisión de Coordinación Técnica (CCT), realizada em Buenos Aires,
nos dias 24 e 25 de novembro de 1997.
749
CCT. Plan de Trabajo, p. 7. Consta como anexo da Acta de la 2ª Reunión de la
Comisión de Coordinación Técnica (CCT), realizada em Buenos Aires, nos dias 24 e 25
de novembro de 1997.
750
A criação do Foro Consultivo do Programa Hidrovia Paraguai-Paraná foi sugerida
por ocasião da XXIV Reunião do CIH. O regulamento do referido Foro consta como
Anexo II do Informe Final de la Reunión Extraordinaria de Jefes de Delegación del
CIH, realizada em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, em 28 de maio de 1999 e sua reforma
foi sugerida pela XXIX Reunião do CIH, em 2001. Ver também em Declaración de
Jefes de Delegación de la Hidrovía Paraguay-Paraná, Santa Cruz de la Sierra, 28 de
maio de 1999.
751
CIH. Declaração Conjunta da Reunião Extraordinária dos Chanceleres dos Países
da Bacia do Prata. A referida Declaração foi assinada por ocasião da V Reunião
Extraordinária de Chanceleres, realizada em Montevidéu, em 14 de dezembro de 1997.
In: Hidrovia Paraguai-Paraná. Documentos Básicos. Coleção de Atos Internacionais,
nr. 633. Brasília, 10 de março de 1998.
317
A POSIÇÃO BRASILEIRA
Durante a XXVI Reunião do CIH já se haviam registrado alguns
avanços nas discussões sobre a elaboração de programa de ação de
melhoramentos da HPP que contemplasse os aspectos de infra-estrutura
e gestão ambiental, a partir das propostas de iniciativas que seriam
definidas pelos países. Ao mesmo tempo, para dissipar percepções
equivocadas na opinião pública sobre a Hidrovia, emitiu-se comunicado
de imprensa, que, com a Declaração Conjunta dos Chanceleres,
consubstanciava a posição do CIH, que refletia os elementos essenciais
da posição brasileira.
Colocava-se em evidência no referido comunicado o aspecto
histórico da utilização da Hidrovia, tradicionalmente utilizada como via
navegável natural pelos cinco países, enfatizando que não se tratava,
portanto, de criar via fluvial artificial. Nesse sentido, o programa de
ação passaria a contemplar “las condiciones de seguridad y
confiabilidad para la navegación de embarcaciones de
características similares a las ya existentes, de una manera
coordinada entre los cinco países
752
.
Esse programa viria a ser composto de tarefas de dragagem
em passos críticos, de sinalização e de balizamento, que buscam
aprovechar las condiciones naturales del río con mínimas acciones
en determinados puntos del actual curso navegable”. Por sua vez,
tais ações seriam levadas a cabo de forma a “asegurar el
mantenimiento del régimen hidrológico de los ríos y de ese modo
garantizar el equilibrio ambiental existente, en particular en el
ecosistema del Pantanal y serán implementadas conforme las
demandas económicas, sociales y de sostenibilidad ambiental”
753
.
Sinalizava-se a intenção de buscar o equilíbrio que permitisse a melhor
utilização da via fluvial com o menor impacto ambiental, premissa que
sintetiza a posição brasileira.
752
CIH. Comunicado de Prensa sobre una supuesta Hidrovía artificial en los ríos
Paraguay y Paraná, de 06 de março de 1998. Consta como Anexo VIII da XXVI
Reunião do CIH, realizada em Assunção nos dias 05 e 06 de março de 1998.
753
Ibidem.
ELIANA ZUGAIB
318
Não demoraria até que, naquele mesmo mês, fossem reavivadas
antigas desconfianças de que o Brasil estivesse abandonando o projeto
por temer seus impactos ambientais, desta vez, em decorrência de
controvertidas declarações à imprensa do ex-presidente do IBAMA,
Eduardo Martins. Da forma como apresentadas, afirmações do tipo
“o país acredita hoje que esse projeto não tem muito valor estratégico
e que colocaria em risco o Pantanal”
754
realmente induziam a pensar
que o Brasil pretendesse inviabilizar o projeto. Essas declarações
estavam na raiz das divergências entre o Ministério dos Transportes e
o IBAMA, que viriam à tona quando da ação civil pública que levou à
suspensão das obras no trecho brasileiro. O impacto dessas declarações
foi logo atenuado mediante esclarecimentos de que reafirmava Martins
a intenção do governo brasileiro de implementar as obras propostas
pelo Consórcio HLBE para o trecho brasileiro, justificáveis do ponto
de vista da segurança da navegação, desde que não afetassem o regime
hidrológico e o ecossistema do Pantanal
755
.
Embora se tivessem dissipado as dúvidas sobre o autêntico
engajamento do Brasil, o assunto veio a repercutir no âmbito da IV
Reunião da Comissão de Coordenação Técnica (CCT), ocasião em
que a delegação do Paraguai solicitou esclarecimento sobre a questão.
Não obstante, nessa mesma oportunidade, o Brasil reiterava sua defesa
em favor da idéia de que os programas de monitoramento e de gestão
ambiental deveriam ser definidos no âmbito do Estudo de Impacto
Ambiental (EIA), o que requeria o conhecimento de todas as propostas
de ações de manutenção e de melhoramento a curto, médio e longo
prazos. Nesse sentido, o licenciamento ambiental, de forma coordenada
entre os cinco países, seria o procedimento adequado para a avaliação
754
As matérias publicadas sobre o assunto reproduzem entrevista do ex-presidente do
IBAMA, Eduardo Martins, às Agências de Notícias ANSA e Reuters, uma das quais de
Julio César Villaverde, de 20/03/98, intitulada “Brasil Suspende Participación en Hidrovía
en el Cono Sur”. Ver também em BRASIL. Embaixada em Assunção. Telegrama n. 251,
de 23/03/98.
755
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica n. 34363, de 23/03/98.
319
A POSIÇÃO BRASILEIRA
das propostas de ação no âmbito do CIH
756
. A partir de visão global
de todas as intervenções previstas na Hidrovia, tanto as de manutenção
quanto as de melhoramento, os EIA deveriam passar a ser
complementados e analisados incluindo os programas de
monitoramento e de gestão, no âmbito do licenciamento ambiental
757
.
Essas idéias viriam a permear o PAI e o PGA, embora antes
causassem impasse na VI Reunião da CCT, em Santa Cruz de la Sierra,
em abril de 1999, e marcassem a XXVII Reunião do CIH. A divergência
de visões quanto ao que deveria vir a ser o Plano de Gestão Ambiental
e sua interação com o Plano de Ação Integrado – Matriz de
Atividades colocou o Brasil, num primeiro momento, em posição
isolada. Enfrentou-se a polarização de propostas brasileira e argentina
que, embora já tivesse vindo à tona na V Reunião da CCT, cristalizou-
se em Santa Cruz de la Sierra, com a adesão da Bolívia à posição
assumida anteriormente pelo Paraguai e pelo Uruguai
758
em favor do
documento argentino Programa de Inicio Imediato
759
. Esse
documento derivara da proposta de PGA apresentada pela Secretaria
Executiva do CIH na 3
a
Reunião da CCT, que havia sido rechaçada
pelo Brasil.
As posições defendidas por Brasil e Argentina eram
estruturalmente opostas. Enquanto o Brasil atribuía ênfase ao
756
Requisitos ambientais necessários para a Hidrovia Paraguai-Paraná. O documento
consta como Anexo V da Ata da 4ª Reunião da Comissão de Coordenação Técnica
(CCT), realizada em Buenos Aires, nos dias 15, 16 e 17 de abril de 1998.
757
CCT. Acta de la 5ª. Reunión de la Comisión de Coordinación Técnica (CCT),
realizada no período de 27 a 29 de maio de 1998.
758
Ver declaração feita pelas delegações da Argentina, Paraguai e Uruguai, registrada na
Ata da V Reunião da CCT, realizada no período de 27 a 29 de maio de 1998, na qual
defendiam , intrer alia, a idéia de que, para os projetos de engenharia futuros, dever-se-
ia adequar os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) existentes para que servissem como
instrumento de decisão para a aprovação das obras de envergadura para o melhoramento
da HPP.
759
O documento argentino intitulado Programa de Início Imediato consta como Anexo
da Ata da VI Reunião da CCT, realizada em Santa Cruz de la Sierra, no período de 5 a 7
de abril de 1999.
ELIANA ZUGAIB
320
componente ambiental ao vincular a aprovação final e a implementação
do PAI à concomitante aprovação do PGA e ao início das atividades
nele previstas, a Argentina e os demais países privilegiavam a conclusão
do PAI e o início das obras, relegando a dimensão ambiental a
tratamento menos relevante e menos ambicioso
760
. O distanciamento
de posições fazia ver claramente que as atividades mais importantes
no âmbito do CIH estavam divididas por visões diferenciadas,
marcadas, por um lado, pela lógica do aproveitamento econômico e,
por outro, pelas necessárias medidas ambientais compensatórias.
Tratava-se de superar a dificuldade de encontrar o equilíbrio entre o
aproveitamento econômico e a preservação ambiental para evitar que
a oposição à voz uníssona do Brasil viesse a estancar a dinâmica da
cooperação, com altos custos políticos.
Diante dessa situação, a delegação brasileira propôs-se
empreender esforço de compatibilização dos documentos brasileiro e
argentino sobre gestão ambiental e apresentar versão conciliadora em
torno da sensível e decisiva questão. Apesar da intransigente resistência
argentina no início das discussões, que ameaçava cristalizar o impasse
surgido na VI Reunião da CCT, o documento brasileiro de conciliação
reverteu o quadro parlamentar, com a adesão da Bolívia, do Paraguai
e do Uruguai, vendo-se a Argentina obrigada a ceder, por encontrar-
se em posição solitária.
Os avanços qualitativos alcançados no âmbito da CCT, em
matéria de gestão ambiental e de sua inter-relação com o PAI,
garantiram que a Reunião Extraordinária de Chefes de Delegação do
CIH, realizada em Santa Cruz de la Sierra, em maio de 1999, atuasse
como contraponto à XXVII Reunião do CIH. Marcada por alto grau
de consenso, abria caminho para o que viria a ser a Declaração de
Cuiabá, decisiva para a consolidação da HPP como instrumento de
integração dos países da Bacia do Prata, pautado pelo enfoque integral
760
BRASIL. Consulado em Santa Cruz de la Sierra. Telegrama n. 099, de 12/04/99, que
relata os trabalhos dos grupos técnicos e da CCT que precederam a XXVII Reunião do CIH.
321
A POSIÇÃO BRASILEIRA
e pelo princípio do desenvolvimento sustentável. Aprovavam-se,
naquela ocasião, o controvertido PGA, o PAI e o Regulamento do
Foro Consultivo do Programa Hidrovia
761
.
Esse resultado refletia vitória da diplomacia brasileira, em que
se consagravam nossas principais posições, além de propiciar nova
atmosfera e nova dinâmica nos foros técnico e político do programa
Hidrovia. A densidade da ata da reunião justificou a emissão de
Declaração Conjunta dos Chefes de Delegação, em que se enfatizava
a decisão de aplicar a abordagem de visão de conjunto das intervenções
na Hidrovia e promover o desenvolvimento sustentável da região de
forma concertada com a sociedade civil.
Repetia-se, até certo ponto e em outro contexto, nessa fase
das negociações, o padrão de comportamento que havia caracterizado
o paradigma dos antagonismos, em que os dois grandes, Brasil e
Argentina, procuravam cooptar os países menores para sua órbita de
influência com o intuito de fazer prevalecer seus interesses nacionais.
Não parecia ainda haver-se instalado um pensar regional na condução
do projeto. Estava, por um lado, o Brasil preocupado em satisfazer as
exigências legais internas, por outro, a Argentina buscando apressar o
início da etapa de execução das obras, com o menor potencial possível
de obstrução e de restrições aos seus interesses econômicos advindos
do aumento do tráfego na Hidrovia. Como afirma Barbara Maria
Happe, ao referir-se aos interesses específicos de cada país na Hidrovia,
a “Argentina parece tirar o maior proveito econômico de todos”
762
.
Não é por acaso que o governo argentino lutou por manter em Buenos
Aires a sede da Secretaria Executiva do CIH, assumindo a
761
CIH. Informe Final de la Reunión Extraordinária de Jefes de Delegación del Comité
Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná, realizada em Santa Cruz de la
Sierra, em 28 de maio de 1999.
762
HAPPE, Barbara Maria. Os Caminhos da Sustentabilidade. Cinco Anos depois da
Rio 92. O Papel Político, Econômico e Social do Projeto Hidrovia Paraná-Paraguai
(HPP) para o Brasil. Marburg, Alemanha:Philipps- Universität Marburg. Fachbereich
Gesellschaftswissenschaften und Philosophie, Institut Für Politikwissenschaft.
Outubro, 1997. p. 28.
ELIANA ZUGAIB
322
responsabilidade por todos os gastos administrativos daquele órgão.
De acordo com o Artigo 20 de seu estatuto, a Secretaria tem, entre
outras, a função de aconselhar o CIH nas suas decisões, atribuição
que certamente gera a expectativa de que venha a fortalecer o poder
de influência do governo argentino no processo negociador.
O relançamento do projeto Hidrovia
763
, com nova feição, só
viria a ser consubstanciado na Declaração de Cuiabá, assinada por
ocasião da XXVIII Reunião do CIH. Impunha-se, a partir de então, a
“estratégia de administração e execução do Projeto, com enfoque
integral”, perseguida pela diplomacia brasileira, ao mesmo tempo em
que se “priorizava a execução de ações”, em horizonte de cinco anos,
condicionadas à realização dos estudos complementares considerados
necessários pelo Brasil, de forma a “implementar as ações que surgem
dos estudos realizados sobre impacto ambiental em cada etapa da
execução e manutenção, realizando os monitoramentos e controles
necessários, para mitigar os eventuais impactos negativos”
764
.
Por força do mandato que lhe fora concedido na referida
Declaração, a Secretaria-Executiva do CIH procedeu a gestões junto
a organismos de crédito internacionais e regionais para obter
financiamento aos estudos. Em junho de 2001, reunidos em Montevidéu,
os Chefes de Delegação já aprovavam os Termos de Referência dos
estudos complementares, para cuja elaboração muito contribuiu o Brasil.
Contemplaram nossa posição de que se fazia necessário projeto
executivo da Hidrovia como um todo, incluindo-se a realização de
EIA, e a vontade das demais delegações de priorizar, no menor prazo
possível, as obras de emergência em seus respectivos territórios.
Interessante é notar que se reiterava ao mesmo tempo a identificação,
763
A expressão “relançar” o projeto Hidrovia Paraguai-Paraná foi cunhada pelo novo
Secretário-Executivo do CIH, que ascendia ao cargo, naquela ocasião.
764
CIH. Declaração de Cuiabá, assinada por ocasião da XXVIII Reunião do Comité
Intergovernamental da Hidrovia Paraguai-Paraná, em 26/10/2000. O texto da referida
Declaração consta de BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica
n. 40036, de 06/11/2000.
323
A POSIÇÃO BRASILEIRA
pelos cinco países, dos pontos críticos sujeitos a futuras obras de
melhoramento da navegação em seus respectivos trechos, “de acordo
com as prioridades estabelecidas internamente”
765
.
Os progressos alcançados foram consolidados e
instrumentalizados pela XXIX Reunião do CIH. A CAF confirmou o
compromisso de financiar a contratação da empresa consultora
encarregada de realizar os estudos, mediante licitação internacional; a
Secretaria-Executiva do CIH foi investida de mandato para assinar o
Acordo de Cooperação Técnica com a CAF, o que viria a concretizar-
se na XXXI Reunião do CIH; foi aprovada a criação da Comissão de
Contraparte Técnica (CCT)
766
, responsável pelo acompanhamento do
processo de seleção da empresa consultora e pela supervisão de seu
trabalho; e decidida a modificação do regulamento do Foro Consultivo,
de forma a torná-lo operacional no menor prazo possível. Ficavam,
portanto, garantidas a participação dos cinco países no
acompanhamento de todo o processo de seleção da empresa consultora
765
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica n. 41344, de 21/
06/2001, que relata os trabalhos da Reunião dos Chefes de Delegação do CIH, realizada
em Montevidéu, em 13/06/04.
766
Não confundir com a Comissão de Coordenação Técnica (CCT), criada durante
a XXV Reunião do CIH, como órgão técnico consultivo do CIH nas definições e
seguimento do Programa da Hidrovia Paraguai-Paraná (PHPP). Suas atividades
compõem-se de reuniões de trabalho e/ou visitas técnicas, de avaliação, seguimento
e/ou elaboração de estudos e informes necessários para o seguimento das atividades
propostas e contidas no PHPP, elaboração e atualização do PAI e do PGA. A
função principal da CCT é a de propor a adequação e compatibilização dos planos
de ação dos países nos trechos da Hidrovia para permitir ao CIH definir as ações
prioritárias para garantir o máximo benefício ao transporte fluvial. (Cf. COMISIÓN
DE COORDINACIÓN TECNICA (CCT). Plan de Trabajo. Anexo VI – 9CCT,
outubro de 2000). A CCT que acabava de ser criada, seria integrada por representante
da CAF, da Secretaria-Executiva do CIH, um representante do setor privado
(armadores da Hidrovia), em caráter de observador, e por dois representantes de
cada país (um principal e um assessor, coordenador das comissões técnicas). Ademais,
cada delegação nacional se reserva o direito de ser assistida em seu trabalho e nas
reuniões pelos especialistas que decida convocar. Sua função de assessoria técnica
restringe-se ao acompanhamento do processo de contratação e realização dos estudos
complementares. (Cf. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular
Telegráfica n. 41767, de 30/08/2001).
ELIANA ZUGAIB
324
e de realização de seus trabalhos, bem como a nova feição do PMHPP,
por meio da criação de instrumentos para vincular ações concretas à gestão
ambiental e a estratégia de informação sobre o significado da Hidrovia
767
.
2.1. C
ONDICIONANTES DA POSIÇÃO BRASILEIRA
A legislação ambiental brasileira influencia, delimita e
determina as decisões políticas sobre a implementação da rede de
infra-estrutura de transporte nacional e, indiretamente, da regional,
tomando-se o caso específico da HPP, como visto anteriormente.
Essa situação explica-se diante da falta de política ambiental comum
no âmbito do Mercosul e do fato de ser o Brasil o país membro
que conta com a legislação mais rígida nessa área
768
e certo poder
de influência, entre outras razões, por deter o controle das nascentes
dos rios.
No plano regional, as questões ambientais tiveram papel
secundário nas negociações do Tratado de Assunção, limitando-se
seu preâmbulo a registrar em tom declaratório, que “la ampliación
de las actuales dimensiones de sus mercados nacionales (...)
debe ser alcanzada mediante (...) la preservación del medio
ambiente”. Somente após a realização da Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), a
preocupação com a preservação do meio ambiente passou a ser
incorporada às negociações do Mercosul, quando se estabeleceu
a relação entre crescimento econômico e meio-ambiente, adotando-se
767
Para o Brasil, a necessidade de que o CIH contasse com política de informação
e divulgação de suas ações e programas junto à opinião pública nacional e internacional
justificava-se sobretudo em decorrência da sensibilidade ambiental despertada pelo
tema Hidrovia, freqüentemente explorado pela mídia, sem o devido conhecimento
dos fatos. (Cf. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica
n. 41767, de 30/08/2001).
768
A criação do Mercosul permitiu a conscientização ambiental no Cone Sul, graças às
leis ambientais brasileiras mais rígidas que acabaram prevalecendo sobre as dos demais
países membros.
325
A POSIÇÃO BRASILEIRA
o conceito de desenvolvimento sustentável
769
. Todavia, ainda se
está longe de lograr a harmonização das legislações ambientais no
Cone Sul:
Mercosur (...) has done little to formally address issues
such as environmental impact of its multinational projects,
including the Hidrovia. So far, environmental protection has
only been mentioned with relation to the control of hazardous
waste transportation between the Members and to the need
to adopt measures to promote new technologies for
environmental protection
770
.
Para evitar o nivelamento por baixo das normas vigentes
brasileiras em matéria ambiental, procurou-se assegurar no Capítulo
XV, Artigo 34, do Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-
Paraná, a prevalência das legislações internas “nenhuma das disposições
do presente Acordo poderá limitar o direito dos países signatários de
adotar medidas para proteger o meio ambiente, a salubridade e a ordem
pública, de acordo com suas respectivas legislações internas”
771
.
Tomavam-se ao mesmo tempo diversas precauções em vários trechos
do Acordo e de seus Protocolos Adicionais com o intuito de
769
Barbara Maria Happe, op.cit., p.16. Ver também Declaração de Canela, assinada em
21 de fevereiro de 1992, ocasião em que os presidentes do Mercosul se reuniram pela
primeira vez para discutir a relação entre crescimento econômico e meio ambiente e
comprometeram-se com o conceito do desenvolvimento sustentável.
770
SILVEIRA, Mariana. The South American Hidrovia Paraná-Paraguay. Environment
vs. Trade?, p. 10. Disponível no site <http://www.chasque.net/rmartine/hidrovia/
articulos.html>. Acesso em: 15 nov. 2004.
771
CIH. Acordo de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai-Paraná. In: Brasil.
Ministério das Relações Exteriores. Hidrovia Paraguai-Paraná. Documentos Básicos.
Brasília, Março 1998. p. 9. O artigo 7, Capítulo III, do Acordo, por sua vez, limita o
escopo da compatibilização e/ou harmonização das legislações internas que se fará “na
medida em que seja necessário, para criar condições de igualdade de oportunidade, de
forma tal que permitam a liberalização do mercado, a redução dos custos e a maior
competitividade”, p. 3.
ELIANA ZUGAIB
326
compatibilizar o incremento do tráfego da navegação na HPP com a
proteção ao meio ambiente.
No plano interno, a diplomacia ambiental brasileira registrou
salto qualitativo, a partir da Rio 92, havendo-se comprometido como
signatário dos documentos dela emanados, dos quais são de
particular interesse para o caso da HPP, a Convenção sobre
Biodiversidade; a Convenção da Basiléia sobre Controle de
Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu
Depósito; o Protocolo de Montreal sobre a Proteção da Camada
de Ozônio e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudança do Clima. Dentre os instrumentos internacionais a que
aderira anteriormente o Brasil, é de relevância a Convenção
Internacional para a Prevenção da Poluição Causada por Navios,
concluída em Londres, em 2 de novembro de 1973 e alterada pelo
Protocolo de 17 de fevereiro de 1978.
Os fundamentos da política ambiental brasileira precedem a
Rio 92 e repousam no alicerce da Constituição Federal de 1988, que
já atribuía dedicação exclusiva ao meio ambiente, no capítulo VI, artigo
225. Enquadramento jurídico de nossa política ambiental, entre outras
disposições, esse artigo considera o Pantanal Mato-Grossense
patrimônio nacional
772
. De particular importância como uma das
condicionantes da posição brasileira em relação à melhoria da HPP é
o disposto no caput e no parágrafo 4
o
do artigo 10 da Lei 6.938, que
estabelece:
772
As disposições do Artigo 225 foram regulamentadas pela Lei n. 6.938, de 31 de
agosto de 1981, modificada pelas Leis n. 7804, de 18/07/89, n. 8028, de 12/04/90, n.
9.966, de 28/04/2000, e 10.165, de 27/12/2000, cujas bases se assentam nos incisos VI
e VII do artigo 23 e no Artigo 235 da Constituição Federal. A Política Nacional de Meio
Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação são estabelecidos pela Carta
Magna que determina no inciso I artigo 4
o
, ser um de seus objetivos “a compatibilização
do desenvolvimento econômico social com a preservação da qualidade do meio ambiente
e do equilíbrio ecológico”. A Lei n. 9.433, de 08 de janeiro de 1997, que institui a Política
Nacional de Recursos Hídricos, prevê como um de seus objetivos, no inciso II, do artigo
2
o
do Capítulo II, “a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, incluindo o
transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável”.
327
A POSIÇÃO BRASILEIRA
A construção, instalação, ampliação e funcionamento de
estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais,
considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os
capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental,
dependerão de
prévio licenciamento de órgão estadual competente
(...), sem prejuízo de outras licenças exigíveis” (...) “Compete
ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais
Renováveis – IBAMA o licenciamento previsto no caput deste
artigo, no caso de atividades e obras com significativo impacto
ambiental, de âmbito nacional e regional
773
. (grifo da autora).
Fazem ainda parte da legislação interna que baliza a política
ambiental brasileira, e que mantêm relação direta com as intervenções na
HPP, as Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente
(CONAMA) nr. 001, de 23 de janeiro de 1986, que estabelece as diretrizes
gerais para uso e implementação de Estudo de Impacto Ambiental como
um dos instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente, e a nr. 237,
de 19 de dezembro de 1997, cujo artigo 3
o
estabelece que “a licença
ambiental para empreendimentos e atividades consideradas efetiva ou
potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente
dependerá de prévio estudo de impacto ambiental e respectivo relatório
de impacto sobre o meio ambiente (EIA/RIMA)”
774
.
773
Licenciamento ambiental é o procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental
competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos
e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente
poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental,
considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao
caso. (Cf. RESOLUÇÃO n. 237, do CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE
(CONAMA), 19 de dezembro de 1997). Impacto Ambiental Regional é todo e qualquer
impacto ambiental que afete diretamente (área de influência direta do projeto), no todo ou
em parte, o território de dois ou mais Estados. (Cf. RESOLUÇÃO n. 237, do CONSELHO
NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (CONAMA), 19 de dezembro de 1997).
774
O Estudo de impacto ambiental (EIA) compreende o diagnóstico ambiental da área
de influência do projeto, completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas
interações, tal como existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes
ELIANA ZUGAIB
328
Sob esse pano de fundo, o compromisso formal assumido pelas
delegações por ocasião da XXXII Reunião Plenária do CIH de
proceder ao acompanhamento atento da evolução dos estudos
complementares refletia o objetivo do governo brasileiro de evitar que
os resultados dos estudos complementares viessem a merecer os
mesmos comentários e críticas dirigidas aos que os precederam. Uma
das principais críticas formuladas pelas organizações ambientalistas a
esses estudos foi a de que não se coadunavam com a realidade ambiental
dos países, sobretudo no Brasil, onde se impõe a presença do
ecossistema do Pantanal Mato-Grossense, decretado “Reserva da
Biosfera” pela UNESCO.
Fruto dessas críticas, iniciou-se, em dezembro de 2000, a
polêmica sobre as obras de melhoria no trecho brasileiro, quando o
Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado do Mato
Grosso impetraram ação civil pública contra o IBAMA, a Fundação
da implantação do projeto; a análise dos impactos ambientais do projeto e de suas
alternativas; a definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos (benéficos
e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e
permanentes; definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos; elaboração
do programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos positivos e negativos.
(Cf. RESOLUÇÃO CONAMA N. 001, de 23 de janeiro de 1986, artigo 6º e seus
incisos).O Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) reflete as conclusões do Estudo
de Impacto Ambiental e contém no mínimo os objetivos e justificativas do projeto,
sua relação e compatibilidade com as políticas setoriais, planos e programas
governamentais; a descrição do projeto e suas alternativas tecnológicas e locacionais;
a síntese dos resultados dos estudos de diagnóstico ambiental da área de influência do
projeto; a descrição dos prováveis impactos ambientais da implantação e operação da
atividade; a caracterização da qualidade ambiental futura da área de influência; a
descrição do efeito esperado das medidas mitigadoras previstas para os impactos
negativos; o programa de acompanhamento e monitoramento dos impactos; a
recomendação quanto à alternativa mais favorável. (Cf. RESOLUÇÃO CONAMA N.
001, de 23 de janeiro de 1986, artigo 9º e seus incisos). Somam-se a essas disposições
legais, inter alia, a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as
sanções penais e administrativas derivadas de condutas lesivas ao meio ambiente, e a
Lei n. 9.966, de 28 de abril de 2000, que estabelece os princípios básicos a serem
obedecidos na movimentação de óleo e outras substâncias nocivas e perigosas em
portos organizados, instalações portuárias, plataformas e navios em águas sob
jurisdição nacional.
329
A POSIÇÃO BRASILEIRA
Estadual do Meio Ambiente (FEMA) e a Macrologística Consultoria
S.A.
775
, a propósito da construção do Porto de Morrinhos
776
, havendo
o Juiz Federal da 1
a
Região da Seção Judiciária do Mato Grosso,
Julier Sebastião da Silva, concedido liminar ao pedido dos requerentes
para
suspender a validade de toda e qualquer licença ambiental
eventualmente expedida pelos requeridos a atividades,
empreendimentos ou equipamentos (dragagens, estradas de
acesso aos portos, terminais portuários de todas as
modalidades, sinalizações, etc.) no trecho do Rio Paraguai
compreendido entre a cidade de Cáceres e a Foz do Rio Apa”;
para determinar ao IBAMA “que se abstenha, doravante, de
conceder qualquer licença ou autorização para ações
interventivas na área fluvial mencionada, até que seja julgado
o mérito desta lide
777
.
Havendo o Governo Federal requerido a suspensão dos efeitos
daquela liminar, para dar curso à construção do Porto de Morrinhos,
em 31 de dezembro do mesmo ano, o Presidente do Tribunal Regional
775
BRASIL. Seção Judiciária de Mato Grosso. Juízo da Primeira Vara. Processo no.
2000.36.00.010649-5, Cuiabá, MT, 19 de dezembro de 2000.
776
O Porto de Morrinhos está localizado a 150 km ao sul de Cáceres, a jusante do trecho
mais sinuoso do rio Paraguai. Esse trecho limita severamente as dimensões dos comboios
que partem de Cáceres carregando soja. A construção do porto viabilizaria o transporte
de soja por caminhão até Morrinhos, de onde embarcariam em comboios maiores,
reduzindo consideravelmente o custo do frete. No entanto, a obra tem sido objeto de
intenso debate. Os ambientalistas opõem-se à construção da estrada que ligaria Cáceres
a Morrinhos, sob a alegação de que o aumento do volume de carga na região do Pantanal
poderá causar danos ambientais ao ecossistema. A municipalidade de Cáceres empresta
discreto apoio às ponderações dos ambientalistas, tendo em vista que a construção do
porto de Morrinhos significará perda de mercado para o porto de Cáceres. (Cf. MELO,
Renato Batista de. Considerações sobre a Hidrovia Paraguai-Paraná. Brasília: Marinha
do Brasil. Divisão de Assuntos Marítimos e Ambientais, 01/09/04. p. 5).
777
BRASIL. Tribunal Regional da 1ª. Região. Petição n. 2000.01.00.139577-5/MT,
Brasília, DF, 31 de dezembro de 2000.
ELIANA ZUGAIB
330
da 1
a
Região (TRF) deferiu, em parte, a decisão do Juiz Federal, de
forma a
suspender a liminar concedida no tocante à invalidação das
licenças ambientais dadas pelo IBAMA para dragagem rotineira
e manutenção da Hidrovia Paraguai-Paraná, e de proibição de
expedição de novas licenças nesse sentido da melhoria e
manutenção da Hidrovia. Mantida fica a liminar na parte em
que impede a concessão de licenciamentos parciais para a
implantação da Hidrovia Paraguai-Paraná, pois, como o próprio
IBAMA afirma, o licenciamento, nessa hipótese, incluindo a
construção do Porto de Morrinhos, deve ser procedido como um
todo”
778
.
Ao longo desse processo, ficou clara a divergência de posições
entre o Ministério dos Transportes e o IBAMA, havendo esse último,
por vezes, denotado contradições em suas declarações, que
contribuíram para a decisão exarada pelo Presidente do TRF, como
se depreende do trecho acima citado. Ao justificar sua posição em
favor de se proceder ao licenciamento ambiental como um todo, o
IBAMA induziu à distinção entre via navegável atualmente utilizada,
que corresponde ao transporte secular ao longo dos rios Paraguai
e Paraná e o que se denomina Hidrovia Paraguai-Paraná,
considerada como
projeto de investimentos (...) de obras de engenharia pesada,
visando o (sic) aumento do tráfego e do transporte de cargas
[no âmbito regional], e a melhoria da segurança da navegação
(...). Assim, ele seria tanto um projeto específico de infra-estrutura
de transporte quanto, no longo prazo, um projeto de
778
Ibidem.
331
A POSIÇÃO BRASILEIRA
desenvolvimento regional. Nesse caso, o licenciamento ambiental
deve ser procedido como um todo, em função do projeto que se
pretende implantar
779
.
Argumentava, ainda, o IBAMA, que o estágio em que se
encontrava o EIA/RIMA relativo ao licenciamento do Porto de
Morrinhos já permitia concluir sobre a necessidade de seu
aprofundamento. Essas considerações levaram o Presidente do TRF à
interpretação de que a suspensão dos licenciamentos já concedidos e
a serem concedidos para a manutenção das condições de navegação
poderiam inviabilizar o transporte de carga regional e, portanto, aqueles
que já dispunham de autorização deveriam ser mantidos.
Contrariamente, com base no princípio da precaução, os investimentos
de engenharia pesada
780
, com o objetivo de implantar o projeto
Hidrovia, ficariam sujeitos à conclusão do EIA/RIMA para o
licenciamento da Hidrovia como um todo
781
.
As divergências entre os dois órgãos federais e as contradições
do IBAMA fizeram-se tanto mais claras no julgado do agravo regimental
interposto pela União Federal, inconformada com a decisão judicial,
em que alegava o Ministro dos Transportes haver esclarecido ao
Ministro do Meio Ambiente que a denominação Hidrovia era
inadequada, tratando-se na realidade de via secular de navegação,
ocasião em que notificava não pretender
levar adiante o estudo para a implantação da Hidrovia contido
nos Estudos de Engenharia e Viabilidade Técnico-Econômico
779
Ibidem.
780
Entendia o Presidente do Tribunal Regional Federal que a construção de novos
portos e terminais, retificações de curvas dos rios, ampliação de curvatura, remoção de
afloramentos rochosos, dragagens profundas e construção de canais para possibilitar a
navegação comercial mais intensa poderiam causar graves danos à região pantaneira.
781
BRASIL. Tribunal Regional da 1ª. Região. Petição n. 2000.01.00.139577-5/MT,
Brasília, DF, 31 de dezembro de 2000.
ELIANA ZUGAIB
332
do Melhoramento das Condições de Navegação da Hidrovia
Paraguai-Paraná, realizado pelo Consórcio Hidroservice-Louis
Berger,
devendo ser desconsiderado e, portanto, arquivado
qualquer pedido de análise e/ou licenciamento a ele relacionado
e pendente no Ministério do Meio Ambiente. Portanto, este
Ministério não pretende implantar a prolatada hidrovia no rio
Paraguai. Quem quizer (sic) navegar nas águas desta via trate
de adaptar suas embarcações a ela por que ela não será adaptada
às embarcações
782
. (grifo da autora).
Diante do novo posicionamento do Ministério dos Transportes,
o IBAMA/MMA recuava em sua posição inicial sobre a necessidade
de prévio licenciamento ambiental para toda a extensão do rio Paraguai.
Encontrando contradições entre esta nova postura assumida pelo
IBAMA e algumas de suas declarações anteriores
783
, não via o
Presidente do TRF razão para mudança na substância da matéria em
decorrência de simples eliminação da denominação do objeto, no caso
a Hidrovia. Entendia, sim, tratar-se de artifício para fazer prevalecer a
avaliação e o licenciamento individual para cada instalação portuária
ao longo do rio, o que o levaria a denegar provimento ao agravo
regimental da União e a manter sua decisão original. Em março de
2001, mediante o fechamento do porto de Cáceres e do terminal
CEVAL, contrariando aquela decisão superior, a União solicitou ao
782
Ibidem.
783
De acordo com o Presidente do TRF, o IBAMA se deixava trair quanto à idéia de não
mais ser preciso licenciamento abarcando o todo, em função da mudança da denominação
da Hidrovia, quando afirmava que “Considerando o leque de impactos possíveis, ante a
implantação de empreendimentos ao longo da via navegável – os quais somente serão
efetivamente conhecidos após a realização de estudos ambientais específicos, que deverão
considerar os empreendimentos já existentes e outros que venham a existir; no âmbito do
licenciamento ambiental desses possíveis empreendimentos e do Porto de Morrinhos, se
autorizado pela Justiça Federal, devem ser definidas medidas mitigadoras e programas
de monitoramento ambiental, visando assegurar a preservação dessa via navegável”.
BRASIL. Tribunal Regional da 1ª. Região. Petição n. 2000.01.00.139577-5/MT.
Documento incompleto.
333
A POSIÇÃO BRASILEIRA
Presidente do TRF que esclarecesse ao Juiz Federal o alcance e os
efeitos de sua decisão
784
, em função do que aquele egrégio Tribunal
exarou Acórdão, em 29 de março, pelo qual reafirmava que
(...) o que estava funcionando deveria continuar funcionando. Assim,
os portos e os terminais deveriam continuar operando, como vêm
operando há anos; as dragagens rotineiras deveriam ser feitas.
Proibida ficou a construção de novos portos e terminais, de dragagens
profundas, de estradas de acesso, tudo isso com o propósito de
viabilizar a implantação da Hidrovia Paraguai-Paraná. Isso está
terminantemente proibido pela decisão desta Presidência
785
.
Pelo princípio da precaução, ficava proibida a concessão de
licenciamentos parciais para a implantação da Hidrovia, com o que a
construção do Porto de Morrinhos ou qualquer outro só poderia ser
iniciada uma vez concluído, pelo IBAMA, o estudo do conjunto do
impacto ambiental e concedida a licença “observando esse estudo
global”
786
.
784
Em reação à determinação do Presidente do TRF para que fossem prestados
esclarecimentos em 24 horas sobre o descumprimento de sua decisão, o Juiz Federal,
Julier Sebastião da Silva advertia para o fato de que a paralisação das atividades do Porto
de Cáceres e do Terminal de Ceval decorriam de ato administrativo estranho ao Juízo,
praticado indevidamente pela FEMA/MT e por omissão do IBAMA. A interpretação
equivocada da decisão do TRF, levaria o Juiz Federal a determinar o prazo de 90 dias para
que os portos já existentes e em funcionamento fossem devidamente licenciados
ambientalmente pelo IBAMA, o que pressupunha a elaboração dos EIA/RIMAs para
serem depois integrados ao EIA/RIMA geral da Hidrovia Paraguai-Paraná, sem o qual o
projeto não poderia prosseguir. BRASIL. Seção Judiciária de Mato Grosso. Juízo da
Primeira Vara. Processo n. 2000.36.00.010649-5, Cuiabá, MT, 23 de março de 2001.
785
BRASIL. Tribunal Regional da 1ª. Região. Petição n. 2000.01.00.139577-5/MT,
Brasília, DF, 22 de março de 2001. Ver também Decisão descumprida. Revista Consultor
Jurídico, São Paulo, 25 nov. 2003. Disponível em <http://conjur.uol.com.br/textos/
4851>. Acesso em: 03 jul. 2004; BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular
Telegráfica n. 41080, de 03/05/2001; Despachos Telegráficos n. 443, de 20/06/2003 e n.
989, para a Embaixada em Buenos Aires, de 28/11/2003.
786
BRASIL. Tribunal Regional da 1ª. Região. Petição n. 2000.01.00.139577-5/MT.
Brasília, DF, 13 de fevereiro de 2001.
ELIANA ZUGAIB
334
Ao aproximar-se a fase de finalização dos estudos
complementares, cujos termos de referência foram baseados naquele
preparado, por decisão judicial, para o EIA/RIMA no trecho
brasileiro, o imbróglio foi reavivado por nova ação civil pública
intentada pelos Ministérios Públicos Federal e do Estado do Mato
Grosso motivados pela concessão de licença a mais de cinco portos,
fundamentada no conceito de que são partes distintas da Hidrovia.
Por decisão do mesmo Juiz Federal, o IBAMA e as Fundações
Estaduais do Meio Ambiente (FEMA/MT e FEMA/MS) ficavam
novamente proibidos de conceder qualquer licença ambiental a
empreendimentos, atividades e equipamentos isolados pertinentes
à Hidrovia no trecho entre Cáceres e a Foz do Rio Apa, além de
declaradas nulas as já concedidas. A decisão se deu, no caso das
Fundações Estaduais, por fugir-lhes à competência a prática da
concessão de licença, e, no caso do IBAMA, porque atividades
daquela natureza devem ser licenciadas globalmente, a partir de
um único EIA/RIMA para toda a Hidrovia, levando-se em
consideração a vontade das populações diretamente atingidas, nos
termos do artigo 225, inciso IV, parágrafo 4
o
da Constituição
Federal, regulamentado pela Lei nr. 7.804/89 e resoluções do
CONAMA
787
. Ao se tratar de concessão de liminar, até o trânsito
em julgado, as atividades destinadas a garantir a navegabilidade
atual do rio Paraguai, como dragagens rotineiras, limpeza dos canais
e sinalizações poderão manter-se em andamento por força do
mencionado Acórdão, cabendo ainda a figura do recurso
788
,
787
BRASIL. Tribunal Regional da 1ª. Região. Petição n. 2000.01.00.139577-5/MT. Cuiabá,
MT, 2 de setembro de 2004.
788
Além de não poder expandir suas operações, deverão, de acordo com a decisão judicial,
observar as prescrições oriundas do TRF – 1ª Região no tocante à não utilização de “grandes
embarcações, grandes comboios de chatas”, sendo que “as embarcações não poderão
usar as margens do Rio Paraguai como elemento de apoio à manobra; e que deverão
empregar propulsores azimutais nos empurradores e elementos de produção de empuxo
lateral avante do comboio, a fim de não danificarem as margens dos rios, nas curvas”, sob
pena de terem interrompido o respectivo funcionamento. De acordo com informação do
335
A POSIÇÃO BRASILEIRA
interposto pela União ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região,
em 28 de outubro de 2004
789
.
Esse impedimento de ordem judicial agregaria respaldo legal e
contornos definidos à posição brasileira de manter as seculares condições
naturais do rio Paraguai em toda a extensão do território nacional e de solicitar
a realização de estudos complementares. O rio deverá continuar sendo
utilizado, por embarcações que se adaptem a suas características naturais,
como sempre o foi, sem a execução de grandes obras de engenharia. Em
outros termos, não se pretendia levar adiante o programa de melhoria da
Hidrovia tal como recomendado pelos estudos realizados pelo Consórcio
HLBE. Era preciso reorientar o projeto para o caminho da sustentabilidade.
3. P
RINCIPAIS CONSEQÜÊNCIAS DA POSIÇÃO BRASILEIRA PARA O PROJETO
HIDROVIA
Embora a preocupação com o meio ambiente estivesse presente
ainda que de forma genérica no próprio Tratado da Bacia do Prata e,
Capitão Fluvial do Pantanal à Justiça Federal, a única empresa de navegação que freqüenta
o rio Paraguai, nos trechos críticos, já possui embarcações com propulsão azimutal e
empurradores de proa. Veja MELO, Renato Batista de. Considerações sobre a Hidrovia
Paraguai-Paraná. Brasília: Marinha do Brasil. Divisão de Assuntos Marítimos e Ambientais,
1 de setembro de 2004. p. 7.
789
BRASIL. Tribunal Regional da 1ª. Região. Processo n. 2003.36.00.010.649-5/1ª. Vara
Federal-MT. Cuiabá, MT, 28 de outubro de 2004. O recurso fundamenta-se entre outros
argumentos, “na percepção de que a Hidrovia é um recurso natural utilizado como via de
livre locomoção de pessoas e cargas, respeitadas as condições de segurança impostas pela
Capitania dos Portos e as próprias condições de navegabilidade do rio. Assim, as intervenções
(como derrocamentos e dragagens) é que estão sujeitas ao licenciamento ambiental e não a
hidrovia como um todo. No que se refere ao EIA-RIMA único, a decisão contraria a
sistemática consagrada nos órgãos ambientais quanto ao licenciamento individualizado,
onde, a cada nova atividade ou empreendimento são analisados separadamente, considerando
seus os efeitos sinérgicos. Não há como avaliar, por meio de um EIA/RIMA ÚNICO,
empreendimentos que poderão ocorrer no futuro. No EIA/RIMA é necessário descrever de
forma detalhada o empreendimento proposto para avaliar seus efeitos no meio ambiente.
Como fazer isso se você não sabe qual o empreendimento, sua localização, o produto que irá
produzir ou transportar, etc? O Ministério dos Transportes deverá recorrer, pois, a
manutenção da decisão compromete os empreendimentos futuros”. NASCIMENTO, Alfredo
Pereira do: depoimento [30 nov. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
ELIANA ZUGAIB
336
de maneira pontual, no Acordo de Transporte Fluvial pela HPP, a posição
brasileira, agora justificada por decisão judicial, ganhava força e seria
determinante para a recondução das negociações no âmbito do CIH.
Dois meses antes de se iniciar a ação civil pública originária da
referida decisão judicial, os esforços de nossa diplomacia para consagrar
a preponderância do componente ambiental sobre os demais
culminaram na Declaração de Cuiabá e as decisões que a ela se seguiram
marcaram a redução do ritmo de andamento das negociações, da área
de intervenção e do escopo do projeto Hidrovia. Evitaram também o
risco de o projeto caracterizar-se mais como somatória de intervenções
nacionais segmentadas do que como iniciativa multinacional integrada
a serviço do desenvolvimento sustentável regional, conforme o propósito
originário que unira os cinco países em torno da idéia de revalorizar a
via navegável.
Ao se introduzir a estratégia do enfoque integral ao projeto de
futuras obras na Hidrovia
790
, impunha-se também a necessidade de
realização de estudos complementares, o que significaria procrastinar
uma vez mais o cronograma de sua execução. Certamente, repetia-se,
aos olhos de algumas delegações, a atitude que gerara os atrasos
ocasionados ao longo do processo de aprovação dos termos de
referência dos estudos e o recuo do Brasil com respeito às
recomendações do Consórcio HLBE, custando-lhe a fama de
790
Em decorrência da decisão judicial, o Ministério dos Transportes deverá contratar
empresa para a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto
Ambiental (EIA/RIMA) da HPP, no trecho brasileiro, cabendo à Administração da
Hidrovia do rio Paraguai (AHIPAR) conduzir o processo de licitação, cujos termos de
referência foram elaborados pelo IBAMA. Esses mesmos termos, que incorporam as
considerações apresentadas pelos órgãos ambientais dos Estados do Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul, pelo Ministério Público Federal e demais órgãos envolvidos,
foram submetidos à apreciação dos demais países signatários do Acordo e serviram de
base para a elaboração dos termos de referência dos estudos complementares, financiados
pela CAF, imprimindo-lhes enfoque global. Assim, fundamentado nos termos de
referência apresentados pela delegação brasileira, os estudos complementares marcaram
uma mudança no tratamento das questões relativas à Hidrovia, ao redirecioná-lo para
ótica voltada para as preocupações com o meio ambiente.
337
A POSIÇÃO BRASILEIRA
obstrucionista
791
. À medida que as considerações de ordem ambiental
foram permeando de maneira crescente os debates técnicos e políticos
do projeto HPP, a partir das críticas de que foram alvo os primeiros
estudos de viabilidade, o próprio projeto técnico foi sofrendo redução
792
.
791
Barbara Maria Happe, op.cit., pp. 25 e 26.
792
Ao subestimar os impactos ambientais de obras de engenharia de maior envergadura,
previa o Estudo da Internave intervenções do tipo expansão de curvas e decorracamento
de afloramentos rochosos, com vistas à abertura de canal de 50 m de largura e 3 m de
profundidade, indiscriminadamente ao longo de toda a Hidrovia. Conforme comentava
Jorge A. Fraga “uno de los objetivos del Proyecto es poner al río Paraguay en condiciones
de ser navegado con 10 pies, obra que podría tener gran incidencia en el futuro del
sistema”. FRAGA, JORGE. A. Exposição feita no painel Cuenca del Plata, Río de la
Plata e Hidrovía: tendencias geopolíticas y esfuerzos de integración, no âmbito do
Simpósio La Hidrovía Paraguay-Paraná, realizado na Escuela Nacional de Inteligencia,
Buenos Aires, nos dias 19, 20 e 21 de outubro de 1992. In: Revista de la Escuela
Nacional de Inteligencia. Secretaría de Inteligencia de Estado. República Argentina, Vol.
II, número 1, p. 118, Primer Cuatrimestre de 1993. Embora os estudos que se seguiram,
realizados pelo Consórcio HLBE e TGCC, tenham introduzido diferença de tratamento
para os trechos homogêneos Santa Fé/Assunção e Assunção/Corumbá, o Módulo B
referia-se ainda ao desenvolvimento de “un programa secuencial para proyectos de
mejoramiento de la navegación a mediano y largo plazo para toda la vía fluvial desde
el puerto de Nueva Palmira sobre el río Uruguay, al puerto interior de Cáceres, en
Brasil”. CCT (?). Términos de Referencia de los Estudios de Ingeniería y Plan de
Ejecución para la Hidrovía Paraguay-Paraná, desde el Puerto de Nueva Palmira a
Cáceres. Módulo B (obras de médio e longo prazos), encomendados ao Consórcio
HLBE. [S.l.] [199?]. p. 3. Continuava ainda esse programa seqüencial a contemplar, a
exemplo do projeto proposto pela Internave, obras estruturais de envergadura, como o
comprovam os termos de referência e as observações a seu respeito feitas pelo IBAMA
na ocasião em que se divulgaram os resultados daqueles estudos. “O projeto considera
extensas obras de engenharia fluvial, incluindo retificação de trechos de canal, dragagens,
derrocamento de leito e outras intervenções de caráter estrutural, para tornar 3.442 km
do rio em melhores condições de navegabilidade”. De acordo com os Termos de
Referência do Módulo B, “Los adelantos en la navegación que se considerarán en el
Módulo B incluyen dragado inicial, modificaciones a la alineación de los canales de
navegación, estabilización de canales, rectificación de la hidrovía y regularización de
los recursos hídricos y si se requiere, estructuras hidráulicas. (Cf. CCT (?). Términos
de Referencia de los Estudios de Ingeniería y Plan de Ejecución para la Hidrovía
Paraguay-Paraná, desde el Puerto de Nueva Palmira a Cáceres. Módulo B (obras de
médio e longo prazos), encomendados ao Consórcio HLBE. [S.l.] [199?]. p. 3). Ver em
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal.
Considerações sobre a Avaliação de Impacto Ambiental do Desenvolvimento da
Hidrovia Paraguai-Paraná. Brasília, [S.d.], p. 2). Consta como Anexo II da Ata Final
da 2ª Reunião da Comissão de Coordenação Técnica (CCT), realizada em Buenos
Aires, nos dias 24 e 25 de novembro de 1997.
ELIANA ZUGAIB
338
Os estudos complementares representaram salto qualitativo em
termos de incidência do componente ambiental, o que determinou a
redução da área de intervenção e do escopo do projeto. Excluía-se o
trecho Cáceres/Corumbá do programa de melhoria, ficando restrito
às intervenções de manutenção, e o Canal Tamengo passava a constituir
o quilômetro zero do plano de futuras obras na Hidrovia. Os objetivos
do projeto técnico restringir-se-iam às obras de dragagem e balizamento
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá e Santa Fé, limitando
sua extensão a 2.800 km
793
. Com isso, a posição brasileira contribuía
para nivelar por cima o grau de importância atribuída ao componente
ambiental, consolidar o consenso em torno da otimização do uso da
Hidrovia e aproximar o projeto das premissas básicas do novo
paradigma da infra-estrutura na região, adotado pela IIRSA.
4. A
POSIÇÃO BRASILEIRA E O NOVO PARADIGMA DA INFRA-ESTRUTURA
SUL
-AMERICANA
Retomando alguns dos principais elementos inerentes ao novo
paradigma de infra-estrutura que se instaura na América do Sul, verifica-
se a relação de coerência, senão de coincidência, com aqueles que
compõem a posição brasileira e foram transpostos para os parâmetros
que norteiam a elaboração e futura execução do programa de melhoria
das condições de navegabilidade da HPP. O desenvolvimento
sustentável é um dos componentes fundamentais do denominado
paradigma da eco-eficiência, o que o induz a ser regido pelo princípio
da precaução, que garante minimizar os impactos ambientais adversos
793
A execução dessas obras, que pressupõe a elaboração de plano de gestão e eventual
mitigação ambiental, garantirá calado de navegação de 10 pés (3 metros) de profundidade
em todo o trecho estudado e permitirá o uso da Hidrovia dia e noite, durante o ano todo,
além de obedecer aos seguintes indicadores: canal de 100 metros de largura e 3 metros de
calado; comboios de 290x50 metros (5x4 barcaças), capacidade média de 1.500 toneladas
por barcaça e de 30.000 toneladas por comboio e colocação de 800 balizas.
BASADONNA, Juan Antonio. Hidrovía Paraguay-Paraná. Buenos Aires, 2004.
Documento digital.
339
A POSIÇÃO BRASILEIRA
dos projetos de infra-estrutura, por meio de estudos prévios de
viabilidade. Determinada por esse princípio, a característica central do
paradigma resume-se no planejamento do equilíbrio de três dimensões
complementares, a perspectiva geoeconômica, a sustentabilidade
ambiental e os parâmetros da máxima eficiência econômica, ambiental
e social. No caso das vias fluviais, esse equilíbrio pressupõe a
adequação do projeto ao ciclo hidrológico natural do ecossistema a
que pertencem os rios.
O âmago do novo padrão de infra-estrutura física reside,
portanto, justamente nas principais premissas da posição defendida
pelo Brasil em relação à HPP, a manutenção das características naturais
dos rios e a busca do equilíbrio entre a melhor utilização econômica e
o menor impacto ambiental, com base no princípio da precaução,
materializado no enfoque integral e na exigência do EIA/RIMA prévio.
A convergência entre a posição brasileira e o paradigma da eco-
eficiência faz-se tanto mais visível na afirmação do estudo que serviu
de base para o lançamento da IIRSA:
(...) it is important to give balanced consideration to
economic, environmental, and social viability, and to long-
term repercussions (...) This balanced, ecological-economic
planning process is the heart of the new paradigm(...).
Development of this artery [Hidrovia Paraguai-Paraná]
would create an important link between Bolivia, Paraguay,
northern Argentina, and the Brazilian states of Mato Grosso
and Mato Grosso do Sul. (...) A new-paradigm alternative
would preserve the water resources of the Paraguay River
and surrounding Pantanal wetlands. Improving the
navigability of the existing waterway by upgrading signaling
system between Buenos Aires and Cáceres, Mato Grosso,
and linking the terminal with eastbound railway transport
to Brazilian ports, would serve the economic requirements
of the region for future export development of agricultural
and mineral resources along the river. This alternative would
avoid the unsupportable costs of dams – not only the
enormous economic costs, but also the costs of environmental
damages. Repair the mitigation of such damage, even if it
were technically feasible, would be so prohibitively expensive
that there is virtually no chance it would be undertaken
794
.
Como procurar-se-á demonstrar no próximo capítulo, a HPP
só poderá cumprir sua função como instrumento eficaz de integração
regional e de desenvolvimento sustentável se prevalecer o enfoque
integral introduzido ao projeto, dados os esforços da diplomacia
brasileira.
794
SILVA, Eliezer Batista da. Infrastructure for Sustainable Development and Integration
of South America. Estudo patrocinado por BCSD-LA, CVRD, CAF, AVINA Foundation,
Bank of America, CAEMI, April 12, 1996. p. 13, 18 e 20.
ELIANA ZUGAIB
340
CAPÍTULO VIII
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
1. A POSIÇÃO BRASILEIRA E OS NOVOS RUMOS DO PROJETO HIDROVIA
A Declaração de Cuiabá afastou definitivamente a
perspectiva de flexibilizar o componente ambiental, o que permitiria
de certa forma adquirir ganhos em termos de tempo e de benefícios
econômicos do uso compartilhado da Hidrovia, como teriam
pretendido a Argentina e o Uruguai que, por serem detentores do
centripetismo da desembocadura do Prata, se teriam beneficiado
com o maior aumento possível do tráfego na via fluvial.
Representou esse instrumento ponto de inflexão nos rumos futuros
do projeto. A rigidez da posição brasileira com respeito à questão
ambiental que, por diversas vezes, ensejou a interpretação de que
estivéssemos retirando nosso apoio e inviabilizando a iniciativa,
assumiria o que poderíamos chamar de papel corretor, evitando-
se sua descaracterização como empreendimento pentanacional,
de caráter integrador, voltado para o desenvolvimento sustentável
do hinterland da Bacia do Prata, em particular, e da região, em
geral:
A partir de la ‘Declaración de Cuiabá’, Octubre
de 2000, los países acordaron actualizar y complementar
el diseño del Programa de modo a encararlo como una
obra de carácter ‘integral’, que pudiera ser financiada,
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
ELIANA ZUGAIB
344
licitada, adjudicada y administrada entre los cinco
países, sobre la base de un acuerdo multilateral suscrito
para ese fin
795
.
Representava essa deliberação avanço em relação às
recomendações dos estudos do Consórcio HLBE/TGCC, que
conservavam as linhas mestras acordadas na I Reunião do CIH,
segundo as quais cada país ficava livre para executar as obras em
seu trecho nacional da maneira que considerasse mais eficiente,
desde que não causassem perigo à navegação ou impacto
ambiental incontrolável. Estendia-se a mesma diretriz aos trechos
compartilhados, para os quais, quando não houvesse instrumento
bilateral para reger a matéria, os países fronteiriços deveriam
chegar a acordo sobre a responsabilidade e modalidade de
execução, financiamento e pagamento dos trabalhos de melhoria
e manutenção da Hidrovia
796
.
À luz dessa diretriz, o sistema de financiamento
recomendado pelo Consórcio careceria de uniformidade,
prevalecendo o regime legal do país ribeirinho para a contratação
das obras de melhoria. Ficava, assim, o desenho estratégico de
execução das obras submetido ao critério da responsabilidade
de cada país em suas águas jurisdicionais: “Cada país será libre
de ejecutar las obras por el sistema que considere más eficiente
desde su punto de vista y necesidad, salvo que involucren
modificaciones al régimen del río o se ponga en peligro la
795
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Criterios y Propuestas para la Adopción del Régimen Contractual. p. 2/4.
796
CIH. Informe Final de la Primera Reunión del Comité Intergubernamental de la
Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Puerto de Nova Palmira), realizada em
Buenos Aires, em 7 de maio de 1990. In: BOLIVIA. Ministerio de Relaciones Exteriores
y Culto. Tratado. Actas. Informes. Hidrovía Paraguay-Paraná. Santa Cruz de la Sierra
(Bolivia). Diciembre, 1991. p. 24.
345
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
seguridad de la navegación o se causen impactos ambientales
no admisibles
797
.
Essa recomendação assemelhava-se aos termos da
Resolução nr. 25 que havia consagrado os princípios cardeais que
regeram o aproveitamento dos rios internacionais na região na década
de 70. Não apresentava nenhum avanço em relação às deliberações
iniciais do CIH, também pautadas pelo critério da fragmentação e
até certo ponto subjetivo no que diz respeito aos impactos
ambientais. Muito pelo contrário, com elas se confundia. Aliada às
conclusões a que chegaram os estudos do HLBE e do TGCC de
que aqueles impactos no nível dos rios e suas velocidades seriam
muy bajos o depreciables”, incidentes em períodos de águas baixas
e assimilados pelo próprio declive natural dos rios
798
, encerrava
também considerável potencial de conflito com grupos
ambientalistas.
Se acatada a recomendação, o programa da Hidrovia se teria
encaminhado no sentido da consolidação de sua “ejecución
fragmentada”. Donde se pode afirmar que a razão de ser da atualização
e complementação dos estudos, praticamente impostas pela rigidez da
posição brasileira, viria a constituir a incorporação de estratégia
adicional ao programa que permitisse a “ejecución integral” das obras
e de sua manutenção
799
, conservando-lhe o caráter pentanacional
original e adicionando-lhe preocupação ambiental mais aguçada.
797
COINHI. Informe Final. Criterio y Propuestas para la Adopción del Régimen Contractual,
op.cit., p. 2/3. Referência ao Relatório Final do Consórcio Hidroservice-Louis Berger – EIH,
Volume XIII, Capítulo 15 “Implementación Institucional y Administrativa de la Hidrovía”.
798
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre
Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004. Volumen
VI, Información Ambiental, Capítulo 12 (Gestión Ambiental). p. 65.
799
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre
Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004. Criterios
y Propuestas para la Adopción del Régimen Contractual. p. 2/3.
ELIANA ZUGAIB
346
A decisão de se proceder a estudos complementares para
reorientar o projeto teve o mérito de fazer elaborar Plano de Gestão
Ambiental para toda a Hidrovia e introduzir estratégia de
desenvolvimento que considerasse a redução do alcance do projeto
original de melhoria da HPP, mantendo-se intervenções mínimas no
curso dos rios e excluindo-se o trecho do Pantanal, o mais sensível do
ponto de vista ambiental
800
.
Entretanto, de pouco adiantaria dispor de programa de
obras de melhoria que obedecesse ao enfoque integral e
sustentável sem viabilizar sua realização através de mecanismo
adequado e eficaz de administração conjunta da Hidrovia pelos
cinco países. Como o corrobora o Secretário-Executivo do CIH,
el desafío más grande es un poco montar una organización
capaz de ser ejecutiva para llegar en el menor tiempo posible
a los mínimos acuerdos que necesitamos para empezar las
obras
801
.
Diante dessa nova dimensão que adquire o projeto, torna-
se indispensável ingressar em terreno novo, o do Direito da
Integração, estranho às experiências de aproveitamento de
recursos naturais compartilhados no âmbito do Sistema da Bacia
do Prata, que precederam o programa de revalorização da
800
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-
Paraná entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe
final, jun. 2004. Volumen IX, Plan de Gestión Ambiental. p. 13. O plano de
futuras obras não prevê cortes de meandros e recortes de margens ou barrancas
fluviais, reduz-se a dragagem em areia e a remoção de materiais duros de fundo,
com uso de explosivos apenas para o passo Arrecifes e para o afloramento rochoso
situado águas abaixo da ponte Remanso Castilho, no trecho paraguaio, onde se
concentram os obstáculos mais críticos à navegação. Essas obras complementam-
se com o balizamento da Hidrovia, que aumentará a segurança da navegação, e
com obras de proteção aos pilares da Ponte General Belgrano, em território
argentino.
801
BASADONNA, Juan Antonio (Secretario Ejecutivo - CIH): depoimento [20
out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
347
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
HPP
802
. Traduziam-se essas experiências em acordos de natureza
binacional
803
, determinada pelos contornos do paradigma da
confrontação voltado para a realidade nacional e, na visão de muitos
analistas, para a conquista da hegemonia na região.
802
É preciso não perder de vista que a melhoria das condições de navegabilidade dos
rios que conformam a Hidrovia já era trabalhada no âmbito dos grupos de peritos
(hoje denominados contrapartes técnicas) sob a égide do Tratado Bacia do Prata,
conforme ressaltado no capítulo II deste trabalho, porém não como projeto unitário
da Hidrovia como um todo. O sistema da Bacia do Prata originou-se em 1967 e
concretizou-se em 23 de abril de 1969, mediante a assinatura do Tratado de Brasília.
Um dos objetivos fundamentais do Tratado era lograr um acordo para a utilização
das águas fluviais. Esse objetivo encontra-se plasmado no artigo 1º incisos (a) e (b)
do Tratado de Brasília, sendo que já havia figurado anteriormente no ponto IV, A, da
Declaração Conjunta emanada da I Reunião de Chanceleres (27 de fevereiro de
1967) e nos projetos enumerados na Ata de Santa Cruz de la Sierra (20 de maio de
1968). O que hoje se denomina projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná figura como
Projeto A-4 na mencionada Ata de Santa Cruz. Ver em PARAGUAY. Ministerio de
Relaciones Exteriores. Cuenca del Plata. Conferencias de Cancilleres. Documentos
Básicos (1967-1977). IX Reunión de Cancilleres, 5-8 de diciembre de 1977. pp. 11,
12, 44, 52.
803
Constituem exemplos de acordos bilaterais que estabelecem regimes jurídicos para
a exploração e administração de obras e instalações que se executem para cumprir o
objeto dos referidos acordos e criam organismos interestaduais, com competência
para a execução e administração das mesmas, inter alia, o Tratado do Rio da Prata e
sua Frente Marítima, assinado pelos governos da República Argentina e a República
Oriental do Uruguai, em 19 de novembro de 1973; e o Estatuto da Comissão
Administradora do Rio da Prata, constituída pelo artigo 59 do Tratado anteriormente
referido; o Acordo entre os governos da República do Paraguai e da República Argentina
que estabelece a Comissão Mista Argentino-Paraguaia para o Rio Paraná (COMIP);
Estatuto da Comissão Administradora do Rio Uruguai, aprovado por troca de
instrumentos de ratificação entre a Argentina e o Uruguai, em 18 de setembro de 1976.
O antecedente mais relevante e atual é o acordo e enquadramento de licitação pelo
qual a República Argentina outorgou a consórcios privados mediante o sistema de
Concessão de Obras Públicas, os trabalhos de dragagem e sinalização e a respectiva
manutenção da via navegável de Santa Fé ao Oceano. A canalização estende-se via
Paraná de las Palmas – Canal Mitre e Paraná Guaçu – Bravo até o Porto de Nova
Palmira, no Uruguai. Essa experiência não pode, no entanto, ser extrapolada para a
HPP, uma vez que se trata de trecho com profundidade oceânica, de jurisdição exclusiva
argentina, ficando sujeita ao direito interno daquele país. Ver em COINHI. Estudio
Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario para el
Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, junio de 2004. Criterios y
Propuestas para la Adopción del Régimen Contractual. pp. 2/7-2/9.
ELIANA ZUGAIB
348
O novo contexto em que se desenvolve o projeto Hidrovia
requer solução multinacional inovadora que garanta a utilização
conjunta racional e ordenada da navegação fluvial, em proveito dos
cinco países e do projeto de integração. Impõe-se para isso o desafio
de preservar o enfoque integral das obras de melhoria que possa
levar à consolidação de nova geopolítica na região, a da
complementação e cooperação regional, ou, como queria Nicolás
Boscovich, a da “‘competencia creadora’, donde cada país
maximice los factores económicos-físicos-geográficos que le son
favorables (ventajas comparativas y competitivas) (...) con
posibilidades de convertir el Mercosur en un nuevo centro de
poder mundial”
804
.
O que antes parecia aos olhos dos chamados “dois grandes”
ser veículo indutor de desagregação, do Centro-Oeste brasileiro, em
relação ao eixo longitudinal, e do Norte e Nordeste argentinos, em
relação aos eixos transversais, deveria agora servir de traço de união
e de fator de competitividade regional
805
. A chave dessa transformação
804
BOSCOVICH, Nicolás. Geoestrategia para la Integración Regional. Buenos Aires:
Ciudad Argentina, Editorial de Ciencia y Cultura, 1999. p. 311-313. De acordo com
Boscovich, o desenvolvimento seletivo dos setores mais competitivos de cada sócio do
Mercosul permitirá acrescentar o “bem comum regional” do que considera ser uma
incipiente comunidade de interesses nacionais. O Brasil seria o protagonista do transporte
terrestre (rodovias e ferrovias), no interior mediterrâneo, graças a suas menores distâncias
aos portos marítimos de águas profundas. A Argentina, por sua vez, seria convertida na
protagonista do transporte em massa por águas interiores a longas distâncias, por
contar com longos trechos de planície com os maiores caudais dos rios platinos que
correm em direção ao centro geo-fluvial da desembocadura oceânica em seu território.
Não quer isso dizer que estariam os dois países envolvidos em disputa por supremacias
excludentes e satelizadoras como as que ocorreram em épocas passadas. Antes, tenderiam
com isso a criar uma infra-estrutura múltipla, que se reverterá em benefício de todas as
regiões produtoras. Poderão elas optar por fretes terrestres mais onerosos, porém mais
rápidos, para as mercadorias perecíveis ou de alto valor agregado; ou por fretes fluviais
mais econômicos para o transporte maciço de produtos não perecíveis, ou de menor
preço de mercado.
805
BOSCOVICH, Nicolás. El futuro argentino en la Cuenca del Plata. La Hidrovía
Paraguay-Paraná-Río de la Plata. In: Geopolítica. Hacia una doctrina Nacional, Buenos
Aires, año XVI, n. 40, p. 39, 1990.
349
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
reside na passagem gradativa do pensar nacional para o pensar regional
que permita construir um modo de organização comunitária e,
conseqüentemente, da noção de soberania à de responsabilidade
compartilhada
806
. Trata-se, em última análise, de finalmente criar
condições, em meio ao novo clima de cooperação, para resgatar o
espírito original do Tratado da Bacia do Prata e dar cumprimento pleno
ao disposto em seu artigo 1
o
, marco institucional do projeto HPP.
1.1. B
REVES CONSIDERAÇÕES SOBRE DIREITO DA INTEGRAÇÃO
Uma vez delimitado o escopo do programa de melhoria da
HPP a intervenções mínimas e ambientalmente sustentáveis em
determinados pontos do curso navegável
807
, o cumprimento do disposto
no artigo 1
o
do Tratado da Bacia do Prata dependerá da adoção de
mecanismos apropriados que permitam a execução conjunta e integral
do plano de obras previsto nos estudos complementares. Os esforços
de identificação de mecanismos dessa natureza não podem escapar a
breve incursão no campo do emergente Direito da Integração.
O Direito da Integração consiste de normas, condutas e valores que
regem os processos de integração e as instituições que se criam para possibilitar
806
A propósito das discussões sobre o projeto do Tratado da Bacia do Prata, defendia
a Bolívia tese semelhante segundo a qual “La Cuenca del Plata debería funcionar como
una entidad destinada a ir perfeccionando cada vez más sus mecanismos, agregando,
por ejemplo, una secretaría técnica, y llegando a construir en cierto modo una
organización comunitaria, que pueda tener facultades, con el tiempo, para tomar
decisiones supranacionales. SÁNCHEZ-GIJÓN. La integración en la Cuenca del Plata.
Madrid: Ediciones de Cultura Hispánica, 1990. p. 135. Menção à Ata 48 do CIC, pp.
12,13.
807
Os princípios que levaram ao consenso sobre a realização de obras mínimas na HPP
foram estabelecidos na XXVI Reunião do CIH, realizada em Assunção nos dias 5 e 6 de
março de 1998 e consagrados na Declaração de Cuiabá, durante a XXVIII Reunião do
CIH, realizada naquela cidade no dia 27 de outubro de 2000. Ver em Comunicado de
Imprensa. Sobre una supuesta hidrovía artificial en los ríos Paraguay y Paraná,
Assunção, 06 de março de 1998, consta como Anexo VIII da Ata da XXVI Reunião do
CIH; e Declaração de Cuiabá, cujo texto é parte integrante da Circular Telegráfica n.
40036/838, de 06/11/2000, que relata os trabalhos da XXVIII Reunião do CIH.
ELIANA ZUGAIB
350
seu desenvolvimento, atribuindo-lhes curso. De natureza política, a integração
depende do ato de vontade soberana dos Estados de se associarem para
viabilizar projeto comum de desenvolvimento. Nesse sentido, a delegação
de competência a um órgão de integração para esse fim
(...) de ninguna manera puede reputarse una cesión de
soberania. Nada hay más soberano que la decisión de un
Estado que decide libremente asociarse con otros para
un objetivo común, porque precisamente el acto de
integrarse es manifestación plena de autodeterminación.
En tal caso, puede ceder atribuciones, facultades,
poderes, competencias o jurisdicción, pero la soberanía
la retiene porque en ella se funda el acto libre de
integrarse
808
.
Em matéria de criação de entidades administrativas e cessão
de faculdades, é variada a gama de possibilidades de solução
apresentadas pelo direito e pela prática internacionais
809
. O direito
internacional evoluiu notavelmente nessa matéria em busca de soluções
para a administração de sistemas hidrográficos internacionais que
808
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun.
2004. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para la institución
de un Comitente. p. 1/7.
809
No direito internacional geral não existe nenhum tratado sobre aproveitamento dos rios
internacionais. As únicas normas jurídicas válidas universalmente são de caráter
consuetudinário. Algumas insituições científicas como o Institut de Droit International e a
Associação de Direito Internacional fizeram esforço para codificar essas normas, de que são
exemplo as Regras de Helsinki, adotadas pela International Law Association, durante sua V
Conferência, em 1966. O princípio fundamental dessas regras é o conceito de “bacia” em
lugar do de “rio” internacional e seu conseqüente uso razoável e distribuição eqüitativa das
águas e de seus benefícios. Utiliza-se também, mais recentemente o conceito de “sistema
hidrográfico internacional”. O capítulo IV das referidas Regras proclama a liberdade de
navegação e reconhece a cada Estado o direito de exercício em seu território de seu poder de
polícia de navegação. O artigo 18 do capítulo IV, por sua vez, estabelece o dever de cada
351
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
contemplam desde entidades supranacionais a simples coordenadoras
destituídas de capacidade de execução
810
.
Adquirem desde a forma de organizações internacionais no
sentido clássico do termo até sociedades criadas no vácuo, não sujeitas
a direito algum. A forma mais comum de dar tratamento unificado ao
aproveitamento das bacias fluviais que atravessam vários Estados tem
sido a celebração de tratado internacional. Existem outras
possibilidades
811
, dentre as quais a de se atribuir à entidade internacional
a faculdade de ditar estatuto ou regulamento sobre a matéria, obrigatório
para todos os interessados. Caso uma comissão fluvial seja privada
dessa capacidade, que compreende imposição da norma de
regulamentação, de verificação de seu cumprimento e de sanção, sua
atividade reduz-se à de mero coordenador de informações dos Estados
que a criaram. Como afirmava o estudo realizado pelo INTAL sobre a
matéria, ‘no existe experiencia satisfactoria en el mundo de que
una hidrovía internacional sea regida por un ente meramente
Estado ribeirinho de manter em boas condições o trecho do curso navegável de um rio ou lago
sob sua jurisdição e de prevenir atos em seu território que provoquem perturbações em
outras partes do rio. As bacias fluviais da América do Sul (Amazonas, Orinoco e do Prata)
apresentam uma particularidade em relação às Regras de Helsinki. De acordo com a norma
consuetudinária regional que as regulamenta, a livre navegação está sempre sujeita à autorização
do Estado territorial.
810
DURRIER, Mario A. e VAINHIGER, Carlos A. Las Enseñanzas de Storni y la Situación
Actual. In: Boletín del Centro Naval: La Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración,
Buenos Aires, año 110, v. 109, suplemento nº . 763-G-11, p. 218, invierno 1991.
811
Outras formas de administração compartilhada de bacias fluviais são: (a) o método
pelo qual cada Estado adota um mesmo texto legislativo. Os Estados podem assumir em
um tratado a obrigação de unificar as disposições legislativas sobre certa matéria. Porém,
pode ocorrer também que a unificação tenha lugar sem a mediação de obrigação
internacional. Nesta hipótese, pode-se lograr a unificação de leis internas sem que os
Estados assumam obrigação no plano do direito das gentes. Isso significa que é possível
conseguir a unificação de normas internas sem que os temas objeto dessa unificação
deixem de pertencer ao domínio reservado do Estado; (b) pode acontecer que os Estados
não logrem acordo quanto à norma de fundo, mas apenas sobre a lei nacional que regerá
determinada atividade. Assim, os Estados poderão colocar-se de acordo para remeter à
lei da bandeira da embarcação; à do Estado territorial, à do porto de origem, ou à do
porto de destino, entre outras opções.
ELIANA ZUGAIB
352
coordinador y carente de poder reglamentario
812
. Além do poder
de regulamentação e do mecanismo de solução de controvérsias, o
sistema de tomada de decisões, intimamente ligado aos aportes que
cada sócio realiza, constitui um dos elementos que definem o perfil da
entidade administradora
813
.
Emanado da vontade dos Estados, o ato da integração
materializa-se pelo mecanismo contratual, que lhes permite aceder
ao “status que excede lo interno y supera a lo internacional”
814
,
cuja natureza originária justifica a denominação “tratado-quadro”,
ou “tratado-mãe”, categoria em que se incluem o Tratado da Bacia
do Prata (1969), o Tratado de Montevidéu, que criou a ALADI,
(1980) e o Tratado de Assunção, que instituiu o Mercosul (1991).
Como fonte de direito originário, os tratados-quadro revestem-
se da autoridade de lei suprema, a cujas disposições devem
acomodar-se os instrumentos de direito derivado, convênios
especiais que permitem desenvolver e concretizar ulteriormente o
conjunto de diretrizes gerais contido em seus tratados
originários
815
. No caso do Tratado de Montevidéu, constituem
instrumentos de direito derivado os Acordos de Alcance Parcial
(AAP).
A propósito da preservação do perfil jurídico institucional do
fenômeno da integração latino-americana, o Comitê Jurídico Inter-
Americano da OEA emitiu dictamen, posteriormente à assinatura do
Tratado de Assunção, em que conclui:
812
INTAL. Alternativas jurídico-institucionales para el funcionamiento definitivo del
Comité de la Hidrovía Paraguay-Paraná. Buenos Aires, 1991. BID/INTAL/DP 445/
91. Publ. N. 360, p. 33.
813
RAVINA, Arturo Octavio (Coord) et al. La organización institucional de la Hidrovía
Paraguay-Paraná como programa de navegación internacional. In: Integración
Latinoamericana. Hidrovía Paraguay-Paraná: viejo cauce para una integración
renovada. Buenos Aires, INTAL, año 16, n. 168, pp. 24-26, jun. 1991.
814
COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para la
institución de un Comitente, op. cit., p. 1/7-9. Referência a Sergio Abreu Bonilla.
815
Ibidem.
353
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
(...) para la preservación del perfil comunitario, se requiere
que las constituciones nacionales sean adaptadas a las
nuevas exigencias del derecho emergente (in fieri), para lo
cual es recomendable que los estados que deseen avanzar
por este camino, incorporen a ellas, si fuere necesario, las
correspondientes habilitaciones para la delegación externa
de ciertas competencias que hasta hoy habrían estado
reservadas a sus órganos, como así también la explicación
de las nuevas relaciones de supremacía y la admisión de
una justicia común”
816
.
Quanto a esse último ponto, considera o Comitê que pode vir
a ser necessária a primazia do direito comunitário sobre o direito interno.
Ao mesmo tempo, expressaram-se pronunciamentos doutrinários a
favor de reforma constitucional que habilite a delegação de competências
a organismos regionais, posição afirmada na jurisprudência de vários
países da região
817
. Não obstante, existe acentuada assimetria entre as
constituições dos países platinos com respeito a sua adaptação às
mudanças exigidas pelo desenvolvimento e fortalecimento graduais do
processo de integração. De uma forma ou de outra, as constituições
dos cinco países dão acolhida ao fenômeno da integração, aqui
representado no projeto HPP
818
.
A HPP simboliza transição do paradigma da confrontação para
outro de cooperação e complementação, de que é expressão máxima o
Mercosul. O processo de integração do Cone Sul não foi concebido
como processo puramente econômico-comercial. É também político ao
816
COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para la
institución de un Comitente, op. cit., p. 1/10. O referido Dictamen foi exarado pelo
Comitê Jurídico Interamericano da OEA sob a presidência do Dr. Jorge Reynaldo Vanossi,
em 6 de março de 1992.
817
Ibidem.
818
COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para la
institución de un Comitente, op. cit., p. 1/16.
ELIANA ZUGAIB
354
assentar-se na decisão inicial de mudar a realidade de quatro países
819
.
Embora ainda não haja convergência de posições na área macro-
econômica, aos poucos já se delineia a vertente político-institucional do
bloco. A integração econômica e a política são processos que, a partir
de agora, deverão desenvolver-se simultaneamente. Ainda que haja longo
caminho a percorrer para aprofundar e consolidar a integração, já se
está trabalhando conjuntamente para alcançar esse objetivo
820
.
O próprio Tribunal Arbitral ad hoc estabelecido pelo
Protocolo de Brasília para a Solução de Controvérsias (Anexo
III do Tratado de Assunção), recorrendo a fontes do direito
comunitário europeu, pronunciou-se a favor de sistema jurídico
que fundamente uma Comunidade de Direito, reconhecendo,
819
GONÇALVES, José Botafogo. Palestra proferida na Universidade de Belgrano, em 29 de
agosto de 2003. Notas tomadas pela autora. Ver também “O Mercosul é um importante ativo
econômico e político de seus membros, tanto pelos resultados já alcançados como pelas
potencialidades ainda não exploradas. Seu revigoramento passa pela articulação simultânea
da vertente de integração econômica e da vertente de cooperação”. VAZ, Alcides Costa.
Mercosul: os desafios de um necessário revigoramento. In: HUGUENEY FILHO, Clodoaldo
e CARDIM, Carlos Henrique (Orgs.). Grupo de Reflexão Prospectiva sobre o Mercosul.
Brasília: FUNAG/IPRI/SGIE/BID, 2002. p. 323. Segundo HUGUENEY FILHO é possível
identificar alguns aspectos centrais da agenda integracionista: (a) Consolidação aduaneira; (b)
Aprimoramento das instituições; (c) Incorporação das normas ao direito interno; (d) Dimensão
extracomercial; (e) Coordenação de políticas macroeconômicas; (f) Financiamento de projetos
conjuntos e (g) Relacionamento externo. HUGUENEY FILHO, Clodoaldo. Apresentação. In:
HUGUENEY FILHO, Clodoaldo e CARDIM, Carlos Henrique (Orgs.). Grupo de Reflexão
Prospectiva sobre o Mercosul. Brasília: FUNAG/IPRI/SGIE/BID, 2002.
820
São exemplos dos avanços na área de integração política, a criação da Comissão de
Representantes Permanentes do Mercosul, o estabelecimento de uma Secretaria Técnica
“que es un embrión de un cuerpo autónomo e independiente de funcionarios” e a inauguração
de Tribunal Permanente de Revisão, com sede em Assunção. Há predisposição de se discutir
a criação de um Tribunal de Solução de Controvérsias, de um Parlamento e até mesmo de
uma Secretaria Militar Permanente. Essas instâncias de caráter regional poderão constituir o
núcleo de uma futura adesão ao conceito da supranacionalidade, quando suas bases estiverem
consolidadas. Ver em VIEIRA, Mauro Iecker. El Mercosur vive un proceso de revitalización.
In: El Cronista, Buenos Aires, 28 set. 2004. Cuaderno Especial sobre Brasil.; e Secretaría del
Mercosur. In: La Nación, Buenos Aires, p. 12, 06 nov. 2004. A referida matéria anuncia que
o Ministro da Defesa da Argentina, José Pampuro, procurará avançar nas tratativas de
criação de uma secretaria militar permanente do Mercosul, durante a conferência hemisférica
em Quito, cujas conversações já teriam sido entabuladas com o lado brasileiro.
355
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
porém, que a passagem do Estado de Direito clássico para o de
natureza comunitária não é estática e nem se encontra definida a
priori, mas, ao contrário, desenvolve-se progressivamente
821
.
As diferenças de visões ainda prevalecentes sobre a
utilização da HPP aliadas às assimetrias em matéria constitucional
e à experiência ainda incipiente em termos de transição para o
Estado de Comunidade de Direito, vivenciada pelos países da
região, não parecem conferir lastro para a adesão a estruturas
supranacionais do tipo que se sugeriu em diversos momentos para
a administração da via fluvial. Nessas condições, torna-se natural
que a cessão de algumas faculdades se faça gradualmente na
medida em que se fortaleçam as estruturas políticas regionais e se
consolide o processo de integração. A idéia que permeia essa
assertiva é corroborada pela afirmação do Chanceler Celso
Amorim de que “a integração não é contraditória com a soberania,
muito pelo contrário, ela será um reforço do exercício, em alguns
casos conjunto, e sempre em colaboração uns com os outros, da
nossa soberania”
822
.
Surge claro das visões diferenciadas que o alcance da passagem
do pensar nacional ao pensar regional é ainda relativo. Essa realidade
se expressa em outros termos na verificação de que:
(...) todo proceso de integración se concreta a partir del
acto por el cuál un Estado delega potestades. Esto no
821
COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para la
institución de un Comitente, op. cit., pp. 1/17 e 18. “Mi criterio es que el marco
jurídico-institucional es una estructura a la que se llega y no de la que se parte
(...).Primero debe haber un consenso básico de coordinación de políticas y de objetivos,
luego se podrá avanzar en ir estructurando e institucionalizando”. DALLANEGRA
PEDRAZA, Luis: depoimento [22 dez. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires,
2004.
822
AMORIM, Celso. Discurso proferido na Cerimônia de Abertura da Primeira Oficina
de Trabalho das Comissões Nacionais Permanentes dos Países Membros da Organização
do Tratado de Cooperação Amazônica. Brasília, 01 de julho de 2004.
ELIANA ZUGAIB
356
significa, necesariamente, cesión de soberanía, sino de
facultades y atribuciones sin cuya delegación cualquier
proceso de integración resulta ilusorio. El punto neurálgico
de la integración está ahí. La superficialidad o intensidad
del vinculo de integración, guarda directa proporción con
la proporción de facultades delegadas. A mayor delegación,
más profundo es el relacionamiento; a menor transferencia,
más débiles serán los lazos de integración
823
.
2. “MODELO FRAGMENTADOVERSUSMODELO INTEGRAL
Justificam-se, dessa maneira, as resistências iniciais ao modelo
integral de execução das obras de melhoria previstas na HPP, que
pressupõe antes de tudo a conciliação de interesses nacionais e a
gestão conjunta da via fluvial, determinantes da natureza que deverá
assumir o projeto, a de infra-estrutura sustentável de integração ou a
de mera somatória de iniciativas nacionais ou binacionais.
Pode-se afirmar que traços do “modelo fragmentado”,
característico do paradigma geopolítico da confrontação,
prevaleceram nas decisões acordadas no âmbito do CIH até a
realização de sua XXVIII Reunião Ordinária, quando se consagrou
a incorporação de elementos novos de valor, como o PAI e o PGA,
ao programa da Hidrovia. Essa estreita correlação com a conduta
adotada sob a égide do Tratado da Bacia do Prata, durante a vigência
do paradigma geopolítico da confrontação, ressalta da comparação
com algumas premissas que fundamentam comentário da DAM-I, à
época:
823
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, junio de
2004. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y propuestas para la institución
de un comitente. p. 1/12.
357
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
(...) os países da Bacia do Prata assentaram sólidas bases para um
esquema de cooperação, com ênfase no desenvolvimento e na
integração física da região. Evitando esquemas institucionais mais
rígidos, como os de caráter supranacional, que não condizem, aliás,
com o espírito com que foi concebida a cooperação na área da
Bacia do Prata, a coordenação entre os cinco países não interfere,
de modo algum, com as indispensáveis medidas tomadas por cada
um dos governos em seus respectivos territórios, com vistas ao
aproveitamento integral dos recursos existentes em suas respectivas
áreas de jurisdição nacional soberana. Não impede, por outro lado,
mas os estimula, os empreendimentos bilaterais tendentes a
incrementar a cooperação efetiva dos Estados da Bacia
824
.
Os grupos de peritos criados pela I Reunião de Chanceleres
não lograram solucionar os diferenda decorrentes do aproveitamento
do recurso água, cuja solução final foi alcançada pelo acordo tripartite,
assinado entre o Brasil, a Argentina e o Paraguai, negociado fora do
Sistema da Bacia do Prata. Entre 1967 e 1979, os acordos entre dois
países sobre a regulamentação de um curso de água ou a realização de
uma obra hidráulica ensejavam a criação de comissões ou entidades
binacionais para esse fim
825
. Esse processo de bilateralização esvaziou
o principal conteúdo do Sistema, já que os Estados resgataram, por
meio das comissões e entidades, e por força do Artigo VI do Tratado
da Bacia do Prata
826
, a competência que haviam delegado
originariamente aos órgãos do Sistema nessa matéria.
824
BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Informação intitulada
“O Processo da Bacia do Prata”, DAM-I. [S.d.] p. 4.
825
São exemplos dessa realidade institucional do Tratado da Bacia do Prata, a Comissão
Mista de Salto Grande, a Comissão Mista Argentino-Paraguaia do Rio Paraná; a Comissão
Administradora do Rio da Prata; a Comissão da Frente Marítima do Rio da Prata; a Itaipu
Binacional; a Entidade Binacional Yaciretá e a Comissão Administradora do Rio Uruguai.
826
Dispõe o Artigo VI do Tratado da Bacia que “O estabelecido no presente Tratado não
impedirá as Partes Contratantes de concluir acordos específicos ou parciais, bilaterais ou
multilaterais, destinados à consecução dos objetivos gerais de desenvolvimento da Bacia”.
ELIANA ZUGAIB
358
Mais recentemente, o tratamento da Hidrovia, ainda que na
condição de projeto de infra-estrutura multinacional, escaparia também
à órbita do CIC, único órgão dotado de personalidade jurídica
internacional, no quadro do processo de justaposição de funções com
outros organismos criados dentro e fora do Sistema. Esse processo
acabaria por levar ao declínio progressivo da eficácia do Sistema e à
obstrução da implementação de projetos “essenciais e prioritários”
827
para a região, de que é exemplo emblemático a HPP.
Na tentativa de recuperar o verdadeiro alcance do Tratado da
Bacia do Prata, o atual Secretário-Geral do CIC propôs estratégia de
fortalecimento de suas instituições, da qual faz parte a execução das
obras de melhoria na HPP. Nos termos da proposta, o Tratado seria o
enquadramento adequado para dar impulso ao projeto, sob o signo
do modelo de execução integral, devolvendo-se à Reunião dos
Chanceleres dos Países da Bacia do Prata e ao CIC a responsabilidade
para que “adopten las decisiones, liciten las obras, supervisionen
su ejecución y administren el mantenimiento del dragado y
señalización de la vía navegable
828
.
O mesmo artigo VI, que confere liberdade de ação aos Estados
e possibilitou, no passado, o esquema de bilateralização e de execução
fragmentada dos projetos de desenvolvimento da Bacia, seria agora
invocado para viabilizar a proposta de execução integral, fazendo-se
valer o Secretário-Geral de
solución tradicionalmente adoptada por los países-parte
para crear los entes o comisiones binacionales que se
encargan de la administración de ciertos ríos o tramos de
vías navegables que forman parte de la Cuenca o para la
827
COMITÉ INTERGUBERNAMENTAL COORDINADOR DE LOS PAÍSES DE LA
CUENCA DEL PLATA (CIC). Nota nr. 365/04 S, 12 de julio de 2004, dirigida a la
Embajadora Maria M. Lorenzo Alcalá, Representante Político Titular ante el CIC, p. 1.
828
Idem. p. 2.
359
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
construcción y administración de emprendimientos
hidroeléctricos y otras obras realizadas en el ámbito de la
misma. A diferencia de los acuerdos binacionales, lo que
proponemos es la firma de un Acuerdo Ejecutivo (...) de
carácter multilateral (...)
829
.
Com base na experiência passada e no fato de as futuras obras
de melhoramento estarem restritas a extensão limitada da Hidrovia,
propõe-se a celebração de Acordo Executivo
830
multilateral específico
de alcance parcial, instrumento simplificado que dispensa a aprovação
dos congressos dos países intervenientes e encontra respaldo no Direito
de Integração. Essa proposta de manter o tratamento da HPP na órbita
do Tratado da Bacia do Prata, que conta com a anuência preliminar do
governo brasileiro
831
e dos demais governos dos países beneficiários
832
,
já era defendida pelo Chefe da delegação brasileira no CIH, a partir
de 2000, em oposição à idéia de criação de Comissão Administradora,
829
Idem. p. 3.
830
Cuando un acuerdo internacional se perfecciona sin la intervención del Congreso, se
dice que estamos ante un acuerdo en forma simplificada o acuerdo ejecutivo (executrive
agreement) en el lenguaje de los norteamericanos. En su diligenciamiento sólo intervienen
funcionarios diplomáticos y cancilleres, concluyendo su trámite en el acto mismo de su
firma que es coincidente con el fin de la negociación, y también por lo general, con la fecha
de entrada de su inmediata vigencia”. COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería,
Técnico y Económico Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía
Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe
final, junio de 2004. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y propuestas
para la institución de un comitente. p. 1/18. Referência ao constitucionalista Alberto B.
Bianchi. Comenta ainda aquele Estudo a respeito desse tipo de procedimentos
simplificados, na p. 1/19, que se adaptam perfeitamente à dinâmica dos processos de
integração quando existe um acordo quadro em função do qual o Congresso delega aos
órgãos comunitários a elaboração de normas derivadas do tratado original.
831
Entende o Governo brasileiro que, além de restituir ao CIC seu papel protagônico, a
alternativa trará a vantagem de a comissão de administração de aportes financeiros dos
projetos ficar na região, o que fortalecerá o próprio CIC. Veja em BRASIL. Ministério
das Relações Exteriores. Despacho Telegráfico nr. 467, de 26/10/2004.
832
MACEDO-SOARES, Hélio: depoimento [12 nov. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib.
Buenos Aires, 2004.
ELIANA ZUGAIB
360
de natureza supranacional com autonomia para decidir sobre obras
em território nacional, como queriam a Secretaria-Executiva do CIH e
o governo argentino. Esse último chegou a apresentar proposta na forma
de non-paper, por ocasião de encontro bilateral com o Brasil, em
junho de 2000, que sugeria expressamente “la creación de un
organismo de características supranacionales con facultades
normativas y vinculantes ante los Estados Miembros
833
.
A posição argentina sobre essa matéria sofreu alteração ao longo
do tempo e ao sabor da mudança de governos
834
. A proposta agora
apresentada pelo Secretário-Geral do CIC, e diametralmente oposta
àquela defendida no non-paper, conta com o aval das autoridades
representantes do governo argentino no Comitê, resultando em
833
A proposta foi discutida em reunião bilateral Brasil-Argentina, realizada, em Buenos
Aires, em 1º de junho de 2000, à margem da reunião de chefes de delegação do CIH, e
apresentada na forma de non-paper. Ver em BRASIL. Embaixada em Buenos Aires.
Telegrama nr. 870, de 02/06/2000.
834
À época do lançamento da revalorização da HPP pelo Brasil, a Argentina reagiu com
suspicácia, por tratar-se do eixo de transporte que havia sido o pomo da discórdia, e por
temor de ter de abdicar de su soberania sobre vias navegáveis sob sua jurisdição. (Cf.
Informação interna da Embaixada em Buenos Aires.Texto mimeografado). Alguns anos
mais tarde, em vista dos interesses econômicos na Hidrovia, o governo argentino já
acariciava a idéia de criação de uma entidade supranacional para administrar a Hidrovia.
Diante das resistências que se antecipavam à idéia, pensavam os argentinos em organização
ampla em suas faculdades, com capacidade jurídica e administrativa para coordenar e
supervisionar as atividades de transporte na Hidrovia. Tal organização “Comissão da
Hidrovia Paraguai-Paraná” deveria emanar de um Tratado Internacional dos cinco países
com o caráter de Estatuto-Quadro que definisse a vontade dos países signatários,
estabelecesse a composição e funções da “Comissão” e lhe outorgasse a mesma força
legal que o tratado confere aos acordos internacionais que regulamentam as diversas
matérias próprias da operação da Hidrovia. A “Comissão” deveria ter certa capacidade
de regulamentação para administrar a Hidrovia e para atuar ante os governos na
consecução de seus objetivos. Ao mesmo tempo, deveria ser o motor para o avanço das
novas idéias que afirmasse em seu âmbito a integração dos países da bacia. Cf. DURRIEU,
Mario A. e VAIHINGER, Carlos A. Las Enseñanzas de Storni y la Situación Actual. In:
Boletín del Centro Naval. La Hidrovía Paraguay-Paraná, Factor de Integración.
Suplemento n
o
763-G-11, vol. 109, año 110. Buenos Aires, 1993. p. 218. A oposição
sistemática do Brasil à idéia defendida durante anos, levou, aparentemente, o governo
Kirchner a abandoná-la em favor da proposta de que o CIC venha a exercer a função de
entidade executora do chamado projeto da Hidrovia. Ao que tudo indica, há divergências
internas no San Martín sobre essa questão.
361
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
aparente
835
processo de convergência entre o Brasil e a Argentina sobre
essa delicada questão, determinante para o futuro do projeto. Enquanto
o Brasil manteve linearidade em sua cautelosa posição contrária à criação
de entidade de natureza supranacional, a postura Argentina foi pendular.
Partindo de “un comienzo reticiente y hasta diríamos obstruccionista
tanto de parte del sector oficial como de gran parte del privado
836
,
por recear que se viesse a criar um órgão supranacional, levando o
país a abdicar de sua soberania em matéria de navegação fluvial, oscilou
entre a defesa da cessão de faculdades a organismo independente e da
manutenção da execução e administração das futuras obras na HPP na
esfera de competência do Tratado da Bacia do Prata. Essa oscilação
fez-se não apenas em função da linha doutrinária adotada pelos
diferentes governos, mas também dos benefícios imediatos que o país
podia e pode tirar das diferentes alternativas.
Existe no momento clara convergência entre as posições do
governo e do setor privado argentinos, cujos interesses na Hidrovia
exigem solução prática e imediata para garantir a previsibilidade da
navegação em seu curso
837
. O consenso que se prenuncia em torno da
proposta do Secretário-Geral do CIC permite vislumbrar a eliminação
do obstáculo que se previa mais difícil de ser transposto, para que se
dê início à fase de execução das obras, por envolver a polarização das
posições brasileira e argentina sobre a criação de entidade de natureza
supranacional para administrar a Hidrovia.
835
D’AMATO, Eduardo (Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto de Argentina/
Comité Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná /Delegación Argentina):
depoimento [19 out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004. Ver também
em BRASIL. Embaixada em Buenos Aires. Telegrama nr. 02916, de 29/12/2004.
836
CASTILLO, José Luis. Hidrovía Paraguay-Paraná. In: Boletín del Centro Naval. La
Hidrovía Paraguay-Paraná. Factor de Integración. Suplemento Número 763, G-11,
vol. 109, año 110. Buenos Aires, feb. 1993, p. 305.
837
D’AMATO, Eduardo (Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto de Argentina/
Comité Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná /Delegación Argentina):
depoimento [19 out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004. LÓPEZ,
Horacio (Presidente da CPTCP): depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib.
Buenos Aires, 2004.
ELIANA ZUGAIB
362
Se, por um lado, a alternativa que agora se encontra sobre a
mesa oferecerá garantia de segurança jurídica e agilidade
838
na
tramitação de eventual AAP, por outro, não se pode deixar de
considerar que o processo decisório das instituições permanentes do
Sistema do Prata, do qual dependeria a negociação dos termos daquele
instrumento, poderá ser moroso, comprometendo a validade dos
estudos complementares
839
e o próprio modelo integral de execução
das obras. Ao que tudo indica, a Argentina não hesitará em buscar
respaldo no Artigo VI do Tratado para contornar eventuais atrasos
dessa natureza e ver atendidos seus interesses econômicos.
3. A
FASE DE TRANSIÇÃO: DEFINIÇÃO DOSGRANDES TEMAS
840
A entrega do relatório final do estudo complementar (COINHI),
em junho de 2004, criou expectativa entre os países de que se estaria
838
Prevê o Secretário-Geral do CIC que a aprovação e inscrição do Acordo Executivo na
Secretaria-Geral da ALADI não deveria levar mais de 90 dias, a partir da aprovação do
plano mestre de obras de melhoria da navegação na HPP, aos quais se agregariam mais
180 dias para instrumentar e realizar o processo de licitação, devendo as obras serem
executadas no prazo de 18 a 24 meses. O cumprimento do cronograma de execução das
obras faz-se factível à luz da oferta de financiamento da CAF. (Cf. CIC. Nota n. 365/04,
de 12 de julho de 2004).
839
“Sendo os rios de natureza dinâmica, os estudos realizados geralmente não são
válidos por longo tempo, dadas as mudanças naturais ocorridas na via fluvial”.
BASADONNA, Juan Antonio. Ad memorium. É importante notar também que o estudo
complementar representa apenas uma avaliação ambiental preliminar, que poderá servir
de referência para a realização de eventuais estudos pontuais posteriores julgados
necessários pelos países em seus respectivos territórios, e como subsídio não vinculantivo
para o processo decisório sobre obras em trechos nacionais e compartilhados. Ver em
BRASIL. Ministérios do Meio Ambiente e dos Transportes. Parecer Conjunto sobre o
“Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario
para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe.”, Brasília, 02 de agosto de 2004; BRASIL.
Embaixada em Buenos Aires. Telegrama n. 2094, de 24/09/2004.
840
A expressão “grandes temas” foi cunhada por ocasião da Reunião Extraordinária dos
Chefes de Delegação do CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias 16 e 17 de setembro
de 2004, quando se procedeu à apreciação conjunta do Relatório Final do Estudo
Complementar elaborado pelo COINHI.
363
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
chegando ao final da longa fase dos estudos de viabilidade técnico-
econômica-financiera e de impacto ambiental. Etapa decisiva, esse
estudo provê às autoridades dos cinco países intervenientes elementos
de referência que poderão viabilizar o início da implementação das
obras requeridas para o funcionamento da Hidrovia, permitindo a
almejada redução dos custos de transporte.
Na expressão do Embaixador Isaac Maidana Quisbert, Vice-
Chanceler da Bolívia, o encerramento da fase de estudos constitui
momento transcendental” do processo de negociações no âmbito
do CIH, com o que se revitalizou a dinâmica do desenvolvimento do
programa de obras na HPP, que esteve durante anos em compasso de
espera da conclusão dessa primeira etapa
841
. Na qualidade de
presidente da Reunião Extraordinária de Chefes de Delegação do CIH,
realizada em Buenos Aires, nos dias 16 e 17 de setembro de 2004, o
Embaixador Maidana, fiel à tradicional posição boliviana de imprimir
maior agilidade à execução do projeto, procurou assegurar que o
período de transição para a nova e mais complexa fase que se inaugura,
a da implementação das obras, não viesse a cair no vazio.
Ciente de que o atual período será decisivo para o futuro do
projeto, e com o intuito de garantir transição rápida e segura para a
etapa de execução das obras, propôs a criação de Comitê ad hoc,
integrado por representantes de alto nível dos países partes e assistido
por grupo reduzido de especialistas, cuja missão será “preparar en
coordinación con los gobiernos, los documentos para la adopción
de decisiones y cursos de acción sobre los grandes temas
842
pendentes de definição.
A prevalência do princípio da execução integral desse projeto
pentanacional dependerá do êxito que tiver o cogitado Comitê ad hoc
841
BRASIL. Embaixada em Buenos Aires. Telegrama n. 2095, de 24/09/2004.
842
CIH. Acta de la Reunión Extraordinaria del Comité Integubernamental de la Hidrovía
Paraguay-Paraná (Puerto de Cáceres-Puerto Nueva Palmira), Buenos Aires, 16 y 17
de septiembre de 2004.
ELIANA ZUGAIB
364
em acordar diretrizes para a rápida tomada de decisão sobre os chamados
“grandes temas”, dentre os quais figuram a natureza de entidade
administradora, o procedimento de licitação, a modalidade de financiamento
das obras e o direito aplicável a sua execução e manutenção, tendo em
vista as diferenças dos regimes de obras públicas vigentes nos cinco países
843
.
Diante da complexidade dessas questões e da diversidade de
interesses envolvidos, antecipam-se dificuldades a serem enfrentadas nesta
fase de transição, de cuja superação dependerá a determinação da natureza
que virá a assumir o projeto. A implementação integral das obras pressupõe,
além de projeto para a Hidrovia como um todo, imprescindível à adoção
de parâmetros comuns, de que são instrumentos o PAI e o PGA, gestão
unificada e sistema eqüitativo de distribuição de custos.
Sabe-se que os pontos críticos mais sensíveis estão concentrados
em território paraguaio, cuja solução além de onerosa passa pelo uso de
explosivos
844
, sendo suscetíveis de críticas de organizações ambientalistas,
o que justifica a posição mais cautelosa assumida pelo Paraguai nas últimas
reuniões do CIH
845
.
Com efeito, não parece ser tarefa fácil coordenar posições para se
chegar a solução equilibrada de esquema tarifário que concilie eficiência
843
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun.
2004. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para la institución
de un Comitente. p. 2/43, 44.
844
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre
Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Componente Institucional y Legal (CIL). Volumen IX. Plan de Gestión Ambiental. pp. 27
e 28.
845
CIH. Ata da Reuninão Extraordinária do CIH, realizada em Buenos Aires, nos dias 16
e 17 de setembro de 2004. O próprio Secretário-Geral do CIC colocou em evidência essa
realidade ao afirmar que o fracasso do modelo segmentado deve-se também à “asimetría
de los costos de los pasos críticos respecto del dragado del resto de la vía navegable y
porque los pasos críticos se localizan en jurisdicción de países de menor desarrollo
relativo”. COMITÉ INTERGUBERNAMENTAL COORDINADOR DE LOS PAÍSES
DE LA CUENCA DEL PLATA (CIC). Nota n. 365/04 S, 12 de julio de 2004, dirigida a
la Embajadora Maria M. Lorenzo Alcalá, Representante Político Titular ante el CIC, p. 2.
365
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
econômica e eqüidade na distribuição dos custos, sobretudo considerando-
se que estes são flagrantemente maiores no trecho 2 (Assunção/
desembocadura do Rio Apa) e muito menores no trecho 1, o mais extenso
da Hidrovia (Santa Fé/Assunção)
846
. Antecipa-se, assim, que a decisão sobre
quem deve pagar e fundamentalmente quanto deve pagar encerra potencial
de conflito, agravado pelo fato de os dois países mais penalizados serem
justamente os de menor desenvolvimento relativo, o Paraguai e a Bolívia.
A incapacidade de endividamento dos países era assinalada
desde a negociação do Acordo de Cooperação Técnica com a CAF,
cujos termos foram aprovados na XXX Reunião do CIH
847
, e já havia
sido plasmada no preâmbulo da própria Declaração de Cuiabá que
afirma “(...) as urgências que o ciclo hídrico coloca se contrapõem às
possibilidades reais de os Estados partes assumirem a execução das
obras”
848
. Tomando-se por base que, entre outras restrições
849
, a
846
Em princípio, os custos por trechos não deveriam ser relevantes para definir a estrutura
do pedágio, ao manter-se a busca da eficiência econômica e o enfoque integral do projeto,
no sentido de que não está em discussão se será executado em etapas, uma vez que já está
decidido que constitui uma unidade. COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería,
Técnico y Económico Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía
Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe
final, jun. 2004. Componente Económico-Financeiro. pp. 129 e 132.
847
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Circular Telegráfica n. 42496/1017,
de 18/12/2001.
848
Declaração de Cuiabá, assinada por ocasião da XXVIII Reunião do CIH, realizada
em Cuiabá no período de 23 a 27 de outubro de 2000, cujo texto consta da Circular
Telegráfica n. 40036/838, de 06/11/2000.
849
Além da falta de capacidade de endividamento dos países, outras possíveis fontes de
recursos também apresentam limitações, tais como: (a) financiamento externo, ainda
que parcial, do tipo “project finance”, não seria realista porque passível de gerar
incertezas e riscos técnicos, financeiros e políticos do projeto; (b) investimentos dos
contratistas poderiam ser reduzidos em termos de montante e de extensão de tempo; (c)
contribuições dos usuários poderiam ser impopulares e com impactos diretos na
rentabilidade dos empreendimentos que utilizam a via fluvial e na competitividade por
outros modos de transporte. COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería,
Técnico y Económico Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía
Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe
final, jun. 2004. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para
la institución de un Comitente. p. 2/31.
ELIANA ZUGAIB
366
contribuição direta dos Tesouros Nacionais “no parece constituir
opción factible a la luz de las actuales disponibilidades
presupuestarias de los países”
850
para o financiamento das obras, o
esquema sugerido pelo Consórcio COINHI recaiu sobre fórmula que
combina a participação de agência de desenvolvimento ou banco de
fomento com outras modalidades de fontes de recursos e recuperação
de investimentos.
Tendo presente essas limitações, foram estudadas seis variantes
técnicas do projeto, cujos custos de obras fixas oscilam entre US$
25.240 milhões (alternativa A-8) e US$ 65.915 milhões (alternativa
B-10) e os de manutenção entre US$ 8.412 milhões e US$16.256
milhões por ano, respectivamente
851
(ANEXO – Tabela 11).
850
COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para la
institución de un Comitente, op. cit., p. 2/31.
851
As alternativas denominadas “A” correspondem a interrupções de tráfego por período
de um mês em intervalos de 10 anos, enquanto as chamadas “B” dizem respeito a
interrupções que se dariam por período de três meses a cada 50 anos. A alternativa A-
8 foi recomendada por considerar o Consórcio que satisfaz os requerimentos de navegação
e oferece melhores resultados na análise econômico-financeira. Os resultados obtidos
no estudo indicam que as obras de aprofundamento da via fluvial permitirão a redução
nos custos de transporte da ordem de 33%, com variações de acordo com as distâncias
e tipo de carga, da frota e facilidades portuárias disponíveis, podendo, eventualmente,
atingir o máximo de 50%. A alternativa A-8 identifica-se pelas seguintes características:
(a) profundidade para calados de 8 pés em todos os trechos de Santa Fé a Porto
Quijarro; (b) largura do canal de 110 m no trecho Corumbá-Santa Fé; e 60 m no Canal
Tamengo; (c) as dimensões máximas dos comboios, incluindo as unidades de empuxo,
configuram-se da seguinte forma: Santa-Fé- Assunção: comprimento 310 m; manga 60
m. Equivale a um comboio de 4x5 barcaças, mais a unidade de empuxo; Assunção-
Corumbá: comprimento 290 m; manga 50 m. Equivale a um comboio de 4x4 barcaças,
mais a unidade de empuxo; Canal Tamengo: comboios de 2x2 barcaças, mais a unidade
de empuxo; (d) navegabilidade durante 24 horas do dia, devendo sofrer interrupções
máximas de 30 dias em períodos de 10 anos; (e) realização de obras de dragagem apenas
durante as águas baixas, respeitando-se os períodos de proibição da pesca. (Cf. COINHI.
Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario para
el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004. Síntesis. pp. 4, 6, 12-
13). Observam ainda os consultores que a alternativa A-8 é a mais factível, pois as
outras requereriam níveis de subsídio consideravelmente maiores. Além disso, oferece
a possibilidade de concessão de apenas 10 anos, politicamente mais fácil de ser aceita,
uma vez que quanto maior sua duração maior o grau de incertezas envolvido. COINHI.
367
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
Não obstante haver o Consórcio buscado apresentar solução
realista, a decisão sobre a alternativa técnico-financeira poderá constituir
outro ponto de difícil consenso, dadas as diferentes visões que ainda
prevalecem sobre a utilização da HPP e o fato de que envolve a
distribuição de custos das obras de melhoria e a definição do calado,
de que dependem os níveis de redução de custo do transporte.
Haverá países que, por pressões de grupos de interesse e por
serem as obras em seus territórios menos onerosas, tenderão a privilegiar
as alternativas que prevejam maiores volumes de dragagem e, portanto,
maiores níveis de calado. Esse não deixa de ser recurso de que lançariam
mão a Argentina e o Uruguai interessados em garantir o maior volume de
carga a transportar na via fluvial. Há inclusive diferenças de percepção
Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario para
el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004. Componente
Económico-Financeiro. p. 135. Há que se considerar, no entanto, que, embora essa
alternativa demande menores níveis de investimento, implicará maiores custos de
exploração, além de prever menor calado, o que certamente esbarrará na oposição do
setor privado. A fórmula de financiamento sugerida combinaria a modalidade de subsídios
com a cobrança de pedágios, uma vez que não há nível de carga que se autofinancie.
Assim, as obras de dragagem seriam subsidiadas parcial ou totalmente pelos países,
mediante subsídio inicial, em valor prefixado e não renegociável, enquanto os gastos
anuais de manutenção seriam financiados por combinação de recursos provenientes de
pedágio e subsídios públicos anuais. As tarifas de pedágio de acordo com recomendação
do Consórcio seriam pré-fixadas na ordem de US$ 500 por barcaça/trecho, carregada ou
vazia em cada um dos três trechos contemplados nos estudos, Santa/Fé-Assunção;
Assunção-Rio Apa e Rio Apa-Corumbá/Canal Tamengo. COINHI. Estudio Institucional-
Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario para el Desarrollo de las
Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo),
Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004. Componente Económico-Financeiro.
pp. 141-145; e COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y
Económico Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-
Paraná entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final,
jun. 2004. Síntesis. pp. 4 e 6. Dessa forma, assumiriam os países a responsabilidade por
custo fixo conhecido, não sujeito a mudanças futuras, à arrecadação ou ao tráfego na
Hidrovia e a concessão seria outorgada ao concorrente que venha a requerer o menor
subsídio anual para assumir as obras. COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería,
Técnico y Económico Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía
Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe
final, jun. 2004. Componente Económico-Financeiro. pp. 141 e 146.
ELIANA ZUGAIB
368
quanto à magnitude do custo total das obras. A Argentina, por exemplo,
considera razoáveis os custos do projeto: “También puede estar
financiada por los países, por cada país, por el Tesoro Nacional. No
estamos hablando de una obra muy costosa (...). No sé, no llega a
los 100 millones de dólares, entre cinco países”
852
.
O Brasil, ao contrário, declara que a aprovação do estudo
pelo CIH não garante a execução de obras de grande impacto na
Hidrovia, no curto prazo, porque dependeria de financiamento elevado
e, conseqüentemente, da capacidade de endividamento dos países
e, no caso do trecho brasileiro, da conclusão de EIA/RIMA, previsto
na legislação ambiental
853
. Portanto, a aceitação do estudo
complementar não implica “endosso ou autorização automática para
as obras”
854
.
Esse último ponto, aliás, foi objeto de consenso que garantiu a
aceitação dos estudos complementares, com ressalvas. A análise
conjunta do relatório final do COINHI revelou a convergência de
852
D’AMATO, Eduardo (Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto de Argentina/
Comité Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná /Delegación Argentina):
depoimento [19 out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
853
Os Termos de Referência para nortear a elaboração do EIA/RIMA da hidrovia no
trecho compreendido entre Cáceres e a foz do Rio Apa foram concluídos em dezembro
de 2001, porém, o referido EIA ainda não foi até o momento protocolado no IBAMA.
O Ministério dos Transportes está criando grupo de trabalho com a participação do
Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transporte (DNIT) e da AHIPAR, para
tentar viabilizar solução prática que permita atender à exigência judicial sobre o estudo
ambiental. Pretende-se examinar, junto à Procuradoria-Geral da República, a possibilidade
de que sejam licenciadas individualmente as intervenções de dragagem e manutenção da
Hidrovia no trecho brasileiro. Obras de maior porte ficariam, no entanto, sujeitas à
exigência de estudo ambiental completo. (Cf. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente.
Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos. Programa de Proteção
e Melhoria da Qualidade Ambiental. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Parecer Técnico sobre os estudos
complementares de viabilidade da Hidrovia Paraguai-Paraná, s/n, de 30 de julho de
2004, p. 2.
854
BRASIL. Ministérios do Meio Ambiente e dos Transportes. Estudo Institucional-
Legal, de Engenharia, Ambiental e Econômico Complementar para o desenvolvimento
das obras na Hidrovía Paraguai-Paraná no trecho comprendido entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá e Santa Fé. Parecer Conjunto, 02 de agosto de 2004.
369
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
posições quanto ao entendimento de que a aprovação dos estudos
não tem caráter compulsório com respeito à execução das obras na
Hidrovia e constituem mero enquadramento preliminar de referência
para a realização de eventuais estudos pontuais posteriores julgados
necessários pelos países em seus respectivos territórios
855
.
Havendo sido o estudo complementar restrito a 22 passos
críticos, a análise realizada pelo COINHI não pode ser extrapolada
para o restante dos 92 passos críticos identificados anteriormente pelo
Consórcio HLBE/TGCC, os quais exigirão estudos ambientais
específicos, de acordo com suas condições e contextos, caso venham
a requerer algum tipo de intervenção. A identificação de impactos
ambientais a que se procedeu não corresponde a EIA propriamente
dito, mas a mera avaliação ambiental preliminar
856
. Essa deficiência do
estudo imprime maior complexidade à futura licitação das obras, cujo
objeto prevê o desenvolvimento de projeto para a adequação das
normas emanadas do estudo aos demais passos críticos e para a
execução de obras.
Ao que tudo indica, a questão mais sensível não é o valor das
obras ou a disponibilidade de fontes de financiamento, mas a distribuição
dos custos, mesmo porque a CAF já manifestou expressamente sua
disposição em continuar “atendiendo con interés la continuidad de las
acciones encaminadas a la ejecución de las obras propuestas en el
estudio [estudos complementares]”
857
. A forma de contratação das obras
também constitui um dos elementos importantes para garantir seu caráter
integral. Embora a solução sugerida pelo Consórcio preveja uma única
licitação pública internacional para a execução da dragagem inicial e sua
855
BRASIL. Embaixada em Buenos Aires. Telegrama n. 2094, de 24/09/2004.
856
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario
para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004. Componente Institucional
y Legal (CIL). Volumen VII Diagnóstico Ambiental Integrado. p. 11.
857
CIH. Acta de la Reunión Extraordinaria del Comité Intergubernamental de la Hidrovía
Paraguay-Paraná (Puerto de Cáceres-Puerto de Nueva Palmira), realizada em Buenos Aires,
de 16 a 17 de setembro de 2004.
ELIANA ZUGAIB
370
posterior manutenção sob a modalidade de contrato de Concessão de
Obra Pública Internacional, pressupõe a identificação de regime de
concessão compatível com as legislações dos cinco países nessa
matéria
858
.
Deduz-se daí que ainda há potencial de divergência de posições
dos países que poderá dificultar ou mesmo comprometer o modelo de
execução integral, decisivo para a determinação do caráter multinacional
da iniciativa, fazendo dela verdadeiro instrumento de integração, capaz
de reduzir o custo do transporte, dinamizar as trocas intra-regionais e
criar cadeias produtivas, que confiram competitividade a futuros
produtos Mercosul, e estabeleçam plataforma de exportação para
terceiros países. Sobrepõe-se a essas dificuldades de ordem técnico-
financeira a questão institucional legal, da qual depende a gestão
unificada da Hidrovia, que dará sustentação à natureza integral do
projeto.
3.1. D
UELO NASCENTE/DESEMBOCADURA REEDITADO OU PROJETO
PENTANACIONAL
?
A possibilidade de criação de entidade supranacional seria
remota dadas as resistências decorrentes da diversidade de interesses
nacionais em jogo na implementação do programa de melhorias na
HPP, a despeito da motivação comum que uniu os países platinos em
torno do projeto. Ao mesmo tempo, ainda que se pudesse atenuar o
grau de autonomia de eventual entidade administradora independente,
a pesquisa feita pelo INTAL em 1991 já revelava não haver
uniformidade de critérios entre os cinco países quanto à cessão de
competências a tal organismo
859
. Essa mesma percepção levaria o
COINHI a evitar alternativas dessa natureza, buscando apontar soluções
858
COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Síntesis, op. cit., p.6.
859
BID/INTAL. Alternativas jurídico-institucionales para el funcionamiento definitivo
del Comité de la Hidrovía Paraguay-Paraná. Buenos Aires, 1991. Publ. n. 360, p. 29.
371
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
que assegurem a implementação de projeto pentanacional e garantam
a segurança jurídica de todas as partes interessadas
860
, cuja decisão
será tomada em alto nível, dada a sensibilidade da questão.
Corroborando a ponderação do representante brasileiro, na
Reunião de Chefes de Delegação do CIH, realizada em Buenos Aires,
nos dias 16 e 17 de novembro de 2000, de que a preocupação ambiental
dificulta a aceitação de tomada de decisão por organismo autônomo
sobre obras no trecho brasileiro, o geopolítico uruguaio Bernardo
Quagliotti de Bellis afirmava “la entidad supranacional se vería en
dificultades permanentes no solo por estar estos países ‘águas abajo’
y las ‘nacientes’ en el importante Pantanal”
861
. Nessas condições, a
atual aparente convergência de posições dos então chamados “dois
grandes” em torno da permanência da HPP no seio do Tratado da Bacia
do Prata
862
, nos moldes da proposta apresentada pelo Secretário-Geral
do CIC, muito provavelmente levará os demais partícipes ao consenso
863
.
Em consonância com a Declaração de Cuiabá e os objetivos
da política de integração regional, o esforço mais importante a ser
empreendido nesta fase é o de eleger mecanismo de execução e
administração das obras compatível com o enfoque integral e sustentável
do projeto, descartando-se o cenário de eventual retrocesso à execução
fragmentada, tendo em conta que as decisões do CIH não têm caráter
860
COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Síntesis, op. cit. p. 1.
861
QUAGLIOTTI DE BELLIS, Bernardo: depoimento [30 out. 2004]. Entrevistador:
E. Zugaib. Montevidéu, 2004.
862
MACEDO-SOARES, Hélio: depoimento [12 nov. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib.
Buenos Aires, 2004.
863
A proposta do Secretário-Geral do CIC assemelha-se a uma das alternativas sugeridas
pelo COINHI. Propõem os consultores a celebração de Acordo Executivo, no âmbito da
Reunião dos Chanceleres da Bacia do Prata, pelo qual se aprovaria o programa de obras
de melhoramento da navegação pela Hidrovia, e se atribuiria a um organismo,
preferivelmente do próprio Sistema, faculdades para contratar, supervisionar e
administrar o projeto. COMITÉ INTERGUBERNAMENTAL COORDINADOR DE
LOS PAÍSES DE LA CUENCA DEL PLATA (CIC). Nota n. 365/04 S, 12 de julio de
2004, dirigida a la Embajadora Maria M. Lorenzo Alcalá, Representante Político
Titular ante el CIC, p. 3. e COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios
y Propuestas para la institución de un Comitente, op. cit., p. 1/44-48.
ELIANA ZUGAIB
372
864
COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para la
Institución de un Comitente, op. cit., p.1/46.
865
Os AAPs constituem direito derivado de Tratado-Quadro, no caso o da Bacia do
Prata, que passa a fazer parte das legislações dos países signatários, a partir do ato de
sua ratificação, podendo atuar por delegação legislativa dos Congressos nacionais, com
o que torna as normas emanadas de órgãos regionais ou comunitários auto-aplicáveis no
direito interno. COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, junio de
2004. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y Propuestas para la adopción
del Régimen Contractual. p. 2/43 e 44.
866
COINHI. Componente Institucional y Legal (CIL). Criterios y propuestas para la
adopción del Régimen Contractual, op. cit., p. 2/44.
compulsório. A gestão compartilhada torna-se, portanto, elemento
imprescindível para se atingir esse propósito, uma vez que até pode,
em caso extremo, admitir a execução das obras por seções nacionais,
mas sempre disciplinada por regras técnicas, jurídicas e econômico-
financeiras uniformes
864
.
A modalidade sugerida, a do AAP, poderá contribuir para
afastar o perigo da reincidência do modelo de execução fragmentada,
proposto pelo estudo do HLBE, por tornar as normas emanadas de
órgãos comunitários auto-aplicáveis no direito interno, sem a intervenção
dos congressos nacionais
865
, o que resolve até certo ponto as
dificuldades apresentadas pelas disparidades entre as legislações
internas. O recurso a esse mecanismo constituiria solução para a
necessária captação de recursos de organismos financeiros
internacionais, como a CAF, que condicionam o financiamento de
projetos a processos de licitação pública internacional destituídos de
restrições impostas por legislações internas que contemplam, por
exemplo, medidas protecionistas. Os AAPs, característicos do Direito
da Integração, se têm revelado instrumentos eficazes para cumprir esse
tipo de exigência
866
.
Essa modalidade sugerida pelo CIC e pelo COINHI permite
também o aproveitamento das estruturas já existentes, além de oferecer
segurança jurídica a todos os países e agilidade na tramitação do acordo.
373
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
Contribuirá sobretudo para revitalizar o Sistema da Bacia do Prata,
devolvendo ao Comitê seu papel original ao transformá-lo em agência
executora das obras da Hidrovia que contem com financiamento externo.
Dessa forma, os aportes financeiros permaneceriam na região e poderiam
ser reinvestidos em projetos de interesse comum na própria Bacia
867
.
Consideradas essas vantagens decorrentes de o projeto estar
totalmente adstrito aos mecanismos do Sistema da Bacia do Prata,
não se pode, no entanto, deixar de levar em consideração que “el
sistema de la Cuenca del Plata fue concebido para actuar con
rutina de consultas que insumen mayores tiempos y de acuerdo
con un mecanismo de toma de decisiones por unanimidad
868
.
Por força do Artigo II, parágrafo 2
o
, do Tratado da Bacia do
Prata, as decisões tomadas pelos Chanceleres requererão sempre o
voto unânime dos cinco países, regra que implica também o direito de
veto, podendo converter-se em mecanismo capaz de impedir a adoção
de medidas necessárias para o avanço do projeto
869
. No caso da
867
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Despacho Telegráfico para a Embaixada
em La Paz n. 467, de 26/10/2004 e MACEDO-SOARES, Hélio: depoimento [12 nov.
2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
868
RAVINA, Arturo Octavio (Coord.) et al. La organización institucional de la Hidrovía
Paraguay-Paraná como programa de navegación internacional. In: Integración
Latinoamericana. Hidrovía Paraguay-Paraná: viejo cauce para una integración
renovada. INTAL, Buenos Aires, año 16, n. 168, p. 28, jun. 1991. Comentam os
autores que os debates do CIC que precederam a assinatura do Tratado da Bacia do
Prata contemplavam duas concepções a respeito da institucionalização da Bacia do
Prata. Por um lado, três estados desejavam estabelecer uma comissão fluvial, semelhante
à do Reno ou a do Danúbio, dotada de determinadas competencias que lhe permitiriam
realizar um trabalho efetivo na área de exploração dos recursos naturais da região. Por
outro, os Estados restantes preferiam um esquema de institucionalização que caminhasse
lentamente e no qual as decisões fossem adotadas por unanimidade. Tinham esses dois
últimos Estados o objetivo de obter determinados resultados no plano interno antes de
aceitar um sistema de institucionalização da Bacia do Prata. Ao prevalecer esta concepção,
o sistema caracterizou-se por mecanismos de decisão morosos, baseados na regra da
unanimidade, em que os temas são objeto de considerações por períodos prolongados.
869
RAVINA, Arturo Octavio (Coord.) et al. Algunos aspectos críticos del Acuerdo de
Transporte Fluvial por la Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto Cáceres-Nueva Palmira).
In: Integración Latinoamericana. Integración: un escenario multidimensional. INTAL,
Buenos Aires, año 17, n. 185, p. 50, dic. 1992.
ELIANA ZUGAIB
374
870
COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre
Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004.
Componente Institucional y Legal (CIL). Información Ambiental. Volumen I. p. 11.
871
A predisposição argentina para esse tipo de acordo está contemplada no artigo 99,
inciso 11 da própria Constituição.
alternativa sugerida, poderia vir a retardar a decisão sobre os termos
do projetado AAP. A conseqüência mais imediata de eventuais atrasos
dessa natureza, que venham a postergar a execução das obras de
melhoria na HPP, poderá representar a volta ao processo de
bilateralização que, como vimos no capítulo II, paralisou o Sistema da
Bacia do Prata durante décadas.
3.1.1. P
ERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO ARGENTINA
Uma vez definida a orientação integral do projeto e a
primazia do componente ambiental sobre os demais, a Argentina
não mais dispõe de meios para influir na fixação de parâmetros
básicos menos rígidos do ponto de vista ambiental, com o intuito
de garantir maior margem de eficiência econômica do transporte
fluvial e o início mais imediato das obras, como quer sobretudo a
iniciativa privada. Essa postura assumida pela Argentina nas
negociações foi facilitada por ser sua legislação ambiental mais
permissiva do que as do Brasil, da Bolívia e do Paraguai, que
prevêem a obrigatoriedade de EIA
870
.
Nessas condições, e diante da certeza do veto brasileiro à
constituição de entidade administradora supranacional, a celebração
de Acordo Executivo no âmbito do Tratado da Bacia conviria à
Argentina
871
tanto pela agilidade de tramitação que lhe é inerente, por
dispensar a aprovação dos congressos dos Estados contratantes, quanto
pelo fato de poder, ao abrigo do artigo VI, resguardar-se de possíveis
atrasos na negociação e aprovação do referido acordo, ocasionados
por eventual morosidade proveniente do processo decisório do Sistema.
375
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
Caso esse cenário venha a se apresentar, ao que tudo indica, o governo
argentino não deixará de buscar sua autonomia, lançando mão dos
acordos bilaterais com a Bolívia e com o Paraguai
872
, para lograr realizar,
no mais breve prazo, as obras que garantam a navegação contínua, o
que comprometeria o caráter integral de sua execução.
Como se recordará, a Argentina foi levada a aderir ao consenso
em torno dos termos do PGA, ao ser confinada a posição solitária
favorável a priorizar o início imediato das obras em detrimento do plano
ambiental prévio e integral, defendido pelo Brasil. É de se supor que
não haja autêntico comprometimento daquele país com o plano de
implementação integrado das obras e, portanto, cederá a pressões de
grupos de interesse e apelará para o bilateralismo:
Yo creo que las perspectivas de la Hidrovía son buenas,
y que van a exceder la voluntad de los países, porque yo creo
que hay presiones económicas de grupos muy importantes,
tanto de la Argentina, de Brasil, mismo Bolivia y Paraguay,
que han descubierto un medio de transporte que les resulta
económicamente, y que hace que algunos productos que hasta
hace unos años atrás eran imposible de comercializar debido,
fundamentalmente, a costo de transporte (...), hoy están siendo
colocados en el exterior. Y creo que si los políticos no nos
apuramos (...), la realidad va a superar la ficción
873
.
872
LÓPEZ, Horacio (Presidente da CPTCP): depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador:
E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
873
D’AMATO, Eduardo (Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto de Argentina/Comité
Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná /Delegación Argentina): depoimento
[19 out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004. Ver também em
BASADONNA, Juan Antonio (Secretario Ejecutivo - CIH): depoimento [21 dez. 2004].
Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004. Afirma o Secretário-Executivo a respeito da
situação em que os países não cheguem a um acordo sobre os grandes temas: “vamos a
poner que no se haga, que los países no se pongan de acuerdo (...), la Hidrovía seguirá
funcionando así, las inversiones en Rosario se van a hacer, va a venir soja de Brasil, va a
venir soja (...) a un mayor costo. En lugar de estar pagando los US$ 16, van a estar
pagando US$ 20. Y entonces no sé, hay que ver cómo funciona dentro del mercado mundial”.
ELIANA ZUGAIB
376
Essa afirmação confirma ao mesmo tempo a importância da
agilidade da definição sobre os temas pendentes, para que se possa
dar início às obras no mais breve prazo possível. Os riscos de eventual
retrocesso ao mecanismo de bilateralização, que custou a ineficácia do
Sistema da Bacia do Prata durante décadas, ficam claros:
Es una etapa cerrada [a dos estudos]. En cuanto a la
etapa de obras, yo todavía creo que hay un tramo que es
bastante extenso, que es ponerse de acuerdo en cómo se
van a llevar a cabo la financiación, quién va a manejar las
obras (...). Mientras tanto, yo creo que hay que usar un
poco la imaginación y buscar soluciones alternativas para
poder hacer que este incremento constante de tráfico que
hay sobre la Hidrovía se siga manteniendo. O sea, va a haber
que ir haciendo cosas a través de los acuerdos bilaterales
que tienen los países, que ya han sido usados en el pasado
muchas veces, hasta que se pueda concretar el punto este,
que no es un punto fácil, no es un punto que vaya a tener
una solución inmediata
874
.
É bem verdade que as expectativas iniciais de aumento de
tráfego proveniente sobretudo da expansão da fronteira agrícola no
Estado do Mato Grosso dissiparam-se diante das dificuldades de ordem
ambiental que levaram mais tarde à exclusão do trecho Cáceres/
Corumbá do plano de obras de melhoria da HPP
875
. Resta a
874
D’AMATO, Eduardo (Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto de Argentina/
Comité Intergubernamental de la Hidrovia Paraguay-Paraná /Delegación Argentina):
depoimento [19 out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
875
Como reflexo do acordo a que se havia chegado com as ONGs, em agosto de 1995,
sobre a necessidade de se atribuir tratamento diferenciado ao Pantanal, preservando-
se as características naturais daquele ecossistema, a delegação brasileira assumia, em
fevereiro de 1996, essa posição no âmbito das discussões sobre os estudos do
Módulo B1 então em execução pelo Consórcio HLBE, travadas por ocasião da Reunião
de Chefes de Delegação. Registrava a ata daquela reunião “Sobre la definición del
377
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
perspectiva de incremento da produção de minério de ferro destinado
à exportação para fora da região, cenário que dependerá de
investimentos na capacidade produtiva, por sua vez, atrelados à
realização das futuras obras previstas no projeto, por se tratar de carga
cativa não sazonal que requer navegação ininterrupta, condição
indispensável à assinatura de contratos
876
.
Considerando-se que o trecho brasileiro já é praticamente
navegável durante todo o ano e que as negociações para superar as
dificuldades provocadas pelo atual sistema de tomada de água em
Corumbá estão bem encaminhadas, a Argentina poderá, por meio
de obras conjuntas nos trechos paraguaio e boliviano, garantir o
escoamento de maior volume de minério de ferro e de soja.
Portanto, na eventualidade de haver demora na negociação
dos termos de acordo internacional em decorrência das dificuldades
de se concertarem posições sobre questões delicadas, não é de se
descartar a hipótese de a Argentina vir a recorrer a postura estanque
em busca de sua autonomia, adotando a mesma tática da diplomacia
dos fatos consumados a que recorrera o Brasil para, na visão de
muitos analistas, alcançar suas pretensões hegemônicas na região na
década de 70.
Tramo Cáceres-Corumbá la Delegación de Brasil manifestó su posición según la
cual el estudio en ejecución en el marco del Módulo B1 del Proyecto objeto del
Convenio BID/PNUD/CIH, deberá considerar prioritariamente las características
excepcionales existentes en el tramo del río Paraguay, entre Corumbá y Cáceres, en
la región del Pantanal Matogrosense – Patrimonio Ecológico de la Humanidad. Por
esa razón, dicho estudio deberá objetivar la utilización del río para la navegación,
teniendo en cuenta prioritariamente que sean evitados daños o agresiones contra el
Medio Ambiente y en especial evitándose todo tipo de obras de derrocamientos de
rectificación de curso o mismo de dragados estructurales que puedan representar un
impacto negativo sobre el ecosistema de dicha región. El proyecto deberá adaptarse
a las condiciones especiales del desarrollo sostenible”. Ver também em BRASIL.
Ministério das Relações Exteriores. Comunicado à Imprensa. Infocred 417, de 30 de
agosto de 1995; CIH. Informe Final de la Reunión Extraordinaria de Jefes de
Delegación del Comité Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná (Puerto
de Cáceres-Puerto de Nueva Palmira), realizada em Buenos Aires, em 29 de fevereiro
de 1995.
ELIANA ZUGAIB
378
3.1.2. PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA E DA DEFINIÇÃO
DOS
GRANDES TEMAS
De posição solitária em defesa da primazia do componente
ambiental, o Brasil passou a exercer o papel de catalisador do consenso
em torno da vertente sustentável e integral do projeto, com o que se
espera seja atenuada a pressão exercida pelos grupos ambientalistas,
contrários a sua implementação, e facilitada a harmonização de interesses
dos governos e da iniciativa privada, com vistas a aproximar o projeto
do equilíbrio entre a melhor utilização do potencial de navegação com o
menor impacto ambiental. O país já exerceu sua influência como detentor
do controle das nascentes dos rios ao fazer prevalecer a primazia do
componente ambiental sobre os demais e o método de análise integral
sobre o fragmentado, garantindo a natureza multinacional da iniciativa
877
.
A conciliação de posições emanada da reunião de Cuiabá
refletiu-se também no âmbito interno. As divergências entre os
Ministérios do Meio Ambiente e dos Transportes parecem diluir-se
aos poucos
878
e caso o recurso da sentença judicial interposto em
outubro de 2004 venha a ser acatado, a Avaliação Ambiental Estratégica
substituirá o EIA prévio
879
.
876
HLBE. Estudo de Viabilidade Técnico-Econômica da Hidrovia Paraguai-Paraná.
Resumo Executivo, [S.l.], 1996. Cópia eletrônica disponibilizada pelo Secretário-
Executivo do CIH. p. 24.
877
Abre-se aqui um parêntesis apenas para comentar que, curiosamente, os argumentos
em defesa da tese da consulta prévia, justamente aqueles que a Argentina, país vizinho
a jusante, defendia com obstinação para salvaguardar o trecho fluvial de sua jurisdição
dos impactos negativos de eventuais obras realizadas a montante, eram relegados a
segundo plano para atender aos interesses econômicos, que demandam a agilização do
processo de implementação das obras. Invertem-se agora os papéis, ao fundamentar o
Brasil sua posição no princípio da precaução.
878
MELO, Renato Batista de. Considerações sobre a Hidrovia Paraguai-Paraná.
Brasília: Marinha do Brasil, Divisão de Assuntos Marítimos e Ambientais, setembro de
2004. p. 15.
879
O Ministério dos Transportes passou a trabalhar uma nova concepção de projeto
hidroviário, não apenas para a bacia do Paraguai, mas também para todas as vias
navegáveis, onde as intervenções de engenharia deverão respeitar ao máximo as
379
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
Os princípios fundamentais da posição brasileira foram objeto
de consenso no âmbito do CIH e contemplados nos Termos de
Referência dos estudos complementares
880
. Dos grandes temas, um
dos mais sensíveis, a natureza da entidade administradora da Hidrovia,
deixa transparecer indícios de que obedecerá à linha defendida pelo
governo brasileiro. Embora as obras de melhoramento no trecho
brasileiro dependam da conclusão do EIA/RIMA para todo o rio, as
intervenções de manutenção em seu curso têm permitido manter a
navegação constante, dentro das boas condições atuais de
comportamento do rio
881
.
A maior segurança e a relativa previsibilidade já alcançadas
com as obras de manutenção e a implementação do Acordo de
condições ambientais. Entendemos que a hidrovia é o aproveitamento de um recurso
natural e não um empreendimento. Na Hidrovia Paraguai-Paraná as condições de
segurança e navegabilidade são garantidas com balizamentos, sinalizações, batimetrias,
cartas de navegação atualizadas e algumas dragagens. Observou-se que as retificações
de curso e derrocagem, no tramo brasileiro, são desnecessárias. Assim, como se trata
de intervenções mínimas, afastou-se a necessidade de elaboração de Estudo Prévio de
Impacto Ambiental. Acredita-se que a Avaliação Ambiental Estratégica seja o melhor
instrumento para analisar o conjunto de investimentos que poderão se instalar na
Bacia do Paraguai. No entanto, o Ministério deverá aguardar a decisão do Recurso
junto ao Tribunal Regional Federal”. NASCIMENTO, Alfredo Pereira do: depoimento
[30 nov. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Brasília, 2004.
880
Os Termos de Referência do estudo complementar nortearam-se, entre outros, pelos
seguintes elementos: (a) método de análise integrada e de caráter global, de que são
instrumentos o PGA e o PAI, respeitando-se o princípio do equilíbrio entre a melhor
utilização e o menor impacto ambiental; (b) a exclusão do Pantanal do plano de obras,
respeitando-se a legislação brasileira e o princípio de que, no Brasil, há condições
naturais suficientes para a navegação de embarcações especiais; (c) a obrigatoriedade de
preservação das características naturais dos rios, com intervenções mínimas em alguns
pontos críticos à navegação, que corrobora a tese de que as embarcações devem adaptar-
se ao rio e não o contrário; (d) a manutenção das características geométricas do canal
navegável da Hidrovia e as dimensões máximas de comboios aprovadas para cada um de
seus trechos homogêneos.
881
D’AMATO, Eduardo (Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto de Argentina/
Comité Intergubernamental de la Hidrovía Paraguay-Paraná /Delegación Argentina):
depoimento [19 out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004; LÓPEZ,
Horacio (Presidente da CPTCP): depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador: E.
Zugaib. Buenos Aires, 2004; BRASIL. Embaixada em Buenos Aires. Telegrama n.
2095, de 24/09/2004.
ELIANA ZUGAIB
380
882
O desenvolvimento, na última década, de vários canais de saída em direção ao norte
e ao leste do Estado do Mato Grosso, priorizados no PPA 2004-2007, oferece aos
produtores de soja infra-estrutura de transporte fortemente competitiva com a HPP e
torna relativa sua importância como via de escoamento daquela área. Dadas essas
alternativas, a expansão da produção agrícola naquele Estado não depende da Hidrovia,
o que facilitou a exclusão do trecho do Pantanal do projeto, sem grande prejuízo. Porém,
o mesmo não se verifica em relação ao minério de ferro, carga cativa que depende das
melhorias na via fluvial, além de investimentos nas minas e nas frotas empresariais para
expandir-se. Caso o projeto da HPP venha a se concretizar, a Rio Tinto antecipa
previsão de aumentar seus volumes de exportação ao “resto do mundo”, hoje da ordem
de 1.650 mil toneladas para entre 10 e 15 milhões de toneladas por ano. Considera-se
também como possível tráfego gerado pelo projeto, o grão de soja com destino às
fábricas de azeite argentinas para processamento e posterior exportação. COINHI.
Componente Económico-Financeiro, op. cit., pp. 4, 44, 48, 54-56.
Transporte Fluvial têm permitido constatar que a HPP é fator de
competitividade para a colocação de produtos do Centro-Oeste nos
mercados regional e extra-regional e relevante instrumento de
consecução dos objetivos prioritários da política externa do atual
governo, à medida que avançam as negociações para a consolidação
da integração sub-regional e dos contornos da Comunidade Sul-
americana de Nações
882
.
País com a menor dependência relativa da Hidrovia e
comprovado poder de influência no processo negociador, o Brasil
dispôs até o momento de posição confortável para agir com maior
grau de cautela e com tempo mais elástico. No entanto, o futuro do
projeto, como instrumento de integração, dependerá da manutenção
dos parâmetros que já conseguimos definir e acordar, tarefa que
demandará agora a tomada de decisão rápida sobre os grandes temas
e a execução das obras no mais breve tempo possível, sob pena do
risco de retrocesso ao bilateralismo. A chave dos rumos do projeto
poderá tê-la o Brasil. Já demonstrou dispor de poder de influência e
optou pelo modelo integral sustentável com intervenções mínimas. As
grandes linhas estão traçadas em conformidade com nossa posição.
O Brasil, tendo lançado a proposta de revalorização da HPP,
poderá vir a ser protagonista da primeira obra emblemática da
integração física regional, dependendo dos esforços que
381
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
empreender para aproximar as posições sobre os chamados grandes
temas durante o exercício da presidência pro tempore do CIH,
que assume neste delicado e decisivo período de transição. O
caminho mais promissor e ágil para evitar o impasse parece ser a
condução da nova fase, a da execução das obras, no âmbito do
Tratado da Bacia do Prata. A determinação política de fazer realizar
as obras, ainda no curso de 2004, foi expressa por altos
mandatários
883
e algumas de suas justificativas podem ser
encontradas na seguinte passagem do relatório final dos estudos
complementares:
Las proyecciones de carga señalan la necesidad de
no demorar la ejecución de las obras, atento a que las
mejoras previstas tendrán un efecto en el corto plazo
fuertemente multiplicador sobre la actividad de la región
económica vinculada, considerando, además, las buenas
perspectivas que se presentan en el crecimiento de la
economía mundial (...). En este contexto se prevé que las
obras de mejoramiento darían lugar a un tráfico potencial
en el orden de las 50 millones de toneladas para el año
2024
884
. (grifo da autora)
A iniciativa privada já deu mostras de apostar na HPP como
meio de transporte competitivo, como o comprova o nível de
investimentos do setor. O adiamento das obras implica ônus político,
ao sinalizar descompasso entre o discurso e a prática, e risco de
883
Os Presidentes Lula e Kirchner, quando do encontro de trabalho mantido no Rio de
Janeiro, em 16 de março de 2004, “solicitaram a pronta finalização do estudo
institucional-legal para as obras na hidrovia Paraguai-Paraná a fim de que se possa
iniciar o processo licitatório entre todos os países integrantes da hidrovia. Ver também
em Declaração de Santa Cruz de La Sierra para a Reativação da Hidrovia, de 15 de
novembro de 2003.
884
COINHI. Síntesis, op. cit., p. 6.
ELIANA ZUGAIB
382
descrédito junto ao usuário, que depende da garantia de segurança e
previsibilidade.
3.1.3. P
ERSPECTIVAS DE LONGO PRAZO À LUZ DAS POSSIBILIDADES DE
INTERCONEXÃO
DA HPP
A integração regional não é de natureza apenas econômico-
comercial, mas, fundamentalmente, político-estratégica e, como tal, sua
perspectiva deve ter alcance de longo prazo. A prioridade atribuída
pelo atual governo ao Mercosul como ponto de partida para a
integração sul-americana gera momento propício ao desenvolvimento
de eixos geoestratégicos de infra-estrutura física.
O desenvolvimento de malha de infra-estrutura eficiente é
elemento indispensável para que se faça uso racional sustentável e
integrado dos recursos naturais inexplorados da região mediterrânea
do Cone Sul, conectando essa área deprimida à corrente de comércio
intra e inter-regional. Existem, na América do Sul, duas outras grandes
bacias hidrográficas, a do Amazonas e a do Orinoco
885
, que
desembocam no Atlântico e que, como a do Rio da Prata, constituem
recursos importantes para a organização do espaço físico mediterrâneo
nas próximas décadas. Essas bacias unem-se para formar uma vasta
planície no centro do continente e sua futura interconexão conformará
o Litoral Fluvial Sul-americano:
La vinculación de los tres grandes sistemas
hidrográficos sudamericanos, con el objeto de lograr la
885
O eixo principal do Orinoco ao Prata, pelo rio Madeira-Guaporé-Paraguai, percorre extensão
de 8.000 km e os canais de interconexão por construir teriam aproximadamente 550 km,
incluídos os canais laterais no Guaporé-Madeira – entre Guajará Mirim e Porto Velho – para
superar as numerosas cachoeiras e correntezas. Para vincular o Guaporé ao Paraguai pelo rio
Aguapei, será necessário construir um canal de 8 km com diferença de altitude de apenas 30
metros, considerando-se, portanto, insignificantes a distância e o declive que dividem as águas
das principais bacias hidrográficas sul-americanas. (Cf. BOSCOVICH, Nicolás. Geoestrategia
para la Integración Regional. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1999, p. 49).
383
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
navegación fluvial continua entre el río de la Plata y el mar
del Caribe, creará posibilidades insospechadas para el
desarrollo del centro del continente. Serán los corredores
fluviales para la colonización y el desarrollo de un ‘Nuevo
Continente’: el Continente Mediterráneo de Sur América
886
.
A HPP une naturalmente os países do Cone Sul e vincula a
Bacia do Prata à do Amazonas pelos rios Paraguai-Guaporé-Madeira,
constituindo eixo estruturante capaz de dar sustentação à integração
do Cone Sul, num primeiro momento, e, no longo prazo, à emergente
Comunidade Sul-Americana de Nações. Ao interligar fisicamente o
Mercosul à Comunidade Andina, núcleo da integração sul-americana,
viabilizará a implementação de zona de livre comércio entre os dois
grandes blocos econômicos já existentes na América do Sul
887
. A
propósito do acordo de associação Mercosul/CAN comentava o
negociador argentino, Embaixador Martín Redrado:
La conformación de un bloque sudamericano constituye un
destino inexorable para la región, tanto por la identidad de intereses
políticos y económicos, como por la historia y la cultura que comparten
nuestros países, lo que nos permite prever amplias ventajas en la
integración regional a la hora de relacionarnos con el resto del mundo.
En este marco, la conformación de una zona de libre comercio entre
los países del Mercosur y los de la Comunidad Andina es el primer
eslabón de ese camino integrador
888
.
886
Boscovich, 1999, op. cit., p. 47.
887
A população da CAN e do Mercosul somadas representam 72,5% do total da
população sul-americana, 56,2% do PIB regional e 85,4% do comércio interregional.
(Cf. ARGENTINA. Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional y
Culto. Información para la prensa n. 279/04, 06 ago.2004. p. 1).
888
REDRADO, Martín. El Mercosur Abre el Mercado de la Comunidad Andina. In:
Argentina. Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional y Culto.
Información para la prensa n. 279/04, 06 ago.2004. p. 1.
ELIANA ZUGAIB
384
889
Como assinalado no capítulo I deste trabalho, o novo paradigma de desenvolvimento da
região pressupõe as seguintes dimensões complementares: (a) geoeconômica, pela qual se
considera a América do Sul como uma única unidade econômica; (b) de sustentabilidade
ambiental, pela qual a infra-estrutura tem que se adaptar à vocação do território e dos
ecossistemas que a compõem, a fim de preservar sua integridade e valor e manter a quantidade
e qualidade dos serviços naturais providos por aqueles ecossistemas e (c) de máxima eficiência
econômica, ambiental e social. Ver em SILVA, Eliezer Batista da. Infrastructure for Sustainable
Development and Integration of South America., Sponsored by BCSD-LA, CVRD, CAF,
AVINA Foundation, Bank of America, CAEMI, April 12, 1996. p. 18.
890
A rede de transporte complementar da HPP compõe-se de trechos de distintos
modos de transporte que permitem vincular as zonas produtivas que integram sua área
de influência e, caso se concretizem as obras de sua melhoria poderão facilitar o uso da
via fluvial. Tais obras permitiriam reduzir os custos de transporte ou de transferência
em alguns entroncamentos. No Brasil, essas obras compreendem: (a) a pavimentação
de 70 km de Cuiabá a Puerto Piúva, com o que se evitaria a sinuosidade do rio Paraguai
na zona do Pantanal, porém, além da proibição emanada da decisão judicial, há forte
resistência das ONGs com respeito à obra, porque significaria o aumento do tráfego na
Hidrovia, o que ocasionaria maior impacto ambiental; (b) adequação do ramal ferroviário
de Campo Grande a Ponta Porã de Novoeste e a pavimentação do trecho Ponta Porã/
Do ponto de vista do desenvolvimento sustentável regional, a
HPP tem significado particular uma vez que o projeto de melhoria das
condições de navegação em seu curso está elaborado em conformidade
com as premissas do novo paradigma de desenvolvimento, que se
traduzem no equilíbrio entre o planejamento econômico e o ecológico
889
.
Trata-se de componente fundamental da infra-estrutura básica de área
de influência que encerra alto valor estratégico. Do ponto de vista
ambiental, o transporte hidroviário requer menor consumo de energia
por carga e, no caso particular da HPP, um mínimo de intervenções no
rio, devido a suas condições naturais de navegabilidade. A diminuição
dos custos de transporte e a modernização portuária previstos no
programa da Hidrovia, somados às oportunidades de crescimento
econômico, fazem de sua execução fator decisivo do desenvolvimento
integral da região, ao contribuir para avançar na integração das cadeias
produtivas regionais e eliminar as assimetrias entre os países, condição
necessária a todo processo de integração.
Como eixo estruturante, deverá atrair a convergência de outros
modos de transporte, nos âmbitos nacional e regional
890
. Levando-se
385
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
em consideração as relações do sistema Paraguai-Paraná com os
corredores bioceânicos existentes e futuros empreendimentos no alto
Paraná, que permitirão a conexão com a Hidrovia Tietê-Paraná, a HPP
transforma-se no primeiro corredor Norte-Sul que permitirá tornar
realidade a integração física da América Sul.
4. P
OSSÍVEIS CENÁRIOS
A posição brasileira, determinada pelo componente ambiental,
garantiu que se adotassem parâmetros básicos para as intervenções
mínimas na Hidrovia, pautados pelo método da análise e da execução
integrais e pelo equilíbrio entre a melhor utilização do potencial de
navegação com o menor impacto no meio ambiente. O futuro do projeto
HPP dependerá agora, em grande medida, da vontade política dos cinco
países beneficiários de remover os obstáculos que possam continuar
adiando indefinidamente sua realização. Esse desafio será colocado à
prova com a atuação do Grupo ad hoc
891
que deverá traçar diretrizes
claras para a definição dos chamados grandes temas.
A agilidade ou morosidade dessas decisões poderá levar a quatro
possíveis cenários: (a) o de que haja consenso sobre os temas pendentes
Porto Murtinho; (c) repavimentação da BR-267 entre Rio Brilhante e Porto Murtinho;
(d) os Terminais multimodais de Porto Murtinho e Porto Esperança. Ver em COINHI.
Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico Complementario para
el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná entre Puerto Quijarro
(Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final, jun. 2004. Componente
Económico-Financiero. pp. 68-75. Caso venham a ser superados os obstáculos à união
da HPP com a Tietê-Paraná, o que era impensável há duas décadas, quando ainda havia
a hipótese de conflito entre Brasil e Argentina, poderão as duas Hidrovias conectar-se
com as bacias do Tocantins, do Tapajós, do Amazonas e do Negro, permitindo-se
configurar via fluvial de Buenos Aires até o centro da Venezuela, o Mar do Caribe e o
Atlântico Norte. Essa ponte fluvial viabilizaria o desenvolvimento da deprimida região
central do subcontinente. Ver em BLOCH, Roberto D. Transporte Fluvial, Buenos
Aires: Ad Hoc, diciembre, 1999. pp. 108 e 109.
891
O Grupo ad hoc, cuja criação foi acordada por ocasião da Reunião Extraordinária do CIH,
realizada em Buenos Aires nos dias 16 e 17 de setembro de 2004, ainda não foi constituído.
Apenas a Bolívia indicou representante. BASADONNA, Juan Antonio (Secretario Ejecutivo
- CIH): depoimento [17 nov. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
ELIANA ZUGAIB
386
892
BASADONNA, Juan Antonio (Secretario Ejecutivo - CIH): depoimento [20 out. 2004].
Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004; LÓPEZ, Horacio (Presidente da CPTCP):
depoimento [24 nov. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
893
Ibidem.
de definição, que muito provavelmente levará à assinatura de AAP, tendo
como agência executora o CIC, e à implementação integral do projeto,
tal como idealizado e acordado no âmbito do CIH; (b) o de que haja
consenso sobre os grandes temas que leve à assinatura de acordo
multilateral que serviria de enquadramento para a execução das obras
por meio dos acordos bilaterais existentes, a custos menos elevados
892
;
(c) o de que não haja consenso sobre os grandes temas e leve a
indesejável retrocesso ao bilateralismo puro dos chamados “dois
grandes” com os países menores, o que comprometeria os esforços
empreendidos até o momento para imprimir enfoque global e sustentável
à iniciativa, como instrumento de integração; e (d) o de que não haja
consenso e leve à paralisia do curso de ação para a execução das
futuras obras, dando-se continuidade apenas às intervenções de
manutenção, no curto e médio prazos.
O aparente encaminhamento de uma das questões mais sensíveis
e até certo ponto condicionante das demais, a da criação de entidade
administradora, poderá facilitar o trabalho do referido Grupo Ad Hoc.
O fato de não haver expectativa de realização de obras no território
brasileiro, no curto prazo, não compromete o caráter integral do
projeto, que consiste em homogeneizar as condições de navegabilidade
suficientes para embarcações adaptáveis ao rio, com o mínimo impacto
ambiental, em toda a extensão da via fluvial, uma vez que a manutenção
do trecho brasileiro tem sido feita com regularidade e tem permitido a
navegação contínua a 2,6 m (8 pés), em regime de águas baixas, e nas
atuais condições do comportamento do rio
893
. Há, portanto, fortes
razões estratégicas e condições favoráveis para que se concertem
posições sobre as questões pendentes, no mais breve prazo, com altos
ganhos políticos. Caso essa hipótese venha a se verificar, poder-se-ia
387
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
vislumbrar, com a concretização do cenário ideal “a”, a consolidação
do primeiro elo da infra-estrutura física da América do Sul, no âmbito
da IIRSA, que serviria como modelo de projeto integral de
desenvolvimento sustentável e daria dimensão real às aspirações da
política sul-americana do governo Lula, simbolizando sintonia entre o
discurso e o plano da ação. Ao refletir a convergência de interesses e
a capacidade de concertar posições em prol da utilização racional e
ordenada da navegação fluvial em proveito dos cinco países e do projeto
de integração, esse cenário confirmaria a hipótese de que a HPP é
emblemática de mudança de grande alcance do padrão geopolítico na
região.
A alternativa intermediária “b”, embora preserve o enfoque
global das obras, não parece ser aconselhável, tendo em conta a
experiência de que nem sempre os acordos bilaterais têm funcionado a
contento e a evidência de que o importante é a força da ação conjunta.
Este cenário revelaria ainda mudança de considerável alcance do padrão
geopolítico na região, na medida em que pressupõe a superação das
diferenças de posições entre os países interessados. Quanto maiores
as resistências ao modelo integral, menor será o alcance da mudança,
consideração que nos leva aos cenários “c” e “d”.
Não se pode deixar de considerar que, ao longo da fase dos
estudos, havia uma espécie de efeito de “ação força” que mantinha o
dinamismo do processo de negociações. Encerrada essa fase, há
indícios de distensão, sobretudo por parte da Argentina, que antecipa
dificuldades de alcançar o consenso e dispõe de meios para satisfazer
seus interesses nacionais, independentemente da conclusão de acordo
multinacional para se dar curso à execução das obras, o que
comprometeria o caráter global do projeto e induziria a altos custos
políticos e eventualmente ambientais.
Dadas as boas condições do trecho brasileiro, devido a sua
exemplar manutenção, a navegação contínua poderia vir a ser garantida
com a remoção dos passos críticos situados em território paraguaio,
ELIANA ZUGAIB
388
894
D’AMATO, Eduardo (Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto de Argentina/
Comité Intergubernamental de la Hidrovia Paraguay-Paraná /Delegación Argentina):
depoimento [19 out. 2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
895
BASADONNA, Juan Antonio (Secretario Ejecutivo - CIH): depoimento [20 out.
2004]. Entrevistador: E. Zugaib. Buenos Aires, 2004.
por meio do acordo bilateral entre Paraguai e Argentina. Factível do
ponto de vista financeiro
894
, a custos inferiores aos que resultariam de
licitação pública internacional, a alternativa não deixa de ser de interesse
da empresa concessionária das obras de dragagem entre Santa Fé e o
Oceano
895
. Esse provável cenário revelaria retrocesso, que se traduziria
em reduzido alcance da mudança de paradigma geopolítico regional e
em perspectiva de lento avanço da implementação de estrutura
institucional do Mercosul.
Embora menos provável, é de se considerar a possibilidade de
paralisação do curso de ação para a execução de futuras obras em
decorrência de eventual impasse no processo de tomada de decisões.
Nessa situação, contempla-se cenário em que a Hidrovia continuaria
sendo utilizada, apenas com obras de manutenção em seu curso. Nessa
hipótese, assim como na de possível bilateralização, estariam
comprometidos a otimização do uso racional do curso natural navegável
da via fluvial, o significativo capital político, humano e financeiro já
investidos pelos países platinos e a própria consolidação do processo
de integração.
Há, porém, traço comum aos quatro possíveis cenários. Em
qualquer uma das hipóteses, a Hidrovia, que sempre existiu como elo
de união dos países platinos, foi historicamente utilizada como meio de
transporte e acesso ao coração do continente sul-americano, continuará
existindo e seguirá assim sendo utilizada, ainda que de forma menos
eficiente, em alguns deles.
Ressurge, assim, cristalina e limpidamente dessa constatação o
valor intrínseco da via fluvial, que nada mais é do que existir em
condições navegáveis naturais, a serviço da descoberta, da conquista,
da colonização e do desenvolvimento sustentável do hinterland dos
389
PERSPECTIVAS À LUZ DA POSIÇÃO BRASILEIRA
cinco países que entrelaça, independentemente da vontade e do poder
decisório de seus governos.
CONCLUSÃO
Deduz-se das considerações tecidas no trabalho que a
relevância da Hidrovia Paraguai-Paraná adquire diferentes matizes nos
planos da infra-estrutura física nacional, sub-regional e regional. Sob
esse prisma, pode-se afirmar que a Hidrovia tem importância relativa
para o escoamento da produção do Centro-Oeste brasileiro, é
prioritária para a revitalização do processo de integração no Cone Sul
e necessária para a integração sul-americana.
Embora a HPP se tenha comprovado meio de transporte
competitivo para o escoamento da produção agropecuária e mineral
da região Centro-Oeste, a ênfase que lhe fora conferida no momento
de sua revalorização, como meio de viabilizar a expansão da fronteira
produtiva nos estados do Mato Grosso e de Rondônia, é hoje atenuada.
As limitações de ordem ambiental impostas pela existência do
ecossistema do Pantanal Mato-Grossense, no trecho do rio Paraguai
águas acima de Corumbá, justificam a maior atenção atribuída
atualmente a outros eixos de transporte alternativos
896
, como é o caso
das hidrovias Madeira/Amazonas e Araguaia/Tocantins.
CONCLUSÃO
896
Embora bem mantidos, os 700 km de rio de meandros, estreito e pouco profundo,
águas acima de Corumbá, impõem dificuldades à navegação, o que reduz a capacidade
das barcaças e requer transbordo para embarcações de maior porte em Corumbá,
aumentando o custo do transporte naquele trecho. A dimensão limitada de comboios e
a necessidade de seu desdobramento implicam volumes transportados inferiores aos
almejados pela iniciativa privada, maior tempo de navegação e maiores custos naquele
trecho.
394
ELIANA ZUGAIB
No plano sub-regional, a Hidrovia reveste-se de particular
significado por se tratar do único eixo longitudinal que atravessa o Cone
Sul, unindo fisicamente os quatro membros plenos do Mercosul e a
Bolívia, e por apresentar solução competitiva para a deficiente infra-
estrutura de transporte
897
que impede o aumento do intercâmbio de
mercadorias intrabloco. A utilização racional e ordenada da via fluvial
é, nesse sentido, premente e já demonstrou capacidade de dinamizar
as trocas no Mercosul e de atuar como fator de competitividade para
a colocação de produtos do hinterland no mercado internacional. Essas
vantagens poderão ser potencializadas com a execução das obras de
melhoria na HPP, que, ao garantir maior segurança, previsibilidade do
tempo de percurso e investimentos privados adicionais, resultará em
maior redução dos custos de transporte.
Instrumento prioritário para a revitalização do Mercosul, para
o incremento de sua participação no mercado internacional e para o
fortalecimento de sua capacidade negociadora frente a outros blocos
regionais, a HPP é um dos elementos imprescindíveis à consecução do
objetivo de mais longo prazo da política externa brasileira, a integração
com os vizinhos continentais, de que constitui núcleo a associação
Mercosul/CAN.
Eixo longitudinal mais extenso da América do Sul e elo natural
de ligação do Mercosul com a CAN e o Caribe, a Hidrovia apresenta
condições suficientes de navegabilidade com a intervenção de obras
mínimas, de custo relativamente baixo, que já dispõe de oferta de
financiamento de organismos internacionais de fomento. Emblemática
da mudança, ainda que parcial, do paradigma geopolítico da
confrontação na Bacia do Prata, é a alternativa que se encontra mais à
mão para dar sentido prático à política de infra-estrutura de transporte
regional. Além de oferecer condições naturais de navegação, suficientes
897
São conhecidas as dificuldades que a atual rede de transportes terrestres e o
congestionamento dos portos marítimos impõem aos crescentes fluxos comerciais no
Mercosul.
395
CONCLUSÃO
para o trânsito de embarcações especiais, conta com estudos de
viabilidade e impacto ambiental concluídos, é factível do ponto de vista
técnico-financeiro e exeqüível no curto prazo
898
. Tal como idealizadas
suas futuras obras de melhoria, a HPP poderá vir a constituir a primeira
iniciativa com a marca IIRSA, uma vez que já está funcionando, ainda
que não em plena eficiência, e obedece aos princípios básicos do novo
paradigma de infra-estrutura da região. Constitui espaço geoeconômico
estruturado, atravessa zonas produtivas complementares, apresenta
sinergia com os setores de energia e comunicações e prima pela busca
do equilíbrio entre a eficiência econômica e a ambiental. Encerra
também considerável potencial de ganho político, na medida em que
poderá contribuir para desencadear a materialização de outros projetos
regionais e dar forma concreta à IIRSA. Esse potencial da Hidrovia é
magnificado pelo efeito demonstrativo dos resultados já obtidos apenas
com as obras de manutenção e pela adesão angariada da iniciativa
privada, que apenas necessita de garantia de previsibilidade de prazos
de entrega para dar curso a novos investimentos programados para o
setor.
Realidade inegável, solidamente afirmada nas vertentes
geográfica e econômica da região, a HPP é referência importante para
o processo de integração em busca do desenvolvimento harmônico
dos países sul-americanos ao constituir solução competitiva de
transporte capaz de engendrar meios favoráveis ao comércio regional
sustentável. Nessas condições, a serem bem conduzidas as negociações
sobre os chamados grandes temas, na fase de transição que se inaugura,
a HPP poderá vir a cumprir seu papel de via de transporte eficiente e
competitiva e de iniciativa multinacional integradora, com benefícios
para os cinco países, comprovando a convergência entre o discurso e
a prática.
898
A proposta apresentada pelo Secretário-Geral do CIC prevê a possibilidade de se
negociar o Acordo Executivo, no prazo de 3 meses, aos quais se somariam seis meses
para realizar o processo de licitação das obras e entre 18 e 24 meses para executá-las.
396
ELIANA ZUGAIB
Embora sua importância não deva ser magnificada isoladamente
por constituir um dentre outros eixos nacionais e regionais
complementares a serviço da integração, seu valor intrínseco como elo
de união natural entre os países do Mercosul e os integrantes da CAN
a singulariza na malha de infra-estrutura de transporte que se pretende
criar na região. Ao atravessar o centro do continente, uma de suas
regiões mais ricas em recursos naturais, economicamente revitalizada
e estruturada, adquire acrescida importância como opção mais evidente
para viabilizar a integração sul-americana, donde se conclui ser seu
peso político, neste momento, mais relevante para o Brasil do que o
econômico.
O projeto HPP, concebido para adequar-se às características
naturais do ecossistema do Pantanal e do ciclo hidrológico dos rios
Paraguai e Paraná, constitui instrumento de integração adequado. Elo
natural de ligação entre os países platinos, a Hidrovia aproxima suas
zonas de produção, propiciando a formação de cadeias produtivas e
oferece alternativa de transporte competitiva em termos de custos de
frete e seguro e de impacto ambiental, o que possibilita o
desenvolvimento sustentável do hinterland, ao vinculá-lo à corrente
de comércio internacional. Não é, portanto, apenas um meio de
articulação de Cáceres a Nova Palmira para a circulação de
mercadorias na região, mas pode vir a tornar-se vínculo estratégico
fundamental com a economia mundial, capaz de contribuir para
promover os laços globais da região.
Ao possibilitar a integração de cadeias produtivas, a HPP
constitui o passo inicial para agregar valor às exportações da região e
superar os desequilíbrios entre os países que a compõem, condição
para o êxito da consolidação da Comunidade Sul-americana das
Nações. Sua zona de influência contém exemplos de potenciais enclaves
produtivos, como os complexos siderúrgico e oleaginoso, que apenas
requerem melhor coordenação de esforços para prosperar. Com
economias fortemente orientadas ao desenvolvimento agrícola,
397
CONCLUSÃO
agroindustrial e mineral, as regiões do espaço platino estão estreitamente
vinculadas à economia mundial e são capazes de atrair capitais, por
meio da integração desses setores.
Encerra ainda a via fluvial relevante fator de estabilidade política
na região ao possibilitar a saída para o mar aos países mediterrâneos,
Bolívia e Paraguai, e viabilizar o crescimento da atividade econômica
desses países, que passam por processo de transformação importante,
vinculado à diversificação de suas economias, cujos setores mais ativos
e promissores encontram-se em sua zona de influência.
A vontade política em favor da revalorização da HPP tem
sobrevivido inalterada às mudanças dos governos ao longo de
aproximadamente dezesseis anos, o que a caracteriza como decisão
estratégica. Sua área de influência abarca o próprio coração da América
do Sul, onde estão abrigadas as maiores reservas naturais e as maiores
extensões de terras cultiváveis, que, se vinculadas à corrente de
comércio internacional, permitirão que a região venha a exercer papel
relevante na economia mundial.
A integração regional e a promoção do desenvolvimento
sustentável, prioritárias na atual política externa brasileira, têm por
premissa a implementação de projetos conjuntos de infra-estrutura física
eficiente, competitiva e ambientalmente sustentável, imprescindíveis para
incrementar o comércio na região e para aumentar sua participação no
mercado internacional. Os desafios impostos pelos fenômenos da
globalização e da regionalização pressupõem a adoção de visão
integrada do espaço geoeconômico regional em contraposição às
políticas centralizadas do passado, voltadas para a auto-suficiência
econômica, como meio de satisfazer as necessidades de
desenvolvimento dentro das fronteiras nacionais.
Eixo de integração necessário, sua retomada simbolizou o
rompimento da dicotomia geopolítica Leste/Oeste – Norte/Sul, ao haver
possibilitado sua conexão de complementaridade com os corredores
de tráfego, que se impunham no passado como eixos competitivos. A
398
ELIANA ZUGAIB
revalorização da HPP já se traduz em vantagens de ordem geopolítica
e econômica para os cinco países platinos, que poderão ser ampliadas,
se executadas as futuras obras de melhoria da navegabilidade em seu
curso.
Ao Brasil propiciará maior presença político-diplomática na Bacia
do Prata; contribuirá para a expansão da atividade econômica do Centro-
Oeste, sobretudo da produção de minério de ferro; para a consolidação
da integração fronteiriça; para a diminuição dos gastos governamentais
com subsídios ao transporte terrestre; para aliviar os problemas
decorrentes da saturação dos portos do Atlântico; para reduzir os custos
de frete e para conferir competitividade aos produtos da região. A
desvantagem de eventual impacto ambiental negativo fica descartada à
luz da exclusão do trecho do Pantanal de todo e qualquer esquema de
obras e caso sejam mantidos os acordos alcançados no âmbito do CIH
para imprimir caráter integral e sustentável ao programa de melhorias.
Assim, a perda relativa da hegemonia dos portos do Atlântico parece
ser a única provável desvantagem advinda da utilização da HPP, se é
que essa pode ser considerada desvantagem no contexto de integração.
A Bolívia teria como benefício uma opção importante de saída
para o Atlântico; maior presença no rio Paraguai e maior integração na
Bacia do Prata, até agora mais simbólica do que real; a possibilidade
de expansão da produção de grãos, de exploração das minas de Mutum
e de realização de projetos energéticos.
O Paraguai, além de ver sua mediterraneidade compensada
por via de escoamento mais econômica de sua produção, com acesso
ao mar, será beneficiado por maior integração fronteiriça tripartite, pelo
almejado equilíbrio da saída pelo porto de Paranaguá e pela
possibilidade de formação de cadeias produtivas que envolvam sua
indústria siderúrgica e de cimento.
O Uruguai já se tem beneficiado com a dinamização do setor
de serviços, uma das forças motoras de sua economia, que levou o
país a propor a utilização de seus portos como solução para a saturação
399
CONCLUSÃO
dos portos atlânticos brasileiros. A possibilidade de transformar-se em
terminal de carga da Bacia do Prata constitui sua grande vantagem. O
Porto de Nova Palmira, hoje com 30 pés de profundidade, movimenta
aproximadamente 4 milhões de toneladas/ano e está competindo com
o porto argentino de Santa Fé
899
.
A Argentina finalmente vislumbra a consolidação do eixo Norte/
Sul, objetivo político-estratégico-econômico que persegue de longa
data. Um dos maiores beneficiários do aumento do fluxo de cargas no
sentido norte-sul, verá revitalizado o centripetismo de seus portos
situados nas proximidades da desembocadura do Rio da Prata e
possibilitados o desenvolvimento das regiões do NOA, do NEA e da
mesopotâmia e a consolidação da integração econômica do território
nacional. Contribuirá ainda para a reativação portuária e da frota
argentina, pelo setor privado.
Depreende-se desse quadro que todos os países beneficiam-
se em maior ou menor grau da utilização conjunta racional e eficiente
da Hidrovia. As principais vantagens comuns oferecidas pela via fluvial
são o barateamento do frete, a conseqüente maior competitividade
dos produtos regionais e a diminuição das assimetrias entre os países
que, em última análise, afiançam a política de integração regional.
A decisão política de se atribuir prioridade ao processo de
integração física sul-americana, pré-condição da integração econômica
e política continental, imprimiu nova dimensão à utilização da Hidrovia
Paraguai-Paraná. Além de servir como via de comércio regional e inter-
regional, a HPP deverá contribuir para integrar economicamente os
territórios mediterrâneos, possibilitar seu desenvolvimento sustentável
e conectar o centro do continente com outros eixos de transporte
nacionais e regionais, o que dará sustentáculo à integração econômica
e política sul-americana.
899
KOUTOUDJIAN, Adolfo. Intervenção no Seminário Intereses Argentinos en el
Mar – Ciclo Almirante Storni. Pontifícia Universidade Católica Argentina. Buenos
Aires, 25 nov. 2004. Notas tomadas pela autora deste trabalho.
400
ELIANA ZUGAIB
A transposição para esse patamar depende da ação coordenada
dos governos dos países da região, possibilitada pela superação ainda
que de alcance relativo do padrão geopolítico na Bacia do Prata, como
resposta necessária e acertada às transformações do cenário
internacional, que não deixaram espaço para os antigos processos de
nacionalismo econômico e políticas desenvolvimentistas limitadas pelas
fronteiras nacionais. A integração, única resposta viável para que a
região tenha participação no mercado internacional, depende de custos
de transporte competitivos e de cadeias de produção integradas que
propiciem ganhos de escala.
É claro o propósito do governo Lula de dar substância à política
de reforço dos laços de união dos países da América do Sul a partir da
revitalização do Mercosul e de sua associação com a CAN. A
revalorização da Hidrovia, que antecedeu a instituição do próprio
Mercosul, encerra importante significado político-estratégico ao haver
sido a primeira iniciativa capaz de contribuir para dar conteúdo à nova
política de integração que começou a se instaurar nos anos 80.
Iniciativa de integração por excelência, o projeto atinge, hoje,
o estado do inevitável, ao transcender os limites de simples meio de
transporte, devendo ser contemplado como parte significativa e
integrante do processo do Mercosul e da criação da Comunidade Sul-
Americana de Nações. A importância do projeto se renova, de fato,
neste momento em que se dá impulso à integração sul-americana com
a incorporação de novos membros associados do Mercosul e a
assinatura do acordo histórico de livre comércio com a CAN. Ponto
de convergência entre os dois principais blocos sul-americanos, a
Hidrovia constitui também um dos elos nas conexões interoceânicas
que podem multiplicar significativamente as possibilidades comerciais
da região.
A importância estratégica da Hidrovia como um dos
instrumentos que concorrem para a consecução dos objetivos
prioritários da política externa brasileira, a integração sub-regional e
401
CONCLUSÃO
regional e sua inserção competitiva no mercado internacional, ajuda a
compreender o ônus político de eventual adiamento do início da fase
de execução das obras de melhoria. Decisão dessa natureza poderia
sinalizar descompasso entre o discurso e a prática, além de
desconsiderar os recursos humanos e financeiros já empregados nos
estudos e induzir o descrédito da iniciativa pelos usuários cativos e
potenciais da via fluvial.
A revalorização da HPP foi possibilitada devido ao conceito
amplamente compartilhado por todos os países da Bacia do Prata de
que o desenvolvimento nacional é processo indissoluvelmente ligado à
integração, cuja infra-estrutura necessária não pode prescindir de meio
de transporte eficiente e competitivo para impulsionar o intercâmbio
dentro da região e sua inserção no mercado mundial. Não parece,
portanto, ser fortuita a quase coincidência cronológica dos primeiros
instrumentos que deram origem ao programa de melhoria das condições
de navegabilidade da via fluvial e ao Mercosul, que, juntamente com
outras iniciativas, constituem a base da integração regional.
Nesse sentido, observa-se vínculo conceitual entre a Hidrovia
e o Mercosul, na medida em que pelo menos três idéias básicas
permeiam ao mesmo tempo um e outro projeto: (a) a de competitividade,
uma vez que tanto a Hidrovia quanto o Mercosul foram pensados como
soma de esforços para melhor competir nos mercados internacionais,
uma das condições da promoção do desenvolvimento sustentável da
região; (b) a de desregulamentação, que propicia condições de igualdade
de oportunidades e (c) a de protagonismo empresarial, conseqüência
da desregulamentação, com o que se criam condições para o
empreendimento da iniciativa privada, no caso da Hidrovia, traduzido
em termos de investimentos na melhoria das instalações portuárias e
na renovação da frota.
À primeira vista, a retomada da utilização da Hidrovia, como
iniciativa conjunta em benefício dos cinco países, pode parecer
representativa de mudança do paradigma geopolítico vigente na Bacia
402
ELIANA ZUGAIB
do Prata até o final da década de 80, na medida em que passou a ser
encarada como eixo de transporte complementar e não competitivo
dos corredores transversais de tráfego. Como tal, possibilitou a
transposição do unilateralismo e/ou bilateralismo para o multilateralismo,
como prevê o verdadeiro espírito do Tratado da Bacia do Prata, e
ilustrou a capacidade de os países platinos iniciarem esforços de
organização de espaço físico homogêneo em proveito do conjunto,
como meio de promover o desenvolvimento da área deprimida do
interior do continente.
No entanto, uma leitura mais detida da situação deixa
transparecer que o alcance real verificável dessa mudança revela-se
relativo. O que houve na realidade foi uma adequação às novas
circunstâncias impostas sobretudo por fator externo, a transformação
da ordem econômica mundial, que induziu à mudança do paradigma
econômico regional
900
, deixando-se permanecer resquícios das
desconfianças características do comportamento externo da
confrontação. Nesse sentido, embora declaradamente iniciativa de
caráter integrador, a Hidrovia tem sido resgatada e encarada mais como
fator para facilitar o comércio e atender aos interesses nacionais.
900
É bem verdade que a aparente mudança do paradigma geopolítico da confrontação foi
condicionada por fatores de ordem política, econômica e ideológica. No entanto, a
sensível transformação da economia mundial foi decisiva, no sentido de que não deixava
espaço para alternativa, ou os países a ela se adaptavam ou correriam o risco de perder
sua identidade. Em vista dessa circunstância, impôs-se a busca de possibilidades de
sobrevivência no próprio espaço geográfico, havendo a integração sub-regional passado
a ser fruto de crescente necessidade objetiva. Contribuíram para a determinação desse
novo rumo, o peso da dívida externa, desencadeada no México, em 1982, a crise econômica
mundial, que obrigou a esforço exportador para suprir a necessidade de financiamento
em ambiente cada vez mais protecionista e fechado à produção da região e a conseqüente
tendência a expandir as fronteiras agropecuárias às zonas interiores para produtos com
crescente demanda mundial como a soja, a madeira, carnes, etc. Ademais dessa imposição
exógena do mercado, a crise econômica do mundo em desenvolvimento colocou em
xeque o esquema centro-periferia nos grandes países, com a retomada pelos estados
interiores do manejo de seus próprios recursos naturais e de sua vinculação com o
mercado externo. (Cf. KOUTOUDJIAN, Adolfo. Hidrovía Paraguay-Paraná.
Apreciación Geopolítica y Económica de sus intereses. In: Geopolítica hacia una
doctrina nacional. Buenos Aires, año XVI, n. 41, pp. 65-66, jul.-sept. 1990).
403
CONCLUSÃO
Os benefícios diretos advindos do uso compartilhado da via
fluvial são distintos para cada país e explicam até certo ponto as
dificuldades de conciliar posições que têm sido negociadas ao longo
de quase dezesseis anos. Essas dificuldades, mais contundentes no
que diz respeito à prevalência do componente ambiental sobre o técnico
e o econômico-financeiro, à adoção do método integral de análise e
de execução das obras e à forma de sua administração conjunta,
evidenciam resistências dos países de ultrapassar os limites da esfera
nacional. Embora o objetivo último da iniciativa seja convergente, as
demandas de cada país e suas vulnerabilidades são distintas, o que
leva à divergência de posições marcadas pela dificuldade de encontrar
equilíbrio entre a lógica do melhor aproveitamento econômico e a
necessária preservação ambiental. O desafio de aproximar as diferentes
posições demanda também a capacidade de assumir responsabilidades
compartilhadas e de conciliar os interesses nacionais com os regionais,
para que os benefícios sejam eqüitativos. Tal atitude pressupõe a
eliminação de vestígios do antigo paradigma que ainda subsistem de
forma velada e dificultam a consolidação do paradigma da cooperação
e complementação, que hoje se confunde com liberalização de
comércio.
Fazendo lembrar antigas rivalidades, a disputa pelo diferencial
de poder individual, com o intuito de ampliar a área de influência, cede
hoje lugar à competição velada pela liderança do processo de
integração, que ainda apresenta laços tênues. À imagem de plena
sintonia e coesão do discurso corresponde relação de competitividade
onde se conjugam liderança e iniciativa brasileiras. Subjaz também ao
espírito de competição e suspicácia entre os países a dificuldade de
conviver com inevitáveis elementos de supranacionalidade, o que é
compreensível nesta fase em que ainda não há consenso de coordenação
de políticas e de objetivos.
A preferência por manter a execução e administração do
projeto HPP no âmbito da Bacia do Prata, opção que oferece segurança
404
ELIANA ZUGAIB
jurídica em detrimento de organismo executor e administrador
independente, não deixa de trazer à tona certo grau de desconfiança
ainda existente entre os dois principais atores da região, Brasil e
Argentina.
A manutenção desses traços do padrão de comportamento
característico da década de 70 é inevitável, uma vez que a configuração
dos atores das disputas na Bacia do Prata, hoje protagonistas da
integração regional, permanece a mesma e seu comportamento externo
é decorrente de desequilíbrios de ordem geográfica, demográfica e
econômica. Continua havendo 2 atores principais e 3 secundários
marcados por acentuadas assimetrias. O que mudou foi a regra do
jogo geopolítico, em decorrência da necessidade de enfrentar desafios
comuns. Os objetivos concorrentes do passado cederam lugar a metas
que só podem ser alcançadas mediante estratégias conjuntas. O fato
dessa mudança de perspectiva haver sido imposta por fatores exógenos
e o pouco tempo de vivência do processo de integração explicam,
entre outras razões, as resistências à superação total do paradigma da
confrontação em favor do modelo de cooperação e complementação
regional.
O objetivo da integração não parece ser ainda contemplado
pelos cinco países como processo de fusão, tendente à união política
ou econômica, ou à comunidade supranacional. No âmbito do Tratado
da Bacia do Prata, os países comprometem-se a cooperar até onde
seja possível o exercício de suas faculdades soberanas e se propõem
lograr integração crescente, sem que em momento algum deixem
entender que estão dispostos a fazer cessão de algumas das faculdades
que lhes são conferidas por seus direitos soberanos.
Brasil e Argentina continuam sendo os dois países com meios
para exercer influência sobre os demais, com vistas a satisfazer seus
interesses nacionais. O Brasil mantém linearidade em suas posições e
continua dispondo, entre outros fatores, de condição privilegiada como
detentor do controle das nascentes dos rios, como único país com
405
CONCLUSÃO
possibilidade para operar simultaneamente os dois eixos de transporte
da Bacia, o Norte-Sul e o Leste-Oeste, e como país de menor
dependência da Bacia do Prata para desenvolver-se.
A Argentina conserva traços de seu tradicional comportamento
inconstante, que oscila entre o integracionismo e o anti-integracionismo.
Ao propor a aliança de integração na década de 60, procurou o país
atrelar o Brasil a sistemática que, vinculando-o a processo de decisão
supranacional, tolheria em última análise sua autonomia para desenvolver
projetos nacionais. No presente, ao longo das negociações no âmbito
do CIH, insistiu em impor esquema supranacional de administração da
Hidrovia para impedir que o Brasil viesse a minar ou retardar a execução
do projeto, em decorrência das dificuldades de ordem ambiental. Diante
da certeza do veto brasileiro à criação de organismo independente,
passou a contemplar a possibilidade de manter o desenvolvimento da
HPP no âmbito do Tratado da Bacia do Prata, onde, ao abrigo do
artigo VI, poderá recorrer a acordos bilaterais para garantir a execução
imediata das obras de melhoria nos pontos mais críticos, em território
paraguaio. A exemplo do ocorrido no passado, a Argentina parece
haver optado novamente por fazer alianças com os países menores
como meio mais viável do que a negociação com o Brasil.
O Paraguai continua sendo país chave, posicionado no centro
da Hidrovia, onde está localizada a maior concentração de pontos
críticos, que podem comprometer a navegação contínua, o que lhe
permite manter sua tradicional atitude de país pêndulo. Muito
provavelmente, penderá o país para a órbita do vizinho que oferecer
maiores atrativos para a realização das obras em seu território. Nas
condições atuais, os interesses econômico-comerciais específicos do
Paraguai na HPP aproximam-se mais das aspirações da Argentina do
que das do Brasil, uma vez que estão fundamentadas nas vantagens
advindas do aumento do tráfego.
Ao que tudo indica, a Argentina dispõe hoje de possibilidade
de fazer alianças com o Paraguai para atingir seus objetivos nacionais,
406
ELIANA ZUGAIB
901
Os termos “tempo político” e “tempo econômico” encontram referência em D’Amato.
Ver em El tiempo de la política condiciona la hidrovía. In: El Cronista comercial,
Buenos Aires, 01 dic.2004, cópia mimeografada.
caso o esquema multinacional venha a falhar. Não se descarta, assim,
a eventualidade de retrocesso ao antigo esquema de bilateralização
que serviu, na década de 70, para contornar a letra do Tratado da
Bacia do Prata, instrumento de ação multilateral por excelência que,
ao consagrar o vínculo dos países platinos em torno de esforços
conjuntos, com o intuito de promover a integração física e organizar
o aproveitamento compartilhado dos recursos naturais da região,
tornava-se teoricamente incompatível com o paradigma da
confrontação.
A capacidade do Brasil de influir, devido, entre outros fatores,
a sua posição de detentor das nascentes dos rios platinos, que contribuiu
para reorientar o projeto HPP, é agora restringida pela própria ação
exemplar do Governo brasileiro na condução das obras de manutenção
em território nacional, hoje seu tendão de Aquiles. O poder de influência
do Brasil reduz-se ao veto que, neste estágio, não impedirá a Argentina
de avançar fazendo obras fragmentadas, e a sua comprovada
capacidade negociadora que poderá conduzir ao consenso e colocar
em sintonia os tempos político e econômico
901
, para assegurar o
caráter global e integrador da iniciativa.
Invertem-se hoje os papéis inerentes ao paradigma da
confrontação. O Brasil busca impor o método e a execução integrais
das obras, obedecendo ao tempo político, o da integração, que é
elástico, o que é compreensível, dada sua posição confortável de menor
dependência da via fluvial. A Argentina, ao contrário, optou pelo tempo
econômico, o do empresariado, que é inelástico e exige resposta
imediata.
Embora reconheça que o ideal seria que as duas dimensões de
tempo caminhassem juntas, ao antecipar dificuldades para se alcançar
o consenso sobre os grandes temas, entende a Argentina ser necessário
407
CONCLUSÃO
priorizar o tempo econômico na nova etapa de transição, fazendo o
máximo de obras possíveis, por meio de acordos bilaterais e com
recursos de que dispõe o Estado, se necessário. Esse cenário, em
muito se assemelha ao que caracterizou a diplomacia das palavras
versus a diplomacia dos fatos na década de 70.
No momento em que se busca resgatar o verdadeiro espírito
do Tratado da Bacia do Prata, tendo como pano de fundo o paradigma
da cooperação, o mesmo recurso que servira ao Brasil para satisfazer
seus interesses nacionais em detrimento dos interesses regionais poderá
ser agora invocado pela Argentina com o propósito de justificar seus
movimentos táticos para avançar na fase da execução das obras de
melhoramento na Hidrovia, no mais breve prazo e de forma
fragmentada.
A se confirmar essa hipótese, repetir-se-á a mesma lógica do
relacionamento externo que prevalecera no espaço platino, em que se
buscavam instrumentos e alianças bilaterais para impulsionar o
desenvolvimento dentro das fronteiras nacionais. Nesse sentido, pode-
se dizer que, no passado, configurava-se a Bacia do Prata como sub-
região congregada por pacto cuja declaração de forma era orientada
pelo princípio integrador, mas, na prática, marcado por geopolíticas
antagônicas, situação que se arrasta no presente, porém caracterizada
por posições divergentes sobre a utilização de seus recursos hídricos
como meio de transporte competitivo.
A dificuldade demonstrada pelos países de ceder faculdades
denuncia que os laços de cooperação são ainda tênues para que se
venha a conformar entidade de natureza supranacional encarregada da
administração conjunta da HPP. Nesta fase do processo de
aproximação regional, o Tratado da Bacia do Prata parece ser o
instrumento adequado para continuar abrigando o projeto, no seio do
qual, os países signatários sentem-se mais seguros por não precisarem
abrir mão de suas faculdades soberanas. É a alternativa mais viável
para agilizar o início da fase de execução das obras, por constituir
408
ELIANA ZUGAIB
estrutura já existente e um de seus órgãos, o CIC, dispor de
personalidade jurídica.
A presença diplomática brasileira na Bacia do Prata tem sido
uma constante e o Brasil demonstrou, até o momento, expressiva
capacidade de influência, ao fazer prevalecer seus interesses nacionais
e regionais, pela via da negociação, e por saber entender e dar respostas
adequadas às mudanças do cenário internacional nos últimos séculos.
Manipulou os eixos da corrente de comércio e de comunicação no
espaço platino de acordo com sua conveniência para a consecução
dos objetivos nacionais e de suas pretensões continentais.
No século XIX, logrou a consagração do princípio da livre
navegação e instaurou o eixo Norte/Sul para satisfazer suas necessidades
de expansão e consolidação dos territórios interiores conquistados.
Apoiou o processo de independência dos países menores, o que lhe
convinha, pois a “balcanização” da América espanhola impediria a
instauração da hegemonia do Vice-Reinado do Prata, sob a liderança
de Buenos Aires, e o conseqüente controle de sua desembocadura.
Soube, para isso, tirar proveito dos interesses da França e da Inglaterra
na região, as duas grandes potências européias à época.
No século XX, impôs o modelo geopolítico na Bacia do Prata,
baseado na supremacia dos eixos transversais sobre o eixo longitudinal
de transporte, para neutralizar a influência platina da Argentina, num
primeiro momento, e, mais tarde, atender às necessidades de
exportação e viabilizar as conexões bioceânicas. Como resposta à
configuração do mundo bipolar, fez da aliança com os EUA instrumento
para fortalecer sua presença na região e impulsionar o desenvolvimento
nacional. Logrou, novamente pela via da negociação, derrotar o
princípio da consulta prévia e consagrar o regime de uso dos rios
internacionais, que atendia aos interesses nacionais de desenvolvimento
e de expansão da área de influência brasileira. Em resposta aos
fenômenos da globalização/regionalização e da consolidação de blocos
econômicos, revalorizou o eixo Norte/Sul para atender à necessidade
409
CONCLUSÃO
de desenvolvimento da região Centro-Oeste e de fortalecimento do
Mercosul, núcleo da integração sul-americana e veículo de inserção
internacional.
No século XXI, cabe ao Brasil o desafio de assumir a liderança
no processo de consolidação do paradigma da integração e
complementação na região, de que é emblemática a HPP, primeira
proposta de projeto de utilização fluvial compartilhada na América do
Sul, de sua iniciativa, cuja importância transcende seu significado
geoeconômico no espaço integrado da Bacia do Prata e do Mercosul.
Eixo histórico, encerra valor intrínseco, na medida em que as obras e
ações desenvolvidas em seu curso foram determinantes da política
externa dos países platinos e assim continuará sendo.
Desde que se iniciaram as negociações no âmbito do CIH, os
esforços empreendidos pela diplomacia brasileira ao longo destes
últimos dezesseis anos permitiram aproximar posições em torno de
questões-chave para imprimir caráter sustentável e integral ao projeto
Hidrovia. Garantiu-se a otimização do uso da via fluvial, com
intervenções mínimas em alguns trechos; a primazia do componente
ambiental sobre os componentes técnico e econômico-financeiro, o
que assegurou a exclusão do Pantanal de todo e qualquer plano de
obras; o consenso em torno do PAI e do PGA, elementos essenciais à
incorporação do enfoque global e, conseqüentemente, do caráter
multinacional ao projeto, aproximando-o do novo paradigma de infra-
estrutura instaurado pela IIRSA.
A posição brasileira tem sido, portanto, determinante ao longo
de todo o processo negociador. Ao constituir o país com a menor
dependência da HPP, pode contemplar a execução das obras em mais
longo prazo, o que não deixa de ser percebido como atitude
obstrucionista. Nesse sentido, a defesa em favor da criação de entidade
administradora independente pelos outros países tem sido muito mais
uma forma de contornar a rigidez e os atrasos decorrentes da posição
brasileira durante a fase de elaboração dos estudos de viabilidade
410
ELIANA ZUGAIB
técnico-econômica e de impacto ambiental, do que reflexo de
maturidade para enfrentar o processo de integração.
Uma vez encerrada a primeira etapa das negociações com a
conclusão dos estudos, o veto brasileiro ao pronto início da execução
das obras terá pouco peso e poderá levar ao bilateralismo, diante da
determinação do atual governo argentino, cuja ação está mais voltada
para dentro das fronteiras nacionais, de demonstrar eficácia e oferecer
resposta imediata à iniciativa privada.
O estágio a que se chegou, neste período de transição, constitui
ponto de inflexão em que, embora pareça não haver espaço para
retrocessos, por ser a HPP uma realidade e já se encontrar no imaginário
do empresariado, corre-se o risco de a Argentina recorrer à diplomacia
dos fatos. O possível recurso ao bilateralismo comprometeria a natureza
multinacional que sempre se quis imprimir à iniciativa, declarada por
todos como obra de integração regional, e denunciaria a ineficácia do
Sistema da Bacia do Prata.
A prevalecer essa hipótese, o maior ônus político recairia sobre
o Brasil a quem se atribuiria a responsabilidade pelo fracasso das
negociações multilaterais, o que serviria de justificativa para a atitude
argentina, e denunciaria descompasso entre o discurso e a prática sobre
o tema mais candente da diplomacia presidencial do atual governo.
No entanto, caso o Brasil assuma a liderança do processo de
negociações dos grandes temas, que coincidentemente se inaugura com
o exercício de sua presidência pro tempore do CIH, agilize o processo
negociador e conduza à convergência de posições, poderá capitalizar
o ganho político de ser o protagonista do primeiro projeto regional de
utilização fluvial compartilhada na América do Sul, que contribuirá para
consolidar o novo paradigma da cooperação, e dar forma concreta ao
núcleo da integração física sul-americana.
Para o Brasil prepondera atualmente a importância político-
estratégica da Hidrovia, como instrumento de consecução de objetivos
externos de curto, médio e longo prazos. Sua vertente econômica
411
CONCLUSÃO
adquirirá maior relevância quando oferecer melhores condições de
segurança e previsibilidade do tempo de percurso, o que só se
conseguirá com a implementação de futuras obras de melhoria.
Os esforços empreendidos para a revalorização da Hidrovia,
por meio da harmonização de normas, da ação coordenada e do manejo
sustentável dos recursos naturais, que de outra forma se deteriorariam,
encerram grande potencial de contribuir para a criação de eixo de
desenvolvimento organizado e sustentável na região, permitindo tirar
proveito de nossas complementaridades econômicas, que são também
geográficas.
Uma das características do paradigma da cooperação é o
empreendimento de esforços conjuntos em proveito dos cinco países
e do projeto de integração. Sendo a HPP de importância relativa para
o escoamento da produção do Centro-Oeste, o Brasil deixaria entrever
disposição política autêntica de contribuir para a instauração do modelo
integracionista na região.
O momentum atual, em que há convergência de visões sobre
o destino continental e a forma de inserção no cenário internacional, é
propício a que se dê novo impulso a essa iniciativa emblemática da
integração física do Mercosul. O efeito demonstrativo da capacidade
de os cinco países coordenarem posições, com resultados concretos
em proveito do conjunto, poderá constituir elemento-chave para dilatar
o alcance relativo da superação do paradigma da confrontação na Bacia
do Prata. Trata-se de comprovar que os países engajados no processo
de integração são capazes de realizar iniciativa multinacional, que
pressupõe a conciliação de interesses nacionais e regionais. A outra
integração, econômica e política, será muito mais viável e irreversível
no futuro se assentada na base sólida da eficiência da infra-estrutura
múltipla e complementar regional:
A integração da América do Sul é uma prioridade do
Governo do Presidente Lula. Acreditamos que a aproximação
entre os países do continente é o melhor caminho para a
construção da América do Sul democrática, próspera e justa.
Precisamos de mais integração. Mais integração comercial, como
a que estamos construindo com a rede de acordos do Mercosul
com parceiros da região. Mais integração física, com obras de
infra-estrutura que eliminem os obstáculos que ainda existem à
circulação de bens e pessoas ente nossos países. Mais integração
política, com o aumento dos contatos entre nossos governos e
nossas sociedades
902
.
A colocação em prática dos propósitos que reflete essa
afirmação será tanto mais viável se conferido o devido valor estratégico
à HPP, a um só tempo eixo de circulação Norte/Sul da Bacia do Prata,
do Mercosul ampliado e da emergente Comunidade Sul-Americana
de Nações, com vantagens competitivas em relação a outros meios de
transporte e potencial para vir a ser o núcleo representativo da
instauração do paradigma de cooperação e de complementação
regional.
902
AMORIM, Celso. Entrevista concedida ao jornal “A Classe Operária”, em 25/08/
2004. Disponível em <www.mre.gov.br>. Acesso em: 03 jan. 2005.
412
ELIANA ZUGAIB
ANEXOS
Figura 1 - Eixos Longitudinais da IIRSA
Fonte: IIRSA
Figura 1a - Eixo Andino Sul
Figura 1b - Eixo Andino
Figura 1c - Eixo Hidrovia Paraguai-Paraná
Figura 2 - Bacias Hidrográficas dos rios
Orinoco, Amazonas e do Prata
Fonte: ESTELLAN, Gualberto Ruiz. Diagnóstico del Transporte Internacional y su
Infraestructura en América del Sur (DITIAS). Modo Fluvial (Cuenca del Plata).
Montevideo: Asosiación Latinoamericana de Integración, septiembre de 2000. p. 17
Tabela 1 - Distribuição da Área da Bacia do Prata
Fonte: CAF. Los Rios nos unen. Integración Fluvial Suramericana. Santa Fé de Bogotá,
Colômbia: jorge Perea Borda, 1998. p.175
Figura 3 – Sistema Platino
Fonte: ESTELLAN, Gualberto Ruiz. Diagnóstico del Transporte Internacional y su
Infraestructura en América del Sur (DITIAS). Modo Fluvial (Cuenca del Plata).
Montevideo: Asosiación Latinoamericana de Integración, septiembre de 2000. p.22
Figura 4 – Hidrovia Paraná-Paraguai e portos
da Bacia do Prata
Fonte: ESTELLAN, Gualberto Ruiz. Diagnóstico del Transporte Internacional y su
Infraestructura en América del Sur (DITIAS). Modo Fluvial (Cuenca del Plata).
Montevideo: Asosiación Latinoamericana de Integración, septiembre de 2000. p.25
Tabela 2 – Delimitação física da Hidrovia Paraná – Paraguai
Extensão: 3.442km (Porto Cáceres – Nova Palmira)
Fonte: FRAGA, Jorge Alberto. Cuenca del Plata, Río de la Plata e Hidrovía;
tendencias geopolíticas y esfuerzos de integración. In: Revista de la Escuela Nacional
de Inteligencia. Secretaría de Inteligencia de Estado, República Argentina, vol. II, nr.
1, primer cuatrimestre, 1993, p.119.
Figura 5 – HPP: Rede de Transporte
Fonte: BASADONNA, Juan António. Secretaria Executiva do CIH. 2004. Cedido
por meio digital
Figura 6 – Malha Portuária dos Países da Bacia do Prata
Fonte: ESTELLAN, Gualberto Ruiz. Diagnóstico del Transporte Internacional y su
Infraestructura en América del Sur (DITIAS). Modo Fluvial (Cuenca del Plata).
Montevideo: Asosiación Latinoamericana de Integración, septiembre de 2000. pp.29-43.
Figura 6a – Argentina
Figura 6b – Bolívia
Figura 6c – Brasil
Figura 6d – Paraguai
Figura 6e – Uruguai
Tabela 3 – Comparação entre os distintos meios de transporte
Fonte: INSTITUTO DE INVESTIGACIONES ECONÓMICAS (I.I.E.). El Balance
de la Economía Argentina. Alianças Inter-Regionales. Córdoba, Argentina: Talleres
Gráficos de Ediciones Eudecor SRL, 2003. p.98.
Figura 7 – Hidrovia Tietê-Paraná
Fonte: ESTELLAN, Gualberto Ruiz. Diagnóstico del Transporte Internacional y su
Infraestructura en América del Sur (DITIAS). Modo Fluvial (Cuenca del Plata).
Montevideo: Asosiación Latinoamericana de Integración, septiembre de 2000. p.60
Tabela 4 – Embarcações na Hidrovia Paraná-Paraguai
Fonte: INTERNAVE Engenharia. Hidrovia Paraguai-Paraná. Estudo de Viabilidade
Econômica. Relatório Final. Volume II, pp. 2.5/16
Notas: ( ) – os números entre parênteses indicam dados incompletos, valores aproximados
* – não estão incluídos 4 rebocadores que operam na região do Delta do Rio Paraná
Tabela 5 – Embarcações operacionais na Hidrovia Paraná-
Paraguai (menos de 30 anos de idade)
Fonte: INTERNAVE Engenharia. Hidrovia Paraguai-Paraná. Estudo de Viabilidade
Econômica. Relatório Final. Volume II, pp. 2.5/16
Notas: ( ) – os números entre parênteses indicam informação incompleta
* – não incluem cerca de 150.000 tpb de embarcações utilizadas em transporte
local, a curta distância dos portos de areia, cascalho, etc.
Tabela 6 – Movimento de carga nos portos da Hidrovia
Paraná-Paraguai (1987).
Trecho brasileiro.
Fonte: Ministério dos Transportes. I Encontro Internacional para o
desenvolvimento da Hidrovia Paraguai-Paraná. Campo Grande, 1988. p.26.
Notas: * - Tráfego com origem e destino no Brasil
** - Tráfego com origem ou destino fora do país
Tabela 7 – Fluxo de cargas movimentadas na HPP (em mil
toneladas) – 1987
Fonte: Baseado em CIH. Grupo de Trabajo “Ad Hoc” de los Países de la Cuenca del
Plata. Hidrovía Paraguay-Paraná. Estudio de Pre-Factibilidad. Noviembre de 1988
e Ministério dos Transportes. I Encontro Internacional para o desenvolvimento da
Hidrovia Paraguai-Paraná.
* O movimento de cargas fluviais bolivianas encontra-se incluído nas estatísticas dos
portos brasileiros e argentinos.
Tabela 8 – Passos críticos
Fonte: BASADONNA, Juan António. Secretaria Executiva do CIH. 2004. Cedido
por meio digital
Tabela 9 – Cargas da zona de influência movimentadas pela
HPP (2002)
Fonte: COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe.. Informe final, junio
de 2004. Componente Económico-Financiero. p.107.
Tabela 10 – Cargas movimentadas pela HPP originadas por
país (2002)
Fonte: COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe.. Informe final, junio
de 2004. Componente Económico-Financiero. p.107.
Gráfico 1 – Gráfico Anual de Movimentação de Cargas na
Hidrovia
Fonte: AHIPAR
Gráfico Anual de Movimentação de Cargas na Hidrovia
Tabela 11 – Custo total estimado para as obras de dragagem
Porto Quijarro (Canal Tamengo)/Corumbá/Santa Fé
Fonte: COINHI. Estudio Institucional-Legal, de Ingeniería, Técnico y Económico
Complementario para el Desarrollo de las Obras en la Hidrovía Paraguay-Paraná
entre Puerto Quijarro (Canal Tamengo), Corumbá y Santa Fe. Informe final,
Sintesis, junio de 2004. p.13.
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