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O Brasil e a América do Sul:
Desafios no Século XXI
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FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente Jeronimo Moscardo
CENTRO DE HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO DIPLOMÁTICA
Diretor Álvaro da Costa Franco
INSTITUTO DE PESQUISA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Diretor Carlos Henrique Cardim
A Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores
e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira.
Sua missão é promover a sensibilização da opinião publica nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa
brasileira. A Funag tem dois órgãos específicos singulares:
Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI) – tem por objetivo desenvolver e divulgar estudos e pesquisas sobre as relações
internacionais. Com esse propósito:
promove a coleta e a sistematização de documentos relativos ao seu campo de atuação;
fomenta o intercâmbio científico com instituições congêneres nacionais, estrangeiras e internacionais, e
realiza e promove conferências, seminários e congressos na área de relações internacionais.
Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD)cabem-lhe estudos e pesquisas sobre a história das relações internacionais
e diplomáticas do Brasil. Cumpre esse objetivo por meio de:
criação e difusão de instrumentos de pesquisas;
edição de livros sobre história diplomática do Brasil;
pesquisas, exposições e seminários sobre o mesmo tema;
publicação do periódico Cadernos do CHDD.
Ministério das Relações Exteriores
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O Brasil e a América do Sul:
Desafios no Século XXI
A Integração Sul-Americana: uma idéia ainda fora do lugar?
Tatiana Lacerda Prazeres
Identidade, Desenvolvimento e Integração:
desafios para o Brasil e a América do Sul no século XXI
Ângela Maria Carrato Diniz
Desenvolvimento como Integração
Maurício Santoro Rocha
Brasília, 2006
Prêmio América do Sul - 2005
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão (Funag)
Ministério das Relações Exteriores
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Impresso no Brasil 2006
Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional
conforme Decreto n° 1.825 de 20.12.1907
FOTO DA CAPA: “La Mina”. 1976. La Paz.
Mixta-madera. Museo Nacional de Arte. La Paz.
Equipe Técnica
Coordenação:
CLAUDIO TEIXEIRA
ELIANE MIRANDA PAIVA
Assistente de Coordenação e Produção:
A
RAPUÃ DE SOUZA BRITO
Programação Visual e Diagramação:
P
AULO PEDERSOLLI
O Brasil e a América do Sul: desafios no século XXI / Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão:
Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2006.
150p. (Coleção América do Sul)
ISBN 85-7631-060-0
Conteúdo: A integração Sul-Americana: uma idéia fora do lugar? / Tatiana Lacerda
Prazeres - Identidade, desenvolvimento e integração: desafios para o Brasil e a América do
Sul no Século XXI / Angela Maria Carrato Diniz - Desenvolvimento como integração /
Mauricio Santoro Rocha.
Prêmio América do Sul - 2005.
1. América do Sul - Integração regional. I. Prazeres, Tatiana Lacerda. A integração Sul-
Americana: uma idéia fora do lugar? II. Diniz, Ângela Maria Carrato. Identidade,
desenvolvimento e integração... III. Rocha, Mauricio Santoro. Desenvolvimento como
integração.
CDU 339.92 (8)
(ed. 1997)
Sumário
PREFÁCIO - MARIA STELA POMPEU BRASIL FROTA .................................................. 9
CAPÍTULO I
- A integração sul-americana:
uma idéia ainda fora do lugar? -
TATIANA LACERDA PRAZERES ........................ 13
1 - Das primeiras cogitações à conformação da Alalc:
os primórdios da integração sub-regional
......................................... 17
2 - Sobre o excesso de ambição e de rigor: o descrédito da Alalc ...... 21
3 - Sobre flexibilidade: a substituição da Alalc pela Aladi .................. 26
4 - Sobre avaliação de resultados, relação de causalidade e
a falácia post hoc .............................................................................. 30
5 - Do fôlego integracionista dos anos 1990 e da ação
sul-americana
...................................................................................... 36
6 - O Brasil, a Comunidade Sul-Americana de Nações e um novo
ânimo para a integração regional ..................................................... 43
7 - Considerações finais ................................................................... 57
8 - Referências bibliográficas ............................................................ 59
CAPÍTULO II
- Identidade, Desenvolvimento e Integração: Desafios para o
Brasil e a América do Sul no Século XXI -
ÂNGELA MARIA CARRATO DINIZ ....... 67
1 - Introdução ..................................................................................... 67
2 - Uma mudança muito mais que conceitual ................................. 70
2.1 - Sem exclusões ou confronto ............................................. 73
3 - O multilateralismo necessário ..................................................... 74
3.1 - América do Sul como cenário estratégico distinto ............. 75
3.2 - Hegemonia, coerção e tirania ............................................ 78
3.3 - Múltiplas agendas e negociações ...................................... 80
3.4 - Crescimento econômico, proteção ambiental e
justiça social ................................................................................ 83
4 - O Brasil e a unidade Sul-Americana............................................ 85
4.1 - Votos e política externa: alterando um velho adágio .......... 87
4.2 - Conhecer para superar equívocos .................................... 89
4.3 - Mercosul, Comunidade Sul-Americana e Alca .................. 91
5 - Redesenhando a própria identidade ........................................... 93
5.1 - Entre o local e o global ....................................................... 95
5.2 - Novos atores invadem a cena internacional ...................... 98
5.3 - No ar: A TV Brasil e a Telesur ............................................. 99
5.4 - Vetores para a integração .................................................. 102
6 - Considerações finais ................................................................... 106
7 - Referências Bibliográficas ........................................................... 107
CAPÍTULO III
- Desenvolvimento como Integração - MAURÍCIO SANTORO ROCHA ............. 113
1 - Introdução ..................................................................................... 113
2 - O Lugar da América do Sul ........................................................ 114
2.1 - O Espaço Secundário ........................................................ 114
2.2 - A Sul-Americanização da Política Externa Brasileira ....... 118
2.3 - Resumo ............................................................................... 124
3 - Os Impasses na Integração Sul-Americana .............................. 125
3.1- A Era de Ouro do Mercosul (1991–1998) .......................... 125
3.2 - Crises e Vulnerabilidade Externa ....................................... 126
3.3 - Instabilidade Doméstica ..................................................... 131
3.4 - Resumo ............................................................................... 135
4 - Desenvolvimento como Integração ............................................. 136
4.1 - Em Busca do Regional-Desenvolvimentismo ................... 136
4.2 - Desenvolvimento como Integração .................................... 138
4.3 – Resumo .............................................................................. 142
5 - Conclusões ................................................................................... 143
6 - Referências Bibliográficas ........................................................... 146
A América do Sul é uma prioridade da política externa
brasileira.
Contudo, verifica-se sério déficit de reflexões e de textos sobre
a América do Sul e sobre os países da região.
Com o objetivo de contribuir para estimular o estudo e a
pesquisa sobre questões do continente sul-americano, a Fundação
Alexandre de Gusmão (FUNAG) instituiu, em 2005, o Prêmio América
do Sul, a ser concedido anualmente aos autores das três monografias
selecionadas por uma douta Comissão Julgadora. A iniciativa tem
como público alvo a comunidade brasileira de Mestres e Doutores.
A premiação é de R$ 15 mil, R$ 10 mil e R$ 5 mil para o primeiro,
segundo e terceiro classificados, respectivamente.
O Brasil e a América do Sul: Desafios no Século XXI foi o
tema para esta primeira edição do Prêmio América do Sul.
A Banca Julgadora dos trabalhos concorrentes foi integrada
pelos Professores Paulo Vizentini (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul –UFRGS), Tullo Vigevani (Universidade Estadual de
São Paulo – UNESP), e Eugênio Vargas Garcia (Instituto Rio Branco
– IRBr).
Em ato realizado no Palácio Itamaraty, em Brasília, o Secretário-
Geral das Relações Exteriores, Embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães, entregou, em 20 de dezembro de 2005, os prêmios aos
três primeiros colocados:
Prefácio
9
- Tatiana Lacerda Prazeres (Universidade de Brasília - UnB)
A Integração Sul-Americana: uma idéia ainda fora do lugar?”
- Ângela Maria Carrato Diniz (Universidade de Brasília - UnB)
“Identidade, Desenvolvimento e Integração: Desafios para o Brasil e a América do
Sul no Século XXI”
- Maurício Santoro Rocha (Universidade Cândido Mendes - UCAM)
“Desenvolvimento como Integração”
A publicação deste livro com as três monografias premiadas
faz parte do regulamento do Concurso Prêmio América do Sul -
contribuição da FUNAG para a integração regional.
Maria Stela Pompeu Brasil Frota
*
Embaixadora
10
P
REFÁCIO - EMBAIXADORA MARIA STELA POMPEU BRASIL FROTA
*
A Embaixadora Maria Stela Pompeu Brasil Frota foi presidente da FUNAG no período de
08/03/2005 a 24/03/2006, e o Prêmio América do Sul foi lançado durante sua gestão.
1
A integração sul-americana:
uma idéia ainda fora do lugar?
Nenhum país da América Sul mantém-se alheio ao tema da integração
sub-regional, ainda que, no discurso, o estreitamento dos vínculos na
vizinhança tenha sido recorrente na agenda da região e perpasse a história
de cada um dos países que a compõem. Desde as independências no
subcontinente, nunca se descartou a retórica da integração regional, jamais
se deixou de evocar o vaticínio bolivariano e assim se foi conformando o
legado da promessa da integração regional. Geração após geração, país a
país, os líderes locais parecem herdar e transmitir o compromisso moral
de concretizar o que o destino lhes teria reservado.
A dificuldade em conferir concretude à missão, mesmo assim, faz-se
presente ao longo da sucessão de iniciativas em prol da integração regional.
A expressiva figura do “arquipélago continental”, empregada por Saraiva
Guerreiro para descrever a América Latina
1
, sintetiza o locus pouco
privilegiado para o sucesso de empreitadas integrativas, ao mesmo tempo
que torna evidente a importância de se aprofundarem os vínculos regionais.
Em uma avaliação dos percalços dos planos integracionistas,
logo se constata que as prioridades dos países da região parecem muito
sujeitas às vicissitudes políticas nacionais. As iniciativas de integração
na América do Sul sofrem o impacto da falta de compromisso de
A integração sul-americana:
uma idéia ainda fora do lugar?
*
Tatiana Lacerda Prazeres é graduada em Direito e em Relações Internacionais, é especialista
em Comércio Exterior, mestre em Direito Internacional e atualmente cursa doutorado em
Relações Internacionais na Universidade de Brasília. É Consultora de Relações Internacionais
da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).
1
SARAIVA GUERREIRO, Ramiro. “A integração latino-americana”. In: SEMINÁRIOS
sobre Integração Latino-Americana. Brasília: EDUnB, 1982. p. 15.
13
Tatiana Lacerda Prazeres
*
14
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
seus ditos sócios com iniciativas que não sejam autocentradas e,
igualmente, com as que ofereçam resultados tão-somente em longo
prazo. Com freqüência desmedida, projetos de Estado são percebidos
como projetos de governo e acabam dependendo excessivamente da
liderança política que circunstancialmente esteja no poder. As
dificuldades econômico-estruturais, os interesses contraditórios, a
ausência de uma cultura pró-integração, o viés nacionalista, alguns
traços de rivalidades regionais – todos são componentes de um cenário
que veio a se tornar pouco propício ao sucesso do empreendimento
integracionista. A integração, com efeito, sempre pareceu uma idéia
um tanto fora do lugar no contexto sul-americano.
Com efeito, a integração não parece ter sido percebida como
instrumento efetivo para a promoção dos interesses dos países da
região ou como estratégia adequada para que enfrentassem seus
problemas domésticos. Embora os países tenham hesitado em
abandonar o discurso pró-integração, na prática, pouco puderam fazer
para executar o tal compromisso histórico. Inevitável é parafrasear o
autor de “As idéias fora do lugar”:
Em resumo, as idéias liberais [integracionistas – para adaptar a
este contexto] não se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo
indescartáveis. [...] Mas eram adotadas também com orgulho, de forma
ornamental, como prova de modernidade e distinção
2
.
Ao lado dos obstáculos à integração impostos pelas
particularidades mesmas da América do Sul, os fatores exógenos ao
cenário regional sempre desempenharam papel excessivamente
importante nas iniciativas de integração, o que dificultava que elas
viessem a vingar neste solo. A experiência de integração européia – de
forma mais ou menos velada – sempre provocou algum fascínio além-
mar. É inegável que aquela iniciativa tenha gerado efeito-demonstração
importante para os projetos que lhe sucederam na América do Sul.
2
SCHWARTZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 2001.
15
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
As ações em prol do regionalismo sul-americano não se
alimentaram apenas da experiência européia. A formação do Acordo
de Livre-Comércio da América do Norte – Nafta, com a conseqüente
atração que exercia sobre os países latino-americanos, e a cogitação
da Área de Livre-Comércio das Américas – Alca, que provocou um
misto de receio e entusiasmo entre estes países, pressionaram a sub-
região, que reagia a essas iniciativas com novo fôlego integracionista.
A reprodução de experiências externas e o caráter reativo do processo
sul-americano estão também entre os elementos a fazer da integração
uma idéia aparentemente fora do lugar nesta sub-região. Trata-se “do
desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabemos
ser o seu contexto” – para manter a alusão a Schwartz.
Diante de um cenário em que a integração parece elemento estranho,
o renovado interesse, na atualidade, em se cumprir a incumbência histórica
do estreitamento dos vínculos regionais torna evidente a importância de
se avaliar em que medida a idéia da integração encontra já lugar na América
do Sul. Mudaram as condições, alteraram-se as percepções dos atores,
constituiu-se interesse genuíno no processo? Encontraria finalmente a idéia
da integração regional terreno fértil por essas paragens?
De fato, especialmente nos últimos tempos, em que se percebe
de maneira mais premente os efeitos da intensificação dos vínculos
entre os Estados e o fenômeno da formação de blocos regionais, a
integração sul-americana readquire condição privilegiada na agenda
política de vários países da região, especialmente do Brasil. Os esforços
a favor da integração são atualmente recobrados no entendimento
de que a inserção internacional da região depende de sua articulação
e a partir do reconhecimento de oportunidades ainda não exploradas
que a vizinhança gera. O lançamento da Comunidade Sul-Americana
de Nações – CSAN é expressão do novo momento por que passa a
integração sub-regional.
Se, ao Brasil, por sua expressão econômica e política, já lhe
caberia uma posição de relevo diante do novo momento da integração
16
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
sul-americana, as circunstâncias internas reforçam-na. Sinal disso
extrai-se do discurso de posse do presidente da República, em que
consta: “[a] grande prioridade da política externa durante o meu
governo será a construção de uma América do Sul politicamente
estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça
social”
3
. A integração sub-regional, que historicamente se ressentiu
de compromisso político, parece contar com um contexto favorável
para que adquira novo vigor. Além do interesse anunciado pela
integração (e não apenas por parte do Brasil), atualmente as bases
materiais para a cooperação aprofundada são mais consistentes que
em tempos pretéritos. A conclusão de acordos comerciais que
vinculam praticamente todos os países da região numa área de livre-
comércio sul-americana é fator importante a ser considerado neste
novo cenário.
Partindo desses elementos, neste texto, analisa-se a evolução
dos processos de integração da América do Sul, com vistas a identificar
as razões do insucesso de experiências passadas, com o objetivo de
avaliar em que medida a nova iniciativa lançada, a CSAN, poderia vir
a padecer de problemas semelhantes aos que recaíram sobre projetos
anteriores. Neste cenário, confere-se destaque ao papel que caberia
ao Brasil diante das novas circunstâncias associadas à retomada do
projeto integrativo. Não apenas por ter sido arauto da nova iniciativa,
mas pelas próprias particularidades frente à sub-região, o país tem
capacidade de contribuir seja para o sucesso, seja para o insucesso da
nova empreitada. Além de investigar os motivos pelos quais a
integração nunca efetivamente prosperou no subcontinente, o artigo
tem por propósito avaliar em que medida a conjuntura atual permite
crer que, finalmente, a idéia de integração regional encontraria lugar
no contexto sul-americano.
3
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na sessão solene de posse, no
Congresso Nacional. Brasília, 01/01/2003.
17
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
1 - Das primeiras cogitações à conformação da Alalc:
os primórdios da integração sub-regional
A título de ressalva metodológica, é importante ter presente que
os projetos de integração latino-americanos (e, mais recentemente, sul-
americanos) sempre adotaram um modelo que privilegiou as questões
econômico-comerciais. É evidente, contudo, que iniciativas de caráter
não-econômico aproximaram os países da sub-região ao longo da
história. A articulação política na América Latina, porém, parece ter-
se operado de maneira esporádica e pouco institucional, configurando
em algumas situações a cooperação, mas não exatamente a integração
4
.
Esta, sabe-se, denota o ajuste aprofundado e permanente da ação, e
implica um grau de institucionalização capaz de orientar a ação de seus
atores. O perfil econômico-comercial impresso aos projetos integrativos
regionais, assim, reflete-se na análise desenvolvida neste artigo.
A integração sub-regional sempre esteve presente no discurso
político dos líderes locais. A contingência da vizinhança, aliada às
circunstâncias históricas e políticas similares, levaram a que, desde as
independências na região, se cogitasse da ação coordenada em favor
da obtenção de objetivos comuns. Embora em menor grau, ainda
atualmente se resgata a figura quase mítica de Simón Bolívar, que
desde o início do século XIX defendia a articulação dos povos da
região na construção de uma comunidade latino-americana. De fato,
o Congresso do Panamá, em 1826, costuma ser citado como o
primeiro grande marco na integração latino-americana. Os resultados
deste evento em grande medida refletem as idéias de Simón Bolívar,
exteriorizadas na Carta da Jamaica de 1815.
4
A integração, em regra, é tratada seja como um processo, seja como um estado, que articula
atores internacionais, de maneira consensual, a partir de objetivos, interesses, normas e
valores que sejam compartilhados. Entre as definições clássicas, inclui-se referência à
“transferência consentida de lealdade, expectativas e atividades políticas a um novo centro de
poder que passa a ter jurisdição sobre os anteriores” (HAAS, Ernst. The uniting of Europe.
Standford: Standford University Press, 1958, p. 34).
18
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
A partir do final do século XIX, as iniciativas em prol da integração
latino-americana cederam espaço às propostas de articulação do
continente americano, levadas a efeito sobretudo pelos Estados Unidos,
movidos pelo propósito do pan-americanismo. De viés antes político
que econômico, sucedeu uma série de Conferências Internacionais
Americanas, que culminaram, em 1948, com a criação da Organização
dos Estados Americanos – OEA, na Conferência de Bogotá.
Até a metade do século XX, de fato, os países da sub-região
pareciam mais voltados aos interesses internos, à conformação da
estrutura do próprio Estado e à administração de seus problemas
econômicos. Na esfera internacional, as atenções pareciam antes
dirigidas aos Estados Unidos e à Europa que à região em que os países
latino-americanos se inseriam. No plano sub-regional, as iniciativas
eram de caráter principalmente bilateral, orientadas para questões
mais prementes de segurança e de definição de fronteiras.
A aproximação dos países da América Latina foi-se esboçando à
medida que ficava evidente que a OEA não serviria à articulação econômica
sub-regional, sendo focada tanto nas questões políticas e de segurança,
quanto nos interesses norte-americanos. A necessidade de cooperação
regional e, mais, de uma cooperação econômico-comercial na sub-região
passou a ser admitida pelos países da América Latina. Dois fatores
corroboravam o momento político para que se levasse a efeito a iniciativa
nesse sentido. Um deles era a integração européia, que tinha efeito-
demonstração importante para outras regiões do sistema internacional.
O segundo fator a impulsionar o projeto integrativo dizia
respeito ao fundamento político-econômico que conformou a base
das iniciativas sub-regionais. Na década de 1950, ganharam destaque
na região os estudos promovidos pela Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe – Cepal (particularmente pelo seu Comitê
de Comércio), que apontavam para a necessidade da ampliação dos
intercâmbios comerciais entre os países da região. Com base na teoria
da deterioração dos termos de intercâmbio, que veio a se tornar
19
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
bastante influente por um período, advogava-se o estreitamento dos
vínculos da sub-região, ao invés do comércio entre países de condições
econômicas díspares. Sobretudo no biênio 1958–1959, os estudos da Cepal
dedicaram atenção ao estabelecimento de uma zona de livre-comércio na
região, que posteriormente viesse a se tornar uma união aduaneira.
Os esforços a favor do concertamento sub-regional
materializaram-se, pela primeira vez, apenas na década de 1960, quando
se lançou a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio – Alalc.
Faziam parte da iniciativa, além do Brasil, a Argentina, o Chile, o
México, o Paraguai, o Peru e o Uruguai. Em seguida, vieram a aderir
ao tratado constitutivo da Alalc a Bolívia, a Colômbia, o Equador e a
Venezuela. Assinado em Montevidéu, o acordo da Associação
evidenciava o interesse dos países da região em reduzir as barreiras
tarifárias entre os membros com vistas à criação de uma área de livre-
comércio, o que deveria ocorrer num prazo máximo doze anos
5
.
A reciprocidade, a cláusula da nação mais favorecida e o
princípio do tratamento nacional estavam na base das negociações
que deveriam levar à conformação da zona de livre-comércio sub-
regional
6
. Os instrumentos-chave para se atingir o livre-comércio
seriam particularmente as Listas Nacionais e a Lista Comum. Por
meio das nacionais, os países identificavam as reduções tarifárias que
concederiam para as importações do bloco, resultado das negociações
anuais previstas. Por meio da Lista Comum, seriam pontuados os
produtos cujos gravames à circulação intra-zona seriam eliminados
7
.
5
Tratado de Montevidéu – 1960, artigo 2
o
.
6
Muito brevemente, pode-se afirmar que a cláusula da nação mais favorecida se refere ao
princípio segundo o qual a vantagem que se concede ao produto de um país deve ser estendida
aos bens similares dos demais países. A seu turno, do princípio do tratamento nacional
decorre que o produto importado, uma vez no território do país importador, não deve
receber tratamento menos favorável que o conferido ao produto interno similar.
7
Havia ainda Listas Especiais, para atender aos interesses de países de menor desenvolvimento
relativo (Bolívia, Equador, Paraguai e Uruguai) e Acordos de Complementação, com o
objetivo de incentivar a circulação de insumos empregados nos setores industriais dos países
do bloco, o que promoveria a complementaridade dos processos produtivos na região.
20
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
A alegada rigidez dos mecanismos de liberalização comercial
previstos pela Alalc diz respeito, sobretudo, ao processo negociador
relativo às Listas Nacionais e à Comum. Embora a inclusão de um
produto na Lista Nacional fosse decisão unilateral do país que
concedia a vantagem, a retirada de um item do rol sujeitava-se a
compensações e a prolongadas negociações entre as partes. O
procedimento de formação da Lista Comum, a seu turno, era coletivo
e definitivo. O mecanismo previsto para a desgravação desta lista,
ainda, mostrava-se excessivamente rigoroso numa região sem histórico
de experiências integrativas bem sucedidas. Segundo o Tratado de
Montevidéu, a Lista Comum, que incluiria os produtos a serem
liberalizados, teria de abranger 25% dos fluxos de comércio regional
no primeiro triênio, 50% no segundo, 75% no terceiro e o essencial
das trocas comerciais no quarto triênio. Assim, em doze anos,
substancialmente todo o comércio intra-zona circularia livremente
entre os onze países signatários do Acordo. Trata-se, sem dúvida, de
uma estratégia pouco flexível para o estabelecimento do livre-
comércio sub-regional.
Se não bastasse a ambição do próprio Tratado de Montevidéu,
adotaram-se nos primeiros anos de vigência do acordo decisões com o
fim de aprofundar o processo integrativo, estabelecendo até mesmo a
meta de criação de um mercado comum latino-americano, que deveria
estar consolidado em 1985. Com efeito, as iniciativas que ampliavam a
ambição já definida pareciam divorciar-se da realidade, marcada pelas
previsíveis dificuldades na implementação das metas iniciais.
Na esteira dos esforços integracionistas, em 1963, no contexto
da OEA, criou-se a Comissão Especial para a Coordenação Latino-
Americana – Cecla, cuja missão era a de articular a posição dos países
da região nas reuniões da Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e o Desenvolvimento – Unctad. Entre os resultados mais
visíveis da Cecla está o chamado Consenso Latino-Americano de Viña
del Mar, de 1969. O acordo, além de ter estabelecido um instrumento
21
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
permanente de consulta, buscou a definição de posição conjunta dos
países latino-americanos na condução de suas relações econômicas
com os Estados Unidos
8
.
2 - Sobre o excesso de ambição e de rigor:
o descrédito da Alalc
Não obstante a tentativa de articulação da sub-região, as
divergências em torno da consecução das metas previstas no Tratado
de Montevidéu foram-se acirrando ao longo da década de 1960. A
definição de uma Lista Comum era objeto de polêmica entre as partes
do Acordo. As próprias Listas Nacionais foram minguando a partir
de 1970 e, assim, foi-se arrefecendo o motor da liberalização comercial
sub-regional, constituído basicamente pelo mecanismo das listas.
Nove anos após a celebração do Tratado de Montevidéu, os
países signatários do acordo adotaram o Protocolo de Caracas, por
meio do qual dilataram o período para a conformação da zona de
livre-comércio. Configurou-se irrealista a proposta de liberalização
comercial em doze anos, e estendeu-se o prazo para vinte anos,
antevendo-se, portanto, a conclusão do processo em 31 de dezembro
de 1980. O Protocolo de Caracas teria sido a solução encontrada
para acomodar posições distintas e evitar que o impasse no processo
de integração assumisse proporção desagregadora. Logo se constatou,
contudo, que o Protocolo de Caracas não reanimaria o processo de
integração: a flexibilidade trazida pelo acordo implicou obrigações
pouco claras e, desde o primeiro momento, o instrumento foi tomado
pelas partes do acordo como uma suspensão dos compromissos
assumidos
9
.
8
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito das Organizações
Internacionais. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 487–488.
9
LAVIOLA, Mauro Oiticica. Integração regional: avanços e retrocessos. São Paulo:
Aduaneiras, 2004, p. 16.
22
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
Naquele momento, era já evidente uma clivagem entre os países
da Alalc. “Comercialistas” e “integracionistas” divergiam a respeito
do perfil a ser conferido à integração regional. Sob o primeiro rótulo,
incluíam-se Argentina, Brasil e México, que percebiam a Alalc como
um mecanismo de liberalização comercial. O segundo grupo, por
sua vez, abrangia os países que defendiam a Alalc como instrumento
de desenvolvimento regional – e não apenas de promoção comercial
– comportando, assim, a interconexão industrial, a complementaridade
econômica, a promoção de investimentos etc. Os países andinos eram
os que, de modo geral, se alinhavam a esse entendimento
10
.
O grupo de membros da Alalc que se identificava com o viés
“integracionista” da cooperação sub-regional optou, em 1969, pela
conformação de um novo acordo, que veio a constituir o Pacto
Andino
11
. Os membros do grupo entendiam a iniciativa como
complementar à da sub-região (tanto que entre as metas do bloco
estava o estabelecimento de condições mais favoráveis para a
conversão da Alalc em um mercado comum). Ainda assim, a definição
de uma tarifa externa comum, que incidia sobre os produtos dos
demais membros da Alalc, fez a sub-região hesitante em relação à
capacidade de o Pacto Andino contribuir para os objetivos da Alalc.
Na literatura, o diagnóstico a respeito do insucesso da Alalc
centra-se no argumento de que foi estabelecido um esquema
excessivamente ambicioso e rígido de integração, desrespeitando a
heterogeneidade e os matizes da realidade continental
12
.
10
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Op. cit., p. 489. BARBOSA, Rubens
Antonio. América Latina em perspectiva: a integração regional da retórica à realidade.
São Paulo: Aduaneiras, 1991, p. 60.
11
Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru assinaram naquele ano o denominado Acordo de
Cartagena, que criou o bloco. A essa iniciativa a Venezuela veio a se associar em 1973. E o
Chile optou por deixar o projeto em 1976. Além da criação de uma união aduaneira, entre os
objetivos do grupo estava a adoção de um programa de liberalização comercial mais acelerado
que o empregado no âmbito da Alalc.
12
SARAIVA GUERREIRO, Ramiro. Op. cit., p. 15.
23
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
As dificuldades na evolução do processo integrativo faziam-se
nítidas nas questões operacionais da negociação comercial. Tema
recorrente no contexto das negociações era a chamada
“operacionalidade das concessões”, uma referência às margens de
preferência negociadas e ao seu impacto sobre o comércio intra-zona.
Estudos demonstram que a partir de 1970 o comércio intra-regional
dos produtos não-cobertos pelo Acordo tinha crescido mais que os
fluxos dos produtos negociados. Entre 1970 e 1974, o intercâmbio
dos produtos negociados cresceu 109%, ao passo que o dos produtos
não-negociados teria aumentado 360%
13
. Conforme registra Vaz, na
segunda metade dos anos 1970, o comércio entre os países da Alalc
cresceu a taxas superiores às do comércio internacional, “mas cerca
de dois terços dele não eram alcançados pelos instrumentos da
associação, o que explicita sua inoperância”
14
.
Na investigação desse aparente contra-senso ficam evidenciadas
as causas mais pragmáticas do próprio insucesso da Alalc. Com efeito,
a inoperância das concessões tinha origem tanto na insuficiência das
margens de preferência, quanto na erosão das que, em princípio, seriam
capazes de privilegiar o mercado intra-zona. A insuficiência relacionava-
se com o montante da concessão feita: se fosse de proporção
excessivamente reduzida, não traria impacto algum sobre os fluxos da
realidade, portanto, teria caráter meramente simbólico (e, por que não
dizer?, retórico). Os receios com concessões muito amplas, por vezes,
levavam os membros da Alalc a definir margens de preferência incapazes
de viabilizar a importações dos bens dos parceiros, dando sinais da
falta de comprometimento efetivo com os objetivos definidos.
A erosão das margens de preferência tarifária merece também
um comentário. Entre as razões para o menor dinamismo do comércio
privilegiado pelas negociações, estava o crescente descumprimento
13
Idem, p. 18.
14
VAZ, Alcides Costa. Cooperação, integração e processo negociador: a construção do
Mercosul. Brasília: Funag / IBRI, 2002, p. 25.
24
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
dos compromissos definidos, o que implicava a manutenção das
barreiras existentes ou mesmo a definição de novos obstáculos ao
comércio. Além disso, os países da região, ao mesmo tempo em que se
comprometiam com a liberalização do comércio para um dado setor,
adotavam uma série de incentivos aos mesmos setores da economia
nacional, reduzindo a competitividade dos produtos importados.
Os países da América Latina, habituados a fazer uso de políticas
aduaneiras, cambiais, tributárias e creditícias para atender a interesses
econômicos e políticos internos, tiveram alguma dificuldade para observar
as restrições decorrentes dos compromissos assumidos. Dados levantados
pela própria Secretaria da Alalc confirmam o desmantelamento das
preferências negociadas: a alteração nas políticas tarifárias dos países da
Alalc afetou mais da metade do somatório das concessões feitas à região
nas Listas Nacionais
15
. De modo geral, a inoperância das concessões
comprometeu a consecução das metas previstas no Tratado de Montevidéu
e provocou certo ceticismo em relação à capacidade de o modelo por ele
adotado ser capaz de orientar a adoção do livre-comércio sub-regional.
De fato, a intervenção do Estado na economia atingia níveis
altos na América Latina da década de 1970, o que costumava se operar
em detrimento do processo integrativo. Os países da região, ao
concederem benefícios à indústria doméstica, passavam a reduzir as
vantagens que os demais países blocos poderiam auferir em
decorrência da eliminação de barreiras ao comércio
16
. Assim, a adoção
de políticas econômicas nacionais visando à auto-suficiência, e
desconectadas dos compromissos de integração regional, precisa ser
considerada entre os fatores que contribuíram para o insucesso da
Alalc.
15
LAVIOLA, Mauro Oiticica. Op. cit., p. 23.
16
A própria lógica da substituição de importações, adotada na região, tornava-se contraditória
com a exploração das vantagens comparativas que um processo de integração regional, em
tese, busca otimizar. As políticas de promoção às exportações que vieram a ser adotadas
também serviram para acentuar os desequilíbrios no aproveitamento das oportunidades
comerciais, enfraquecendo a base econômica do projeto integrativo.
25
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
Se os países da região já se mostravam resistentes a abdicar de
instrumentos tradicionais de condução da política econômica, os choques
do petróleo na década de 1970 teriam forçado os Estados a responder às
contingências internacionais, exacerbando o comportamento nacionalista
em detrimento dos compromissos da integração. Vale ter em mente que,
no período, os países da América Latina passavam por momentos de
instabilidade política, o que tornava as preocupações nacionais ainda mais
voltadas às questões internas. Tratava-se de um momento marcado por
um nacionalismo tanto político, quanto econômico (apesar de importantes
iniciativas de composição reduzida, como o Tratado de Cooperação
Amazônica (1978) e do Acordo Tripartite da Bacia do Prata, de 1979).
Em 1975, contudo, mais uma iniciativa veio a somar-se aos esforços
de cooperação latino-americana. De iniciativa mexicana, à qual a
Venezuela logo aderiu, o Sistema Econômico Latino-Americano – Sela
foi criado com o propósito de coordenar as posições dos países-membros
(exclusivamente “latino-americanos”) nos foros internacionais, estimular
a cooperação entre eles e incentivar os processos de integração. Apesar
de ter passado recentemente por importante reestruturação, o Sela parece
ter tido pouco impacto sobre a realidade político-econômica da sub-
região e, particularmente, sobre a realidade da integração
17
.
O esquema de integração sub-regional, ademais, não contava com
nenhum mecanismo de supervisão e controle do comportamento dos
Estados, tampouco dispunha de um sistema de solução de controvérsias
capaz de zelar pelos compromissos assumidos. O desinteresse dos
Estados na criação de instrumentos de constrangimento, de fato, leva à
reflexão a respeito do nível do comprometimento efetivo que tinham
com as normas que vinham estabelecendo.
Com efeito, conformou-se um cenário em que o respeito ao
regime criado se tornava pouco provável: combinaram-se regras
17
Sobre o tema, vide BOND, Robert. “Regionalism in Latin America: Prospects for the
Latin American Economic System (Sela)”. International Organization, v. 32, n. 02,
Spring 1978, p. 401-423.
26
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
excessivamente ambiciosas e ao mesmo tempo rígidas, com a
inexistência de mecanismos para garantir a observância a essas regras
18
.
A capacidade do regime criado em constranger e orientar o
comportamento dos sujeitos foi-se erodindo ao longo do tempo
19
, e logo
se evidenciou o descompasso entre as expectativas criadas e a capacidade
de o projeto de integração corresponder a elas.
Não obstante isso, é preciso admitir que, apesar de não ter sido
possível a conformação da área de livre-comércio tal como preconizada
pela Alalc, a experiência relacionada a ela legou lição importante para as
iniciativas que a sucederam. Ao mesmo tempo em que o processo
contribuiu para despertar a consciência a respeito das potencialidades
coletivas, das complementaridades possíveis e das responsabilidades
conjuntas dos Estados da região, a experiência serviu para evidenciar as
fragilidades da cooperação sub-regional. O processo histórico de
construção de uma área de livre-comércio nos moldes previstos pela
Alalc contribuiu para que a proposta que lhe foi superveniente fosse
menos divorciada da realidade, logo, mais próxima das circunstâncias
latino-americanas. A experiência, sem dúvida, alterou a percepção dos
atores a respeito da integração sub-regional e, de alguma maneira, o novo
regime estabelecido pela Aladi foi moldado por essa nova percepção.
3 - Sobre flexibilidade: a substituição da Alalc pela Aladi
O reconhecimento dos limites da integração sub-regional estava
na base da iniciativa da criação da Associação Latino-Americana de
Integração – Aladi. Uma percepção mais pragmática das possibilidades
18
Na definição clássica de Krasner, “[r]egimes can be defined as sets of implicit or explicit
principles, norms, rules and decision-making procedures around which actors’ expectations
converge in a given area of international relations” Cf. KRASNER, Stephen. “Structural
causes and regime consequences: regimes as intervening variables”. International
Organization, v. 36, n. 02, Spring 1982, p. 02.
19
Vide PUCHALA, Donald; HOPKINS, Raymond. “International regimes: lessons from
inductive analysis”. International Organization, v. 36, n. 02, Spring 1982, p. 62.
27
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
da integração latino-americana passou a rearticular os países da região
em prol de um novo modelo associativo. Não se trataria mais de
estabelecer uma área de livre-comércio num prazo pré-fixado, mas,
sim, de se conformar uma associação de países latino-americanos, tendo
como “objetivo de longo prazo o estabelecimento, de forma gradual e
progressiva de um mercado comum latino-americano”. Ainda que um
mercado comum seja um projeto muito mais ambicioso que uma área
de livre-comércio
20
, deve-se reconhecer que, no contexto da Aladi,
prepondera o elemento de flexibilidade introduzido pelos conceitos de
“objetivo de longo prazo” e “de forma gradual e progressiva”
21
.
Na prática, a flexibilidade do Acordo da Aladi está
consubstanciada nos novos mecanismos para promover a
liberalização comercial. Eliminaram-se os esquemas de Listas
Nacionais e Comum, sujeitas à aplicação da cláusula da nação mais
favorecida, e adotaram-se Acordos de Alcance Parcial (dos quais
apenas alguns membros participam, muito embora sejam abertos a
todos os demais) e os de Alcance Regional (que envolvem todos os
países-membros). Previu-se, ainda, uma margem de preferência
tarifária regional em relação a terceiros países. Assim, além da
inexistência de prazos para a conclusão do processo, o novo Tratado
de Montevidéu permite que os membros da Aladi participem do
projeto de integração no ritmo que reputem conveniente e não obriga
todos os membros a serem signatários dos acordos que vierem a ser
negociados.
20
À luz da teoria da integração, entende-se que um acordo de livre-comércio implica tão-somente
a eliminação de obstáculos tarifários e não-tarifários à circulação de bens intra-bloco. Um mercado
comum, a seu turno, pressupõe a existência do livre-comércio e implica mais: a adoção de uma
tarifa externa comum, a fazer convergir o modo como os países do bloco se relacionam
comercialmente com terceiros, além da livre-circulação de serviços e de fatores produtivos, a
coordenação de políticas macroeconômicas e a harmonização da legislação pertinente.
Evidentemente, estas linhas gerais a respeito de um mercado comum são adaptadas às realidades
e à vontade dos países que tiverem interesse em constituí-lo, podendo fazê-lo mais ou menos
ambicioso.
21
Tratado de Montevidéu, artigo 1º.
28
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
Nesse contexto, o Tratado de Montevidéu–1980 representa
mudança de concepção a respeito dos vínculos entre os Estados latino-
americanos, tendo em vista a construção seja de uma união aduaneira,
seja de um mercado-comum. Se o acordo da década de 1960 forçava
um ritmo rígido, que deveria ser seguido por todos os membros, o
tratado dos anos 1980 prevê um mecanismo flexível, em que
agrupamentos sub-regionais, de geometria variável, levariam, “de
forma gradual e progressiva”, à consecução das metas previstas
22
.
Uma palavra deve ser dedicada ao valor distinto que a cláusula
da nação mais favorecida adquiriu no Tratado de Montevidéu–1980.
O acordo da Alalc previa a modalidade incondicional da cláusula da
nação mais favorecida, o que implicava que as concessões feitas por
um parceiro do bloco se estenderiam automaticamente a todos os
demais. O acordo da Aladi, por sua vez, mitiga a cláusula da nação
mais favorecida, ao permitir os Acordos de Alcance Parcial. No
âmbito destes compromissos, as vantagens alcançam apenas os países
que fazem parte dele, e não todos os membros da Aladi I
23
.
Apesar da diferença na estratégia, o acordo da Aladi busca
igualmente imprimir um caráter multilateral ao comércio sub-regional.
Não obstante isso, ao invés do multilateralismo como meio e como
fim, emprega o “minilateralismo”
24
como instrumento e mantém o
multilateralismo como objetivo último. O acordo da Aladi, nessa linha,
22
São membros da Associação os membros da Alalc, ou seja, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile,
Colômbia, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Além deles, Cuba é também
membro da Aladi desde de 1999.
23
Vale lembrar que os acordos desse tipo estão sempre abertos à participação de qualquer
membro da Associação.
24
A expressão é empregada, por exemplo, por Robert Gilpin, quando trata da opção norte-
americana de se afastar do multilateralismo, buscando acordos de abrangência menor por
meio de uma política de reciprocidade condicional, segundo a qual as vantagens concedidas
num processo negociador só se aplicariam os países que participassem das negociações e
aportassem concessões comerciais (ao invés da extensão automática das vantagens a todos os
países de um grupo maior, como o GATT, no caso a que Gilpin se refere – ou a Aladi I, para
aplicar a reflexão de Ruggie ao tema deste texto). Vide GILPIN, Robert. A economia
política das Relações Internacionais. Brasília: EDUnB, 2002, p. 406.
29
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
visa à criação de um mercado comum, não por meio da uma zona de
livre-comércio de abrangência latino-americana, mas, sim, a partir de
acordos de preferências econômicas de escopo reduzido. É possível,
nesse contexto, a coexistência, na região, de processos integrativos de
diferentes composições, ambições, abrangências e velocidades. A
convergência dos acordos parciais, associada aos instrumentos
regionais, promoveria a criação de um mercado comum latino-
americano, segundo a estratégia contemplada no Tratado da Aladi.
Em vigor desde março de 1981, o acordo constitutivo da Associação
conta com dois princípios-chave: a flexibilidade e a convergência. A
flexibilidade é caracterizada pela possibilidade de conformação de Acordos
de Alcance Parcial, que abranjam apelas alguns membros da Aladi. A
convergência, por sua vez, traduz-se na “multilateralização” progressiva
dos Acordos de Alcance Parcial, por meio de negociações periódicas
entre os membros, com vistas à conformação do mercado comum.
Os avanços da Aladi em relação à Alalc, sob o ponto de vista
substantivo, podem ser sumariados da seguinte forma:
Flexibilizou-se a cláusula da nação mais favorecida, o que
implica que as preferências são negociadas pelos parceiros de
determinado acordo e aplicadas somente a eles, sem que se estenda
vantagem àqueles que não têm interesse em aportar concessões no
processo negociador. De fato, a previsão de Acordos de Alcance
Parcial parece fazer que a Aladi se aproxime da realidade política e
econômica da região, onde há membros interessados em avanços mais
rápidos e outros mais resistentes a dotar o processo integrativo de
ritmo acelerado. Ademais, essa fórmula estimula os países a se
engajarem no processo negociador, pois só assim podem auferir
vantagens das concessões feitas por outros.
As preferências tarifárias passaram a ser definidas em termos
percentuais, de modo a que as margens de preferência para a região
se mantenham intactas caso haja alteração nas tarifas nacionais (na
30
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
hipótese, por exemplo, de um país reduzir suas tarifas aduaneiras
para um terceiro). Como se observou, a erosão das preferências
concedidas contribuiu para o insucesso da Alalc. A definição do novo
mecanismo, assim, prestou serviço para a credibilidade do bloco
25
.
É importante ter em mente que se eliminaram os prazos para a
consecução das metas do processo de integração, muito embora o Tratado
da Aladi tenha evidenciado o compromisso com o mercado comum, meta
mais ambiciosa que a prevista no acordo da Alalc. É de se admitir, contudo,
que ausência de um prazo para a implementação do projeto não deveria
ser considerada como um avanço da Aladi em relação à Alalc.
De fato, a flexibilidade introduzida pelo Tratado da Aladi constitui
reação importante aos mecanismos rígidos da Alalc, que, conforme
observado, não se mostraram capazes de promover a integração sub-
regional. Por outro lado, a ausência de compromissos dotados de alguma
obrigatoriedade no acordo da Alalc para que se atinjam as metas ali
previstas tampouco parece solução adequada para a promoção do
processo integrativo.
4 - Sobre avaliação de resultados,
relação de causalidade e a falácia post hoc
Preocupações de ao menos duas ordens poderiam surgir do
cenário que se caracterizou e que atualmente conforma as bases do
desenvolvimento da integração sub-regional:
1. que os Estados não se engajem em processos tendentes à
liberalização comercial;
25
Cf. Acordo Regional – Preferência Tarifária Regional (AR PAR nº. 04). Artigo 6 – “Los
países miembros se comprometen a mantener la proporcionalidad que resulta de la preferencia
arancelaria regional aplicada al nivel de gravámenes vigentes para las importaciones realizadas
desde terceros países, cualquier sea el nivel de dichos gravámenes”.
31
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
2. que, havendo arranjos parciais na sub-região, não seja eficaz
o instrumento de convergência previsto no Tratado de Montevidéu–
1980, por meio do qual se buscaria a “multilateralização” dos acordos
que viessem a ser conformados
26
.
Uma análise da evolução do processo integrativo evidencia
que, a despeito do perfil voluntarista do novo modelo, uma série de
Acordos de Alcance Parcial foram-se conformando ao longo dos
anos, afastando os receios quanto ao comprometimento dos Estados
em promover ajustes de liberalização comercial (ponto 1, acima).
Informações da Secretaria da Aladi indicam que, além dos esquemas
de integração sub-regionais (Comunidade Andina e Mercosul),
existem na região outros nove Acordos de Alcance Parcial (AAP)
de Complementação Econômica
27
.
No que diz respeito aos Acordos de Alcance Regional, que
incluem todos os membros da Aladi, os resultados são mais
modestos
28
. Sob o ponto de vista do estabelecimento do livre-
26
A reflexão de Cançado Trindade a respeito do novo perfil da integração remete às
preocupações acima: “[o] Tratado de Montevidéu de 1980 incorpora uma nova concepção de
integração regional, distinta da prevalecente nas duas décadas anteriores, concretizando-se
por projetos de alcance parcial e aceitando o bilateralismo entre os Estados-membros como
fator integracionista. [...] O novo Tratado, mais flexível, parte para um novo esquema que
reconhece as dificuldades com que se depararam no passado os Estados da região na busca da
integração, mas resta verificar se os Estados latino-americanos corresponderão a esta
nova concepção ou modelo de participação predominantemente voluntária” (destacou-
se). (CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Op. cit., p. 496-497).
27
Os Acordos de Complementação Econômica são a modalidade de AAP mais abrangente,
cujo objetivo principal é promover o máximo aproveitamento dos fatores de produção,
estimular a complementação econômica e assegurar condições eqüitativas de concorrência.
Participam desses acordos Chile e Venezuela (ACE 23), Chile e Colômbia (ACE 24),
Bolívia e México (ACE 21), Chile e Equador (ACE 32), Colômbia, México e Venezuela
(ACE 33), Mercosul-Chile (ACE 35), Mercosul-Bolívia (ACE 36), Chile e Peru (ACE 38)
e Chile e México (ACE 41).
28
Há atualmente oito acordos dessa natureza. Os três primeiros tratam de abertura de
mercado em favor da Bolívia, do Equador e do Paraguai, conforme previsto no próprio
Tratado de Montevidéu–1980. Os três mais recentes dizem respeito à cooperação em matéria
científica e tecnológica, sobre cooperação e intercâmbio de bens nas áreas cultural, educacional
e científica, e da eliminação de barreiras técnicas ao comércio.
32
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
comércio intra-zona, o Acordo Regional nº. 04 merece destaque por
ter estabelecido a Preferência Tarifária Regional, que consiste na redução
percentual dos gravames que incidem sobre a circulação de produtos
intra-zona, tendo como referência a tarifa que os países aplicam a
terceiros Estados. Originalmente, a Preferência Tarifária Regional
básica, definida em 1984, era de 5%
29
. Houve apenas uma revisão desta
margem de preferência, o que ocorreu em 1990, quando os países
acordaram em ampliá-la para 20% em relação à tarifa que aplicam aos
mesmos produtos provenientes de países que não fazem parte do bloco.
O comércio intra-zona, apesar de historicamente pouco
expressivo, tem crescido em importância recentemente. Dados da
Secretaria Geral da Aladi apontam para um duplo recorde do comércio
intra-regional em 2004. Em primeiro lugar, alcançou-se um fluxo de
comércio de US$ 60 bilhões, marca bem acima dos US$ 46 bilhões
registrados em 1997, valor recorde até 2004. Além disso, o crescimento
do comércio intra-zona situou-se em torno dos 40%, o índice mais
elevado em todo o período de existência da Aladi. Todos os países da
região, sem exceção, ampliaram as importações de produtos
provenientes da zona. Mesmo assim, é necessário ter em mente que
o comércio da região com o resto do mundo também se expandiu
em proporção significativa, tanto no que diz respeito às importações
(21,3%), quanto às exportações (22,1%). O intercâmbio intra-regional,
ainda assim, cresceu em percentual maior que o comércio da região
com os países que não fazem parte do bloco
30
.
Na avaliação do impacto econômico dos compromissos jurídicos
adotados no contexto da Aladi (ou sob o guarda-chuva do Acordo, como
usualmente se faz referência), a Secretaria Geral da Organização destaca
29
Esse percentual, na verdade, varia em função do desenvolvimento econômico do país que
outorga o benefício e do país que recebe o benefício, conforme estabelece o próprio Acordo
Parcial, artigo 05.
30
ALADI. Secretaría General. Informe del Secretario General sobre la evolución del proceso
de integración regional durante el año 2004. ALADI/SEC/di 1903. 10 de marzo de 2005.
33
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
os Acordos de Complementação Econômica. Tem-se atualmente um
conjunto de catorze instrumentos que cobrem 69,3% do comércio intra-
regional operado em 2004. De acordo ainda com a Organização, com
base nos dados correspondentes a 2004, 85,2% do comércio intra-regional
deverá estar liberalizado até 2007
31
. Ainda, destaca-se que dos 66 vínculos
bilaterais possíveis entre todos os países que conformam a Aladi, 49
dessas ligações contam com um acordo de livre-comércio
32
.
Não obstante a existência dos acordos, há dúvidas sobre a
contribuição efetiva do “guarda-chuva” da Aladi para que esses
compromissos viessem a ser celebrados. É importante, a despeito dos
acordos pactuados, não incorrer numa importante armadilha do
raciocínio econômico: a falácia post hoc, comum nos estudos de relação
de causa e efeito. O fato de o acontecimento A ocorrer antes do
acontecimento B não prova que o acontecimento A seja a causa do
acontecimento B. Em outros termos, concluir que “depois do
acontecimento” implica “por causa do acontecimento” é incorrer na
falácia referida
33
. Reconhece-se que, de fato, após a conformação da
Aladi, surgiram novos acordos de liberalização comercial, como se
indicou acima. Apesar disso e mesmo incorrendo nos riscos da
argumentação contra-factual, custa crer que a existência da Aladi tenha
sido fator determinante para que esses acordos viessem a ser celebrados.
Para corroborar esse entendimento, é importante lembrar que
o fenômeno da formação de acordos regionais não se limita a esta
sub-região. Trata-se de opção de política comercial levada a efeito
por praticamente todos os países do mundo. Segundo a Organização
Mundial do Comércio – OMC, até o final de 2005 serão cerca de
31
Idem.
32
ALADI. Bases de un programa para la conformación progresiva de un espacio de libre
comercio en la ALADI en la perspectiva de alcanzar el objetivo previsto en el Tratado de
Montevideo 1980. ALADI/CM/Resolución 59 (XIII). 18 de octubre de 2004.
33
SAMUELSON, Paul; NORDHAUS, William. Economia. 14 ed. Lisboa: McGraw-Hill,
1993, p. 07.
34
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
trezentos os acordos de grupos de países que concedam preferências
tarifárias ao comércio entre eles
34
. Os próprios países da América Latina,
ao mesmo tempo em que buscam intensificar o comércio intra-zona,
apostam na formação de novos arranjos cooperativos com países que
não fazem parte do bloco. Assim, a proliferação de Acordos Parciais
após a formação da Aladi precisa ser vista em contexto mais amplo,
que demonstra tendência de multiplicação de arranjos comerciais em
todo o mundo, e mesmo entre membros da Aladi e países que não
fazem parte dela
35
. O fenômeno, dessa forma, dá indícios de que é preciso
avaliar com cautela o papel efetivamente desempenhado pela Aladi na
promoção dos acordos que se circunscrevem aos países da sub-região.
Dedica-se atenção, por ora, ao segundo ponto indicado acima, qual
seja, a convergência dos Acordos de Alcance Parcial, com vistas à
“multilateralização” do projeto integrativo. Neste ponto reside a debilidade
maior do modelo de integração concebido pela Aladi. Como observado,
os Acordos de Alcance Parcial crescem em número e os Acordos de
Alcance Regional ainda são poucos e de relevância limitada. No novo
formato de integração previsto pela Aladi, o mercado comum regional
se conformaria a partir da convergência dos acordos de abrangência
menor que fossem sendo estabelecidos. Apesar de esses acordos estarem
se conformando (independentemente da discussão sobre o papel da Aladi
para que isso ocorra), não há sinais de que o processo de convergência
dos acordos esteja acontecendo
36
. Caso essa tendência se confirme, os
riscos associados a ela se referem, sobretudo, à fragmentação do projeto
34
Disponível em: <http://www.wto.org/english/thewto_e/whatis_e/tif_e/bey1_e.htm>.
Acesso em: 10 de agosto de 2005.
35
Com efeito, os países da região têm aberto várias frentes negociadoras que envolvem países
de fora do bloco. Para um panorama destas negociações, veja-se ALADI. Secretaría General.
Informe del Secretario General sobre la evolución del proceso de integración regional
durante el año 2004. ALADI/SEC/di 1903. 10 de marzo de 2005, p. 51 e ss.
36
A própria Secretaria Geral da Aladi admite as dificuldades da articulação regional. Segundo
o documento citado, “[p]or otra parte, y tal como ha ocurrido previamente, los avances del
proceso de integración a través de la vertiente regional siguen siendo débiles. Es así como los
principales instrumentos regionales han mostrado una situación de estancamiento”.
35
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
integrativo sub-regional e à perda de importância da Aladi como
instrumento de articulação do “minilateralismo” por ela mesma
incentivado. A Aladi, desse modo, tenderia a atingir os “meios”, mas não
obteria seu fim, ou seja, promoveria o “minilateralismo”, mas não seria
capaz de fazê-lo agente do multilateralismo na sub-região, inviabilizando
a meta do mercado comum latino-americano.
A discussão que ocorre no plano multilateral reproduz-se, assim,
na esfera regional. Há dúvidas sobre a efetiva capacidade de blocos
regionais prestarem um serviço ao regime de comércio multilateral
articulado pela OMC, muito embora a Organização admita esses acordos,
no entendimento de que servem de etapa para a conformação do
multilateralismo. Mudadas as circunstâncias, mantém-se a hesitação: em
que medida os arranjos de composição limitada na sub-região contribuirão
para que se alcance a meta maior da Aladi, que é a definição de um mercado
comum? Até o momento, as circunstâncias sugerem ser muito pouco
provável (ao menos no curto prazo) a definição de um mercado comum
latino-americano
37
. A Aladi, neste contexto, pode ter contribuído para
que se afastasse a primeira das preocupações apontadas, mas tem sido de
pouca utilidade para rechaçar o segundo risco indicado.
Apesar dos avanços introduzidos pela Aladi pontuados acima
(sobretudo a flexibilização da cláusula da nação mais favorecida e a
garantia de manutenção das margens de preferência), algumas fragilidades
presentes na Alalc persistiram na nova organização. De alguma maneira,
as dificuldades remetem à falta de compromisso político dos países com
o projeto integrativo. A opção por mecanismos pouco desenvolvidos
de pressão e constrangimento dá indícios de que os próprios Estados
não estavam efetivamente dispostos a arcar com os ônus de um processo
como esse. A ausência de prazos definidos para a obtenção dos resultados
37
Apenas para justificar o entendimento, considere-se que o Mercosul, o projeto integrativo
mais bem sucedido da sub-região, ainda não logrou estabelecer um mercado comum, muito
embora conte apenas com quatro membros e tenha estabelecido que essa meta seria alcançada
até dezembro de 1994.
36
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
sugere haver alguma ambigüidade no comportamento dos países, que –
apesar de sempre imbuídos da retórica da integração – nunca de fato lhe
conferiram a importância prevista no discurso.
5 - Do fôlego integracionista dos anos 1990
e da ação sul-americana
Uma palavra deve ser dedicada à alteração das percepções a
respeito da abrangência da sub-região, o que se operou principalmente
a partir do início da década de 1990. Muito embora as iniciativas da
Alalc e da Aladi sejam de caráter latino-americano, a aproximação
gradual do México com os Estados Unidos fez que os interesses
mexicanos fossem se afastando do restante do subcontinente. Se parecia
claro que a América Central e o Caribe se encontravam já
excessivamente vinculados aos Estados Unidos, no início da década de
1990 restava nítido que o México seguiria o mesmo caminho e alinharia
suas posições em função das relações com seu vizinho. A conformação
do Acordo de Livre-Comércio da América do Norte – Nafta veio a
evidenciar a posição privilegiada que o México conferiria aos seus
vínculos com os norte-americanos. Nesse cenário, a definição de
América Latina, já questionável em si mesma, tornou-se de pouca valia
como conceito operacional no estudo das relações do continente.
Principalmente no Brasil, a adoção do discurso do pertencimento
sul-americano do país fez que o conceito de América Latina fosse sendo
abandonado. Como notam Faria e Cepik, a transição conceitual
relaciona-se com a ênfase liberal do discurso diplomático dos anos 1990.
No governo Collor de Melo, adquiriram vigor a apologia à modernidade
e o rechaço de um traço “terceiro-mundista” usualmente associado ao
conceito de América Latina
38
.
38
FARIA, Carlos Aurelio Pimenta de; CEPIK, Marco Aurelio Chaves. O bolivarismo dos
antigos e o bolivarismo dos modernos: o Brasil e a América Latina na década de 1990.
Observatório Político Sul-Americano. Disponível em: <http://observatorio.iuperj.br/
>. Acesso em: 15 ago. 05, p. 22.
37
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
A década de 1990, marcada por profundas alterações na ordem
internacional, assistiu a novo ímpeto integracionista adquirir força na
América do Sul. De modo geral, o fim da ordem bipolar que caracterizou
a Guerra Fria ampliou as possibilidades de ação externa dos Estados.
Particularmente na América do Sul, a retomada da democracia exerceu
papel de importância fundamental para arrefecer desconfianças mútuas
e para criar um cenário propício a ações cooperativas. A aproximação
política entre Brasil e Argentina e a conseqüente conformação do
Mercosul, em 1991, fizeram da sub-região uma prioridade efetiva para
os países do Cone Sul. A partir da evolução do Mercosul, o bloco
passou a ser considerado alavanca possível para o processo de
integração da sub-região.
Além do Mercosul, vários episódios fizeram que o tema da
integração regional voltasse a se fazer presente entre as preocupações
da sub-região. Em 1991, o Chile e o México firmaram um acordo de
liberalização do comércio; o chamado Grupo dos Três iniciou as
negociações com vistas à redução de barreiras ao comércio entre a
Colômbia, a Venezuela e o México. No início da década de 1990, assim,
o regionalismo adquiriu novo vigor na região, alimentando o
entendimento de que a integração continental poderia se operar em
bases sub-regionais
39
.
Mantendo o foco na integração regional, o Brasil anunciou em
1992 a Iniciativa Amazônica, por meio da qual pretendia o
estreitamento dos vínculos econômicos entre os países já aproximados
em função do Tratado de Cooperação Amazônica (1978): Bolívia,
Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.
Observam Ferreira e Cepik que “em termos econômicos, a iniciativa
brasileira correspondia a um primeiro esforço sistemático de
complementação da estratégia de integração sub-regional representada
39
Vide ALMEIDA, Paulo Roberto de; CHALOULT, Yves. Avanço da regionalização nas
Américas: cronologia analítica. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 42, n.
02, jul.-dez. 1999, p. 145-160.
38
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
pelo Mercosul”, ao revigorar o vetor norte da integração com os países
setentrionais da América do Sul
40
.
Fenômenos externos à região favoreciam o momento político para
a aproximação sub-regional. Em 1989, o Acordo de Livre-Comércio
entre Estados Unidos e Canadá foi celebrado. Com ele, surgiram as
expectativas de que a zona de livre-comércio viesse a incorporar novos
membros, o que de fato ocorreu com a conformação do Nafta em 1994,
que incluiu o México naquele processo integrativo. Também neste
período, o bloco europeu adquiria solidez e parecia proteger seu mercado
do resto do mundo: com o Ato Único Europeu (1986), esperava-se a
construção da dita “fortaleza Europa” a partir de 1993. Esses fatores
exógenos, de fato, animaram as iniciativas de integração na sub-região,
que se podem reputar, assim, um tanto reativas.
A ação dos Estados Unidos parece ter sido ainda mais relevante
entre os fatores externos que contribuíram para a recobrada das iniciativas
de integração sul-americana. Em 1990, os norte-americanos lançaram a
Iniciativa para as Américas, projeto no qual se incluía o estabelecimento
de uma área de livre-comércio que se estendesse do Alasca à Patagônia,
nas palavras do então presidente George Bush. Por meio da Área de
Livre-Comércio das Américas – Alca, as promessas de integração da sub-
região não apenas seriam viabilizadas, mas se concretizariam ao mesmo
tempo em que se conformasse a liberalização do comércio em todo o
continente, frustrando as perspectivas de que a América do Sul (ou a
América Latina, como se pensava antes), poderia fazer da integração
regional um instrumento para a promoção de interesses comuns numa
região marcada por características semelhantes
41
.
40
FARIA, Carlos Aurelio Pimenta de; CEPIK, Marco Aurelio Chaves. Op. cit., p. 22.
41
As preocupações quanto ao impacto negativo da Alca sobre os processos de integração sub-
regional em curso na América do Sul podem ser vistas em JAGUARIBE, Hélio. América do
Sul no atual sistema internacional. In: SEMINÁRIO sobre a América do Sul: a
organização do espaço sul-americano. Brasília: IRBr / IPEA / IPES, 2000, p. 13-38.
Focando-se particularmente na estratégia norte-americana para a América Latina e na
dissolução do Mercosul por meio da Alca, veja-se GUIMARÃES, Samuel Pinheiro.
Quinhentos anos de periferia. Porto Alegre: UFRGS / Contraponto, 1999, caps. 16 e 18.
39
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
Nesse cenário, em 1993, o Brasil lança a idéia da construção de
uma Área de Livre-Comércio da América do Sul – ALCSA. Segundo
Rubens Barbosa, para quem a ALCSA seria antes uma iniciativa
econômico-comercial que um projeto geopolítico, o livre-comércio sub-
regional teria como base a rede de acordos que se conformaram no
contexto da Aladi
42
. O objetivo central do programa seria a liberalização
comercial na América do Sul no período de dez anos
43
.
Apesar de o governo brasileiro ter negado que a conformação da
ALCSA seria uma reação ao Nafta, a iniciativa foi considerada dessa
forma por parte da literatura e mesmo pelos países da região
44
. Segundo
Vaz, os debates que surgiram a respeito das implicações da ALCSA
para as negociações da Alca e para o livre-comércio no Mercosul,
aliados à forma unilateral com que a proposta fora concebida e
apresentada, fizeram “o Itamaraty [se empenhar] em descaracterizar a
ALCSA como um projeto geopolítico brasileiro em contraposição ao
Nafta, apesar do que esta preocupação se manteve mesmo entre os
formuladores de política argentinos”
45
. Entre os sócios menores do
Mercosul, porém, a preocupação com a ALCSA teria sido maior.
De fato, a partir da adesão mexicana ao processo integrativo
norte-americano, ampliou-se o receio a respeito do poder de
atração dos Estados Unidos sobre a América do Sul, inclusive
42
BARBOSA, Rubens Antônio. Área de Livre-Comércio da América do Sul: conformação
de um novo espaço econômico. Ministério das Relações Exteriores. Disponível em:
<www.mre.gov.br>. Acesso em: 01 ago 2005.
43
A rigor, vale lembrar, a formação de uma zona de livre-comércio de abrangência limitada
na região coberta pela Aladi não é incompatível com os instrumentos, tampouco com os
objetivos da Associação. A ALCSA, nesse sentido, poderia ser considerada uma iniciativa
complementar à da Aladi – como de fato se anunciou.
44
“Algumas análises apressadas tendem a ver a ALCSA como uma espécie de reação ao
Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA). Nada poderia estar mais longe
da verdade. Ao contrário, a ALCSA busca uma política essencialmente destinada a liberar o
comércio e por isso representa um passo importante na futura integração de todo o hemisfério”.
BARBOSA, Rubens. Op. cit.
45
VAZ, Alcides Costa. Op. cit., p. 212. Corrobora este entendimento o trecho do artigo do
então Embaixador Rubens Barbosa transcrito acima.
40
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
sobre o principal parceiro do Brasil no Mercosul. Ao propor a
conformação de uma área de livre-comércio na América do Sul, a iniciativa
brasileira foi percebida como uma tentativa de “arrefecer o sedutor fascínio
que o Nafta exerce sobre certos países sul-americanos” – entre os quais se
poderiam apontar a Argentina, o Chile e a Colômbia
46
. Para alguns, “[d]ando
o México como perdido, ao menos temporariamente em função de sua
adesão ao Nafta, a operacionalização de um novo conceito de
pertencimento sul-americano [por meio] da ALCSA permitiria ao Brasil
aprofundar os laços com a Argentina, vetor sul, e com a Venezuela, no
vetor norte, numa manobra de consolidação regional concebida pela
diplomacia brasileira para garantir uma ‘reserva de autonomia’ ao país”
47
.
A ALCSA, entretanto, teve vida curta no discurso brasileiro:
as referências à iniciativa minguaram a partir de 1995. Logo que foi
lançada, a proposta brasileira gerou algum desconforto entre seus
parceiros do Mercosul, que não teriam sido consultados a respeito
da iniciativa
48
. Desfeitas as apreensões iniciais, as dificuldades por que
passava o Mercosul na conformação da união aduaneira acabaram
prejudicando o discurso a favor da ALCSA: afinal, na base do projeto
estaria a aproximação entre os próprios arranjos regionais existentes,
o Mercosul e a Comunidade Andina. De toda maneira, embora as
conversações em torno da ALCSA não tenham progredido, a idéia
de construção gradual de um mercado sul-americano serviu de
referência para as ampliações que vieram a ocorrer no Mercosul,
fazendo do Chile e da Bolívia países associados ao bloco em 1996
49
.
É importante recordar que o ano de 1995 também marca a
adoção de um Acordo-Quadro de Cooperação Inter-regional entre o
Mercosul e a União Européia. O diálogo entre os atores, iniciado em
46
LAVIOLA, Mauro Oiticica. Op. cit., p. 88.
47
FARIA, Carlos Eduardo Pimenta de; CEPIK, Marco Aurélio Chaves. Op. cit., p. 23-24.
48
VAZ, Alcides Costa. Op. cit.p. 211 e ss. Nota Vaz: “Ainda que apresentada unilateralmente e sem
consulta ou concertação prévia com os demais sócios do Mercosul, a proposta recebeu aprovação
inicial dos presidentes na V Reunião do Conselho Mercado Comum (janeiro de 1994)”.
49
VAZ, Alcides Costa. Op. cit., p. 213.
41
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
1992, levou à adoção de princípios que pautariam as negociações
para o estabelecimento do livre-comércio inter-regional. A abertura
de novas frentes negociadoras, assim, fez que outras prioridades
fossem incluídas na política comercial brasileira.
Talvez a principal razão para a perda de importância da iniciativa
da ALCSA na sub-região esteja vinculada ao projeto norte-americano
para o continente. A proposta da Alca inicialmente provocou reação
sul-americana e alimentou a iniciativa do livre-comércio sub-regional.
A idéia parecia ser a de articular a sub-região e fortalecer sua posição
negociadora nas discussões continentais. Em pouco tempo, porém,
parecia pouco provável que a zona de livre-comércio da América do
Sul pudesse ser conformada antes do bloco continental.
Além da pressão norte-americana para a construção da Alca, a
perspectiva de um acordo com os Estados Unidos refez as prioridades
comerciais de vários dos países da sub-região. Deve-se reconhecer
que o projeto da Alca pareceu sedutor, tanto sob o ponto de vista
político quanto econômico, para praticamente todos os países
americanos. Como observam Ferreira e Cepik, “[c]om uma
diplomacia agressiva, a força atrativa de uma economia que crescia a
taxas bastante altas para um país desenvolvido e déficits comerciais
de centenas de bilhões de dólares ao ano, Washington aos poucos
logrou neutralizar a iniciativa sul-americana do Brasil”
50
. Ademais, a
definição de uma ALCSA poderia prejudicar a posição negociadora
de países menores, que teriam feito concessões comerciais em âmbito
restrito (sub-regional) e, de certa forma, teriam reduzido seu já
limitadíssimo poder de barganha nas negociações posteriores com os
Estados Unidos.
De fato, como avalia Ricupero, no exame dos vínculos entre o
Brasil e a América Latina, é necessário sempre se levar em consideração
o fator “Estados Unidos”. A relação do Brasil com a sub-região (eixo
50
Idem, p. 25.
42
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
simétrico, para o autor) só pode ser bem compreendida a partir do
reconhecimento da existência de um eixo assimétrico, que o vincula
aos Estados Unidos
51
. Numa perspectiva histórica, o papel dos norte-
americanos na sub-região tem sido central para a definição de seus
rumos. Há, nesse sentido, teses a sustentar que o malogro da Alalc e
os percalços da Aladi estão associados às influências negativas
exercidas pelos americanos em relação à articulação sub-regional. O
interesse americano em “neutralizar” a iniciativa brasileira de uma
ALCSA, no mesmo sentido, corrobora esse entendimento.
Na avaliação de Vaz, a importância da proposta da ALCSA
estaria em revelar o interesse brasileiro de exercer maior protagonismo
no espaço sul-americano e de procurar formas de fortalecer e ampliar
o Mercosul
52
. Esre interesse, de certa forma, manifestou-se novamente
em 2000. Apesar das dificuldades de articulação sub-regional, em
setembro daquele ano, o Brasil promoveu primeira Reunião de Cúpula
da América do Sul. A iniciativa, contudo, tinha nitidamente um perfil
não-comercial. A reunião, em cuja pauta se incluíam democracia, infra-
estrutura física, crime organizado e – finalmente – integração regional,
acabou por se focar em temas políticos
53
.
A discussão sobre projetos de integração física, contudo,
avançou de maneira substancial. Por ocasião do encontro presidencial,
lançou-se a Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional
da América do Sul – IIRSA, um foro de diálogo entre as autoridades
responsáveis pela infra-estrutura de transporte, energia e
telecomunicações nos doze países sul-americanos. De iniciativa
nitidamente brasileira, a IIRSA tem como base operacional as agências
de fomento regionais e deve orientar suas atividades a partir de um
51
RICUPERO, Rubens. Visões do Brasil: ensaios sobre a história e a inserção
internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 325-356.
52
VAZ, Alcides Costa. Op. cit., p. 213.
53
Vide LAMPREIA, Luis Felipe. Cúpula da América do Sul. Carta Internacional, n. 87,
mai. 2000, p. 01-02.
43
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
plano de ação, que define a ampliação e a modernização da infra-
estrutura regional no horizonte de dez anos.
6 - O Brasil, a Comunidade Sul-Americana de Nações
e um novo ânimo para a integração regional
A América do Sul passou a receber atenção renovada do governo
brasileiro com a posse da nova administração em 2003. Além de
reafirmar o compromisso do Brasil com o Mercosul, o governo Lula
anunciou destaque a ser conferido às relações do país com a América
do Sul. Sob a administração Lula, uma série de iniciativas vem sendo
tomada para conferir, na prática, o destaque que se atribui à América
do Sul no discurso. O ativismo da diplomacia presidencial para a
região materializa-se nas várias viagens realizadas pelo presidente aos
vizinhos e aos inúmeros encontros com líderes regionais. Muito embora
sejam divergentes as análises sobre o mérito das iniciativas, sobre a
orientação geral impressa à política externa e sobre seus resultados
efetivos, não se pode negar o caráter dinâmico da diplomacia da nova
gestão e o destaque que confere às relações do país com a América do
Sul e à integração na sub-região
54
.
A retomada das negociações sobre comércio no plano regional
também marca a atual política externa brasileira. Em 2004, pôde-se
finalmente concluir a negociação do acordo de livre-comércio entre
o Mercosul e a Comunidade Andina (CAN), que se iniciou em 1998
55
.
É importante notar que o acordo dito Mercosul–CAN envolve, na
54
Sobre o tema, vide ALMEIDA, Paulo Roberto de. Uma política externa engajada: a
diplomacia do governo Lula. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 47, n. 01,
2004, p. 163-184.
55
Enquanto o acordo entre os blocos não foi possível, negociaram-se paralelamente dois
acordos importantes: o Acordo de Complementação Econômica nº. 39 envolvendo, de um
lado, Brasil e de outro Colômbia, Equador, Peru e Venezuela e o Acordo de Complementação
Econômica nº. 48, entre a Argentina, de um lado, e as mesmas contra-partes andinas. Vale
recordar que a Bolívia, por já ter estabelecido o livre-comércio com o Mercosul, não fez parte
desses acordos.
44
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
verdade, da parte andina, a Colômbia, o Equador e a Venezuela. A
Bolívia, que faz parte do bloco, é país associado ao Mercosul desde 1996,
como se notou. O Peru, por fim, outro membro da CAN, negociou
um acordo com o Mercosul separadamente, em vias de entrar em vigor.
A partir da vigência do acordo Mercosul-CAN, ganhou efetividade o
conjunto de regras que prevê, entre outras questões, a livre-circulação
de mercadorias entre os blocos num prazo máximo de 15 anos, muito
embora para vários produtos a desgravação tarifária seja imediata
56
.
A nova orientação da política externa brasileira forneceu o
impulso necessário para o lançamento de um novo projeto de
integração para a América do Sul. Além disso, a conclusão do acordo
Mercosul-CAN contribuiu para a conformação de um cenário
propício ao estreitamento dos vínculos entre os países sul-americanos.
O lançamento da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSAN),
nesse sentido, parte de base econômica consistente, resultante da
ampliação dos blocos regionais existentes e da elaboração de acordos
entre as sub-regiões sul-americanas. O Chile e a Bolívia, sabe-se, têm
acordo de livre-comércio com o Mercosul. Este, por sua vez, criou
um espaço comercial livre entre a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o
Uruguai. Com o acordo Mercosul-CAN, o livre-comércio passa a
incluir também a Colômbia, o Equador e a Venezuela. O acordo de
abertura comercial negociado entre o Peru e o Mercosul foi já assinado,
e sua entrada em vigor é iminente. Está-se, assim, diante de quadro
altamente favorável a iniciativas realistas de cooperação aprofundada
entre os países da região, uma vez que há base jurídica conformada
para a livre-circulação de bens entre dez dos doze países da América
do Sul.
56
O acordo Mercosul-CAN foi incorporado ao ordenamento jurídico de todos os seus membros
e passou a vinculá-los a partir de abril de 2005. Ademais das questões de natureza econômico-
comercial, é importante registrar o enfoque político que a aproximação entre os blocos vem
adquirindo. Em 2004 o Mercosul, por meio do Conselho do Mercado Comum, adotou
decisão intitulada “Institucionalização do Diálogo Político entre a Comunidade Andina de
Nações e o Mercosul”, com o fim de “fortalecer e a projetar sua crescente vinculação”. Cf.
Decisão 21/04 do CMC.
45
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
Diante desse cenário, a III Reunião de Cúpula da América do
Sul, realizada no Peru em dezembro de 2004, marcou o surgimento
da CSAN. De acordo com a Declaração de Cuzco, os países sul-
americanos reconhecem a existência de oportunidades ainda não
aproveitadas tanto para explorar melhor suas aptidões regionais,
quanto para fortalecer as capacidades de negociação e projeção
internacional. Do mesmo modo, a Declaração destaca a determinação
dos países em desenvolver um espaço sul-americano integrado que
contribua, a partir de uma perspectiva sub-regional, para o
fortalecimento da América Latina e do Caribe, e que lhe outorgue
maior representação em foros internacionais.
No que interessa mais diretamente a uma análise de cunho
econômico-comercial, vale registrar que a Declaração de Cuzco prevê
o aprofundamento da convergência entre o Mercosul, a CAN e o
Chile, por meio do aperfeiçoamento de uma zona de livre-comércio.
Segundo a Declaração, os governos do Suriname e da Guiana se
associarão a este processo. Além disso, de acordo com o documento,
a CSAN promoverá a coordenação política e diplomática na região,
estabelecerá e implementará progressivamente ações conjuntas. A
promoção da convergência das ações deverá ocorrer a partir da base
institucional já existente, evitando a duplicação e sobreposição de
esforços que impliquem novos gastos financeiros.
Nitidamente, a Declaração de Cuzco confere ênfase à integração
física, energética e de comunicações na América do Sul. É
representativo da importância do tema que o primeiro ato concreto
associado à iniciativa da CSAN tenha sido justamente o anúncio da
construção da Rodovia Interoceânica
57
, feito pelo presidente brasileiro
no lançamento da Comunidade. Com efeito, além da articulação
política, a preocupação com a infra-estrutura da integração parece o
fato mais marcante da CSAN. A interconexão física da sub-região,
57
A rodovia ligará Inapari, na fronteira com o Estado do Acre, aos portos peruanos Ilo e
Matarani, no Pacífico.
46
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
aliás, tinha sido já o ponto central da primeira edição da Reunião de
Cúpula da América do Sul, ocorrida em 2000.
As questões comerciais, que sempre estiveram no núcleo das
propostas de integração sul-americana, não receberam grande
destaque no projeto. No instrumento que marca o lançamento da
CSAN, os países sul-americanos fazem referência à Resolução nº.
59, do XII Conselho de Ministros da Aladi (2004), que estabelece as
bases para a conformação do livre-comércio latino-americano a partir
dos acordos já existentes na região
58
. Trata-se, assim, de reiterar a
importância da Aladi como instrumento para a promoção do
comércio intrazona, e não de substituí-la por novo mecanismo, nem
mesmo de imprimir-lhe novo ritmo ou de estabelecer um prazo para
a consecução de seus objetivos. Sob o ponto de vista da conformação
do livre-comércio sul-americano, a CSAN, assim, apenas se aproveita
do contexto favorável decorrente da conclusão do acordo Mercosul-
CAN para reforçar os compromissos dos países com as metas da
Aladi, mas não presta colaboração mais expressiva para se os atinja.
A aproximação dos países sul-americanos por meio da CSAN,
não obstante, pode contribuir para o estabelecimento de condições
políticas favoráveis aos objetivos da Aladi. A Secretaria Geral da
Associação, nesse sentido, cogita da possibilidade de a CSAN auxiliar na
convergência dos acordos limitados que foram sendo adotados na região,
prestando serviço para a “multilateralização” que foi se dissipando por
meio do “minilateralismo”
59
. Com efeito, o concertamento regional
previsto na Declaração de Cuzco pode revigorar a vertente econômico-
comercial da integração. É de se reconhecer, contudo, que essa não parece
ser a prioridade da CSAN, um projeto antes político que econômico,
ainda que confira um destaque acentuado à integração física da sub-região.
58
ALADI. Bases de un programa para la conformación progresiva de un espacio de libre
comercio en la ALADI en la perspectiva de alcanzar el objetivo previsto en el Tratado de
Montevideo 1980. ALADI/CM/Resolución 59 (XIII). 18 de octubre de 2004.
59
Vide ALADI. Secretaría General. Informe del Secretario General sobre la evolución del proceso
de integración regional durante el año 2004. ALADI/SEC/di 1903. 10 de marzo de 2005.
47
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
As metas previstas na Declaração de Cuzco, aliás, parecem pouco
precisas. Ao tratar das linhas básicas da CSAN, o chanceler peruano
Manuel Rodríguez Cuadros afirmou que o novo bloco “no será un
organismo internacional sino un mecanismo para que Sudamérica tenga
capacidad de usar su patrimonio”. Mantendo o discurso um tanto vago,
observou ainda o anfitrião do encontro que a CSAN “será la primera
unión de países que nace con un “enfoque sociológico” que quiere
incluir la integración cultural, energética y vial, entre otras”
60
.
Numa sub-região pródiga em projetos integrativos não bem
sucedidos, é curioso destacar ao mesmo tempo o componente retórico
da iniciativa e a preocupação dos líderes da região em ressaltar o caráter
não-retórico deste projeto. As evocações a Simón Bolívar e a “gran
Patria Americana” no preâmbulo da Declaração de Cuzco dão o tom
da carga retórica da iniciativa. A declaração do presidente peruano,
Alejandro Toledo, por ocasião do lançamento da CSAN confirma o
ambiente psicossocial que marcou o evento: “estamos aquí para ponerle
carne y hueso; alma, corazón y vida al sueño de Bolívar”
61
. Com efeito,
o discurso parece conferir um potencial à iniciativa de que, a avaliar
pela Declaração de Cuzco, ela ainda não dispõe.
De toda maneira, a preocupação em demonstrar que a iniciativa
não se reduz a um discurso bem-intencionado extrai-se da fala do
presidente Lula. Segundo ele, a Rodovia Interoceânica anunciada no
lançamento da CSAN “[m]ostra que a Comunidade Sul-Americana
de Nações que estamos inaugurando não é mero exercício de retórica.
É a expressão do empenho de nossos países em superar as distâncias
que ainda nos separam”
62
. Em outra oportunidade, o chanceler
brasileiro, ao se referir à integração sul-americana, expressou que a
60
Informações disponíveis no sítio da ALADI. Vide: <http://www.comunidadandina.org/
prensa/articulos/efe6-12-04a.htm>. Acesso em: 10 ago. 2005.
61
Discurso del Presidente de la República del Perú, Alejandro Toledo, con ocasión de la
Inauguración de la III Cumbre de Presidentes de América del Sur. Cuzco, 08/12/2004.
62
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na III Reunião de Presidentes
da América do Sul, por ocasião do anúncio da Rodovia Interoceânica. Cuzco, 08/12/2004.
48
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
reunião de Cuzco “representa um avanço concreto e não apenas
simbólico (embora o simbólico também faça parte da política)”
63
.
Aguarda-se para setembro de 2005 nova reunião dos chefes de Estado
e de governo da América do Sul.
Numa avaliação geral, a partir da compreensão do histórico das
iniciativas latino e sul-americanas de integração, os seguintes fatores
precisariam ser levados em consideração quando se avaliam as
perspectivas para a CSAN. O risco mais evidente que a iniciativa corre
é de que não passe de um exercício de retórica por parte dos
protagonistas políticos da região, que reproduza o padrão histórico de
declarações heróicas descontectadas da realidade sub-regional. Se as boas
intenções são necessárias para mover o processo de integração, a
experiência – e o bom senso – fazem crer que isso não basta ao sucesso
da empreitada. E, como nota Dupas, “[n]o caso da América Latina,
uma tentativa séria de estratégia transnacional de cooperação ainda está
para ser feita. Seus blocos regionais nunca passaram de caricaturas
limitadas a acordos comerciais tímidos e repletos de exceções”
64
.
O histórico de projetos inconclusos de integração sub-regional
influencia negativamente a percepção dos atores a respeito do plano lançado
e, mais grave, influencia o comportamento dos sujeitos diante da CSAN.
A ausência histórica de compromisso efetivo com a integração pode, assim,
fazer os países hesitantes em relação aos esforços que devem empreender
na nova iniciativa, recalcitrantes em relação às ações concretas a serem
tomadas em prol da consecução do projeto. A convergência de expectativas,
elemento central de um regime, é prejudicada por um padrão histórico de
comportamento na região pouco favorável a iniciativas dessa natureza.
A percepção da CSAN como alternativa a outros processos é,
igualmente, risco que, curiosamente, poderia contribuir para o
63
AMORIM, Celso. Política externa do Governo Lula: os dois primeiros anos. Análise de
Conjuntura – Observatório Político Sul-Americano, n. 04, mar. 2005, p. 02.
64
DUPAS, Gilberto. A lógica global e os impasses da América Latina. Política Externa, v.
13, n. 03, dez–fev. 2004/2005, p. 24.
49
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
enfraquecimento da iniciativa. Parece claro que o projeto da CSAN
não embute um viés de confrontação com os principais pólos de
poder do sistema internacional – o que, evidentemente, é adequado.
Ainda assim, de toda maneira, vale ter sempre presente que a CSAN
não pode ser percebida por seus membros, tampouco por outros
atores, como um projeto que se consolida em detrimento de outros.
Em uma avaliação dos fatores relevantes o para o sucesso da CSAN,
precisa ser considerado o Mercosul. Para Jaguaribe, por exemplo, o
“Mercosul dispõe de todas as condições para se constituir como núcleo
organizador de um amplo sistema regional sul-americano”
65
. Sabe-se, em
particular, que os vínculos entre o Brasil e a Argentina conformam o
núcleo do Mercosul e que, no momento, a integração sul-americana
parece depender de seu principal arranjo sub-regional. Como nota Ferrer,
“[e]l peso relativo de Argentina y Brasil en el contexto del Mercosur y
del espacio sudamericano confiere a la relación bilateral entre ambos os
países una influencia significativa en la evolución del sistema subregional
y las perspectivas de la integración en América del Sur”
66
.
Muito embora não se acredite que as divergências econômico-
comerciais que existem entre os países sejam capazes de esvaziar o
projeto de cooperação sul-americana, é importante ter presente que
a CSAN apóia-se no estreitamento dos vínculos entre o Mercosul e a
CAN. Em alguma medida, assim, o empreendimento da CSAN
depende da força dos elementos sobre os quais se sustenta. Quando
se considera que os presidentes da Argentina, do Uruguai e do Paraguai
não compareceram ao evento que marcou o lançamento da iniciativa
brasileira de construção de uma Comunidade Sul-Americana de
Nações, fica evidente a importância de não se descurar da articulação
entre os países do bloco frente à nova iniciativa.
65
JAGUARIBE, Hélio. Op. cit., p. 34. Para o autor, “[a] formação de um sistema regional sul-
americano requer, como etapa inicial, um amplo acordo de cooperação política entre Mercosul
e o Pacto Andino” (p. 35).
66
FERRER, Aldo. In: SEMINÁRIO sobre a América do Sul: a organização do espaço
sul-americano. Brasília: IRBr / IPEA / IPES, 2000, p. 171.
50
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
Malgrado a importância de se considerarem os fatores de risco
indicados acima, outros elementos poderiam ser citados na
conformação de um cenário mais otimista para a evolução da CSAN.
A formação de acordos regionais é tendência marcante no contexto
atual, as condições internacionais parecem favorecer a articulação de
Estados em prol da obtenção de metas comuns e o sucesso de
experiências de outras regiões motiva os líderes locais.
Na própria região, se a avaliação histórica das iniciativas de
integração regional não é positiva, tampouco se podem negar avanços
havidos, nem mesmo lições legadas das experiências pretéritas. Os vários
acordos (comerciais ou não) que vinculam todos os países da sub-região
dão sinais da evolução ocorrida em direção ao estreitamento das relações
entre os Estados. Há, sem dúvidas, maior grau de interpenetração das
economias da região, as transações comerciais são mais intensas e os
fluxos de investimentos, mais expressivos. Sob o aspecto da estrutura
física da integração, há evidentes avanços em relação a décadas e mesmo
anos anteriores. Além de serem outras as bases econômicas sobre as
quais se pode construir a CSAN, as experiências passadas tornam os
países da sub-região mais conscientes quanto às possibilidades, aos ricos,
às vantagens e aos custos de esquemas de integração regional. E, mais
importante: fazem os países atentos quanto ao custo de oportunidade
decorrente do não-agir (e mesmo do avançar em ritmo lento).
A existência de esquemas já estabelecidos de integração sub-
regional parece prestar contribuição relevante à conformação da CSAN.
A integração regional por meio da articulação de processos menores
consiste em uma abordagem prudente, que se beneficia de esforços
anteriores e resultados já obtidos. A estratégia empregada pela CSAN,
dessa forma, parece adequada: caminhos sub-regionais (ou mesmo
bilaterais na região) trilhados pela geografia, pela tradição, pela história,
precisam ser explorados na conformação da integração regional.
É importante ainda notar que a CSAN diferencia-se da Alalc e
da Aladi sob vários aspectos. Além do viés comercial muito menos
51
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
evidente que o das experiências pretéritas, a CSAN conta também com
abrangência geográfica mais limitada, o que pode contribuir para a
consecução de seus objetivos. Como se observou, a aproximação mexicana
em relação aos Estados Unidos fez da “América Latina” um conceito de
pouca utilidade analítica e igualmente um parâmetro de pouca viabilidade
para a ação política em prol da integração. Limitar a coordenação sub-
regional à América do Sul parece, de fato, um componente importante
quando se examinam as perspectivas de sucesso da CSAN. Deve-se
reconhecer, no entanto, que a proposta da ALCSA, que não teve
implicações de maior envergadura, já adotava o enfoque sul-americano.
De maneira acertada, a CSAN afastou-se de uma abordagem
excessivamente comercial de integração. Desse mal padeciam tanto a
Alalc, quanto a Aladi, e, ainda, a ALCSA. A liberalização comercial,
como se observou, sempre esteve no núcleo dos projetos integrativos
sub-regionais. Muito embora se reconheça o papel relevante que o
comércio pode prestar a processos de integração, limitá-los a esse aspecto
não parece estratégia mais adequada. De outro norte, a CSAN pode
ter pecado pela falta: as condições econômicas favoráveis poderiam ter
sido mais bem aproveitadas para se acelerar a liberalização comercial
articulada pela Aladi e, principalmente, para se intensificar o processo
de convergência dos Acordos de Alcance Parcial que foram celebrados
em seu âmbito. De toda maneira, é evidente a importância de se ampliar
a percepção a respeito da aproximação econômica, evitando restringi-
la ao livre-comércio – nesse sentido, a ênfase conferida à infra-estrutura
física da integração é aspecto positivo da CSAN.
Uma palavra ainda deve ser dedicada às questões institucionais.
A evolução consistente de um processo de integração regional parece
depender de instituições, pela contribuição importante que podem
prestar para que os Estados se mantenham vinculados aos
compromissos definidos. O desenvolvimento de um projeto de
integração regional não deve depender excessivamente das contingências
políticas, dos acertos de alto nível e da intervenção dos líderes. É
52
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
importante que as respostas para os problemas da integração advenham,
tanto quanto possível, do próprio sistema, e não dos Estados que fazem
parte dele, sob pena de o casuísmo, a acomodação e a exceção
sinalizarem a falta de compromisso com o projeto integrativo e, em
última instância, comprometerem a iniciativa.
Ao mesmo tempo em que se reputa válida a previsão da Declaração
de Cuzco de não se criarem novas instituições, de não se duplicar o trabalho
feito por outras organizações, é bom ter presente que as estruturas existentes
não parecem ter atuado de maneira eficaz com vistas à consecução dos
projetos integrativos às quais se vinculam. Assim, resta aguardar para fazer
uma avaliação da capacidade de a estrutura institucional existente na sub-
região servir de instrumento em prol da conformação da CSAN.
A ausência de metas precisas na iniciativa da CSAN faz que a
avaliação de seus resultados venha a ser um tanto prejudicada. Talvez os
receios quanto a um eventual insucesso do projeto tenha feito os países
prudentes – e mesmo deliberadamente vagos – na definição dos objetivos
da Comunidade. Apesar disso, ao mesmo tempo em que a caracterização
do insucesso da iniciativa seja dificultada pela imprecisão de seus objetivos,
um projeto sem propósitos claros e sem prazos definidos corre o risco
maior de cair no esquecimento da região, de se constituir em mais um
projeto de governo que não se traduz em projeto de Estado e, finalmente,
de vir a engrossar o rol de iniciativas inconclusas de integração.
Sabe-se que metas irrealistas acabam comprometendo o êxito
de qualquer projeto. Da recuperação histórica feita, pôde-se concluir
que o excesso de ambição na definição dos objetivos esteve na causa
do insucesso da Alalc, por exemplo. A flexibilização das metas da
integração foi um dos motivos centrais para a substituição da Alalc
pela Aladi, como se notou. De fato, um dos grandes desafios no
desenho de modelos integrativos está justamente em definir o ponto-
ótimo na combinação entre a flexibilidade e a ambição. O
desequilíbrio, para um ou outro lado, pode levar ao insucesso de
iniciativas dessa ordem. No projeto da CSAN, tal como esboçado na
53
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
Declaração de Cuzco, o pêndulo tende a se aproximar da flexibilidade
excessiva, o que implica os riscos indicados acima.
Por fim, dedica-se atenção ao papel que compete ao Brasil frente
a este novo projeto integrativo. A importância do país para o sucesso
(ou mesmo o insucesso) da iniciativa está relacionada não apenas ao
fato de ter sido seu proponente, mas também à expressão política e
econômica que detém na sub-região. A reflexão central a se fazer diz
respeito ao exercício da liderança e às percepções dos vizinhos a
respeito de um protagonismo brasileiro na América do Sul.
O ativismo político da gestão Lula–Amorim (de que a CSAN é
uma expressão) molda a percepção dos países sul-americanos a respeito
das pretensões brasileiras no sub-continente e pode gerar alguma
resistência em relação à CSAN, a depender da habilidade brasileira na
condução do processo. Tem-se percebido recentemente a elevação do
perfil político da retórica de liderança regional brasileira, o que, a despeito
de juízos de valor que se façam, representa uma mudança no perfil
notadamente mais baixo que se vinha adotando até então.
Historicamente, de fato, o Brasil sempre foi muito resistente a se
auto-atribuir um papel de líder na sub-região. Como nota Selcher,
“Brazil´s role as a regional actor has been molded by its cautious
diplomatic style, resulting from a decision not to exercise fully it
capabilities for influence, in order to protect its positive image in the
region”
67
. Não são poucos, ademais, os riscos da liderança anunciada.
Parece nítido o efeito contraproducente de se ser arauto da própria
liderança. No plano internacional, quanto mais evocada a liderança,
menos eficaz ela tende a ser, em razão de gerar maior suspeita entre os
supostos liderados. Evidentemente, mesmo sob uma política externa
ativa e focada na América do Sul, há resistência do Brasil em se auto-
atribuir, nos dias de hoje, um papel de liderança na região. “Esta postura
67
SELCHER, Wayne. Current Dynamics and Future Prospects of Brazil´s Relations Toward
Latin America. Journal of Interamerican Studies and World Affairs, v. 28, n. 02,
Summer 1986, p. 71.
54
T
ATIANA LACERDA PRAZERES
mais cautelosa (ou desiludida) [...] talvez não denote um objetivo de
adotar uma postura de menor protagonismo regional, mas parece
sinalizar a incorporação de uma atitude mais realista”
68
. Não obstante
isso, a projeção de poder, construída sobre a premissa de “não-
intervenção, mas não-indiferença”
69
, pode gerar algum desconforto e
provocar mesmo suspeitas entre os países da sub-região.
Além do presidente do Brasil, nenhum outro presidente de país
do Mercosul compareceu à Reunião de Cúpula que lançou a CSAN,
iniciativa nitidamente percebida como brasileira. A ausência dos
líderes da Argentina, do Paraguai e do Uruguai na reunião de Cuzco
poderia ser avaliada como um sinal de insatisfação destes países com
a posição relativa do Brasil. Independentemente das razões que se
possam atribuir ao episódio, é ele representativo da importância de
se conduzir com habilidade a relação com os vizinhos para a definição
do sucesso da CSAN.
A bem da verdade, é válido reconhecer que a ação brasileira em
relação à sub-região relaciona-se também com o objetivo de alcançar
um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações
Unidas. A reforma que se reclama para o Conselho, sabe-se, tem por
fundamento a importância de que o órgão seja dotado de maior
representatividade regional. Parece inevitável, nesse sentido, que os
países da região percebam a estratégia brasileira para a América do
Sul não apenas, mas também como um instrumento por meio do
qual o Brasil poderia angariar a legitimidade necessária para
“representar” a sub-região no Conselho de Segurança.
68
FARIA, Carlos Aurelio Pimenta de; CEPIK, Marco Aurelio Chaves. Op. cit., p. 30.
69
É representativo dessa orientação o seguinte trecho de discurso do chanceler brasileiro: “A
diplomacia brasileira pauta-se pelo princípio da não-ingerência em assuntos internos,
consagrado em nossa Carta. O Governo do Presidente Lula tem associado a esse princípio
básico uma atitude que descrevemos como de “não-indiferença”. Temos prestado nosso apoio
e solidariedade ativos em situações de crise, sempre que somos solicitados e consideramos ter
um papel positivo” (Discurso do Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Embaixador
Celso Amorim, na XXXV Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. Fort
Lauderdale, 05/06/2005).
55
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
O projeto da CSAN pode tornar-se inviável, caso os países da
América do Sul percebam nele um instrumento empregado pelo Brasil
para projetar sua legitimidade para além da sub-região, para transmitir
ao mundo a mensagem de que exerce um papel de liderança numa
zona razoavelmente articulada por meio dessa iniciativa, tendo
representatividade e legitimidade na região para atuar em nome dela.
Em suma: há um risco de que os países da América do Sul considerem
que o Brasil esteja se apropriando do projeto de integração regional
como instrumento para a obtenção de meta tida por central da política
externa brasileira sob o governo Lula.
É preciso reconhecer que, caso o interesse diplomático brasileiro
esteja na projeção do papel do Brasil em termos globais (particularmente
diante das Nações Unidas), é fundamental que se reafirme uma presença
forte na América do Sul. No entanto, para que a atuação do Brasil na
América do Sul seja percebida positivamente por seus vizinhos, são
necessárias certa habilidade e alguma dose de prudência. O perfil do
presidente Lula contribui para o arrefecimento das percepções
conspiratórias a respeito dos interesses brasileiros – o presidente é líder
carismático, de grande apelo popular e ótimos relacionamentos pessoais
com seus homólogos na região
70
. O desafio, como sugerido, é o de não
inspirar desconfiança entre os parceiros da CSAN e de demonstrar o
efetivo compromisso brasileiro com o projeto, independentemente dos
frutos que possam ser colhidos a partir de seu eventual sucesso.
Parece válido retomar a análise de Cepik e Faria a respeito das
implicações do lançamento da ALCSA para as relações do Brasil com
a sub-região. Para os autores, “Brasília tentou superar a insegurança
dos países vizinhos em relação ao seu unilateralismo por meio de um
discurso diplomático sobre a ‘iniciativa sem pretensões de liderança
por parte do Brasil’, questão esta que perpassa os dois mandatos do
governo Fernando Henrique Cardoso. Contudo, o país não
70
LOPES, Dawisson Belém; VELLOZO JÚNIOR, Joelson. Balanço sobre a inserção
internacional do Brasil. Contexto Internacional, v. 26, n. 02, jul.-dez. 2004, p. 342-343.
56
T
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conseguiu dissipar os velhos fantasmas do ‘sub-imperialismo’
brasileiro, tampouco pôde exercer de fato uma liderança percebida
como necessária por boa parte dos governos e dos povos da região”
71
.
Deve-se reconhecer que a iniciativa da ALCSA guarda alguma
semelhança com a da CSAN. Além de terem pretensões
integracionistas de abrangência sul-americana, ambos os projetos
foram lançados pelo governo brasileiro (e, mais, em momentos
distintos, mas sob o comando do mesmo chanceler). Diante da
experiência da ALCSA, parece conveniente recobrar o cuidado com
as percepções regionais a respeito da projeção de poder do Brasil na
América do Sul.
Para diluir suspeitas e construir um ambiente propício à
credibilidade do projeto integrativo, parece importante que o Brasil
esteja disposto a arcar com os custos que naturalmente advêm de
processos dessa natureza. Como notou Ricupero em outro contexto,
“em qualquer esforço de revitalização do processo integracionista,
terá de caber forçosamente ao Brasil um papel central devido à
dimensão de sua economia e sua posição superavitária”
72
. O
posicionamento do atual chanceler brasileiro reflete este
entendimento. À medida que as palavras forem tomando corpo em
ações concretas, contribui-se de maneira mais expressiva para a
construção de um ambiente propício ao sucesso da CSAN. Segundo
Celso Amorim:
Ciente de seu tamanho e do peso de sua economia nas transações
intra-regionais, o Brasil reconhece que seu papel nesse processo de
integração comporta custos e supõe uma visão “generosa”, para que
possamos compensar os desequilíbrios nos diferentes graus de
desenvolvimento dos países da região. Aliás, generosidade, neste caso,
71
FARIA, Carlos Aurelio Pimenta de; CEPIK, Marco Aurelio Chaves. Op. cit., p. 24.
72
RICUPERO, Rubens. Op. cit., p. 421.
57
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
nada mais é do que a capacidade de colocar os interesses do longo
prazo acima de objetivos imediatistas. No caso da América do Sul,
temos, além dos desequilíbrios entre os países, uma herança de
problemas econômicos e sociais internos que geram tensões e fatores
desfavoráveis à integração. Mas a determinação de avançar na
integração regional é, hoje, um projeto mais amplo, disseminado na
classe política, no setor privado e na sociedade civil dos países da
região
73
.
7 - Considerações finais
É bastante conhecido – e igualmente acertado – o conceito
clássico da ação diplomática segundo o qual os países devem fazer o
melhor proveito de sua geografia. Por meio da integração regional, a
América do Sul pode encontrar instrumento capaz de melhor
posicionar os países da sub-região no cenário internacional e,
finalmente, de explorar o potencial – sempre latente por essas
paragens – que decorre da contingência da vizinhança.
A análise feita por este artigo remonta às dificuldades por que
passaram os projetos integracionistas na América do Sul e, de fato,
confirma as impressões de que a idéia de integração regional não
encontrou lugar na sub-região, muito embora o tema sempre se tenha
feito presente no discurso dos líderes locais.
Apesar dos percalços históricos da integração na América do
Sul, a atualidade assiste à recobrada do fôlego integrativo sub-regional.
Este texto buscou investigar, a partir das lições pretéritas, se a
conjuntura atual permite se cogitar de condições favoráveis a uma
nova empreitada integracionista. O desafio consiste justamente em
viabilizar o aprofundamento dos vínculos entre os países da sub-
região, diante de um histórico de expectativas frustradas de integração,
73
AMORIM, Celso. Op. cit., p. 03.
58
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de um padrão de discursos promissores seguidos de práticas pouco
expressivas de ação cooperada.
Com efeito, alguns fatores do atual contexto sul-americano
sugerem um momento propício para o agir coordenado. A “promessa
não-cumprida” de América do Sul tem sido retomada com vigor no
discurso dos líderes locais e parece impulsionar os países da região
no sentido do aprofundamento da integração sub-regional. Ilustra
esta percepção a fala do presidente brasileiro, que, ao encerrar a
Reunião de Cúpula de Cuzco, expressou estar convencido de que “a
integração da América do Sul é o grande legado que deixaremos para
as futuras gerações de nosso continente”
74
. Necessário, mas não
suficiente, o interesse político é certamente catalisador desse processo.
Rechaçando uma perspectiva voluntarista da integração sul-
americana (que, ademais, marcou iniciativas anteriores), deve-se
reconhecer que as condições materiais necessárias para o
fortalecimento dos vínculos sub-regionais parecem dar sinais de maior
densidade. Sugerem esse entendimento, por exemplo, a intensificação
do comércio intra-zona, o crescimento dos fluxos de investimento e
o desenvolvimento da interconexão física na sub-região. A perspectiva
de que os acordos da Aladi venham a cobrir mais de 85% do comércio
intra-regional em 2007 indica haver base econômica para a
cooperação aprofundada na região. Do mesmo modo, a existência
de acordos de liberalização comercial que vinculam dez dos doze países
sul-americanos é fato auspicioso para a conformação das condições
favoráveis à integração.
Diante dessas circunstâncias, parece vital que se empreendam
esforços para dotar de maior coerência e consistência os vários arranjos
bilaterais e sub-regionais existentes. A proposta da CSAN, se bem
conduzida, pode prestar contribuição importante para otimizar as
iniciativas sub-regionais e fazer bom proveito do momento favorável
74
Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por ocasião do encerramento
da III Reunião de Presidentes da América do Sul. Cuzco, 08/12/2004.
59
A
INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
à integração. O projeto articulado em torno da CSAN, contudo, não é
isento de riscos. Por sua importância na sub-região e por ter promovido
a nova iniciativa, ao Brasil compete papel fundamental para que se explore
o potencial decorrente das circunstâncias favoráveis. O êxito da
empreitada certamente exigirá habilidade do governo brasileiro, de modo
a dissipar eventual desconforto na sub-região a respeito das pretensões
de liderança do Brasil, que estariam consubstanciadas no novo projeto.
Do mesmo modo, a distribuição equânime dos benefícios da nova
iniciativa é outro desafio a ser enfrentado para fazer que a integração sul-
americana seja uma prioridade efetiva para os países da sub-região.
Ainda que neste momento se aliem o interesse político e a
conjuntura favorável, permanecem as dúvidas sobre a capacidade de
se reduzir de maneira substantiva a defasagem existente entre o
discurso e a ação a respeito da integração sul-americana, sobre as
condições para que se traduza na prática o prestígio que a retórica
confere à cooperação aprofundada. O diagnóstico que se pôde fazer,
mas sugere haver possibilidade de que a integração regional na América
do Sul venha a ser, finalmente, uma idéia em seu devido lugar.
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Brazil´s Relations Toward Latin America. Journal of Interamerican
Studies and World Affairs, v. 28, n. 02, Summer 1986, p. 67-99.
VAZ, Alcides Costa. Cooperação, integração e processo
negociador: a construção do Mercosul. Brasília: Funag / IBRI, 2002.
2
Identidade, Desenvolvimento
e Integração: Desafios para o Brasil e
a América do Sul no Século XXI
1 – Introdução
O problema mais urgente dos tempos atuais para a América do
Sul é o da responsabilidade em relação ao seu futuro. É neste contexto
que sua identidade e sua integração precisam ser considerados neste
início de século XXI, marcado pela globalização e pela postura de
hegemonia unipolar dos Estados Unidos.
Projetos de integração do continente, o Mercosul e a
Comunidade Sul-Americana de Nações, apesar de todas as suas
dificuldades, constroem uma dinâmica que promove a criação de um
espaço de autonomia em relação aos Estados Unidos.
Na atualidade, nenhuma outra região tem contribuído tão
firmemente para um mundo multipolar quanto a América do Sul,
devido à posição que vários de seus países, a exemplo do Brasil, vêm
assumindo em termos de política externa. Aliás, o Brasil tem hoje a
mais significativa e consistente política externa de sua história, o que
permite o surgimento de uma política internacional pró-ativa e
genuína, concretizada, entre outras ações, pela constituição do Grupo
dos 3 (Brasil, África do Sul e Índia) e pelas ampliações a partir desta
matriz, como o Grupo dos 20 (G-20) e o Grupo dos 4 (Brasil,
Identidade, Desenvolvimento e Integração:
Desafios para o Brasil e a
América do Sul no Século XXI
Ângela Maria Carrato Diniz
*
67
*
Angela Maria Carrato, jornalista especializada em política e mestre em Comunicação Social
pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-chefe da sucursal do Diário do Comércio, em Brasília,
e ex-presidente da Rede Minas de Televisão. Professora da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e autora de diversos trabalhos sobre política, jornalismo e televisão pública.
68
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
Alemanha, Japão e Índia). Estas articulações reforçam o
multilateralismo e a construção do diálogo entre os países ricos e os
países em desenvolvimento.
Nesse sentido, a política externa do governo Luiz Inácio Lula
da Silva é mais assertiva do que a de Fernando Henrique Cardoso, na
medida em que busca uma participação ativa nas esferas multilaterais
nas quais são definidas as regras do jogo político e econômico mundial.
Em outras palavras, o atual governo procura conferir ao país um
protagonismo externo que extrapola a esfera das negociações
comerciais. Ele é claro em sua atuação na Organização das Nações
Unidas (ONU), com o Brasil estimulando a discussão sobre a reforma
do Conselho de Segurança.
Uma atuação com essas características precisa, cada vez mais, fundar-
se em um sóbrio exercício de realismo político. Não pode ser conformista,
mas, igualmente, não pode se deixar levar pelo idealismo. Nesse sentido, a
opção atual pela América do Sul feita pela diplomacia brasileira diferencia-
se, significativamente, de épocas anteriores, como dos anos do Pan-
Americanismo de Juscelino Kubitschek. Não se trata mais, apenas, de
corrigir a fenda existente entre os países do Sul e os Estados Unidos com
base na indignação contra a pobreza. O que está em pauta é a construção
de condições objetivas para a superação das desigualdades por meio da
busca de inserção mundial mais conveniente à região.
Uma postura assim demanda grande dose de pragmatismo
somado à criatividade. Impossível? Não. Difícil? Sem dúvida,
especialmente devido a possíveis incompreensões tanto da parte de
tradicionais parceiros quanto de países vizinhos.
O Brasil, ao planejar seu futuro, sabe que não pode dissociá-lo
do futuro da América do Sul. Historicamente, a identidade sul-
americana esteve diluída no conceito um tanto impreciso e vago de
América Latina, que não trouxe contribuições significativas para a
integração da região, motivo pelo qual a atual busca da especificidade
traz consigo importantes conseqüências.
69
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
A tarefa que os países sul-americanos têm pela frente é árdua e,
nela, a participação brasileira precisa ser a mais transparente possível,
sem quaisquer arroubos nacionalistas e, menos ainda, sem quaisquer
veleidades hegemônicas. Levando-se em conta estes aspectos, não há
mais como dissociar a política interna vigente nos países sul-
americanos da agenda internacional que põem em prática.
Assim, cada vez perde mais espaço a visão “despolitizada” que
se tinha da política externa. Ela passa a influir, de fato, em questões
que antes faziam parte apenas do ambiente regulatório doméstico. A
redução das desigualdades internas no Brasil transforma-se em um
ponto essencial e necessário de confluência de sua atuação externa e
interna, sob pena de desacreditá-la junto à opinião pública nacional e
internacional.
Não há como ignorar que o processo de globalização colocou
em cena novos atores e movimentos sociais (ONGs e entidades da
sociedade civil) não necessariamente convergentes em suas respectivas
orientações, preferências e interesses, mas para os quais o
internacional se torna âmbito relevante de atenção e atuação, fazendo
desaparecer, em grande medida, o consenso prévio que havia em
relação à política externa.
Novos desafios e novos paradigmas somam-se a velhos
problemas nos cenários nacionais e internacional da América do Sul
neste início de século. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar
criticamente esta problemática, levando em conta quatro aspectos
igualmente importantes.
O primeiro envolve a constituição do paradigma “América do
Sul” em substituição a “América Latina”. Não se trata apenas de uma
mudança conceitual, mas de uma nova postura – e uma prioridade –,
em termos de relações internacionais. O segundo diz respeito à
inserção da América do Sul no mundo globalizado, tendo o desafio
de buscar caminhos para uma área historicamente considerada como
“de influência norte-americana”. O terceiro refere-se ao papel que o
70
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
Brasil vem tendo e pode ter neste processo, na medida em que é o
maior país da região e também o que atingiu estágio mais complexo e
diversificado em sua economia. O quarto trata da presença de novos
atores no cenário internacional, o que eles modificam e o quanto
contribuem para a busca da unidade cultural do continente.
“Unidade cultural” foi aqui entendida como a argamassa capaz
de unir, ao mesmo tempo em que preserva, as especificidades de cada
país, transformando-se na chave capaz de fomentar a opinião pública
com influência decisiva na política externa. É o local e o global
interagindo, interpenetrando-se, como elementos essenciais ao que
pode ser considerado “integração prévia”, a qualquer projeto que
tenha por meta a unidade da região.
Desde já, vale salientar que não serve à América do Sul uma
integração externa que propicie sua desintegração interna. O caminho
do apartheid leva, mais cedo ou mais tarde, a situações autoritárias, à
ditadura. A democracia com desenvolvimento, redução de
desigualdades e plena integração é o desejável.
Esse talvez seja o grande desafio do Brasil como nação e, quem
sabe, a maior contribuição que se possa dar a uma ordem internacional
mais justa. Afinal, está em pauta a construção coletiva do futuro e a
própria construção do nosso lugar, como cidadãos sul-americanos,
no mundo. O Sul, mais do que nunca, é o nosso norte.
2 – Uma mudança muito mais que conceitual
Mudar paradigmas não é tarefa fácil. Não depende da vontade
individual, mas envolve coragem para perceber a chegada do novo e
mais coragem ainda para desvencilhar-se do que não serve. A história
está dando uma oportunidade real para a América do Sul resgatar sua
identidade e, com isso, buscar no futuro o que não foi possível
conseguir até o momento: desenvolvimento e superação das
desigualdades que marcam as populações que habitam o continente.
71
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
O venezuelano Arturo Uslar-Pietri
1
, expoente do pensamento
latino-americano do século XX, é uma dessas pessoas de coragem.
“Isso que muitos chamam América Latina é, de modo muito
significativo, o mundo ao qual se arrebatou o nome”. Com esta frase,
ele lembra, em A Outra América, que este nome foi dado,
originariamente, apenas à porção sul do hemisfério americano no
mapa Universalis cosmographiae, ao examinar o processo de perda de
identidade do Hemisfério ao Sul do Rio Grande para a porção anglo-
saxônica do continente.
Nascida do erro de Colombo – que julgava ter chegado à Índia
ou ao extremo oriente da Ásia –, a denominação do continente foi,
desde então, uma metáfora: Novo Mundo, Índias, Terra Firme. Até
Hegel deu sua contribuição, sugerindo “Terra do Futuro” como
maneira de denominar a região. As contribuições não vingaram. Com
o passar do tempo, o termo “América” foi assimilado e acabou
reduzido à porção anglo-saxônica, mais especificamente aos Estados
Unidos.
Se os Estados Unidos são a América, o que somos nós? A
porção sul do hemisfério acabou sendo chamada “naturalmente” de
América do Sul. O istmo recebeu a denominação de América Central
e o México, apesar de suas ligações com o Sul e com Centro,
estabeleceu-se junto à América do Norte, situação, aliás, que se
explicitou com a adesão do país ao “North American Free Trade
Agreement” (Nafta).
A assimilação do nome “América” pelos Estados Unidos não
se deu sem conseqüências.
Reações não demoraram a acontecer, a exemplo da tentativa
de se restabelecer a identidade original do continente com sucessivas
denominações: América Latina, Indo-América, Ibero-América e
América Latina e Caribe. Destas, talvez a que tenha encontrado
1
Ver o artigo “Redescobrindo a América do Sul”, de Sérgio Danese, publicado no jornal
Valor Econômico, de 09/12/2004.
72
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NGELA MARIA CARRATO DINIZ
maior ressonância seja América Latina, denominação cara a expoentes
como Bolívar, Carpentier, Ureña, Mariátegui e Martí.
2
A denominação
América Latina tornou-se igualmente cara à esquerda dos anos 1960
na região, projetando para o mundo imagens romantizadas de
guerrilheiros como Che Guevara.
Ao buscar, com elevadas doses de paixão, uma identidade
única para todo o continente, transformando-a em base para a
sua independência, a esquerda dos anos 60 abraçou a utopia. O
entusiasmo era tamanho que ajudou a ocultar inúmeros
problemas, inclusive a dependência econômica que marca a região.
Tal dependência sempre foi denunciada por autores que, no início
dos anos 1990, já questionavam o conceito de integração do
continente com base no projeto da Alca, patrocinado pelos
Estados Unidos.
No artigo “Integração para quem?”, Darcy Ribeiro
3
defende o
ponto de vista de que não existe, no mundo, área mais integrada do
que a América Latina, seja em termos das línguas faladas na região,
seja pela constituição de sua população ou sua cultura. Ele enfatiza,
no entanto, que a integração da região, que é “nosso destino, só se
plasmará quando vencermos os pregadores da integração econômica”.
Caso contrário, sentenciava:
A integração de que tanto se fala, com tanta alegria, é o projeto do
continuismo do sistema de dominação que sofremos e que faz de
nós, também, no plano econômico, uma área inexcedivelmente
integrada. Sua ideologia é o neoliberalismo, socialmente irresponsável
e dissuasivo da formulação de um projeto próprio de
desenvolvimento autônomo para nossas nações.
2
QUIJANO, Aníbal. “A América do Sul Sobreviverá?” In: Carta. Fala, Reflexões e
Memórias. Informe de Distribuição restrita do senador Darcy Ribeiro, n. 8, Distrito Federal,
1993. p. 99 – 110.
3
RIBEIRO, Darcy. “Integração Para Quem?”, idem, p. 11.
73
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
2.1 – Sem exclusões ou confronto
Bolívar, um sonhador incansável em prol da unidade latino-
americana, é normalmente invocado como aquele que pensou em
“fazer de todo o Novo Mundo uma única nação com um único laço
que ligue as partes entre si e com o todo”.
4
Ele advertia que um projeto
de tamanha envergadura não era para já, dedicando sua vida a construí-
lo. Derrotado e desiludido, sucumbiu ao pessimismo. Talvez por isso,
uma de suas frases mais amargas tenha tido pouca repercussão: “Na
América, uma coisa resta a fazer: emigrar”.
5
Não emigramos, e a
história nos oferece, agora, uma oportunidade real de resgatar nossa
identidade e, sobretudo, de contribuir para que o mundo encontre
uma base mais justa e equilibrada para o desenvolvimento.
O conceito de América do Sul explicita novas questões,
traduzindo-se em valiosa contribuição intelectual para se pensar nos
desafios do continente sob nova ótica. Não basta o amor à liberdade
para ser livre, é preciso também uma ciência da liberdade para
viabilizá-la.
“América do Sul” hierarquiza e dá fundamento a todo um
processo de integração física, econômica e cultural, que cria novas
possibilidades para a ação, até porque o conceito não pretende
sublimar questões ideológicas e, menos ainda, mascarar mazelas e
problemas históricos.
Com o conceito de América Latina, verifica-se algo semelhante
ao que sucedeu com a denominação “Terceiro Mundo”, praticamente
abandonada, a partir dos anos 1980, por organizações acadêmicas e
universitárias, após ter chegado a uma espécie de falta de alternativa
estrutural: pode-se conhecer sem que se possa mudar. Os que sempre
se beneficiavam da exploração do Terceiro Mundo jamais quiseram
4
Idem, p. 11.
5
MATTELART, Armand. História da Utopia Planetária. Da Cidade Profética à
Sociedade Global. Lisboa: Editorial Bizâncio, 2000. p. 106 – 107.
74
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
que se pensasse nela e os que queriam denunciá-la o faziam com uma
conceituação e uma base empírica tão débeis quanto suas forças políticas.
Some-se a isso que, enquanto conceitos como “Terceiro
Mundo” e “América Latina” evocam uma carga negativa aos olhos
da opinião pública dos chamados países desenvolvidos (que, jamais,
aceitaram para si a denominação “Primeiro Mundo”), a proposta de
uma América do Sul unida e solidária não pressupõe nenhum tipo
de confronto ou exclusão. Dela participam os que a geografia colocou
no mesmo espaço.
Em síntese, trata-se de um sóbrio exercício de realismo político.
Não-conformista, não-utópico. Pragmático e criativo. A prioridade
dada ao conceito “América do Sul” na política externa brasileira
preenche até mesmo uma lacuna que existe nos países do centro sobre
a exploração crescente da periferia, na medida em que a opinião pública
nestes países pode ser um importante aliado para impor limites às
práticas de exploração, tanto aqui quanto em qualquer parte do mundo.
Essa “viragem” na maneira de se perceber a realidade pode ser
fundamental até para que velhos sonhos se realizem, como o do
colombiano Gabriel García Márquez
6
, para quem:
Nós, inventores de fábulas, que acreditamos em tudo, nos sentimos
com o direito de crer que ainda não é demasiado tarde para
empreender a criação de uma utopia contrária. Uma nova e arrasadora
utopia da vida [...] onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão
tenham enfim e para sempre uma segunda oportunidade sobre a terra.
3 – O multilateralismo necessário
O novo milênio não significou a renovação das esperanças em
um mundo melhor para a maioria dos países que compõem a América
6
MÁRQUEZ, Gabriel García. “A Solidão da América Latina”. In: Carta, n. 1, 1991. p. 38.
75
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
do Sul. Nunca, aliás, a utopia durou tão pouco. A queda do Muro de
Berlim, em 1989, o colapso do comunismo, com o fim da Guerra
Fria e da divisão de blocos, não trouxeram o início de uma era marcada
pela paz e pelo desenvolvimento. A nova ordem mundial, única e
inexorável, tornou-se a ordem do mercado.
Um conjunto de palavras sinalizava o caminho da modernidade:
privatização, produtividade, competitividade, internacionalização.
Para alguns países da América do Sul, dizia-se que a integração na
“modernidade” não era uma opção, mas um imperativo de
sobrevivência. Diante dela não caberiam reticências ou condições.
O saldo da primeira década de “modernidade” para a grande
maioria dos países da região não poderia ser pior: um empobrecimento
sem precedentes para suas populações, a exemplo do que aconteceu
na Argentina e no Brasil. Como a realidade costuma ser o contrário
da retórica, estes países não demoraram a perceber que os mercados
mundiais estão longe de operar livremente. Enquanto os países do
hemisfério Sul são pressionados a liberalizar suas economias, os países
do Norte reforçam políticas protecionistas que dificultam o acesso
de produtos dos países periféricos aos seus mercados, sem falar na
manutenção de monopólios tecnológicos, nas restrições à imigração
de mão-de-obra e no peso da dívida externa.
3.1 – América do Sul como cenário estratégico distinto
A possibilidade de questões multilaterais passarem a dominar a
agenda internacional cedia lugar à Estratégia de Segurança Internacional
dos Estados Unidos, após os atentados terroristas de 11 de setembro
de 2001. O que rapidamente ficava visível era que a nova doutrina
constituía também uma resposta à globalização, na medida em que
tendia a fazer desaparecer o espaço de ação dos Estados nacionais.
Esta nova postura dos Estados Unidos tem efeitos complexos
em relação ao seu futuro como nação hegemônica unipolar, mas,
76
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
sobretudo, influi no que diz respeito à América do Sul. A questão da
liberdade é fundamental, e os países da América do Sul estão atentos
a ela, não só por meio de processos que fortalecem a democracia
dentro de suas fronteiras, mas também de medidas que envolvem a
integração regional.
Os processos de fortalecimento da democracia, uma das funções
do Grupo do Rio de Janeiro, e o avanço da integração regional,
impulsionados pelo Mercosul e pela Comunidade Andina, têm
possibilitado um cenário estratégico distinto de outras regiões do globo.
O reforço da aliança do Brasil com a Argentina e a aproximação com
os demais países do continente favorecem a ausência de ameaças graves
à segurança, o que permite aos países sul-americanos concentrarem
seus esforços em programas de crescimento econômico. A valorização
da democracia é praticamente consensual na maioria dos países do
mundo e, muito particularmente, na América do Sul, como tem sido
possível verificar, a exemplo da pronta condenação dos países que
integram a Organização dos Estados Americanos (OEA) a tentativas
de golpes de estado, como na Venezuela, em 2002.
As diferenças do cenário sul-americano em contraste com
diversas outras áreas do globo permitiram ao chanceler brasileiro,
Celso Amorim, em discurso na Conferência Especial sobre Segurança,
no México, em 2003, sublinhar que a América do Sul possui identidade
estratégica própria e que não se confunde com a da América do Norte:
“gastos militares baixos, inexistência de armas de destruição em massa;
e o fato de nenhum dos nossos países participarem de alianças militares
de compatibilidade duvidosa com as Nações Unidas”.
7
Mesmo a situação colombiana, que poderia ser considerada o maior
foco de instabilidade no cenário político-estratégico regional, devido às
ações do narcotráfico e das guerrilhas, está encontrando encaminhamento
7
A citação consta do documento “O Brasil no cenário regional de defesa e segurança” – IV
Ciclo de Debates, elaborado pelo embaixador Luiz Felipe de Macedo Soares. Dezembro de
2003, p. 5.
77
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
adequado pelos países da região e pela política externa brasileira, que
tem contribuído de maneira significativa para a estabilidade do quadro
na América do Sul. Este encaminhamento passa pelo combate sem tréguas
ao narcotráfico e às guerrilhas, mas sabe separá-lo dos graves problemas
sociais enfrentados pelos moradores do campo na Colômbia, expulsos
pela violência e pela deterioração do setor agrícola.
A questão da liberdade, no entanto, apresenta aspectos
específicos quando dita ao Sul e ao Norte do Rio Grande. Os países
da América do Sul não possuem motivos para temer ataques
terroristas nem abrigam em suas fronteiras pessoas ou entidades que
possam ser classificadas desta maneira. Mesmo assim, estão longe de
se verem livres de problemas tão ou mais dramáticos que o terrorismo,
a exemplo da fome, da miséria e do desespero provocados pela falta
de horizonte digno para enormes contingentes de suas populações.
São estes problemas urgentes, urgentíssimos, que os governos
dos países da América do Sul têm de enfrentar, sob pena de desgastarem
a democracia implantada a duras penas na região. Em um mundo
globalizado como o atual, não há mais como os países resolverem
estas questões isoladamente, demandando toda uma articulação
internacional que inclui a abertura de novos mercados para os
produtos dos países menos desenvolvidos, preços mais justos para
estes produtos, geração de empregos para vastos contingentes de mão-
de-obra mergulhados na chamada “economia informal”, além de
acesso a tecnologias que lhes permitam agregar valor ao que produzem.
Em outras palavras, na mesa de negociações de organismos
internacionais (ONU, FMI, Banco Mundial, OMC), não podem
continuar presentes apenas os interesses dos chamados países ricos.
A desigualdade, alerta o mais recente relatório da ONU sobre o
assunto, “é um problema mais grave do que a pobreza”.
8
O relatório,
aliás, apresenta dados dramáticos, como, por exemplo, o de Brasil
8
Ver reportagem de COELHO, Luciana. “Reduzir pobreza é ilusão, diz pesquisador”,
publicada pela Folha de S. Paulo, de 27/08/2005, caderno Mundo, p. 2.
78
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situar-se na triste liderança dos países com maior desigualdade social
em toda a América Latina, mesmo que a pobreza não constitua mais
privilégio” de país pobre. Ela aumenta nos Estados Unidos, no Canadá
e nos países da Comunidade Européia, antes orgulhosos do bem-
estar que proporcionavam às suas populações.
O crescimento da desigualdade é fruto do equívoco de governos
e sociedades, ao embarcarem na ilusão de que o crescimento e a
redução da pobreza, por si sós, resolvem as questões que envolvem a
desigualdade. Nova Iorque e Londres são metrópoles com áreas tão
pobres quanto São Paulo ou Buenos Aires.
3.2 – Hegemonia, coerção e tirania
O mapa-múndi redesenhado na proporção da riqueza de cada
país é uma obra desconcertante, que causaria constrangimentos aos
cartógrafos. Acostumados a ver as fronteiras do mundo demarcadas
pelas montanhas, rios, vales e mares, iriam deparar com um mundo
em que continentes e vastas regiões estariam transformadas em
penínsulas ou minúsculas ilhas.
O mapa do capital é definido a partir de linhas bem distintas
daquelas traçadas nos discursos de globalização. Em termos exatos,
358 bilionários superam em riqueza a renda conjunta dos países onde
vivem 45% da população do planeta, de acordo com dados do The
Human Development Report, das Nações Unidas.
9
O clube dos
afortunados, aliás, é cada vez menor. Em 1960, os 20% mais ricos da
Terra possuíam o equivalente a trinta vezes o quinhão dos 20% mais
pobres. A diferença dobrou. Atualmente, é de 61 vezes.
A apregoada Nova Ordem Mundial, trazida pela globalização,
sustenta-se nas velhas e novas desigualdades entre os habitantes, assim
como nas velhas e novas distinções entre classes e países, que
9
Ver artigo de Adriana Wilner, “A cartografia da Desigualdade”, publicado pela revista
Carta Capital, de 21/08/2005. Os parágrafos seguintes utilizam dados deste mesmo artigo.
79
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
atualmente envolvem os incluídos e os excluídos em termos de
conhecimentos e tecnologias. Os 23 países desenvolvidos, que
concentram nada menos do que 80% do Produto Interno Bruto (PIB)
do globo, reúnem apenas 15% da população: Estados Unidos,
Canadá, países da Europa Ocidental, Austrália, Japão e Nova
Zelândia. Neste grupo exclusivo, a renda per capita média é de US$ 24
mil. Nos outros 162 países, é de US$ 1 mil.
Sozinhos, os Estados Unidos detêm 32% do PIB mundial. Se a
ele juntarmos Japão, Alemanha, França, Reino Unido e Itália, teremos
que os seis maiores países de um total de 205 do mundo concentram
sozinhos 64% da riqueza e do poder. Os chamados “grandes países
da periferia” (China, Brasil, México, Coréia do Sul, Índia, Argentina,
Rússia, Turquia, Polônia, Indonésia, África do Sul e Tailândia)
respondem por outros 14% da riqueza, concentrando 53% da
população total. À enorme maioria dos outros 176 países, com
exceções do Chile e da Venezuela, tem restado a condição de ampla
periferia do poder mundial, detendo juntos 10% da riqueza, mesmo
que concentrem 33% de toda a população do planeta.
Esta é a realidade com a qual a América do Sul defronta e em
relação à qual precisa encontrar caminhos para superá-la. A imensa
concentração de poder em poucas mãos não significa, nem garante,
necessariamente um exercício permanente de dominação. No entanto,
como assinalam pensadores do porte de Antônio Gramsci e Giovanni
Arrighi, a dominação, quando associada à capacidade de um Estado
de se apresentar como portador do interesse geral e ser assim
apreendido pelos demais, transforma-se em hegemonia.
10
Nos mais diversos momentos da história, quando determinadas
situações hegemônicas deixaram de criar condições para a
governabilidade mundial, não mais correspondendo às demandas de
10
Utilizo o conceito de hegemonia, seguindo, de perto, a análise adotada por Gilberto
Dupas, no artigo “Fundamentos, Contradições e Consequências Hegemônicas”. In: Política
Externa, volume 11, n. 3, dezembro–fevereiro de 2002/2003. p. 5
– 21.
80
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
outras nações no que se refere às tensões que enfrentavam, ela transformou-
se em tirania e só pôde continuar a manter-se à base da coerção. As nações
hegemônicas do momento (em especial a potência unipolar, os Estados
Unidos) parecem não se dar conta deste aspecto. Elas têm deixado de lado
todo o trabalho de construção de uma ordem mundial menos tirânica,
aumentando os riscos de agressões e atentados contra todos aqueles que
passam a encarnar a responsabilidade pelos “dramas do mundo”.
3.3 – Múltiplas agendas e negociações
A liderança dos Estados Unidos à frente de um mundo unipolar como
o atual tem sido tema de muitas discussões. Um aspecto que não pode ser
deixado de lado refere-se ao impacto que essa situação tem gerado sobre a
ONU, organização que representa a voz coletiva da comunidade
internacional e que é o foro multilateral designado por esta comunidade
para tratar das questões que interessam à paz e ao desenvolvimento do planeta.
Se, por um lado, os Estados Unidos têm atropelado determinações
daquela entidade em nome de sua Estratégia de Segurança Nacional,
abandonando a idéia de contenção/dissuasão pela doutrina de
prevenção (preemption), por outro, os grandes países da periferia têm
trabalhado em sentido inverso e começam a alcançar resultados.
Os integrantes do G-20, organizados a partir da reunião de Cancún,
congregando países como a China, Índia, África do Sul, Argentina, México
e o próprio Brasil, representam a formação de ampla aliança que dá mostras
de ser capaz de influir sobre vastas áreas do globo, a partir dos próprios
foros internacionais e também de acordos regionais e multilaterais.
Nesse novo contexto, mesmo que o multilateralismo passe a
desempenhar um papel nitidamente acessório na estratégia dos Estados
Unidos, ele mantém-se em cena pela atuação dos integrantes do G-20.
Vale ressaltar que, no contexto anterior aos atentados de 11 de
setembro, o multilateralismo não estava no centro da política norte-
americana, mas ele, pelo menos, fazia parte das considerações político-
81
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
diplomáticas daquele país. A diferença em relação ao novo contexto “é
a determinação norte-americana em estender o direito de agir de maneira
muito mais ampla e difusa em termos de justificativas, cenários e
definição de ameaças”.
11
Este quadro faz aumentar, significativamente,
as responsabilidades de países como o Brasil.
Preocupados essencialmente com a própria segurança, os Estados
Unidos não parecem empenhados em reformar as regras do jogo no
plano sistêmico ou em valorizar o papel das Nações Unidas e de outras
organizações e instituições globais. Esta nova postura, que tem
importância fundamental para o mundo, reveste-se de interesse e
conseqüências redobradas para os países da América do Sul.
Existem duas maneiras de se interpretar a postura “imperial”
dos Estados Unidos no que se refere à política internacional.
Como suas preocupações, no momento, se voltam muito mais
para o chamado mundo muçulmano e as implicações que ele tem na
vida norte-americana e européia (forte presença muçulmana nos
Estados Unidos e na Europa, devido a imigração recente ou mesmo
a jogo de alianças com países muçulmanos importantes como Egito
e Arábia Saudita), os países da América do Sul poderiam considerar-
se abandonados à própria sorte. Esta visão dificilmente não
desembocaria num “salve-se quem puder”, com sérios riscos para a
própria democracia na região e no mundo.
Alternativas bilaterais de relacionamento com os Estados Unidos
estão definidas. Há vários anos, o Chile adota uma política – interna
e externa –, muito mais identificada com os interesses norte-
americanos do que com seus vizinhos do continente sul-americano.
A posição chilena tem trazido dividendos para o país, mas a questão
é por quanto tempo mais interessará aos Estados Unidos este
relacionamento? Quando este relacionamento não tiver mais
relevância, que caminhos restará à nação andina?
11.
AMORIM, Celso. Multilateralismo acessório. In: Política Externa, volume 11, n. 3,
dezembro–fevereiro de 2002/2003. p. 57.
82
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Outro aspecto sobre o qual vale a pena refletir é o fato de que os
vizinhos chilenos experimentam crises econômicas com conseqüentes
desdobramentos políticos, a exemplo da Argentina, do Peru e da
Bolívia. Tais crises dificilmente deixarão de ter reflexos na economia e
na vida daquele país, motivo pelo qual é possível prever que o Chile
não poderá, indefinidamente, ignorar a realidade que o cerca.
A própria história chilena, marcada pela forte presença
democrática e por uma massa trabalhadora consciente e esclarecida
(o Chile foi o único país no mundo, além da França e da Espanha, a
ter governo de Frente Popular) não condiz com a postura de
distanciamento em relação à América do Sul.
Existe a percepção de que só reforçando os mecanismos regionais
de alianças os países da América do Sul poderão superar a falta de voz
e de vez que marcam historicamente a sua inserção na cena
internacional, com graves conseqüências para as suas economias e para
as suas populações.
Nesse caso, o caminho é exatamente o inverso do Chile, com o
reforço e o alargamento de mecanismos de integração a exemplo do
Mercosul e da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSAN). Esta opção
mostra-se, em todos os aspectos, bem mais adequada, especialmente quando
se considera que o poder dos treze países da América do Sul é maior do
que o de um ou outro separadamente. O poder, aliás, é bastante concreto
e será tanto maior quanto conseguir mobilizar os mais diversos segmentos
de suas sociedades, sejam eles governos, empresas, trabalhadores ou
segmentos acadêmicos, artísticos e científicos.
Tal poder inclui, obviamente, recursos naturais e estratégicos,
dos quais os países da América do Sul são detentores, isoladamente
ou em parceria: recursos minerais, água, petróleo, gás, além de toda a
biodiversidade, que representam grandes extensões como a Amazônia.
Inclui-se, ainda, um aspecto de enorme relevância para negociações
internacionais em curso e as futuras: a América do Sul é, e pretende
continuar a ser, uma área desmilitarizada e livre de armas nucleares.
83
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
3.4 – Crescimento econômico, proteção ambiental e justiça
social
A posição brasileira em relação à segurança da Amazônia não
identifica ameaças convencionais, do gênero que oporia um Estado a outro,
mas reconhece a existência de fatores de risco, entre os quais uma
interpretação peculiar de parte da opinião pública nos países desenvolvidos
sobre acesso aos recursos naturais das demais regiões do globo.
A preocupação do Brasil e de países como Bolívia, Colômbia,
Equador, Guianas, Peru, Suriname e Venezuela em torno do objetivo
comum de desenvolver e proteger a região ficou patente e materializou-
se com a assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica,
transformado em organismo internacional – a Organização do Tratado
de Cooperação Amazônica (OTCA), com sede em Brasília.
Além de foro regional para a coordenação de políticas na
região, o organismo é fundamental para a obtenção de recursos
para financiamento de projetos concretos de desenvolvimento, que
devem conciliar crescimento econômico, proteção ambiental e
justiça social. Pela relevância que a Amazônia tem para o Brasil e os
demais países que a integram, cabe-lhes todo o direito de assumirem
a posição de atores-chave na política ambiental internacional e,
exatamente por isso, ela não pode prender-se a pontos específicos,
como preferem os Estados Unidos.
A exemplo do Chile, a Argentina apostou, em passado recente,
numa articulação bilateral com os Estados Unidos. Depois de ter
aplicado da forma mais ortodoxa possível o receituário das políticas
econômicas dos organismos internacionais, o resultado foi uma crise
sem precedentes em sua história, a ponto de “nunca um país regredir
tanto fora de tempos de guerra”.
12
O que era para ser um paradigma
para o FMI e o Banco Mundial transformou-se no seu oposto.
12
SADER, Emir. A Vingança da História. Boitempo Editorial: São Paulo, 2003. p. 125.
84
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
Um cenário como esse aponta, para países como o Brasil,
desafios múltiplos em sua agenda externa. O país precisa, ao mesmo
tempo, enfrentar as delicadas negociações no âmbito da OMC, precisa
articular-se para responder, da maneira mais adequada, à proposta de
uma área de livre comércio preconizada pelos Estados Unidos, através
da Alca e, igualmente, reforçar o Mercosul, por intermédio da
ampliação de sua área de abrangência, envolvendo não só mais países
da América do Sul, como outras áreas do globo.
O sucesso neste tríplice desafio só será possível, a partir de uma
definição clara e objetiva de prioridades e do quadro de referência
para cada uma dessas negociações. Neste tabuleiro de interesses, o
Brasil joga sozinho algumas vezes, defendendo interesses específicos,
mas, na maioria delas, seu trunfo tem sido o de estar coordenado
com as ações e interesses de seus parceiros do G-20 e do Mercosul.
Isso também pode ser dito em relação aos países que integram
esses grupos, especialmente porque, em alguns desses espaços, o que
está em jogo interessa a todos: acesso a mercados, preços, subsídios,
barreiras técnicas, salvaguardas e propriedade intelectual. Novos temas
já despontam na agenda internacional, a exemplo de investimentos,
concorrência, questões ambientais e trabalhistas. Sobretudo para as
novas questões, uma ação articulada e coordenada torna-se condição
indispensável para qualquer sucesso que se pretenda obter.
A vitória alcançada pelos países em desenvolvimento na
Conferência de Doha, com a quebra das patentes de remédios,
levando-se em conta, prioritariamente, o interesse social, é um nítido
exemplo do acerto e do sucesso de ações coordenadas.
O século XXI encontra a América do Sul diante de alternativas
contraditórias, em um quadro internacional extremamente complexo.
De um lado, a forte hegemonia mundial dos Estados Unidos é sentida
na região sem que isso seja traduzido em capacidade econômica para
esta parte do globo. A proposta da Alca, tal como apresentada,
possibilitaria apenas proteção e expansão da hegemonia norte-
85
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
americana ao continente, por meio do poderio de suas corporações,
sem contrapesos, como já acontece na América do Norte, com o
Nafta. De outro lado, os dilemas internos de cada país da América do
Sul envolvem prolongar o modelo de ajuste fiscal ou romper com o
neoliberalismo e buscar um modelo regional. Estes modelos
expressam-se pelo aderir à Alca ou priorizar o Mercosul.
É neste contexto que a atual posição brasileira reveste-se da
maior importância.
4 – O Brasil e a unidade Sul-Americana
A liderança do Brasil na América do Sul é um tema delicado e
tem sido freqüentemente abordado na literatura acadêmica. Quando
se trata da estabilidade e do equilíbrio do continente, a importância
do Brasil é incontestável. Quando, no entanto, o enfoque passa a ser
o de contribuir para a maior integração econômica, social e cultural
da região, as dúvidas aparecem.
A importância do Brasil para o futuro do continente sul-
americano deriva de uma série de fatores, a começar pelo seu tamanho
(o maior da região, o quarto do mundo em extensão, a décima maior
economia do planeta), ser o mais populoso, possuir economia mais
estruturada, diversificada e, em alguns setores, estar sintonizado com
os grandes centros mundiais. Como observam Monica Hirst e Maria
Regina Soares de Lima, “a preeminência econômica do Brasil abre
um espaço natural para o exercício de sua liderança”.
13
No passado, a diplomacia brasileira caracterizou-se por
movimentos lentos, da mesma forma que a política colocada em
prática no país adotava figurino semelhante. Poucos períodos fugiram
a esta regra, a exemplo da “política externa independente” dos anos
13
HIRST, Mônica e SOARES DE LIMA, Maria Regina. “Contexto Internacional,
Democracia e Política Externa”. In: Política Externa. Vol. 11, n. 2. São Paulo: Paz e
Terra/Gacint– USP, setembro–novembro de 2002. p. 87.
86
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
1960 e do “pragmatismo responsável”, lançado uma década mais tarde.
Ao contrário do que alguns possam pensar, estes movimentos lentos
estavam longe de indicar uma política externa ultrapassada ou
comprometida com o status quo internacional.
Muito antes do Barão do Rio Branco, mas em especial com ele,
o Brasil erigiu a demarcação definitiva e pacífica do seu território.
Igualmente, o país começou a acumular um valioso patrimônio de
relações e tratados sub-regionais com seus vizinhos, até chegar ao
Mercosul e, agora, sem constrangimentos, pode se lançar à tarefa
maior, que é a de contribuir decisivamente para a integração da
América do Sul, via uma Comunidade de Nações.
Uma decisão assim é ousada e comporta uma forte dose de
idealismo, mas também de pragmatismo. A partir do sucesso relativo
do modelo desenvolvimentista, a política externa brasileira soube
explorar o viés das contradições Norte-Sul de maneira extremamente
competente. Por intermédio dela, o país conseguiu legitimar uma
atuação bem mais autônoma do que poderia parecer à primeira vista.
O fim da Guerra Fria e a restauração do governo democrático
no Brasil despertam questões substantivas para a sua agenda de política
externa. A maior delas diz respeito à responsabilidade que a empreitada
da magnitude de trabalhar em prol de uma Comunidade Sul-Americana
de Nações implica. Trata-se de responsabilidade, porque envolve, antes
de tudo, a credibilidade do país. Não se trata mais de uma unidade
apenas geográfica, na medida em que esta nunca deixou de existir. O
que estará em jogo, daqui para a frente, são questões que envolvem
desde o comércio da região até a própria identidade no mundo.
Se, por décadas, procurou-se, sem sucesso, construir a
identidade da América Latina, o novo paradigma “América do Sul”
reúne condições bem mais auspiciosas. Ele sintetiza a disposição do
Brasil em assumir uma postura de protagonismo na cena regional e
internacional. Tal postura passa pela defesa da universalização das
relações internacionais, para além do relacionamento especial com
87
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
os Estados Unidos. Envolve a crítica ao congelamento do poder
mundial e a articulação de ampla aliança nas negociações das questões
de desenvolvimento e de reforma dos regimes internacionais – tudo
isso sem arroubos nacionalistas ou pretensões hegemônicas, que não
cabem em um projeto pautado pela democracia, pela cooperação e
pelo desenvolvimento.
“América do Sul”, para além de uma unidade geográfica, é um
conceito, um instrumental teórico que apreende a realidade com vistas
a influir sobre ela.
4.1 – Votos e política externa: alterando um velho adágio
Os quatro governos eleitos no país após o fim do regime
autoritário e pós-Guerra Fria – José Sarney e Itamar Franco, Fernando
Collor e Fernando Henrique Cardoso –, oscilaram entre a postura
de adaptação ao paradigma globalista (os dois primeiros) e a
reconfiguração daquele modelo de política externa (os dois últimos).
Diferentemente da razoável estabilidade do modelo de política externa
adotado nas décadas anteriores, o atual não obteve, ainda, o necessário
consenso para que possa ser implementado.
A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos
trabalhadores (PT) nas primeiras eleições presidenciais brasileiras do
século XXI abre um capítulo novo no que se refere à política externa.
Ao contrário de outras campanhas presidenciais, quando assuntos
relativos à agenda externa quase não tiveram lugar, nesta a posição
dos quatro principais concorrentes foi amplamente considerada,
debatida e divulgada. O repetido adágio “política externa não dá voto”
viu-se substituído, na campanha presidencial de 2002, por um
posicionamento atento e interessado por parte de expressivos
segmentos da população.
Esse interesse, aliás, pode ser considerado como um dos efeitos
do processo de globalização em curso, no qual a mídia (como parte e
88
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
um dos agentes deste processo), ao trazer para a discussão local eventos
ocorridos nos mais diversos cantos do planeta, ultrapassa barreiras
geográficas, contribuindo para reforçar ou minimizar tendências.
Lula, desde o primeiro momento, foi contrário à política externa
“presidencial” adotada por Fernando Henrique Cardoso, defendendo
uma atuação independente e a serviço dos interesses da nação brasileira,
coordenada pelo Itamaraty. Anunciou a disposição de contribuir para
a democratização do processo de tomada de decisões neste âmbito, ao
mesmo tempo em que priorizou a integração via Mercosul.
Sobre a Alca, mostrou-se preocupado com “os gravíssimos
problemas que geraria para a região um acordo de livre comércio tal
como o proposto pelo governo dos Estados Unidos em 1994”.
14
Sua
preocupação levava em conta “a grande assimetria existente entre os
países e a falta de recursos e políticas tendentes a eliminar as grandes
desigualdades socioeconômicas entre as regiões e os países”.
15
Como alternativa à proposta da ALCA, o então candidato do
PT anunciou a disposição de aprofundar as negociações com os países
da Comunidade Andina de Nações, ressaltando que o Brasil, “pela
sua natureza de país continental que tem fronteiras com quase todos
os países da América do Sul, tem condições de influir positivamente
no processo de construção de blocos regionais, visando a objetivos
de desenvolvimento e de democracia”.
16
Ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, lançou-se a semente
da Área de Livre Comércio da América do Sul (ALCS). Posteriormente
abandonada, a idéia renasce no atual governo, sob a forma de uma
Comunidade Sul-Americana de Nações (CSAN) provocando esperanças,
mas não deixando de suscitar crises. As esperanças resultam de ela poder,
efetivamente, contribuir com a integração sul-americana – condição
14
ntrevista de Luiz Inácio Lula da Silva a Política Externa, vol. 11, n. 2, setembro–
novembro, 2002. p. 7.
15
dem, p. 8.
16
Idem, p. 7.
89
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
essencial para que a dignidade de milhões de pessoas seja resgatada, e também
possibilidade de se forjar um espaço no sistema mundial para expressar os
anseios, projetos e reivindicações dos habitantes desta parte do globo.
Aos olhos dos países desenvolvidos, o Brasil é um mercado
muito pequeno, e o Sul da terra como um todo serve apenas como
uma reserva de valor. A economia global, segundo esta ótica, consiste
em um único bloco, o dos países do hemisfério Norte. O equilíbrio
poderia se dar (e esta é a aposta brasileira) na formação de seis grupos
de países em desenvolvimento, autônomos em relação aos interesses
do Norte: América do Sul, Oriente Médio, África, Sudeste Asiático,
Extremo Oriente (basicamente a China) e Sul da Ásia.
As crises que uma postura comprometida com essa premissa
poderiam suscitar ficam por conta das múltiplas interpretações que
as intenções brasileiras provocam. A mais difundida delas consiste
em que a CSAN poderia representar uma ruptura do Brasil e da região
com os Estados Unidos. Nada parece mais distante destas intenções
do que a CSAN. O que o Brasil e os países sul-americanos buscam
não deve ser entendido como ruptura e, sim, como oportunidades
de mudança e perspectivas de melhoria. Estes países querem a segunda
oportunidade sobre a terra, de que fala Garcia Márquez, com a
singeleza de que só os poetas e escritores são capazes.
4.2 – Conhecer para superar equívocos
O voluntarismo brasileiro, por si só, não levará a nada. É
impossível, por exemplo, substituir a relação que o Brasil tem com
os Estados Unidos, um parceiro histórico e essencial, pois ela
representa cerca de 20% do total das exportações do país em termos
de bens e serviços. A participação dos Estados Unidos no nível de
investimentos estrangeiros diretos no Brasil supera, nos dias atuais,
o de qualquer outro país ou bloco econômico, mesmo se levando
em conta a grande e crescente expansão dos investimentos ibéricos.
90
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
Importantes setores da indústria brasileira, como automotivo,
petrolífero, eletroeletrônico, farmacêutico, mecânico, petroquímico
e de comércio varejista, entre outros, são ocupados pelas principais
empresas norte-americanas, nas respectivas áreas de atuação. Destaque
especial deve ser conferido à presença do capital financeiro norte-
americano no Brasil, que participa de nossa economia por intermédio
de seus grupos mais importantes e influentes.
Diversificar os parceiros comerciais, no entanto, não é uma questão
política, mesmo que não possa ser classificada exclusivamente como de
cunho econômico ou técnico. Diversificar, como tem sido
consubstancializado, é uma necessidade para o país, da mesma forma que
se observa, inclusive nos Estados Unidos, especialmente a partir dos anos
1990, um interesse maior em conhecer a realidade do Brasil. Neste sentido,
entre 1996 e 2001, diversos novos centros de estudos sobre o Brasil foram
inaugurados em instituições acadêmicas de prestígio naquele país, como as
universidades de Stanford, Georgetown, Pittsburgh, Columbia e Woodrow
Wilson International Center for Scholars, o que provavelmente ajudará a
melhorar a compreensão da importância do Brasil entre formadores de
opinião norte-americanos.
17
Uma prova da nova visão que começa a surgir
sobre o Brasil nos Estados Unidos é a certeza de que, sem o efetivo apoio
do Brasil, a Alca não tem como existir.
Persiste ainda, em alguns círculos, como observa Maria Regina
Soares de Lima, “a visão de que o Brasil não deve ter peso político.”
18
,
visão que, segundo ela, não se sustenta “por ser uma postura
meramente mercantil, uma visão de estados de dimensão geográfica
pequena, como a Coréia do Sul”.
19
Cada dia mais, torna-se impossível
imaginar o futuro da humanidade sem considerar-se, igualmente, o
17
Relatório sobre os EUA elaborado por Força-Tarefa Independente, patrocinada pelo
Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), publicado em “Documentos”. In:
Política Externa, vol.11, n. 3, dezembro–fevereiro de 2002-2003. p. 118.
18
Entrevista de Maria Regina Soares de Lima ao jornalista Francisco Goés do Rio, publicada
pelo jornal Valor Econômico, de 28/02/2004.
19
Idem.
91
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
peso e a importância de países como China, Índia, Rússia e Brasil,
coincidentemente os maiores nas respectivas regiões e empenhados
em contribuir para mudanças na ordem internacional.
A preeminência econômica do Brasil constitui-se num tema delicado
não só em face da superpotência norte-americana, como no contexto de
uma aliança estratégica com a Argentina. O ponto de equilíbrio entre a
negação de um papel hegemônico e a responsabilidade pela liderança consiste,
sem sombra de dúvida, no aspecto mais sensível destes relacionamentos.
4.3 – Mercosul, Comunidade Sul-Americana e Alca
Durante o chamado qüinqüênio dourado do Mercosul (1994–98),
Brasil e Argentina avançaram, mesmo que de forma um tanto tímida,
em seus compromissos de integração. Na época, a responsabilidade
pelo fato de o processo não alcançar maior velocidade era atribuída
ao governo brasileiro, particularmente ao Itamaraty. A realidade, no
entanto, era outra. Os governos brasileiro e argentino coincidiam na
avaliação de que qualquer tentativa de imprimir maior velocidade às
negociações enfrentaria tempos difíceis com os demais integrantes
do tratado, dadas as condições assimétricas da associação.
Se Brasil e Argentina coincidiam neste aspecto, as diferenças de
projetos entre os dois países vieram à tona com a posição argentina
de não apoiar a candidatura potencial do Brasil a um assento no
Conselho de Segurança da ONU, na hipótese de sua ampliação. O
pleito do Brasil nesta direção não é novo nem foi visto, anteriormente,
como um objetivo prioritário para o país. No governo de Fernando
Henrique Cardoso, por exemplo, foi deixado em segundo plano, em
face da prioridade dada ao restabelecimento da credibilidade externa.
Na atual administração, volta a ganhar peso, pois certo protagonismo
político adotado pelo governo extrapola a esfera das negociações
comerciais. O governo Lula parece entender que, mesmo estando
congelado, o poder mundial pode ser multipolar.
92
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
Apesar dos esforços, a integração articulada pelo Mercosul ainda
está em seus estágios iniciais. Mesmo assim, já trouxe dividendos positivos
e impacto imediato para toda a América do Sul. A experiência que envolve
o Mercosul deixa patente que o Brasil pode e deve assumir maiores
responsabilidades nesta direção. Em outras palavras, fica nítido que o
país precisa planejar, de forma mais coerente, o projeto sul-americano,
atuando simultaneamente, mas em graus diferenciados, nos acordos que
envolvem o Mercosul, a Comunidade Sul-Americana de Nações e a Alca.
É crucial que Washington entenda a importância do Mercosul
para o Brasil e os demais parceiros que o integram. Ele não existe
para fazer frente aos Estados Unidos ou à União Européia em
negociações de comércio. O bloco é fundamental como indutor de
estabilidade econômica, promotor de valores democráticos e
instrumental no desenvolvimento da sub-região e da América do Sul.
A importância da América do Sul para viabilizar a continuidade
do projeto neodesenvolvimentista brasileiro também é inegável. Mas
a ela se soma a importância da região, devidamente articulada, criando
um espaço de poder capaz de conviver, em melhores condições, com
um cenário internacional extremamente concentrado após a queda
do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria.
Nesse contexto, o relacionamento do Brasil com a Argentina
assume importância destacada e tem merecido um capítulo especial
da política sul-americana brasileira. Às restrições argentinas, muito
mais de ordem estratégica que comercial, somam-se interesses
econômicos de empresas e entidades brasileiras, que dificultam
maiores contrapartidas, necessárias a qualquer exercício de liderança.
Outro aspecto que não pode ser negligenciado refere-se às restrições
impostas pelo convívio com os Estados Unidos no plano regional e
também pela configuração acentuadamente unipolar que assumiu a
ordem mundial.
Construir uma integração nos moldes propostos não é simples
nem algo que possa dar resultados imediatos. A Europa, há décadas,
93
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
caminha, entre avanços e recuos, na direção de uma efetiva
comunidade de nações. A integração sul-americana demandará tempo
e, sobretudo, sensibilidade para perceber oportunidades que
ultrapassam conjunturas favoráveis e estão além de eventuais crises.
Felizmente, não existem rivalidades de monta entre os países da
América do Sul. A este fator é possível acrescentar o poder de atração
do mercado brasileiro, especialmente a partir de novas condições de
acesso que podem ser propiciadas pelas políticas de liberação
comercial, englobando a atual configuração do Mercosul e mesmo
uma configuração ampliada, incluindo os países andinos.
Reforçar o Mercosul significa atrair os países andinos para
dentro do acordo, estreitar os laços com a União Européia, expandir
o comércio com a China, a Índia, com a Ásia de um modo geral, com
a África do Sul e com todos os países onde haja espaço para crescer.
A posição do Brasil compreende ônus e benefícios, e sua
aceitação só poderá se desenvolver em termos não-coercitivos. Para
tanto, a reciprocidade e a plena convicção sobre o interesse comum
de seus membros tornam-se as forças essenciais capazes de
impulsionar o processo.
O que o Brasil e os parceiros sul-americanos não devem perder
de vista é que precisam se afastar de uma cultura meramente comercial,
que os torna demasiado dependentes da expectativa de lucros de curto
prazo. Igualmente, devem se preparar para enfrentar mercados
mundiais mais exigentes, treinar sua força de trabalho, melhorar os
padrões educacionais e, sobretudo, investir em pesquisa e
desenvolvimento. A receita não é nova, mas precisa, efetivamente,
ser colocada em prática.
5 – Redesenhando a própria identidade
O ambiente internacional passou por mudanças significativas
a partir da década de 1980. Os setores industriais maduros nos anos
94
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
de 1960 e 70 foram rejuvenescidos por mudanças tecnológicas radicais.
Uma ampla gama de novas indústrias emergiu e tornou-se a base do rápido
desenvolvimento tecnológico, da produção e do comércio internacionais.
No centro deste processo, encontravam-se as mudanças relacionadas à
produção e à difusão das tecnologias de informação e comunicações pela
economia. A estas mudanças, pode-se somar o incremento da competição
entre empresas e países associada à globalização.
Autores os mais diversos têm-se debruçado sobre o conceito
de globalização. Para os de corte neoliberal, a globalização é uma
realidade incontestável e altamente positiva para países, nações,
empresas e indivíduos. Os representantes desta linha de pensamento
argumentam que o problema atual não está na globalização em si,
mas em saber como viver dentro desta nova realidade. Os argumentos
envolvem ainda o fato de que a globalização é considerada uma
maravilhosa oportunidade para que os povos possam se unir e
harmonizar seus interesses, para assim se beneficiarem, da melhor
maneira, com os recursos materiais e culturais do mundo todo.
Já os autores mais céticos preferem assinalar que globalização
tem um significado para os globalizadores e outro para os globalizados.
Seja como for, o conceito de globalização, ainda guarda uma
significativa dose de fluidez. Rigorosamente, o processo de
concentração dos fluxos comerciais, produtivos e tecnológicos nos
Estados Unidos, no Japão e nos países da Europa sobrepõe-se a todas
as outras tendências da globalização. Dito de outra forma, a
globalização, longe do mundo integrado e sem fronteiras, pode ser
entendida como um estágio mais avançado do processo histórico da
internacionalização do capital.
Com um passado colonial voltado para a extração de matérias-
primas, cujo objetivo era abastecer as metrópoles de então, a América
do Sul vem, ao longo dos séculos, procurando encontrar inserção
mais equilibrada no contexto mundial. Em que pese às assimetrias
entre os países que a compõem, teve início nos anos 1960 um esforço
95
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
no sentido de entender e, conseqüentemente, superar, as raízes
históricas de seu subdesenvolvimento.
5.1 – Entre o local e o global
Os esforços para superar as raízes históricas do
subdesenvolvimento, que não atendiam mais aos interesses desses países
e nações, ganharam roupagem institucional por meio dos estudos e
das pesquisas da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal),
organismo da ONU. No âmbito desta instituição, tiveram destaque
conceitos como os de subdesenvolvimento e de dependência,
formulados por especialistas como os brasileiros Celso Furtado e
Fernando Henrique Cardoso, e pelo uruguaio Enzo Falleto. Além da
Cepal outro organismo da ONU teve grande relevância para a discussão
sobre a dependência na América Latina. Trata-se do Centro
Internacional de Estudos Superiores de Comunicação (Ciespal).
Com sede no Equador, este órgão deu continuidade, em 1975, a
uma pesquisa reveladora. Durante uma semana, foi analisada a cobertura
de assuntos internacionais em dezesseis jornais diários latino-americanos,
correspondendo a quatorze países. O trabalho, coordenado pelo sociólogo
Marco Ordoñes, mostrou que a região continuava profundamente carente
de informações sobre a própria realidade e que mais de 65% das
informações internacionais publicadas tinham como referências e fontes
apenas os países desenvolvidos (Estados Unidos e países europeus). A
América Latina aparecia com modestos 19,6% do total do material
publicado, seguidos por 6,9% do Oriente Médio e 3,5% da África.
20
Essas conclusões não registravam mudanças fundamentais em
relação aos resultados de investigações semelhantes colhidos na década
de 60. As modificações mais significativas ficaram por conta de vários
desses jornais terem passado a reproduzir informações originadas em
20
MATTA, Fernando Reyes (org.) A Informação na Nova Ordem Internacional. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1980. p. 203.
96
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
publicações de influência internacional, especificamente o New York
Times e o Washington Post, e, sobretudo, pela tendência explicitada,
a partir daí, de que a região precisava empreender a busca de sua
identidade e de um outro posicionamento no mundo, para o qual se
conhecer e ser conhecida tornavam-se essenciais.
Os trabalhos da Ciespal propiciaram desdobramentos. Em
meados da década de 70, foi criada a primeira agência de notícias da
América Latina (LATIN), que, a despeito de sua proposta de
contribuir para a integração e o conhecimento entre os povos da
região, teve vida efêmera. Seu funcionamento, bancado por um
consórcio de países, durou menos de um ano, em meio a sucessivas
crises. Em linhas gerais, sua proposta era de suprir a região e demais
continentes de informações sobre a América Latina. Na prática,
buscava-se equilibrar o fluxo tradicional de informações, em que esta
parte do globo sempre figurou como simples consumidora do que
era produzido nos países desenvolvidos e por eles.
Além do boicote dos grandes jornais e revistas dos Estados
Unidos e da Europa, que se recusavam a utilizar despacho informativo
preparado pela LATIN, sob o argumento de que seria “mero material
de divulgação de governos”, havia problemas entre os países que
integravam o seu comitê gestor. O principal questionamento girava
em torno da confiabilidade das informações, uma vez que o regime
democrático não era adotado por todos. A referência principal, no
caso, era para Cuba, membro do comitê gestor da LATIN.
Este tipo de argumento voltaria a ser utilizado pelos países
desenvolvidos, pouco depois, em escala bem mais ampla, quando
das reuniões da Comissão MacBride (1977–79), instituída pela Unesco
para analisar a situação da comunicação e da informação no mundo
e propor ações capazes de contribuir para reduzir o desequilíbrio
Norte–Sul também neste âmbito.
21
21
Para um aprofundamento sobre esta temática, ver Um Mundo e Muitas Vozes.
Comunicação e Informação na Nossa Época. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
97
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
As profundas mutações culturais, políticas, econômicas e sociais
que caracterizaram as últimas décadas acabaram aprofundando as
tendências já detectadas pela Comissão MacBride. Publicado em
português com o título de “Um Mundo e Muitas Vozes.
Comunicação e Informação na Nossa Era”, o relatório da Unesco
deixava nítido o papel crescente que a mídia (jornais, revistas, rádios,
TVs e publicidade) passava a ter no mundo, como agente difusor e
legitimador da ideologia dominante, universalizando interesses,
entretenimentos e padrões de consumo.
A importância central que a mídia passa a ter como elemento
constitutivo do espaço público contrasta com o reduzido espaço que
o assunto merece, em termos de debates e discussões, nas sociedades
latino-americanas. Governos e as próprias sociedades demoraram a
perceber que a lógica do capital reinante na mídia apresentava uma
face terrível: a redução do vigor das instituições democráticas,
possibilitando “guiar pelo alto” a vontade geral. Novas tecnologias e
dispositivos, dos quais a rede mundial de computadores (internet) é
o melhor exemplo, implicaram mudanças neste panorama, mas ainda
estão distantes de revertê-lo.
A acertada proposta do pensar globalmente e agir localmente
já vem sendo posta em prática por uma série de movimentos ligados
ao meio ambiente, às lutas feministas e às minorias étnicas em todo o
mundo, mas só recentemente começa a ter alguma repercussão no
Brasil e nos diversos países da América do Sul.
A partir da última década, estes países defrontam com uma nova
faceta da inserção internacional propiciada pela combinação do
processo democrático, com os avanços das tecnologias de
comunicação e o principio da autodeterminação: a formação de redes
da sociedade civil de caráter transnacional. Ao contrário de outras
experiências sul-americanas, a vinculação externa dos movimentos
políticos democráticos brasileiros foi limitada durante o longo período
do regime autoritário (1964–85).
98
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
5.2 – Novos atores invadem a cena internacional
Com a retomada da democracia no continente sul-americano,
entidades e organizações não-governamentais (ONGs) passam a ter
visibilidade e repercussão também na cena nacional. No virada do
século, estas organizações podiam ser contadas aos milhares. Cálculos
indicam que este número já ultrapassa trinta mil, sendo estas entidades
capazes de constranger autoridades e influir em decisões, mesmo que
estejam ainda longe de alcançarem as decisões dos centros mundiais
do poder. Outra característica destas entidades é ser impossível
caracterizar o tipo de influência que as inspira.
Além do enorme volume desses novos atores, vale ressaltar que
os temas predominantes no seu universo de interesse são extremamente
amplos, mesmo que, em medida significativa, se posicionem contrários
ao neoliberalismo e, no caso latino-americano, rejeitem o livre comércio,
nos termos propostos pelos Estados Unidos.
A quinta edição do Fórum Social Mundial, no início de 2005,
em Porto Alegre (RS) renovou esta característica, ao novamente reunir
ONGs, sindicatos, pastorais religiosas e entidades de classe na
condenação às ações dos países mais ricos. Os países ricos, reunidos,
na mesma época, no Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça),
não escaparam também dos protestos in loco, demonstrando o papel
e abrangência que estes movimentos começam a assumir.
Os novos atores não só trouxeram para a política nacional temas
da agenda internacional, mas também mostraram que a politização da
política externa é inevitável. Essa realidade, pelo poder de influenciar
as tomadas de decisões e alterar posturas de amplos contingentes da
população, não pode deixar de ser considerada por quem, mais
diretamente, tem responsabilidade em formulá-las e implementá-las.
Da mesma forma que uma série de iniciativas voltadas para a
proposta de integração sul-americana começa a marcar positivamente
a agenda da política externa brasileira na atual administração, ela tem
99
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
o poder de inovar, ao combinar fatores até então ausentes neste
processo – vale dizer: a percepção de que uma integração efetiva só
acontecerá quando houver conhecimento mútuo e desejo recíproco
entre estas nações, para resolverem os problemas que as afligem.
5.3 – No ar: A TV Brasil e a Telesur
Um exemplo dessa nova postura foi a entrada no ar da TV
Brasil, canal internacional, uma empreitada que reúne a Radiobrás, a
TV Senado, a TV Câmara e a TV Judiciário. A primeira experiência
de funcionamento da emissora aconteceu durante o V Fórum Social
Mundial. Entre os dias 26 e 31 de janeiro, foi montada uma emissora-
piloto que, durante seis dias, produziu cerca de noventa horas de
programação, com transmissão ao vivo das principais atividades.
Foram, em média, doze horas diárias de entrevistas, debates e
telejornais em português e espanhol.
A programação pôde ser captada por canais na Argentina, no
México, na Venezuela e na Colômbia, além de Estados Unidos,
Espanha e Suíça. A emissora já está funcionando em caráter efetivo,
mas o desafio, agora, é conseguir que ela tenha uma programação
capaz de interessar a contingentes expressivos da população sul-
americana, à qual se destina.
O orçamento da TV Brasil para 2005 é bastante modesto (em
torno de R$ 30 milhões) e a iniciativa foi recebida com frieza e descrédito
por parte das TVs comerciais e de setores da mídia, apesar de merecer
elogios dos especialistas. Para a maioria, a exemplo do pesquisador
Venício Lima
22
, mesmo não sendo uma idéia nova, tem o mérito de
dar um passo significativo no rumo de uma comunicação mais pluralista:
A TV Brasil reafirma a necessidade – que vem sendo sentida
também por outros países não hegemônicos (emergentes?) no mundo
22
LIMA, Venício. “Uma nova alternativa no ar?”. In: www.observatoriodaimprensa. com.br.
100
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
contemporâneo – de terem seu próprio canal de expressão
internacional fora da unidirecionalidade do fluxo Norte-Sul
dominante. Sobretudo, expressa a possibilidade de uma comunicação
internacional alternativa à mídia privada comercial, prisioneira da
lógica do mercado, homogênea cultural e ideologicamente.
Aquele pesquisador acrescenta que “precisamos mostrar o que somos
e o que temos e também precisamos aprender mais sobre nossos vizinhos
e aqueles parceiros que raramente são mostrados na mídia comercial
privada”.
23
Pode-se acrescentar, igualmente, que, mesmo em países da
Europa e nos Estados Unidos, a imagem que se tem do Brasil e da América
do Sul é superficial e estereotipada. Sobre isso, cabe um mea culpa de governos
e sociedades sul-americanas, que só agora passam a atentar para as debilidades
da imagem de seus países e do próprio continente.
Já no plano latino-americano, uma iniciativa que merece destaque
é a recente estréia da Telesur, o canal de TV financiado pelos governos
da Venezuela, da Argentina, do Uruguai e de Cuba. Apelidado de “CNN
dos pobres”, ela se propõe travar uma batalha leal no campo da
informação. O orçamento da emissora é de US$ 2,5 milhões, aportado
em 51% pela Venezuela. A ausência mais sentida neste canal foi a do
Brasil, que preferiu implementar a própria emissora internacional, numa
sinalização de que sua prioridade é a comunidade sul-americana.
A Telesur terá programação 24 horas no ar, com correspondentes
fixos em dez países, entre eles Brasil e Estados Unidos. A emissora
promete gerar muita polêmica e certamente terá muitos desafios, ao
investir contra a “objetividade jornalística”, um dos mitos que a mídia
comercial mais invoca e afirma cultivar.
O confronto aberto entre o presidente da Venezuela, Hugo Chávez,
e os proprietários da mídia tem deixado clara a dificuldade de implantar
qualquer tipo de projeto contra-hegemônico no continente, dado o enorme
23
Idem. Ver, também, o que foi publicado sobre o assunto no site do curso de pós-graduação
da ECO–UFRJ, intitulado “TV Brasil propõe integração cultural na América do Sul”. In:
www.eco.ufrj.br.
101
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
poder de reação dos meios de comunicação de massa. Sobre o caso
venezuelano, os pesquisadores Brittos e Bolaño assinalam que nem as
recentes e amplas vitórias populares obtidas por Chávez, em seu país,
foram capazes de alterar o humor da grande mídia, que se sente no direito
de “eleger” quem apoiar e quem combater. De acordo com Brittos e Bolaño,
O exemplo mais claro foi a tentativa de golpe de estado de abril de
2002, contra o próprio Chávez, de cuja estratégia comunicacional a
grande mídia de todo o continente, de norte a sul, participou de
forma vergonhosa. Na mesma ocasião, no entanto, a comunicação
alternativa, incluindo as rádios comunitárias, articuladas pela internet,
e, na Venezuela, a utilização de celulares para a mobilização popular,
mostrou o seu potencial crítico e de resistência.
24
Outro exemplo, também ligado à Venezuela, é sintomático para
mostrar a estreita articulação entre formação da opinião pública
nacional, internacional e os efeitos dela sobre um país, um governante
ou determinado grupo social. O pastor evangélico conservador norte-
americano Pat Robertson (ex-candidato à Casa Branca, em 1988)
aproveitou o seu programa na televisão (“The 700 Club”), para fazer
um apelo ao governo de seu país no sentido de que assassinasse o
presidente venezuelano, sob o argumento de que seria mais barato do
que iniciar uma guerra. O incidente, que teve repercussão na mídia
internacional e norte-americana, merecendo repúdios dos
Departamentos de Estado e de Defesa dos Estados Unidos
25
, ainda não
foi alvo de uma reflexão com a profundidade que o tema merece.
A audiência estimada do programa chega a um milhão de pessoas
e, antes do apelo de Robertson, foi exibido um “documentário” sobre
24
BOLAÑO, César Ricardo e BRITTOS, Valério (orgs.) Rede Globo: 40 anos de poder e
hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005. p. 13.
25
Ver matéria de Iuri Dantas, “Televangelista pede que EUA matem Chávez”, publicada in
Folha de S. Paulo, 24/08/2005, caderno Mundo.
102
Â
NGELA MARIA CARRATO DINIZ
o suposto envolvimento chavista com as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (FARC) e sobre planos venezuelanos
de disseminar o comunismo na América Latina. A repulsa de
Washington à proposta foi fundamental, mas dificilmente terá o
mesmo alcance que o programa, na medida em que um lida com uma
posição pautada pela razão e o outro atua em sentido contrário: utiliza
a emoção para despertar nos indivíduos sentimentos profundos,
atitudes e temores que não são superados com facilidade.
Apenas para efeito de raciocínio, que conseqüências poderia
haver, se a situação fosse inversa: se um pastor, na Venezuela, viesse
a público propor o assassinato do presidente George W. Bush?
5.4 – Vetores para a integração
No esteio das discussões acerca de comunicação e política
externa, encontram-se outros temas igualmente fundamentais para
se compor uma agenda sul-americana voltada para a integração do
continente: o futuro, dentro da nova realidade, dos Estados nacionais,
uma vez que a mídia ultrapassa barreiras e tem tido um papel que
tanto pode formar como desarticular consensos sobre temáticas as
mais diversas.
Todos têm o direito – às vezes o dever –, de tomar partido em
conflitos travados em qualquer parte do mundo – todos, bem
entendido, na qualidade de cidadãos. No caso de Estados, quando
estes são levados a agir em relação a conflitos internos em outros
países, devem respeitar a autonomia dos protagonistas e pautar sua
conduta pelo que determinam os organismos internacionais. Essa
postura vê o direito internacional como um recurso estratégico e
como um patrimônio precioso de que não se deve abrir mão.
Ela orienta-se pela democracia como valor fundamental e
entende a ordem internacional como “sociedade de Estados”
soberanos. O que a nova realidade posta em prática pela mídia tem
103
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
feito, no entanto, é o oposto. Como as “fronteiras” físicas entre os
Estados desaparecem, entram em cena relações complexas que
envolvem grupos, tendências, grupos minoritários, muitas vezes sem
representatividade, mas potencialmente capazes de promover estragos
na ordem democrática. Este tema necessariamente precisa estar
presente em um projeto que inclui a participação de diversos Estados,
a exemplo de uma comunidade sul-americana. A ênfase, portanto,
deve passar a recair na cooperação necessária à resolução dos
problemas comuns, e não na “defesa nacional” ou algo que o valha,
especialmente nos moldes como tradicionalmente é encarada.
Esse tipo de deslocamento, observável no âmbito dos estudos
acadêmicos, não se operará sem resistências nem acontecerá, de forma
completa, de uma hora para a outra. Vai exigir dos Estados parceiros
muita determinação e persistência, além de alguns combustíveis
comuns que só uma integração que não se limite aos aspectos
econômicos pode propiciar.
Este é o papel que se espera, no entanto, de uma integração
pautada pelo respeito à cultura, à história e à sensibilidade de cada
um dos povos e dos países que compõem a América do Sul. Nesse
sentido, ao lado das iniciativas e estudos que visam a ampliações no
comércio entre os Estados-membros desta comunidade e a
identificação de novas oportunidades para negócios em outras partes
do globo, é essencial que não se perca de vista o potencial que uma
sólida identidade cultural poderá ter para o sucesso desta empreitada.
A América do Sul precisa dialogar mais consigo mesma. Para
tanto, alguns mecanismos de integração devem ser ativados ou mesmo
reativados. A título de exemplo, as universidades públicas brasileiras,
proporcionalmente, já receberam mais estudantes de intercâmbio com
os países do Sul do que no momento. Os estudos e pesquisas voltados
para temas específicos do continente também já tiveram mais espaço,
repercussão e estímulos. A adoção do ensino do espanhol como
segunda língua nas escolas brasileiras é, neste sentido, uma iniciativa
104
Â
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importante, que não demorará a dar frutos. A ela é preciso seguir-se
uma nova orientação para os estudos de história e geografia, já nas
primeiras séries do ensino fundamental, dando ênfase ao
conhecimento dos nossos vizinhos e da inserção do continente sul-
americano no contexto mundial.
Mesmo as tradicionais rivalidades nos esportes podem ganhar
outros contornos, circunscrevendo-as ao seu âmbito próprio, quando
pautadas pelo conhecimento e pela superação de preconceitos.
O estímulo às co-edições e edições bilíngües de obras de
consagrados autores sul-americanos por editoras brasileiras e vice-
versa constitui-se em outra frente de atuação fundamental. A título
de exemplo, o colombiano Gabriel García Márquez tem conseguido,
com sua obra, que mistura realidade e fantasia (o conhecido realismo
fantástico) despertar não só interesse como sensibilidade e curiosidade
sobre o que somos e o que acontece nesta parte do planeta. Será que,
parafraseando-o, a originalidade que nos é admitida sem reservas na
literatura continuará nos sendo negada no que se refere a outras áreas,
especialmente nas relativas à justiça social?
O turismo, desde o “radical”, que inclui esquis e escaladas a
picos da Cordilheira dos Andes, ao mais tranqüilo, voltado para as
praias do Atlântico e do Pacífico, o de negócios, gastronômicos ou
de lazer, que envolve as grandes metrópoles da região e aqueles que
se voltam para o conhecimento do passado e de outras civilizações,
encontram no continente sul-americano excelentes opções. Estimulá-
lo é tarefa que cabe a todos os governos e entidades do continente,
pois assim todos ganham.
Da mesma forma que é preciso desenhar um fluxo livre de
mercadorias entre os países da América do Sul, que pode ser
antecedido ou acompanhado pelo livre fluxo de pessoas e também
por legislações mais flexíveis relativas ao trabalho de profissionais
liberais no continente. Para tanto, medidas capazes de agilizar o
reconhecimento de diplomas tornam-se fundamentais e urgentes,
105
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
assim como é preciso ampliar o combate à exploração de mão-de-
obra estrangeira menos qualificada, nas fronteiras e nas metrópoles
sul-americanas.
Outras medidas de importância já esboçadas nessa direção, mas
que carecem de efetivos estímulos, dizem respeito à ênfase em
pesquisas e experimentos científicos conjuntos, reunindo a
comunidade acadêmica sul-americana, essencial para o
estabelecimento de complementação tecnológica e produtiva e para
a implementação de políticas públicas comuns. Todos estes aspectos
são fundamentais para a criação de marcos institucionais que permitam
a representação dos interesses dos Estados-membros e de suas
sociedades.
Isso também pode ser dito em relação ao fomento a vídeos,
filmes e produção audiovisual por parte de realizadores e autores sul-
americanos. Nesse sentido, merece elogios a proposta do atual
ministro da Cultura, Gilberto Gil, de ampliar a abrangência do projeto
Documentários para a TV (DOC TV), que se encontra na segunda
edição, a fim de incluir também realizadores dos países da América
do Sul.
A novidade desses documentários é que, além de terem parte
de seu custo financiado pelo governo, abrem parceria com a iniciativa
privada e contam com espaços de veiculação garantidos, nas emissoras
educativas e culturais do país (a chamada rede pública de TV). Outra
vantagem desta iniciativa é o potencial que pressupõe em termos de
desenvolvimento de uma indústria (e uma cadeia produtiva) que
abrange alguns dos aspectos mais ricos da cultura sul-americana:
literatura, música, teatro, cinema e artes plásticas.
Para os acostumados a uma face mais convencional do
desenvolvimento, que inclui basicamente mercadorias ou transações
nas bolsas de valores, é importante lembrar que a indústria audiovisual
nos Estados Unidos e na Europa só perde na atualidade, em termos de
faturamento, para a indústria bélica. E esta tendência veio para ficar.
106
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NGELA MARIA CARRATO DINIZ
6 – Considerações finais
A utopia dos anos 1960 foi incapaz de superar as desigualdades
mundiais e deixou para a América do Sul uma ressaca de regimes
autoritários. Estes desapareceram nos anos 80 e 90, dando lugar a
democracias que enfrentam o desafio de combinar paz com liberdade,
justiça social e desenvolvimento.
O recente relatório da ONU sobre Desigualdade no Mundo lança
um alerta para todas as nações e governos, ao mostrar que “a
desigualdade é um problema mais grave do que a pobreza”.
26
O Brasil,
cujo crescimento nos últimos 25 anos não conseguiu minimizar estas
desigualdades, e viu-as ampliarem-se significativamente, tem a obrigação
e o dever de enfrentá-las neste século XXI, que apenas começa.
A pobreza não é um destino nem a desigualdade, uma fatalidade.
No mundo globalizado, as decisões internas têm reflexos externos e
vice-versa. Além disso, em sociedades democráticas, como as sul-
americanas, cada vez mais as populações estarão convocadas a opinar
e decidir sobre tudo o que lhes diga respeito. Os blocos sub-regionais,
como o Mercosul, e os regionais, como a Comunidade Sul-Americana
de Nações, precisam e devem deixar de ser apenas espaços
econômicos, convertendo-se em atores políticos capazes de criar
maior equilíbrio na geometria mundial do poder. Não há mais lugar
para comunidades mais ou menos unidas.
Esta região do planeta conseguiu atravessar cinco séculos de
história sem hostilizar quem quer que seja. Defeito dos fracos? Alguns
podem crer que sim. Outros avaliam a questão de forma diferente.
No mundo “sem fronteiras” propiciado pela globalização, muitas das
prerrogativas clássicas do Estado-nação estão historicamente
superadas. Para fazer face à nova realidade, colocam-se as articulações
que envolvem blocos, cuja lógica é a maximização dos interesses dos
países afins – até porque uma coisa é abrir mão, voluntariamente, de
26
Ver matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo, já citada na nota nº 8.
107
I
DENTIDADE, DESENVOLVIMENTO E INTEGRAÇÃO
parte destas prerrogativas de forma a conciliar interesses que visam
ao fortalecimento comum; outra é ser obrigado a fazê-lo com base
em interesses alheios ou contrários aos do país e da região.
As desigualdades não estão mais circunscritas apenas às
sociedades ditas tradicionais do hemisfério Sul, ainda “apegadas”
(como a mídia tradicional gosta de enfatizar) a práticas bárbaras e à
opressão de seus cidadãos, especialmente mulheres, crianças e
minorias étnicas. A mídia, que enfatiza estes aspectos, é, também, a
que coloca em foco um paradoxo embaraçoso para os países do Norte,
em especial os Estados Unidos.
As grandes democracias do planeta, e a maior dentre todas elas,
são as mesmas que se recusam a assinar tratados ou convenções de
alcance universal, seja no que se refere ao meio ambiente (Protocolo
de Kyoto), seja no âmbito dos direitos civis e políticos. É entre os
habitantes destas democracias, também, que têm surgido propostas
absurdas e quase inacreditáveis, como a de um pastor norte-americano
que defende o assassinato do presidente de uma república sul-
americana.
O mérito dessas situações ilustra uma verdade que não há mais
como desconhecer. As esperanças quanto ao futuro da espécie
humana podem ser reduzidas a poucos itens: a destruição das
desigualdades entre as nações, os progressos da igualdade dentro do
mesmo povo e o aperfeiçoamento real do ser humano. Visto assim,
o mundo de amanhã não será uma herança, mas o que formos capazes
de nele criar. O novo mundo, com o rosto de uma América do Sul
democrática, sem desigualdades e em paz, não pode nem deve esperar
mais. Precisa ser construído por todos aqueles que a integram.
7 - Referências Bibliográficas
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NGELA MARIA CARRATO DINIZ
3
Desenvolvimento
como Integração
113
Desenvolvimento como Integração
1 - Introdução
No mundo contemporâneo, só as regiões se desenvolvem.
Continentes integram-se através de processos político-econômicos, como
na Europa. Conjuntos de países articulam-se em redes de cadeias produtivas,
como o Japão e os “gansos” do leste da Ásia. Estados de porte colossal,
com milhões de quilômetros quadrados, como EUA, China e Índia, valem-
se desses recursos para levar adiante seus projetos de crescimento. A
América do Sul precisa seguir a mesma direção para superar o impasse
que seu modelo de desenvolvimento enfrenta desde os anos 80.
A integração regional é fundamental por diversas razões.
Possibilita as economias de escala necessárias para que as empresas
diminuam os custos e enfrentem a concorrência do mercado global.
Facilita a circulação dos fatores essenciais à produção: matérias-primas,
mão-de-obra, capital. Favorece o acesso aos consumidores e às fontes
de energia. Cria um ambiente mais amplo que o Estado nacional, onde
os agentes econômicos podem se habituar à concorrência externa, mas
ainda contam com salvaguardas e anteparos institucionais.
O embaixador José Botafogo Gonçalves (2004) e o sociólogo
Hélio Jaguaribe (2005) afirmam que o modelo nacional-
desenvolvimentista se esgotou e que é necessário pensar em uma
abordagem mais ampla, regional-desenvolvimentista. O objetivo deste
*
Maurício Santoro é pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas e professor
da pós-graduação em relações internacionais da Universidade Cândido Mendes. Formou-se em
jornalismo pela UFRJ e fez o mestrado em ciência política pelo Iuperj, onde cursa o doutorado.
Trabalha em projetos de cooperação social em vários países da América do Sul e da África.
Maurício Santoro Rocha
*
114
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
ensaio é discutir como a política externa brasileira pode contribuir para
a construção de um modelo de “desenvolvimento como integração”
na América do Sul. A integração se dá em duas escalas: a internacional,
de aproximação entre os Estados do continente, e a doméstica, de
incorporação dos setores mais pobres e marginalizados da população.
Na perspectiva deste trabalho, o crescimento econômico é
condição necessária, mas não suficiente do desenvolvimento, termo
que sintetiza a melhoria na qualidade de vida, nos índices de educação
e saúde, e no acesso à moradia adequada e ao meio ambiente preservado,
bem como a um ambiente político-institucional estável e que garanta
os direitos humanos. Essa abordagem segue os padrões definidos por
Sen (2000), na obra já clássica Desenvolvimento como Liberdade.
Este ensaio divide-se em três partes. Na primeira, “O Lugar da
América do Sul”, é examinada a importância crescente do entorno
regional para a política externa brasileira, ao longo dos últimos vinte
anos, mostrando como o continente passou de um espaço secundário
para um ponto central na estratégia diplomática do Brasil.
Na segunda, “Impasses”, são analisados os obstáculos à
concretização da integração regional, como a vulnerabilidade dos
países do continente às crises financeiras internacionais e a
instabilidade doméstica de muitos deles, sobretudo as nações andinas.
Na terceira, “Desenvolvimento como Integração”, são discutidas
opções para superar esses impasses e avançar no sentido de um novo
projeto de desenvolvimento, que se paute não somente pelos Estados
nacionais, mas abarque toda a região da América do Sul.
2 - O Lugar da América do Sul
2.1 – O Espaço Secundário
Durante a maior parte do ciclo nacional-desenvolvimentista de
1930–1980, a América do Sul foi uma região secundária para a política
115
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
externa brasileira. As elites políticas viam nos vínculos com os Estados
Unidos e a Europa a maneira mais segura de assegurar mercados,
capitais e tecnologia necessários para o crescimento econômico.
Afinal, era destes países que vinham as empresas que contribuíam
para o processo de industrialização, e o Brasil procurava, junto a
estes governos, os acordos para equipar as Forças Armadas e
desenvolver pesquisas em áreas de ponta, como a energia nuclear.
Sem embargo, foi uma instituição regional que pensou boa parte
da problemática do desenvolvimento. A Comissão Econômica da
ONU para a América Latina e o Caribe (Cepal) teve influência decisiva
na formulação de políticas públicas para a industrialização e o
comércio exterior nas décadas de 50 e 60. Os economistas cepalinos
chamaram a atenção para a importância da integração regional como
ferramenta para alavancar o desenvolvimento do continente.
O exemplo da Comunidade Econômica Européia (CEE)
também contribuiu para despertar o interesse por esse tipo de
processo, sobretudo depois da assinatura do Tratado de Roma (1957).
Também pesou o medo de que as exportações agrícolas do Brasil
perdessem terreno para os produtos vindos das colônias européias,
com acesso mais fácil ao mercado comunitário.
As experiências da Cepal e da CEE contribuíram para uma visão
mais positiva da integração regional. O governo Juscelino Kubitschek
inovou, ao buscar a aliança com o presidente Frondizi na Argentina, para
fazer uma demanda conjunta pelo desenvolvimento: a Operação Pan-
Americana, em 1958. Aproveitando a perplexidade nos EUA pela
hostilidade com a qual o vice-presidente Richard Nixon foi recebido em
sua viagem pela América Latina, JK e Frondizi pleitearam mais recursos
para promover o crescimento do continente, empunhando a bandeira da
reforma para conter propostas de transformação radical, como as do
comunismo. Washington respondeu com concessões como a fundação
do Banco Interamericano de Desenvolvimento e, após a vitória da
Revolução Cubana, o programa de Kennedy da Aliança para o Progresso.
116
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
Embora a Operação Pan-Americana ainda se pautasse pelo
enfoque tradicional de ver nos EUA a fonte primordial de auxílio
econômico, é um marco importante, pois introduz a idéia da
concertação latino-americana em prol do desenvolvimento. Foi zona
de transição para o próximo projeto de integração a criação da
Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), em 1960.
A iniciativa da ALALC é conseqüência direta da influência do
pensamento da CEPAL, e do exemplo e do medo da CEE. Apesar da
conjuntura favorável, as negociações de liberalização comercial foram
marcadas por impasses e obstáculos. Seguindo a linha de
argumentação do embaixador Rubens Barbosa (1996), identificam-
se três causas principais para o fracasso da Alalc:
1 - o conflito entre os países com enfoque comercialista, que viam
na Associação, sobretudo, um modo de aumentar suas exportações,
como Argentina, Brasil e México, e os Estados com objetivos
desenvolvimentistas, como os andinos, que almejavam um grau de
integração mais profundo, com mecanismos conjuntos para construir
infra-estrutura e levar adiante a produção industrial;
2 - o choque entre um modelo nacional-desenvolvimentista
baseado em altas tarifas protecionistas e as exigências de liberalização
comercial do processo de integração, que resultaram na vitória de
grupos de pressão ligados aos empresários receosos da competição
de outros países latino-americanos, e que viam poucos benefícios na
abertura desse mercado;
3 - a desconfiança entre democracias e ditaduras militares, em
particular após os golpes de Estado de 1964 e 1966 no Brasil e na
Argentina, que tornaram os países menores (principalmente os andinos)
temerosos da difusão dos regimes autoritários de seus enormes vizinhos.
Apesar das dificuldades, alguns diplomatas brasileiros já
chamavam a atenção para a importância de superar os obstáculos e
117
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
levar adiante o processo de integração sul-americana, por razões de
desenvolvimento econômico, entre eles o então embaixador do Brasil
em Buenos Aires, Pio Correa:
Para o Brasil e para a Argentina, existe a necessidade imperiosa de
uma complementação industrial mútua: somente assim poderão os
dois países chegar a economias de escala, condição indispensável para
atingir a um desenvolvimento econômico de caráter genuinamente
industrial e pós-industrial. Não há outro caminho para chegar a isso,
senão a articulação dos dois mercados em um mercado comum sub-
regional, mediante o planejamento em conjunto da política industrial
dos dois países, de modo a assegurar às respectivas indústrias, na fase
sobretudo de amortização do investimento inicial, base de mercado
que proporcione condições econômicas de operação, competitivas
com as similares de outros países. (citado em Cervo, 2000: 19)
A análise do embaixador Pio Correa continua atual no início
do século XXI, principalmente porque o rumo das relações
internacionais entre os países sul-americanos na década de 70 tomou
o sentido contrário ao da integração regional. As dificuldades da Alalc
foram agravadas pelos dois choques do petróleo e pela rivalidade
crescente entre Brasil e Argentina. O enfrentamento teve como pivô
a disputa pelo uso hidrelétrico dos rios do Cone Sul, mas também
refletiu o desagrado de Buenos Aires com a posição privilegiada de
Brasília diante de Washington, sintetizada na frase do presidente
americano Richard Nixon: “Para onde for o Brasil, irá a América do
Sul”. Na avaliação do embaixador Rubens Ricupero:
Trata-se, no fundo, de desdobramento da secular disputa brasileiro-
argentina por influência na região do Prata, reforçada por uma
“overdose” de geopolítica de volta à moda nos círculos dirigentes dos
dois países [...] [em conjunto com] receios de aumento de desequilíbrio
118
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
entre um Brasil de crescimento acelerado e uma Argentina estagnada.
(Ricupero, 1995: 342)
A “overdose” geopolítica também contribuiu para a elevação das
tensões entre Argentina e Chile pela posse do Canal de Beagle. Com
os principais países do Cone Sul envolvidos em disputas entre si, é
natural que o processo de integração ficasse estagnado. A Alalc chegou
ao fim em 1980, sendo substituída pela mais modesta Aladi, que previa
um papel de destaque aos acordos sub-regionais, como o Pacto
Andino (de 1969), que apresentavam dinamismo mais acentuado.
2.2 – A Sul-Americanização da Política Externa Brasileira
Os pontos de ruptura para a virada sul-americana da política
externa brasileira são a guerra das Malvinas e a crise da dívida externa,
ambas em 1982. A derrota da Argentina para o Reino Unido isolou a
ditadura militar de Buenos Aires no plano internacional e levou à
sua derrocada no campo doméstico. O colapso econômico que se
seguiu à moratória da dívida colocou em xeque, na América do Sul, o
modelo do Estado desenvolvimentista que vigorava desde a Grande
Depressão da década de 30, impulsionando uma profunda
transformação, que acabou por retomar e acelerar o processo de
integração regional, com a criação do Mercosul.
A eclosão da guerra das Malvinas tornou a Argentina um pária
internacional, desprezada pelo ato de agressão contra o Reino Unido e
pelo terrorismo de Estado empreendido pelo chamado “Processo de
Reorganização Nacional” contra os opositores do regime autoritário.
Embora o Brasil tenha se mantido oficialmente neutro no
conflito, na prática auxiliou a Argentina de diversos modos: cessão
de material e pessoal militar, incluindo pilotos para missões de
reconhecimento, e oferecimento de portos brasileiros para que
produtos argentinos pudessem ser reexportados para a Comunidade
119
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
Econômica Européia, evitando o embargo comercial imposto pelos
europeus.
A atitude do Brasil teve três razões principais: amenizar as
tensões ainda recentes com a Argentina, impedir que Buenos Aires
recorresse, desesperada, à ajuda da URSS e manter o front platino
calmo, para evitar outras disputas na América do Sul, em particular
com a Venezuela e a Guiana (Moniz Bandeira, 2003: 448).
O gesto brasileiro contrasta com o chileno, que aproveitou a guerra
para deslocar tropas junto ao território em litígio com a Argentina. A
aproximação iniciada durante a guerra das Malvinas prosseguiu de modo
mais acentuado nos primeiros governos da redemocratização, com Sarney
e Alfonsín. Os dias de desconfiança dos conflitos dos anos 70 haviam
ficado para trás. Os dois presidentes iniciaram um ambicioso programa
de medidas de construção de confiança na área militar, que culminou
com os acordos de cooperação nuclear. Ambos viam o processo como
parte do programa de eliminar o “entulho autoritário” acumulado durante
o recente período autoritário.
O entendimento na área de segurança prosseguiu com a criação
da Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul (1986), envolvendo
países latino-americanos e africanos. Trata-se de avanço notável, se
comparado à proposta da ditadura militar argentina de se criar uma
organização semelhante à OTAN, em parceria com a África do Sul,
à época sob o regime do apartheid.
Contribuiu também o sucesso da experiência de concertação
latino-americana do Grupo de Contadora e do Grupo de Apoio, que
ajudaram a encerrar as guerras civis na América Central, mesmo
enfrentando a relutância dos EUA, então engajados na política de
contra-insurgência do governo Reagan.
A situação econômica foi outro impulso decisivo para a
aproximação Brasil–Argentina. A crise da dívida, com a moratória
dos latino-americanos, tornou problemático relacionamento de
ambos os países com os investidores estrangeiros. No caso argentino,
120
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
o isolamento foi agravado pelas tensões com os Estados Unidos e a
Comunidade Econômica Européia, resultantes da guerra das
Malvinas.
Foi nesse quadro de desconfiança entre os centros financeiros
internacionais e a América do Sul que Brasília e Buenos Aires iniciaram
o longo processo de renegociação da dívida, que iria se arrastar pelos
planos Brady e Baker e pelos diversos choques e planos heterodoxos
(Cruzado, Astral etc.), que tentaram conter a inflação e remediar os
efeitos desastrosos da “década perdida” sobre a sociedade.
A maior fragilidade econômica da América do Sul tornou o
continente mais suscetível às pressões das grandes potências nas
instituições de crédito internacional e nas negociações da Rodada
Uruguai do GATT. O modelo do Estado desenvolvimentista entrou
em colapso, sob fogo cerrado de diversas direções. O FMI e o Banco
Mundial impunham como condicionalidades de empréstimos a
abertura da economia e a privatização. Os acordos comerciais também
impossibilitavam antigas salvaguardas de proteção à indústria e à
agricultura, ao mesmo tempo em que punham em questão a
liberalização dos promissores mercados de serviços, nos quais os sul-
americanos eram pouco competitivos.
Desse modo, a guinada para um modelo de integração baseado
no “regionalismo aberto” dá-se em um quadro de intensa fragilidade
internacional. A política externa brasileira volta-se para a América
do Sul em busca de uma área de atuação que lhe permita enfrentar
melhor a competição crescente. Regionalização e globalização
aparecem como processos complementares na análise de dois
diplomatas brasileiros:
A regionalização é uma globalização em miniatura. Cada processo de
integração regional reproduz, num espaço mais restrito, mas, com
maior veemência, as principais características da globalização:
multinacionalização do processo produtivo, diversificação e aceleração
121
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
dos fluxos de capital, interpenetração das economias, convergência de
valores e padrões culturais.
Um país que se engaja em um processo de integração torna-se mais
apto a participar do processo de globalização. Ganha experiência no
trato econômico internacional, recebe estímulos para buscar maior
competitividade, amplia o leque de mercados consumidores e
fornecedores. Quem regionaliza, globaliza melhor.
Há, contudo, uma diferença importante entre regionalização e
globalização: os processos de integração regional estão sujeitos a um
acompanhamento político de que o processo de globalização ainda
carece em grande medida. (Florêncio e Fraga, 1998: 95)
A aproximação inicial do Brasil e da Argentina rapidamente evoluiu
para um quadro mais amplo, que envolveu o Uruguai e o Paraguai na
formação do Mercosul, definido pelo Tratado de Assunção em 1991. A
lógica da integração responde às pressões da era da globalização: uma
vez que a maior abertura internacional é inevitável, o melhor a fazer é
desenvolvê-la inicialmente na escala do entorno regional.
No âmbito do Mercosul, as empresas brasileiras aprendem a
competir internacionalmente e a transnacionalizar suas cadeias
produtivas. No entanto, podem fazê-lo ainda no ambiente mediado
pelas instituições políticas do bloco, com medidas de salvaguarda e
redes de proteção.
A integração regional também significou para as empresas
brasileiras a oportunidade de conquista de mercados num momento de
dificuldades na economia, em particular durante a recessão do governo
Collor. Nas palavras do embaixador Rubens Barbosa, em 1992:
Nossas relações comerciais com os Estados Unidos caíram drasticamente
e com a Comunidade Econômica Européia estão estagnadas. O
empresário entende a linguagem do bolso. Se estão perdendo dinheiro
em determinado mercado, procuram outro. Esse é um dos motivos de
122
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
haver crescimento em nossas relações com a América Latina e, dentro
dela, o Mercosul. Poucos empresários têm consciência de que o
mercado latino é sofisticado. Aproximadamente 65% de nossas
exportações para a América Latina são de produtos industrializados.
(Citado em Vaz, 2002: 112)
Portanto, a integração logrou o apoio de liberais e nacionalistas.
Os primeiros viam no Mercosul o primeiro passo para a inserção
mais ampla na economia internacional, seja pela via de acordos
hemisféricos (como a Alca), seja por negociações inter-blocos (como
Mercosul–União Européia). Os segundos enxergavam no
regionalismo a possibilidade de conter os efeitos mais desastrosos do
processo de globalização, vendo nele a oportunidade para a construção
de um novo modelo de desenvolvimento.
Logo se tornou claro que a integração regional almejada pelo
Brasil não se limitava ao Cone Sul, mas abarcava todo o continente
sul-americano. A América Central, o Caribe e o México foram
percebidos pelo Itamaraty como definitivamente atrelados aos EUA,
pela dependência do mercado americano e pela consolidação de
acordos de integração como o Nafta (1994) e o Cafta (2005). Contudo,
a Amazônia e a região andina estavam dentro dos cálculos brasileiros:
Com isso, a idéia de região que se forma é maior que o Mercosul e
menor que a velha percepção de América Latina, isto, em grande
parte, decorrente da integração mexicana ao bloco do norte. A região,
portanto, deixa de ser apenas um dado geográfico e passa ela mesma
por mudanças políticas que a redefinem. Atualmente a unidade que
está sendo imaginada tem os contornos da América do Sul, seja a
região um espaço político, um espaço de ação coletiva organizada,
seja ela categoria de análise da inserção global dos países sul-americanos
e das diferenças que cada um deles apresenta. (Lima e Coutinho,
2005: 5-6)
123
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
O projeto brasileiro de integração sul-americana foi batizado
inicialmente de Área de Livre Comércio Sul-Americana e renomeado
recentemente (2004) como Comunidade Sul-Americana de Nações
(CASA). Estas iniciativas se contrapõem à proposta dos EUA para a
formação da Alca e podem ser resumidas – na observação de Henry
Kissinger (2001: 102): “O Brasil vê a si mesmo como organizador da
América Latina enquanto os EUA desempenham a mesma tarefa na
América do Norte.”
Essa posição traz dois riscos. O primeiro é enxergar a busca de
uma área de influência do Brasil na região andina como um jogo de
soma zero com os EUA, no qual os ganhos de um país se traduzam
necessariamente como a perda do outro. Tal maneira de analisar a
situação só dificultaria a cooperação, aumentando os conflitos de
uma área já bastante tensa, além de eventualmente forçarem as nações
andinas a optar por Estados Unidos ou Brasil.
O segundo risco é o de que o Brasil encare sua liderança
regional – natural, em função das dimensões econômicas e
territoriais do país – como uma hegemonia agressiva, que replique
o padrão das grandes potências. Seria um retorno ao cenário de
rivalidades e desconfianças que marcou a política do Império, no
século XIX, com relação às vizinhas repúblicas hispano-
americanas.
Embora a elite diplomática brasileira sempre tenha sido
cautelosa em evitar esse tipo de comportamento, a presença de
outros atores na política externa pode trazer tensões, em especial
as atividades das empresas transnacionais brasileiras, privadas e
estatais, que ampliaram seus negócios na América do Sul. O
exemplo mais dramático é a oposição despertada pela Petrobras
na Bolívia e no Equador, onde as operações de extração de
petróleo e gás natural em reservas naturais e áreas indígenas
provocaram a fúria de grupos nacionalistas e ambientalistas
(Guimarães, Domingues e Maneiro, 2005). A presença econômica
124
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
das empresas brasileiras na Argentina também pode provocar
atritos, em função do mal-estar daquele país com perda de sua liderança
regional para o Brasil.
2.3 – Resumo
Durante o auge do ciclo desenvolvimentista do Brasil, a
América do Sul foi um espaço secundário na diplomacia. A tentativa
de integração pela Alalc malogrou em virtude de desconfianças
políticas entre democracias e ditaduras e nos objetivos econômicos
divergentes entre “comercialistas” e “desenvolvimentistas”. A
rivalidade entre Brasil e Argentina também contribuiu para o fracasso
do projeto, ao afastar os dois países que seriam os líderes naturais
da iniciativa.
O ponto de virada é o ano de 1982, com a guerra das Malvinas
e a crise da dívida externa. Brasil e Argentina isolaram-se dos
investidores internacionais e fragilizaram-se diante das pressões para
abrir suas economias. O modelo do Estado desenvolvimentista entrou
em colapso e avançou a liberalização comercial.
O entendimento na área de segurança também foi significativo,
com as novas democracias eliminando o entulho autoritário e
estabelecendo acordos de cooperação nuclear e entendimentos
regionais no âmbito do Atlântico Sul.
Os dois fatores que impediram o desenvolvimento da Alalc
– protecionismo econômico e autoritarismo político – foram
eliminados. O processo de integração regional consolidou-se no
Mercosul e surge como uma maneira de promover uma inserção
mais equilibrada na economia global. O projeto brasileiro
transcende o Cone Sul e abarca todo o continente sul-americano,
numa perspectiva de contraponto à hegemonia dos EUA.
É hora de analisar os impasses e as possibilidades dessa
perspectiva.
125
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
3 – Os Impasses na Integração Sul-Americana
3.1 – A Era de Ouro do Mercosul (1991–1998)
Os primeiros anos do Mercosul foram marcados pelo aumento
expressivo das exportações brasileiras para o bloco, que chegaram a
17% do total do Brasil, com a Argentina como segundo mercado
para os produtos nacionais, atrás apenas dos EUA. Pode-se classificar
uma era de ouro no processo de integração, que vai da assinatura do
Tratado de Assunção até as crises financeiras da Ásia e da Rússia,
com seus impactos intensos no Cone Sul.
O período inicial da era de ouro engloba a formação
institucional do Mercosul, com o Tratado de Assunção e o Protocolo
de Ouro Preto definindo o quadro regulatório para a União
Aduaneira. Embora positivo, o processo é marcado por dificuldades
ligadas à instabilidade política no Brasil, devido ao impeachment de Collor
– entre 1990 e 1994, o país teve diversos ministros das Relações
Exteriores. Obstáculos persistem em áreas sensíveis como açúcar,
automóveis e eletrodomésticos.
Apesar disso, o crescimento do comércio intrabloco foi
extremamente elevado, cerca de 400% em sete anos (Lampreia, 1999:
299). A América do Sul tornava-se, definitivamente, parte prioritária
da estratégia econômica internacional do Brasil.
Outro fator positivo a ser destacado é o fortalecimento
internacional dos países do Mercosul, consolidado no formato 4+1 de
negociação para a Alca, e em processos semelhantes com União
Européia e mais tarde com a Índia e a União Aduaneira da África Austral.
De modo ainda mais importante, o Mercosul foi utilizado de
maneira bem-sucedida como uma base para a ampliação da integração
regional aos demais países da América do Sul. Isso foi realizado
inicialmente a partir do status de membro-associado concedidos ao
Chile e à Bolívia – uma maneira de reuni-los ao bloco, sem que
126
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
precisassem adotar a tarifa externa comum, alta devido às necessidades
do parque industrial brasileiro.
A aproximação com a Comunidade Andina de Nações, com a
assinatura de acordos de livre comércio e a formação da Comunidade Sul-
Americana de Nações, coroaram esse processo bem-sucedido de expansão.
Também é importante salientar que a integração foi além da
área comercial, abarcando o setor de infra-estrutura, com importantes
obras em energia e transporte, como o gasoduto Brasil–Bolívia. A
consolidação da Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana
é o marco decisivo desse processo. O modelo autárquico do regime
militar na área energética foi substituído por um enfoque regionalista
que busca, nos países vizinhos, fontes de petróleo e gás natural
(Holanda, 2000).
3.2 – Crises e Vulnerabilidade Externa
O período de ouro do Mercosul foi interrompido com a
seqüência de crises financeiras internacionais da Ásia, da Rússia e da
Argentina. A crise do Sudeste Asiático surpreendeu por ter ocorrido
em países bem-integrados à economia global, que eram apontados
aos sul-americanos como exemplos de políticas econômicas e modelos
de desenvolvimento.
Para a América do Sul, a conseqüência mais imediata da crise
foi o medo dos investidores, que preferiram transferir seu capital dos
países do continente, temerosos de que eles fossem a próxima peça
do dominó da instabilidade. Esta se tornou uma profecia
autocumprida. Brasil e Argentina adotaram uma âncora cambial como
maneira de combater e a inflação e, para manter suas moedas paritárias
com relação ao dólar, necessitavam de um fluxo constante de divisas,
interrompido com a crise.
O modelo brasileiro, mais flexível, levou à desvalorização do
real no início de 1999, logo após as eleições presidenciais. Contudo o
127
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
regime de conversibilidade argentino era bem mais rígido, proibindo a
adoção de medida semelhante. O resultado foi que, com o real desvalorizado,
as exportações do Brasil tornaram-se muito mais baratas e provocaram
reclamações e preocupações nos concorrentes da Argentina.
O problema foi agravado porque o Peso estava sobrevalorizado
diante das moedas dos outros principais parceiros comerciais
argentinos, como EUA, Europa e Chile. Em grande medida, a
incapacidade argentina de realizar os ajustes necessários foi o que levou
à grande crise de 2001, possivelmente a mais séria da história do país.
Nesse quadro semelhante ao da Depressão dos anos 30, o
processo de integração via Mercosul sofreu uma brusca interrupção,
com autoridades governamentais da Argentina discutindo a
possibilidade de que a União Aduaneira fosse substituída pelo formato
mais flexível da Zona de Livre Comércio, que permitiria aos argentinos
mais possibilidades de aumentar suas tarifas e utilizar outros recursos
protecionistas para tentar equilibrar a balança de pagamentos.
Uma das razões da criação do Mercosul foi exatamente diminuir
a vulnerabilidade externa de seus membros. O exemplo da União
Européia apontava para a necessidade de coordenar a política
macroeconômica, definir metas comuns de combate à inflação, à
dívida pública, e mesmo considerar a hipótese de criar mecanismos
como o Sistema Monetário Europeu ou, eventualmente, rumar na
direção de uma moeda única.
O período de crises apontou para impasses nesse processo. A
falta de coordenação macroeconômica ficou evidente com os modelos
divergentes de âncora cambial adotados por Brasil e Argentina. De
modo ainda mais perigoso, estabeleceu-se um precedente de que, em
momentos de emergência, cada país agiria por si mesmo, sem levar
em conta o impacto de suas decisões sobre os demais membros do
bloco. A situação apresenta semelhanças perturbadoras com as
políticas de beggar-thy-neighbour dos anos 30, que contribuíram para o
agravamento da Depressão.
128
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
A Europa optou pelas instituições supranacionais e comunitárias
em seu processo de integração devido, em grande medida, à
necessidade de equilibrar os interesses de potências como Alemanha,
França e Reino Unido. No Mercosul, o Brasil desfruta um grau de
influência sobre os países vizinhos muito maior do que o existente
em qualquer das principais nações européias. A Argentina, segundo
maior país do bloco, tem um PIB equivalente ao do estado de São
Paulo.
Desse modo, não é de se estranhar que o Brasil tenha evitado a
supranacionalização, preferindo instituições intergovernamentais nas
quais as decisões são tomadas por consenso, e que, desse modo,
mantêm a soberania e a tradicional autonomia política para o país.
Um exemplo dessa tomada de posição é a declaração do ex-chanceler
Luís Felipe Lampreia:
O Brasil não tem razão nenhuma para abrir mão de sua autonomia.
Não conheço ninguém de responsabilidade, no Brasil, que pudesse
aceitar a idéia de que o governo brasileiro subscrevesse um tratado,
no qual delegasse a uma pessoa ou a um colegiado, por mais
qualificados que fossem, a capacidade de representar, negociar e impor
normas para todos os Estados membros do Mercosul. (Lampreia,
1999: 305)
A própria lógica do processo de integração, contudo, põe em
xeque o comportamento tradicional do Brasil. O aprofundamento
da cooperação leva à redefinição da soberania e ao compartilhamento
dos mecanismos de tomada de decisão. O próprio Lampreia comenta
este fato ao examinar a política externa brasileira do governo FHC
como “autonomia pela integração” (idem, p. 175) Os diplomatas José
Botafogo Gonçalves e Maurício Lyrio argumentam que é necessário
mudar para levar adiante a integração no campo da economia e do
financiamento ao desenvolvimento:
129
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
Esses novos passos não poderão ser dados, no entanto, se não houver
o reconhecimento de que o Mercosul chegou a um estágio em que
somente o aumento de sua institucionalização, e da incorporação de
alguns elementos de supranacionalidade, poderá retirar-nos do
aguerrido encastelamento em torno de políticas nacionais isoladas e
impermeáveis à vizinhança. Essa questão básica da institucionalização
incide, ao mesmo tempo, sobre a qualidade do funcionamento do
Mercosul, sobre o grau de engajamento dos quatro sócios e sobre a
própria credibilidade externa do bloco.
[...]
Quanto aos receios do Brasil ante maior ingerência dos demais países
sobre sua liberdade de ação, devemos avaliar muito cuidadosamente
se os custos de resistir a um mínimo de supranacionalidade não se
estão tornando elevados demais a esta altura da evolução do Mercosul,
seja porque, com a atual estrutura institucional, tem-se avançado
pouco na construção de acordos e normas comuns, seja porque o
próprio tema da institucionalização surge freqüentemente como um
dos tabus paralisadores das negociações como um todo. (Gonçalves
e Lyrio, 2003: 18-19)
De fato, recentemente o Brasil alterou algumas de suas posições,
aceitando, por meio do Protocolo de Olivos, a criação de uma
instituição supranacional, o Tribunal Permanente de Recursos, que
cuida de casos relativos a disputas comerciais entre os países do bloco.
O processo de integração, em particular o relacionamento
entre Brasil e Argentina, ganhou novo alento com a ascensão à
presidência de Lula e de Kirchner, que incluíram em suas
plataformas propostas de reforçar o Mercosul, acenando com a
possibilidade de criação de instituições supranacionais, como um
parlamento e um instituto monetário que auxiliaria na
coordenação da política macroeconômica. Contudo, o
relacionamento com a Argentina – e conseqüentemente, o
130
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
aprofundamento do Mercosul – tem sido perturbado por
controvérsias comerciais e divergências macroeconômicas.
O governo brasileiro adotou uma política econômica ortodoxa
que visa à conquista da credibilidade internacional, mostrando aos
investidores que um presidente de esquerda é capaz de conter os gastos
públicos, controlar a inflação e honrar os compromissos assumidos
com o pagamento da dívida externa.
O governo argentino optou por um conjunto de políticas
heterodoxas, com ênfase na renegociação de sua dívida externa, após a
moratória do fim de 2001. O acordo obtido com os credores
internacionais foi vantajoso para Buenos Aires, mas provocou
antagonismos com as autoridades brasileiras, que preferiram deixar claro
aos organismos de crédito e aos investidores que não compartilhavam
as posições da Argentina e manteriam o programa ortodoxo.
Apesar das desavenças, o comércio dentro do Mercosul voltou
a crescer e recuperou parte do que havia perdido antes das crises de
1998–2002. Entretanto, o dinamismo das exportações brasileiras, com
a conquista de mercados na China, na Índia, na África e no Oriente
Médio, deslocou o foco das expectativas dos empresários para as novas
oportunidades extracontinentais. São contradições naturais de um
global trader como o Brasil, que atua de maneira destacada em vários
tabuleiros do comércio internacional.
Embora o momento contemporâneo não seja tão bom quanto
a era de ouro, é evidente que a fase de piores dificuldades ficou para
trás. A consolidação do Mercosul aparece como um fator-chave
inclusive para a credibilidade externa de seus membros junto aos
investidores:
O Mercosul, acertadamente, é uma expansão de mercado, uma
expectativa da circunstância que agrega um elemento de credibilidade
ao nosso país. A decisão de investimento de grandes empresas
multinacionais está condicionada a essa percepção política e à
131
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
expectativa de que, realmente, o Mercosul se consolide e seja
aprofundado.
Se houvesse um retrocesso, no sentido de apenas uma área de livre
comércio, evidentemente haveria uma redução de expectativas.
(Lampreia, 1999: 308)
3.3 – Instabilidade Doméstica
A integração sul-americana respondeu à crise do modelo do
Estado-desenvolvimentista, nos moldes do regionalismo aberto. O
processo de formação do Mercosul foi simultâneo à adoção de
políticas liberais baseadas no Consenso de Washington. O papel do
Estado foi reduzido, mediante privatizações e contenções de despesas,
e o capital externo passou a ser encarado como a grande locomotiva
do desenvolvimento.
Passados vinte anos da crise da dívida e do início da adoção do
modelo liberal, os resultados são decepcionantes. A inflação foi
controlada, mas o crescimento econômico foi pífio, em média 2% ou
3% ao ano. O desemprego aumentou, com uma grande parcela da
população excluída do mercado de trabalho formal e das redes de
proteção social. Os impactos são variados, indo da expansão da
criminalidade e da insegurança até o retorno do populismo, com o
surgimento de presidentes autoritários que aspiram a falar diretamente
às massas marginalizadas e empobrecidas, com pouca mediação dos
partidos e demais instituições democráticas (para um balanço recente
do continente latino-americano, ver Dupas, 2005).
O descontentamento da população levou à eleição de coligações
de centro-esquerda para a presidência da maioria dos países da América
do Sul no período entre 1998 e 2004. Na Argentina, no Brasil, no
Chile, no Equador, no Uruguai e na Venezuela, a oposição ascendeu
ao poder com o mandato de retomar o crescimento, diminuir as
desigualdades e combater a corrupção.
132
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
Seu grau de sucesso foi variável: os resultados têm sido bem
melhores no Cone Sul, enquanto nos países andinos a situação é de
instabilidade política e descontentamento com as expectativas de
transformação frustradas.
A deposição do presidente do Equador e da Bolívia parece evidência
da dificuldade de consolidar a democracia na América do Sul. Um olhar
mais atento a essas crises, no entanto, revela que os atuais problemas
têm outra fonte: o descompasso entre sociedades que se tornaram mais
abertas e participativas, e os sistemas político-partidários que não foram
capazes de acompanhar o ritmo da transformação.
Nos últimos vinte anos, as ditaduras sul-americanas foram
substituídas por democracias. No processo de liberalização do
continente, surgiram novos atores sociais, que em geral haviam sido
mantidos afastados da vida política de seus países. Foi o caso dos
movimentos indígenas, de trabalhadores rurais, de desempregados,
bem como o fortalecimento dos temas ligados ao meio ambiente, aos
direitos humanos e à igualdade racial e de gênero.
Os avanços políticos foram ainda mais impressionantes porque
se deram numa conjuntura de profunda turbulência econômica, só
comparável à Depressão dos anos 30. A América do Sul enfrentou a
crise da dívida, a inflação galopante, as reformas do consenso de
Washington e a instabilidade decorrente das quedas no mercado
financeiro global. Aumentaram muitos dos problemas sociais do
continente, como o desemprego, a desigualdade e a marginalização
de grandes setores da população.
A democratização da sociedade num período de dificuldades na
economia teve como conseqüência uma forte pressão pela renovação
dos órgãos tradicionais de representação, como os partidos. Todos os
sistemas partidários da América do Sul sofreram alterações significativas.
Nos países mais desenvolvidos do Cone Sul, houve a ascensão à
presidência de novas siglas de esquerda, como a Frepaso, na Argentina,
o PT, no Brasil, e a Frente Ampla, no Uruguai. No Chile, o partido
133
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
socialista e a democracia-cristã consolidaram a aliança da Concertação,
que venceu todas as eleições desde o fim da ditadura de Pinochet.
Nos Estados mais pobres e instáveis da região andina, a mudança
foi mais lenta e difícil, ou sequer chegou a se concretizar. Na Colômbia
e na Venezuela, os sistemas bipartidários, que eram baseados em
pactos de elite feitos nos anos 50, entraram em colapso, abrindo
caminho para uma política mais conflituosa, marcada pelo
crescimento da violência armada, das tensões internacionais ou
mesmo pelo velho fantasma dos golpes militares.
Na Bolívia e no Equador, a novidade foram os partidos indígenas
como o Pachakutik equatoriano (e seu homônimo boliviano, de
menor influência) e a coligação entre índios, cocaleiros e sindicatos
do Movimento ao Socialismo na Bolívia. Estes novos atores têm o
poder de levantar uma agenda de debate político, ou mesmo de
derrubar presidentes, como ocorreu com Jamil Mahuad (2000),
Sanchez de Lozada (2003), Lucio Gutierrez e Carlos Mesa (2005).
No entanto, as forças em ascensão ainda não foram
incorporadas às coligações dominantes. Apesar da democratização
das sociedades sul-americanas, a política andina continua, em larga
medida, a ser conduzida por uma elite branca e urbana. Por exemplo,
o Pachakutik equatoriano permaneceu somente seis meses na base
de apoio a Gutierrez, embora o tenha ajudado a chegar ao poder. Na
Bolívia, a situação foi ainda mais tensa, com a disputa acirrada entre
o presidente Carlos Mesa e os movimentos sociais em torno da
regulação do gás natural.
As recentes crises apresentam dois desafios às democracias sul-
americanas. O primeiro é a construção de instituições capazes de
absorver os novos atores sociais e integrá-los ao jogo político. O
segundo é a necessidade de fortalecer o Estado. Em sociedades
marcadas por imensas desigualdades e graves problemas sociais, é
urgente o aumento da capacidade governamental em responder de
maneira eficiente às demandas por melhores condições de vida.
134
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
O círculo que se repete é o do presidente eleito com apoio dos
movimentos sociais, que caiu por ter sido incapaz de implantar
reformas, mantendo as políticas de seus antecessores conservadores.
Sem transformações efetivas, a democracia corre o risco de ser encarada
pela população como mera encenação entre as elites de sempre.
A instabilidade doméstica traz riscos para o processo de
integração. O primeiro é a fragilização do Estado, com o aumento da
pobreza e da violência. No limite, os governos podem se tornar
incapazes de manter a ordem pública. A ameaça de failed States, como
os existentes na África subsaariana, é real na América do Sul, como
demonstrou a crise na Bolívia.
O segundo risco é o aumento do poder de grupos armados que
desafiem o Estado, como traficantes de drogas e guerrilheiros. A
situação da Colômbia é o caso exemplar, com um território do
tamanho da Suíça em poder de rebeldes, além da influência corruptora
do crime organizado e dos bandos paramilitares.
As tensões provocadas na Colômbia atravessam as fronteiras e
envolvem diversos dos países do continente. A ação de traficantes e
guerrilheiros causa problemas também a Estados vizinhos como Peru,
Equador, Brasil e Venezuela, pelo choque desses grupos com as Forças
Armadas e a polícia e por sua atuação criminosa transnacional.
O caso colombiano também é preocupante, pois trouxe para a
agenda de segurança andina a presença dos Estados Unidos, com sua
política de militarização da “guerra contra as drogas” e a ênfase
americana para que as Forças Armadas assumam papel de destaque
na repressão ao tráfico, com os riscos de corrupção, violações de
direitos humanos e desvios nas funções dos militares – ameaças ainda
mais graves no contexto das frágeis e recentes democracias da região.
A questão colombiana também se transformou em fonte de
tensões para as relações entre os Estados andinos, como exemplificado
nos conflitos entre Colômbia e Venezuela a respeito do suposto apoio
do governo Chávez às FARCs.
135
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
A dimensão da segurança tem permanecido como um desafio
para os processos de integração na América do Sul, tanto no Mercosul
quanto na Comunidade Andina. Não há dúvida de que os problemas
são enormes, mas serão mais sérios do que aqueles enfrentados pelo
Grupo de Contadora e pelo Grupo de Apoio na resolução dos
conflitos da América Central? Naquela ocasião, a concertação
diplomática dos países latino-americanos provou ser uma opção viável
contra a violência militarizada da contra-insurgência defendida pelos
EUA. É urgente uma nova solução negociada, desta vez para os
conflitos que atingem os Andes.
3.4 – Resumo
Os anos iniciais do Mercosul foram marcados por uma “era de
ouro” com grande expansão do comércio e avanços significativos no
processo de integração, como a formação da União Aduaneira. Mas
houve também problemas pendentes quanto à coordenação da política
macroeconômica e à resistência brasileira em aceitar instituições
supranacionais que resultariam na perda de autonomia para o país.
A conseqüência desses impasses foi a vulnerabilidade externa dos
países do Mercosul quando das crises financeiras internacionais do fim
dos anos 90. Os impactos foram particularmente graves na Argentina, e o
aumento das divergências entre Buenos Aires e Brasília, no comércio e nas
negociações da dívida externa, impediu o aprofundamento da integração.
O mau desempenho econômico da América do Sul nos últimos
vinte anos foi outro entrave fundamental. O modelo do Estado
desenvolvimentista foi substituído por medidas liberais que tiveram
resultados frustrantes, como baixo crescimento econômico e elevação
do desemprego e da marginalização social.
A instabilidade política, sobretudo nos países andinos, veio da
tensão entre instituições pouco representativas e uma sociedade civil
cada vez mais organizada e mobilizada, no quadro da redemocratização.
136
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
Nesse cenário, o poder dos grupos armados, como traficantes
e guerrilheiros, cria riscos concretos para a soberania do Estado-nação
– como na Colômbia – e traz ameaças que transcendem as fronteiras
e envolvem até mesmo os EUA nos problemas de segurança sul-
americana. É vital uma iniciativa concertada para lidar com a questão
colombiana, nos moldes de esforços semelhantes dos que ocorreram
na América Central nos anos 80.
4 – Desenvolvimento como Integração
4.1 – Em Busca do Regional-Desenvolvimentismo
O modelo do Estado desenvolvimentista entrou em colapso,
mas o liberalismo dos anos 90 tampouco cumpriu as expectativas.
Mas houve também avanços importantes no continente, como
o aprofundamento da integração regional e o retorno da
democracia, inclusive com a participação de grupos sociais
tradicionalmente excluídos da vida política, como os índios.
Qualquer tentativa de formular uma solução alternativa precisa
basear-se nesses dados.
O embaixador José Botafogo Gonçalves e o sociólogo Hélio
Jaguaribe apontam caminhos e possibilidades importantes, com base
na proposta de se substituir o modelo nacional-desenvolvimentista
por uma abordagem regional-desenvolvimentista, que leve em conta
o conjunto da América do Sul, em particular o núcleo central da
integração, o relacionamento entre Brasil e Argentina.
Para Botafogo Gonçalves (2004), o novo paradigma teria quatro
pilares:
1 - Recuperação da importância do Estado como agente
planificador, no âmbito da região, e definição mais clara de seu papel
como regulador.
137
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
2 - Substituição do antigo conceito de “política industrial” por
“política pública de agregação de valor”, tanto na indústria quanto
na economia, buscando também eliminar a dicotomia entre mercado
externo e interno.
3 - Canalização dos recursos do Estado para a área dos “serviços
públicos naturais” (educação, saúde, infra-estrutura, ciência etc.) e
estímulo à internacionalização das empresas sul-americanas.
4 - Melhoria do quadro de segurança jurídica institucional para
atrair investimentos de longo prazo e política regional de promoção
das exportações.
O embaixador, que também foi ministro do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior, situa o paradigma como um projeto
em construção, mais do que como um modelo que já esteja em
implementação:
Do ponto de vista histórico, talvez ainda seja cedo para afirmar com
segurança que já fizemos a travessia de um modelo nacional-
desenvolvimentista até outro, fundamentalmente regional-
desenvolvimentista. Caberia agora dar consistência teórica e
conseqüência prática ao regional-desenvolvimentismo, sobretudo
através de políticas consistentes, compartilhadas pela região, para
gerar consenso social e vontade política, que assegurem ao novo
modelo, em escala regional, o grande êxito que teve no Brasil o
modelo anterior. (Gonçalves, 2004)
As reflexões de Hélio Jaguaribe são no mesmo sentido. O
sociólogo analisa com apreensão o baixo crescimento econômico do
Brasil nas últimas décadas, fazendo o contraste com o
desenvolvimento acelerado dos anos 50, 60 e 70. Convoca a nova
geração, na faixa dos 30 anos, a se engajar na formulação de um novo
projeto para o país.
138
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
Relembrando a própria experiência no Instituto de Estudos
Superiores Brasileiros (Iseb), Jaguaribe destaca a necessidade de
“intelectuais orgânicos”, que ponham sua competência acadêmica a
serviço do objetivo público da retomada do desenvolvimento. No
entanto, as condições do início do século XXI são diversas daquelas
que prevaleceram no auge do modelo anterior. A integração regional
é parte fundamental das novas reflexões:
E precisamos conduzir uma integração sul-americana e uma aliança
entre Brasil e Argentina. Se nós não fizermos a integração sul-
americana, o Brasil não tem capacidade de resistir às pressões
internacionais.
[...]
A idéia do nacional-desenvolvimentismo respondia a um momento
histórico em que o processo de globalização não tinha atingido as
proporções que atingiu hoje e, por essa razão, um país como o Brasil
tinha viabilidade isolada. Eu não creio que, nesse momento, nós
possamos dizer que temos viabilidade histórica isolada. A minha
proposta seria substituir o nacional-desenvolvimentismo pelo
regional-desenvolvimentismo. Quem tem capacidade histórica é a
América do Sul. Ela pode ser convertida num grande interlocutor
internacional, e o Brasil pode liderar.
Há, ainda, exigências que não existiam, que são a necessidade de uma
profunda consciência ecológica e uma profunda consciência social.
(Jaguaribe, 2005)
4.2 – Desenvolvimento como Integração
A perspectiva do desenvolvimento como integração é regional-
desenvolvimentista. Compartilha a visão de que a superação dos
impasses do Brasil só poderá se dar pela via da articulação da América
do Sul num projeto mais amplo. A maior vulnerabilidade externa
139
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
brasileira na era da globalização impede soluções autárquicas nacionais
e demanda modelos mais abrangentes.
Tanto na América do Sul quanto na União Européia, porém,
os processos de integração têm-se baseado em práticas muitas vezes
distantes do cotidiano da população, buscando suas referências no
apoio da elite tecnocrática e no meio empresarial. Isso às vezes se
reflete em um pensamento em que desenvolvimento é equiparado ao
crescimento econômico.
O aumento do PIB é condição necessária, mas não suficiente, à
perspectiva do desenvolvimento como integração. Esta se aproxima
das idéias de Amartya Sen (2000), que vê no objetivo final do
desenvolvimento o aumento da liberdade e das capacidades individuais.
Este é o foco de indicadores sociais desenvolvidos pelo economista
indiano, como o Índice de Desenvolvimento Humano utilizado pelo
PNUD para medir a qualidade de vida em diversos países.
Afinal, a economia pode crescer de maneira desequilibrada,
concentrando renda, devastando o meio ambiente e tornando a
maioria da popução mais pobre. O risco é sempre presente na
América do Sul, onde a era colonial deixou um legado trágico de
desigualdades e marginalização social.
Na perspectiva deste trabalho, desenvolvimento significa integração
de duas maneiras. Uma é a integração regional, primeiro pela via do
Mercosul, depois estendida à América do Sul por intermédio de parcerias
e acordos com a Comunidade Andina. A segunda é a integração dos setores
mais pobres da população à economia formal e às redes de proteção social,
tornando-os atores protagonistas das articulações regionais.
O desenvolvimento como integração procura incorporar a
experiência da redemocratização sul-americana e do crescimento da
mobilização de diversos grupos populares: sindicatos, índios,
comunidades religiosas de base etc. Busca sua inspiração na melhor
tradição de homens públicos brasileiros, como o ex-ministro das
Relações Exteriores San Tiago Dantas:
140
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
Desenvolver-se é sempre emancipar-se. Emancipar-se externamente
pela extinção de vínculos de dependência a centros de decisão, político
ou econômicos, localizados no exterior. E emancipar-se internamente,
o que só se alcança através das transformações de estrutura social,
capazes de instituir, paralelamente ao enriquecimento, uma sociedade
aberta, com oportunidades eqüitativas para todos, e uma distribuição
social da renda apta a assegurar níveis satisfatórios de igualdade.
(Citado em Lafer, 2001: 106)
Vale recordar a ressalva de Gonçalves e perceber o
desenvolvimento como integração como uma perspectiva para orientar
futuras pesquisas e reflexões. A América do Sul tem uma longa história
de desigualdades e marginalização social. As reformas de base defendidas
por Dantas foram interrompidas por um golpe militar e por vinte anos
de ditadura. E continuam na agenda pública e nas demandas das
manifestações de rua, quarenta anos depois de sua atuação como
chanceler.
A própria Europa, muito mais democrática, enfrenta o mesmo
problema de instituições regionais distantes dos mais pobres. A
rejeição do Tratado Constitucional Europeu por franceses e
holandeses mostra que, ao fim, a lógica elitista acaba sendo
contraproducente ao próprio processo de integração. As
dificuldades que a Petrobras enfrenta na Bolívia e no Equador são
outro lembrete dos obstáculos que surgem quando os interesses da
população são postos de lado.
Assim sendo, o desenvolvimento como integração tem um
compromisso fundamental com a expansão da democracia e a
preservação dos direitos humanos. Mecanismos como a cláusula
democrática do Mercosul e as instâncias jurídicas da OEA mostram a
importância das organizações regionais para avanços nesses campos.
Quais seriam as maneiras de se estimular e pôr em prática
reflexões e políticas públicas inspiradas na perspectiva do
141
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
desenvolvimento como integração? O primeiro passo é aproveitar
os espaços institucionais já existentes, ampliando seu escopo e sua
abertura à participação dos cidadãos. O Fórum Consultivo
Econômico e Social do Mercosul é um campo prioritário para esta
ação, bem como a Comissão Parlamentar Conjunta. Ambos podem
ter uma atuação bem mais decisiva na discussão de propostas que
tratem dos grupos mais desfavorecidos, como povos indígenas e
imigrantes ilegais, em especial cidadãos andinos que tentam a sorte
nos vizinhos mais ricos do Cone Sul.
O segundo passo é a criação de instituições. Algumas já foram
sugeridas pelos próprios governos, como o parlamento sul-americano
e o instituto monetário. O campo da cultura oferece diversas
possibilidades instigantes, como exemplifica a recente estréia da
Telesur. Por que não expandir a cooperação para as esferas do
mercado editorial, do cinema, da imprensa e das universidades?
Incentivos fiscais e bolsas de estudo são maneiras de pôr em prática
estas propostas.
A história brasileira também oferece soluções. O apelo de
Jaguaribe por um novo projeto de desenvolvimento coloca em
questão a possibilidade de fundação de um órgão semelhante ao Iseb,
dedicado a pesquisas para o desenvolvimento da América do Sul. Este
centro funcionaria como um think-tank regional, atuando como auxiliar
da secretaria técnica do Mercosul e também em parcerias com
governos, universidades, empresas e organizações internacionais como
OEA, Cepal e BID.
Neste momento, a perspectiva do desenvolvimento como
integração ainda é um embrião do que pode vir a ser um projeto
regional-desenvolvimentista. Antes disso, ela precisa ser enriquecida
e debatida pelo meio universitário, pelos movimentos sociais e pelos
funcionários públicos envolvidos com o processo de integração sul-
americana. Desses centros dinâmicos, talvez ela possa se consolidar e
um dia ser incorporada aos programas político-partidários, na criação
142
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
de um novo projeto nacional para o Brasil. Na definição de Rubens
Ricupero:
Alguns confundem “projeto nacional” com “projeto autárquico”,
como foi a empreitada estalinista nos anos 1930. Em realidade,
“projeto nacional” é algo mais simples: é a idéia que cada povo e
seus dirigentes fazem do seu futuro, um pouco o que eles gostariam
de ser quando crescessem. (Ricupero, 2001: 89)
Substitua-se “nacional” por “regional” e teremos o que o
embaixador chama de “visão integradora das estratégias”, desta vez
voltada para a América do Sul.
4.3 – Resumo
O modelo do Estado desenvolvimentista esgotou-se, mas as
medidas liberais também foram frustrantes em seus resultados. Qual
é a saída para o impasse? As propostas mais promissoras são no sentido
de ir além do enfoque nacional e conceber a América do Sul como
um todo, para diminuir a vulnerabilidade externa dos países, ampliar
os mercados consumidores, promover a economia de escalas nas
empresas, incentivando sua transnacionalização e seu acesso às
matérias-primas e fontes de energia.
Na perspectiva do desenvolvimento como integração, é preciso
criar mecanismos e instituições para a incorporação dos setores mais
pobres da população aos processos regionais. O crescimento
econômico é condição necessária, mas não suficiente, de uma
abordagem ampla do desenvolvimento, centrada na melhoria da
qualidade de vida, das capacidades individuais e da preservação do
meio ambiente.
Num primeiro momento, esse projeto mantém-se como uma
perspectiva de reflexão e de debate num círculo ainda restrito, que
143
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
pode no futuro vir a alimentar os partidos políticos e as discussões
sociais mais amplas.
5 – Conclusões
Nos últimos cinqüenta anos, a política externa brasileira passou
por grandes transformações no que toca às relações brasileiras com
o resto da América do Sul. O entorno regional deixou de ser um
espaço secundário para o Brasil e se tornou primordial na estratégia
de inserção externa num mundo altamente competitivo. Para que o
país mantenha sua posição de global trader e continue a desempenhar
liderança expressiva entre os países em desenvolvimento, é preciso
que aprofunde o processo de integração regional.
Como foi examinado neste ensaio, não se trata de um percurso
que se faça em linha reta, de maneira constante e sem interrupções.
Pelo contrário, a trajetória do Mercosul é marcada por impasses, crises
e momentos em que seus principais parceiros pensaram em voltar atrás.
A experiência fracassada da Alalc é um lembrete de que a
integração regional não é irreversível e pode naufragar em
circunstâncias políticas e econômicas adversas. O ponto mais delicado
desse por vezes frágil equilíbrio é o relacionamento entre o Brasil e a
Argentina. Sem entendimento entre os dois países, as iniciativas de
integração estão de antemão condenadas ao fracasso.
Além da necessidade de boa diplomacia entre Brasília e Buenos
Aires, a história destaca a importância de outros dois fatores cruciais
para a integração: democracia e liberalização econômica.
Os regimes ditatoriais que proliferaram no passado recente da
América do Sul marcaram as relações internacionais do continente
com o espectro da desconfiança, da agressividade e por vezes mesmo
da guerra. A lógica da integração passa por mais abertura e
transparência, o que a antagoniza com a estrutura do poder
autoritário.
144
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
Os impressionantes resultados obtidos pelas democracias do
Brasil e da Argentina na área nuclear e na formação de uma zona de
paz no Atlântico são um marcante contraste com o legado de
rivalidades e disputas territoriais deixados pelos regimes militares dos
dois países.
A liberalização econômica é o outro fator-chave. As novas
circunstâncias internacionais do fim do século XX, com o aumento
da globalização e da competição, impulsionaram os países sul-
americanos em seu processo de integração. A fragilidade externa
derrubou as resistências empresariais e burocráticas à diminuição do
protecionismo que caracterizou o modelo desenvolvimentista
anterior.
As intensas pressões pró-liberalização do FMI, do Banco
Mundial e da Organização Mundial do Comércio convenceram
muitos sul-americanos de que a adequação ao novo paradigma era
inevitável, ou que a recusa traria custos muito altos. Embora se possa
questionar o grau dessa afirmação, o consenso liberal ajudou na
formação do Mercosul, sobretudo na fase inicial, de consolidação.
O processo de integração também trouxe novas tensões para o
Brasil. Como o país irá exercer sua inquestionável liderança regional,
oriunda de seu peso político e econômico? Os riscos são a
exacerbação das disputas com os EUA, em especial na conturbada
área andina. E também a tentação imperial de se aproveitar da
fragilidade dos Estados vizinhos. Os conflitos nos quais estão
envolvidas as transnacionais brasileiras com atuação no continente,
inclusive estatais, são um alerta do que pode ocorrer em maior escala.
Há que se levar em conta também o quadro ruim do
desempenho econômico e social da maioria dos governos sul-
americanos. Estagnação do crescimento, corrupção generalizada,
sistemas políticos pouco representativos e choques constantes com
a sociedade civil mobilizada fazem parte do cotidiano de muitos povos
do continente.
145
D
ESENVOLVIMENTO COMO INTEGRAÇÃO
Os maiores riscos estão na região andina, com o caso da
Colômbia e da Bolívia apontando para perigos concretos da dissolução
do Estado e do aumento do poder do crime organizado e de
movimentos armados, que ameaçam a segurança regional e trazem o
envolvimento de atores extracontinentais, como os EUA.
É preciso transformar a necessidade em virtude e fazer do
processo de integração uma força decisiva para consolidar a
democracia e o desenvolvimento. Trata-se da teoria do dominó, mas
aplicada em lógica diversa daquela da Guerra Fria. A chave passa pela
cooperação e pelo contágio do crescimento e do desenvolvimento,
com iniciativas bem-sucedidas em um país que serve de exemplo para
outras nações da região.
Dar o salto para o desenvolvimento regional será difícil e requer
enorme dose de imaginação política. É preciso romper com uma
tradição desgastada de autoritarismo e marginalização social.
Entretanto, há um sentimento generalizado de que a América do Sul
precisa dessa ruptura. Vinte anos de crise do modelo econômico,
seguidas da aplicação por vezes descuidada do receituário liberal,
mantiveram o continente fora da prosperidade global que foi
capturada pelas economias mais dinâmicas do Leste da Ásia, como a
China, a Índia e os Tigres.
O 11 de setembro acelerou um processo de recomposição do
sistema internacional, que oferece possibilidades interessantes para
os sul-americanos. Os EUA tentam expandir pela força das armas
sua esfera de influência no Oriente Médio, e esbarram nas dificuldades
do relacionamento com os aliados europeus e com as condições
restritivas da economia internacional.
A América do Sul está fora dos principais campos de batalha
do mundo contemporâneo, mas esse relativo isolamento dá forças
ao Brasil para exercer uma política externa mais afirmativa, como
ocorreu em momentos semelhantes no passado – por exemplo, as
décadas de 30 e 70. As necessidades das economias asiáticas por
146
M
AURÍCIO SANTORO ROCHA
matérias- primas, produtos agrícolas e energias oferecem um bom
campo de negócios e a alta demanda é em boa parte responsável pelo
boom das exportações dos sul-americanos nos anos recentes.
Essas divisas podem desempenhar importante papel na
formulação de nova estratégia de desenvolvimento, impulsionando as
obras de infra-estrutura para integrar a América do Sul, ou financiando
projetos de pesquisa e melhoria da educação, ciência e tecnologia.
Os atores em ascensão no sistema internacional também podem
auxiliar o Brasil nas negociações dos fóruns multilaterais. A formação
do G-20 na OMC é o principal exemplo do potencial dessa estratégia,
bem como as articulações na Organização das Nações Unidas pela
ampliação do Conselho de Segurança e pela reafirmação da agenda
social da ONU.
Embora os sinais para a formulação de um modelo de
“desenvolvimento como integração” sejam muito positivos, ainda não
chegou a hora de essa perspectiva se consolidar como um projeto político-
partidário, a ser implantado e convertido em política pública. É necessário,
ainda, que as idéias amadureçam, sejam discutidas pelos setores interessados
e testadas de maneira inicial por meio de propostas incipientes.
Contudo, não se deve menosprezar a força e a influência dos
modelos intelectuais, por mais abstratos que pareçam. A experiência
da Cepal e do Iseb ilustra a importância de formulações claras para a
opinião pública e os partidos políticos. Como os isebianos gostavam
de dizer, não existe desenvolvimento sem ideologia do
desenvolvimento. A questão contemporânea é pensá-la num
arcabouço regional que dê conta da América do Sul.
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