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Presença
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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim
Secretário-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo
A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das
Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional
e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública
nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira.
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo, Sala 1
70170-900 Brasília, DF
Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847
Fax: (61) 3411 9125
Site: www.funag.gov.br
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Brasília, 2008
Hugo Gouthier
Presença
Copyright ©, Fundação Alexandre de Gusmão
Equipe Técnica:
Maria Marta Cezar Lopes e
Lílian Silva Rodrigues
Projeto gráfico e diagramação:
Cláudia Capella
e Paulo Pedersolli
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo
70170-900 Brasília – DF
Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847/6028
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Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n° 10.994, de 14.12.2004.
Gouthier, Hugo.
Presença / Hugo Gouthier.
– Brasília : Fundação Alexandre de Gusmão, 2008.
344 p.
ISBN: 978-86-7631-099-0
1. Gouthier, Hugo – Biografia. 2. Política externa – Basil. I. Título.
CDU: 929(81) Gouthier, Hugo
CDU 327(81)
Impresso no Brasil 2008
“O nome deste livro - Presença - não podia ser outro.
Esta palavra é uma das marcas de Hugo Gouthier,
imagem humana da presença. Presença em todos os
setores da vida e da inteligência, inclusive no amor do
mundo e do que ele inspira esteticamente. As duas coisas
fizeram dele um colecionador das aparências da terra e
do que delas o artista pode sacar. É assim um globe-
trotter e um fino colecionador dos quadros essenciais da
pintura moderna - com que ele adornava as sedes das
missões que chefiou...”
Presença
Desejo consignar os meus agradecimentos à D.
Leonor Basères pela cooperação que me deu no
preparo de todo o livro, com a sua reconhecida
competência e dedicação.
Agradeço também a Virgílio Moretzsohn Moreira,
pela ajuda inicial que me prestou, e a Paulo Pinheiro
Chagas, Odyr de Andrade, José Thomas Nabuco
Filho, Embaixador José Sette Câmara, Embaixador
Roberto Assumpção e Maria de Nazaré de Kós
Miranda Marques pelos subsídios que me
proporcionaram.
Sumário
Apresentação ...................................................................................... 11
Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima
Prefácio ............................................................................................... 17
Guilherme Figueiredo
Introdução........................................................................................... 25
As Minhas Revoluções Liberais.......................................................... 35
Ciranda Mineira ................................................................................. 51
O Encontro e o Choque com o Mundo............................................... 67
Washington - 1939 ............................................................................... 79
Pearl Harbor ....................................................................................... 89
A Última Ofensiva de Hitler .............................................................. 95
Admirável Mundo Novo................................................................... 115
Diplomacia em “D” Maior ............................................................... 125
Os Anos Dourados do Rio ................................................................ 133
Lembranças de Família..................................................................... 149
No Reino de Persépolis .................................................................... 159
Legenda Prejudicada pelo Recorte.................................................... 177
Os Estados Unidos da América do Norte......................................... 181
O Início da Desburocratização ......................................................... 221
O Tempo Reencontrado ................................................................... 227
Em Busca de Novos Mercados para o Brasil..................................... 245
Em Roma como os Romanos ............................................................ 253
Cassado pela Revolução ................................................................... 299
O Museu de Arte Moderna (MAM) .................................................. 313
Iconografia ........................................................................................ 325
Apresentação
Embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima
13
Foi muito honrado e com grande emoção que recebi o
convite do Embaixador Jeronimo Moscardo de Souza, Presidente
da Fundação Alexandre Gusmão, para apresentar um prefácio à
reedição do Livro Presença, autobiografia do Embaixador Hugo
Gouthier de Oliveira Gondim.
O Embaixador Hugo Gouthier foi o meu primeiro chefe
no exterior quando ainda Segundo Secretário, integrei sua equipe
na Embaixada do Brasil em Roma que curiosamente foi o meu
primeiro posto no exterior e o último, pois foi lá juntamente que
encerrei a minha carreira.
A experiência de servir com o Embaixador Gouthier foi
inesquecível e aprendi muito dos segredos da profissão com Sua
Excelência. O Embaixador Gouthier não era um diplomata
convencional. Sempre me distinguiu com sua amizade e
consideração. Recordando sempre a nossa condição de mineiros.
Ele exercia a diplomacia da maneira mais qualificada e sofisticada,
tinha geralmente uma excelente situação local sem descuidar sua
retaguarda brasileira e sem perder os seus traços brasileiríssimos,
tendo sempre um prazer indisfarçado de abrir as portas de sua
Embaixada aos compatriotas de passagem.
Apresentação
Hugo Gouthier
14
Pude entender em Roma a plenitude dessas qualidades
pois circulava com o mesmo desembaraço nos palácios da nobreza
romana quanto nos círculos de poder brasileiro.Essa dualidade lhe
conferia um prestígio singular pois uma das lições que eu aprendi
foi a de que um bom diplomata tem que saber desempenhar as
funções clássicas de informar, representar e negociar com igual
importância.
Entendi também que em termos de governo perante o
qual o agente está acreditado a capacidade de influir em seu país de
origem é quase tão relevante quanto a representação local e o
Embaixador Gouthier conseguiu sempre dar demonstrações de seu
imenso prestígio internacional e nacional.
O sentido de oportunidade era também uma das suas
qualidades mais salientes. Lembro-me que quando soube por meio
de seus contatos em Roma que a família Doria Pamphili precisava
de liquidez para fazer face aos compromissos fiscais decorrentes
de sucessão. Não hesitou em procurá-la para justamente fazer uma
oferta sobre um dos bens mais prestigiosos daquela família. O
Palácio Pamphili , onde já estava instalada desde os anos 20 , a
Embaixada do Brasil.
A proposta foi aceita e o Brasil pode contar uma sede em
Roma com 15 mil metros quadrados e 108 metros de testada sobre
a Piazza Navona. Bastaria esta transação para consagrar a carreira
do Embaixador Gouthier.
Infelizmente a realidade foi outra e a maledicência e a
inveja não perdoariam o sucesso profissional do Embaixador
Gouthier que acabou punido pela Revolução sendo obrigado a
encerrar sua brilhante carreira. Quem perdeu foi o Brasil.
15
Presença
Recordo-me também pelo seu amor dos assuntos
culturais. Viveu na Europa na época da guerra, e pôde assim
aproveitar boas chances de adquirir importantes obras de arte, que
o acompanharam durante quase toda a sua vida.
Lamentavelmente teve que se desfazer da maior parte delas
para se sustentar depois da punição injusta que lhe foi imposta.
Já me referi a excelente situação internacional que
desfrutava o Embaixador Gouthier. E a melhor evidencia disso foi
a missão que lhe conferiu o Presidente João Goulart , cujo governo
estava longe de poder ser considerado pró-americano. Em um
momento crítico o Presidente João Goulart designou o
Embaixador Gouthier para se deslocar a Washington e explicar as
posições de seu governo ao então o Presidente Kennedy de quem
Gouthier se tornara amigo ainda nos anos 30, quando era um
simples Conselheiro da Embaixada do Brasil.
Quem se decidir a pesquisar a vida da fascinante
personalidade de Hugo Gouthier terá que se deter extensamente
sobre o papel que sua esposa Laïs desempenhou em sua vida.
Laïs é modelo de mulher , mãe e Embaixatriz
verdadeiramente excepcional, e soube representar como ninguém
o nosso país onde Gouthier foi acreditado.
Foi na minha opinião um dos mais completos
profissionais com que contou o Itamaraty em todos os tempos.
Servir na sua Embaixada era uma permanente lição de
profissionalismo, de civismo e de amor à pátria.
Foi um grande homem.
Prefácio
Guilherme Figueiredo
19
Vou quebrar uma promessa: a de não escrever prefácios
enquanto for irmão de presidente da República. Quebro-a por
dois motivos: porque Hugo Gouthier é meu amigo e porque o
seu livro é importante. A primeira razão não valeria se Presença
não me agradasse; a segunda me salva o amigo, que me escreveu:
“Ficar-lhe-ei grato se fizer o prefácio. Você sabe que não o escolhi
por ser irmão do Presidente da República e sim pelo seu valor
intelectual. A nossa amizade antiga de muitos anos, de Nova York,
Paris e Rio de Janeiro, se vincula a essa escolha e, se aceita por
você, só será para mim motivo de alegria.” O livro é bom, o amigo
é bom, a vaidade é boa. Escrevo o prefácio.
Escrevo-o também porque já lá se vão uns vinte anos ou
mais, afirmei que dá azar ser inimigo de Hugo Gouthier. Ele nada
faz contra os inimigos, se os tem, essa pérola de homem. Nasceu
com o dom cristão de amar o próximo, qualidade utilíssima na
diplomacia, embora poucos saibam exercê-la além da
obsequiosidade. Lembro-me de Assis Chateaubriand, paralítico e
torto como uma árvore moribunda, a dizer-lhe, em Paris, através
da enfermeira intérprete, no avião que o levava a Moscou numa
derradeira esperança de cura: “As revoluções escolhem como vítimas
Prefácio
Hugo Gouthier
20
as melhores pessoas...” Hugo Gouthier foi vítima de sua velocíssima
capacidade de realizar. Seu espírito público, certo ou errado, mas
sincero, nos fez perder um dos nossos melhores diplomatas.
Gouthier não se tornou amargo: o seu livro, sem uma palavra de
rancor, nos comove justamente por isso: é uma afirmação de amor
à vida, à profissão, ao país.
Gouthier é gravado em trinta e três e tocado em setenta
e oito. Trepidante, saltitante, aflito. Quando o conheci, repórter
de oposição quando o colega dos Diários Associados era também
oficial de gabinete do Ministro Capanema, não imaginaria que sua
gentileza, sua prestimosidade, sua inteligência o levassem à
diplomacia. Seria um político, um político sagaz, um vitorioso
político, hábil o bastante para equilibrar-se no avanço e recuo das
ondas. Nada disto. Depois fui encontrá-lo várias vezes em Nova
York, em épocas em que ali se agitava, permanente ou de passagem,
a fina flor do Itamaraty: Dora Vasconcelos, Roberto Campos,
João Araújo Castro, Mário Vieira de Melo, David Silveira da
Mota, Luiz Bastian Pinto, Roberto Assunção, Carlos Alfredo
Bernardes, Sérgio Frazão, João Frank da Costa, Vasco Mariz,
Hélio Scarabotolo, Sizínio Pontes Nogueira, Marcos Romero, e
aqui paro certo da injustiça das omissões. O redator-publicista
que eu era então deu-se ao luxo de convidar o nosso Cônsul-Geral
para um almoço - e pagar. Parece que não estava nos hábitos dos
nossos diplomatas consentir que alguém lhes pagasse o almoço.
Resignavam-se a esse pedágio. Talvez o meu gesto me permitiu
depois conhecer os Modigliani de Hugo Gouthier em seu
apartamento. Ganhara eu o privilégio de ser recebido pelo grupo
mais sofisticado de funcionários públicos brasileiros, os diplomatas,
21
Presença
sempre munidos de uma informação, de uma frase de espírito,
sempre acolhedores (desde que não lhes tocassem nas disputas da
carreira).
Mais tarde percebi que um diplomata em Nova York, em
Paris, em Roma, em Lisboa é quase sempre também um trabalhador
em causa própria: é quem revela a Cidade a ministros, deputados,
senadores, cientistas, artistas - e a futuros ministros, deputados,
senadores, cientistas, artistas. É a isto que um patife que me cultivou
longo tempo chamaria “jogar na baixa”. O diplomata pode escolher
o patrício por sua posição econômica, social, política; mas pode
também escolhê-lo porque nele descobre afinidades de espírito acima
do consumo ao redor. Acolher o viajante bisonho é dar-lhe para
toda a vida a recordação de momentos inefáveis diante da Mona
Lisa ou de Zizi Jeanmaire, da Bastilha ou do escargot, da Estátua da
Liberdade ou da Sainte Chapelle, o que não deixa de ser um
investimento. Mas fazê-lo pelo esporte de criar amigos, o Xá do Irã
ou Louella Parsons, o menino John Kennedy ou Zsa Zsa Gabor, o
colega do fundo da redação ou o moço do elevador, é requinte de
que só não louvo a paciência. Gouthier cultiva o patrício não para
tornar-se colunável: muitas vezes para ensinar-lhe discretamente o
talher do camarão, a roupa escura do coquetel, os dos e os don’ts da
conversa na qual o turista brasileiro quase sempre se dá mal. O
talento de muitos dos nossos diplomatas consiste em policiar
discretamente a gaffe, sabedores de que o único produto brasileiro
ainda não gravoso é a gaffe. Gouthier salvou muitos ilustres
brasileiros de muitas gaffes ilustres.
Valeria a pena observar: esse dom do desembaraço nos
salões diplomáticos, o cultivo de amizades, a solicitude para
Hugo Gouthier
22
disfarçar as tolices alheias, a habilidade do bon mot no momento
exato são qualidades mineiras. O mineiro é o mais universal dos
brasileiros, mais que o bem falante paraense, o elegante
pernambucano, mais que o viajado cearense, mais que o tonitruante
gaúcho, mais que o perorante bahiano, mais que o provinciano
paulista. Cito os que melhor pude observar em suas generalizações
canhestras, em seus arroubos patrióticos, em suas comparações
despropositadas. O mineiro sai da toca de suas montanhas e vai
para a Europa, omite-se por um tempo, torna-se invisível, continua
falando baixinho, continua ouvindo com um sorriso - e desabrocha
em gentleman. Se regressa a Minas volta a ser o discreto mineiro,
para não magoar os coestaduanos. Se gira fora do país, acaba
discutindo Picasso com propriedade, gostando de Marie Laurencin,
ouvindo em Bayreuth e Salzburgo, gostando de encadernações e
de marrons glacés, fazendo uma política educadamente felina e
diplomacia civilizada, escrevendo limpo e discursando dentro da
clave. Vejam Afonso Arinos, Santiago Dantas, Oto Lara Resende,
Maria José de Queiroz, Pedro Nava. Vejam a História do Brasil.
Pois o mineiro Hugo Gouthier tornou-se, como todos
nós, carioca; e, quando diplomata, tornou-se universal. Sua
capacidade de angariar amigos nos deu um Nova York um
Consulado-Geral à altura do país, em Bruxelas uma Embaixada
digna de admiração, em Roma um palácio admirável. Deu-nos o
êxito em negociações árduas. Vestiu-nos de prestígio.
Posteriormente, encontrei-o no exílio, sem uma palavra de rancor.
Nenhum jornal (e Gouthier tinha a imprensa francesa em sua sala
de visitas) publicou uma palavra de lamento contra a injustiça.
Vendeu os seus quadros queridos, o seu apartamento acolhedor.
23
Presença
Pediu-me que mandasse a meu irmão, em 1965, sua defesa e
documentos de sua vida funcional. “Peço que você mande estes
papéis a seu irmão, não para que revelem o ato que me atingiu,
mas porque desejo deixar a meus filhos um nome honrado.”
Trabalhou para sustentar-se. Prosperou graças ao trabalho, aos
amigos que conseguira para o Brasil. Escreveu um livro simples,
generoso, digno. Hugo Gouthier tem seu nome numa rua nos
Estados Unidos. E uma avenida no meu coração.
Introdução
27
Não foi assim, de repente. Não amanheci um belo
dia inspirado e decidido a escrever a história da minha vida.
Nem foi um projeto longamente acalentado que me impunha
e ia adiando. Aconteceu, simplesmente. Como uma nova
etapa, natural e lógica, desse lento e incoerente processo que
é o viver.
Um belo dia, isso sim, folheando anotações, percebi
que era chegada a primavera e as minhas recordações
desabrochavam já sob a forma sincera e despojada deste pequeno
livro.
Paro um instante, hesito. Sincero fui e serei sempre,
mas posso jurar-me verdadeiro? Depende do conceito de verdade,
se a óbvia, superficial e consciente, se a que emana incontrolável
de camadas mais secretas e profundas. Pois a memória, ninguém
duvida, é um poço de ilusões. Traiçoeira, seletiva e parcial, não
vacila em preencher seus vazios com furtivos empréstimos da
imaginação. Por mais que me defenda e acautele, estarei a salvo
de suas armadilhas sedutoras? Serei capaz de impedir que
aflorem sonhos e desejos submersos? Não importa. Como já
dizia o velho pensador italiano - Giambattista Vico - “o critério
Introdução
Hugo Gouthier
28
da verdade é o tê-la fabricado”. E as fantasias podem muito bem
ser o elo indispensável à reconstrução do homem inteiro.
Feito esse reparo honesto, posso me dedicar a cumprir
o meu impulso atávico e sentar-me ao redor do fogo. E, enquanto
aprecio a dança das labaredas - como fez o homem desde os
tempos imemoriais das cavernas - tentarei alinhavar em palavras
os meus feitos, dividir a minha experiência e visão do mundo,
cantar as minhas guerras, confessar os meus amores.
Talvez eu esteja apenas falando sozinho no escuro para
afugentar o medo. Tentando lutar contra a morte adquirindo
uma certa ilusão de permanência e desagravo; procurando
recuperar um passado que, quando era experiência vivida - e
sentida na carne e na alma - de tão intenso e inebriante parecia o
caos.
A vida vivida - em sua vertiginosa complexidade e
imprevisibilidade - carece de ordem e coerência, da perspectiva
que permite determinar a hierarquia das coisas e dos fatos, o
valor das pessoas, o efeito e as causas, os vínculos entre as ações.
A vida relembrada - no silêncio da distância - é um
desenho passado a limpo, de planos harmoniosos e contornos
definitivos no conjunto e nos mínimos detalhes.
Repenso a minha vida com prazer e com saudades. Mas
sem o menor saudosismo. Uma das coisas que mais me irritam
é ouvir alguém dizer “no meu tempo” referindo-se à sua
juventude. Como se a juventude fosse o único território digno
e glorioso, e o resto da vida um arrastar de penas e vergonha. O
meu tempo é o tempo todo em que eu estiver presente,
respirando, ocupando o meu espaço, divertido como um
29
Presença
espectador, ansioso como um cúmplice. Levo novamente a taça
a uns lábios mais sábios e o seu sabor - sutil e depurado - conjura
os meus demônios, libera-me as mãos.
Escrevo a minha história, modestamente, porque não
poderia deixar de escrevê-la, pequeno espelho que sou de um
século fascinante. O mais fabuloso, trágico e belo de toda a
história da humanidade. O que vai dos bondes de burro às naves
espaciais; do obscurantismo em todas as áreas, ao
questionamento e conseqüente reformulação técnica, científica
e ideológica que permitirá ao homem, estou absolutamente
confiante, a conquista definitiva desse planeta amável, baseada
no direito, no respeito e na esperança.
Em 70 anos, fui testemunha ocular de transformações
tão radicais que normalmente exigiriam séculos. Mas longe de
mim tentar retratar a vertiginosa evolução do pensamento
moderno. Posso apenas entregar-lhes a minha vida e deixar
perceber como nela se refletiu o que vi e vivi. A vida de um
menino nascido no bucólico Estado de Minas, sem dinheiro,
sem família poderosa ou talentos geniais, que saiu pelo mundo
afora trabalhando duro para o seu país, relacionando-se com as
pessoas mais interessantes da sua geração.
Eu devia ter uns sete anos, e jogava bola de gude em
Dores do Indaiá, quando um tal de Sigmund Freud publicou
um estranho livro chamado Introdução à Psicanálise provocando
no mundo uma comoção que, obviamente, não chegou até mim.
Aos 11 anos, no Ginásio Mineiro, um professor me informou
que um judeu alemão, de nome Albert Einstein, recebera o
Prêmio Nobel de Física por trabalhos que não alcancei a
Hugo Gouthier
30
compreender. Aos 15 anos, tomei conhecimento de que um
russo meio louco, chamado Eisenstein, revolucionava o cinema
com um filme incrível, o Couraçado Potemkin. E que um inglês,
muito engraçado, Bernard Shaw, conquistava os lauréis máximos
de literatura, enquanto um espanhol desvairado, Pablo Picasso,
superando o surrealismo, estabelecia definitivamente a dignidade
da arte abstrata.
Minha adolescência terminou abruptamente aos 17
anos, quando meu pai morreu, e eu fui obrigado a trabalhar.
Nessa época, até os jornais de Minas abriam manchetes para o
aviador solitário, Charles Lindbergh, que conseguira voar sem
escalas de Nova York a Paris.
O famoso quadro Guernica que ora voltou aos
domínios da Espanha, depois de um longo reinado no Museu
de Arte Moderna de Nova York, foi pintado em 1937, no tempo
em que eu trabalhava no gabinete do Ministro Gustavo
Capanema e os americanos inventavam o primeiro computador,
o Mark I.
Em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, eu me
preparava para assumir o meu posto numa Londres submetida
a desesperado bombardeio quando me caiu nas mãos o livro O
Ser e o Nada, no qual o jovem filósofo Jean-Paul Sartre lançava
o seu grito existencialista.
Foi em 1949, e eu era Primeiro-Secretário em
Washington, que estourou a notícia da vitória de Mao Tsé-tung
e da implantação do comunismo na China. Meses depois, eu era
Chefe do Cerimonial do Marechal Dutra e o matemático,
filósofo e sociólogo inglês, Bertrand Russell, ferrenho opositor
31
Presença
das armas nucleares, era agraciado com o Prêmio Nobel da Paz.
O mesmo que, dois anos mais tarde, seria conferido a Albert
Schweitzer, o romântico médico violinista que dedicava sua vida
aos leprosos do Gabão, no hospital de Lambarène. Notícia que
li no avião que me levava, como Ministro Plenipotenciário, para
Teerã.
Em 1959, eu trabalhava em Bruxelas, febrilmente, para
a instalação do pavilhão do Brasil na Exposição Universal
quando os russos lançaram o Sputnik, o primeiro satélite
artificial. Mas só em 1961, Embaixador do Brasil em Roma,
ocupado com a restauração do Palácio Doria Pamphili, soube
pela boca de Gagarin que a Terra é azul...
Se o mundo, em poucos decênios, passou por uma das
mais complexas e profundas transformações da sua história, o
Brasil não ficou alheio a essa revolução.
Numa época cada vez mais interdependente, que
aproxima todos os rumos e anula distâncias físicas o Brasil
também se viu envolvido pela revisão e mesmo pela explosão de
valores que a tudo atingiu, transfigurando os mais diversos
setores da atividade e do pensamento humanos.
Parte essencial da nacionalidade, vertente profunda de
nossos anseios históricos, ponto de encontro de todas as regiões
do país, a minha província mineira igualmente passou por
dramática evolução, que implica a arte de adaptar-se aos novos
tempos, sem deixar dissipar-se o velho patrimônio de uma
tradição cultural ainda válida porque permanentemente viva.
Eu muito me orgulho de ter contribuído - colaborando na
fundação da Companhia Vale do Rio Doce - para o
Hugo Gouthier
32
desenvolvimento e a modernização de Minas dentro do ideal
dos Inconfidentes que se contrapunha à exploração predatória
dos seus recursos minerais.
Hoje, com a crise do petróleo, o Brasil luta
estoicamente para equilibrar a sua balança de pagamentos e
estabilizar o nosso cotidiano político e econômico. Mas sei que
vamos vencer, superar todas as nossas dificuldades, porque
acredito na fibra dos brasileiros e acredito no Presidente
Figueiredo.
Considero-o o Presidente de todos os brasileiros. O
que ele está fazendo em favor do país é algo de extraordinário.
Abraham Lincoln costumava dizer: “Todo mundo pode sofrer
agruras, mas se quiser testar o caráter de alguém, dê-lhe o
poder.”
O Presidente João Batista Figueiredo já provou não só
o caráter que tem, como a visão humana e tranqüila de um
verdadeiro democrata. Um homem que gosta de dialogar, busca
o diálogo e nem sempre é compreendido, como me declarou no
curso de uma audiência que me concedeu no Palácio do Planalto:
“Antigamente me criticavam porque eu não ria. Agora, eu rio e
eles estão achando que eu não devo rir. Mas o meu estilo é este.”
Servi ao Brasil com afinco e dedicação e, ao final de 25
anos de carreira diplomática, como prêmio, fui cassado por
motivos políticos. Sofri mas não me deixei amargurar.
Diminuídos ficaram os que tentaram me contagiar com a sua
própria maldade.
Estou aqui, inteiro, incólume. A tempo de presenciar
o ressurgimento do meu país guiado pelas mãos seguras de um
33
Presença
grande Presidente da República. E, quando vejo alguém tentar
dificultar o processo de redemocratização, lembro-me das
palavras de Kennedy: “Antes de perguntar o que o seu país deve
fazer por você, pergunte o que você mesmo pode fazer pelo seu
país.”
Rio de Janeiro, 15 de março de 1982
Hugo Gouthier de Oliveira Gondim
As Minhas
Revoluções Liberais
37
Três de outubro de 1930. Tenho a impressão de que vivi
um século naquele dia, de tal maneira ficou-me gravado na
memória, minuto por minuto, detalhe por detalhe. Até hoje, se os
ventos estiverem favoráveis, o céu claro e a visibilidade boa, posso
fechar os olhos e rever os rostos tensos, ouvir trapos de frases.
Na completa escuridão, o silêncio era quase total.
Forçando o ouvido podia-se perceber um ou outro ruído abafado
e distante, o entreabrir cauteloso de uma porta, ecos longínquos
de um despertador. Afundei a cabeça no travesseiro e tentei conciliar
o sono novamente. Impossível combater a onda de ansiedade e
energia a percorrer-me o corpo. Impossível continuar ali, inerte, à
espreita, quando talvez um novo Brasil já explodisse lá fora. Aquele
Brasil tão sonhado que nós, os jovens, iríamos finalmente colocar
em movimento, revitalizar. Aquele Brasil justo, sério e dinâmico.
Um país forte, de verdade.
Sabíamos que a revolução estava para eclodir a qualquer
momento. Ninguém suportava mais a política de Washington Luís
que Júlio Prestes ameaçava perpetuar. Tínhamos estado contra ele
na Aliança Liberal, apoiando o nome de Getúlio Vargas. Antes,
ainda, tínhamos lutado contra os processos vigentes com a bandeira
As Minhas Revoluções Liberais
Hugo Gouthier
38
erguida por Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, na campanha
pelo voto secreto.
No salão de refeições deserto, Pedro, o velho garçom,
terminava de arrumar as mesas do café. Acolheu-me com divertida
surpresa:
– Como é, doutor, noto que está muito preocupado hoje.
– Sim, Pedro, na verdade estou. E ouça o que lhe digo:
até o fim do dia talvez muita gente vá ficar mais preocupada do
que eu.
As luzes da rua ainda estavam acesas quando saí do Grande
Hotel. Levantei a gola do paletó e enfiei as mãos nos bolsos. E fui
andando em direção à Chefatura de Polícia, distante apenas algumas
quadras. Fui andando devagar, saboreando a descoberta daquela
estranha cidade deserta e adormecida. Dividido entre uma grande
sensação de posse e uma grande sensação de perda. Como se aquelas
ruas todas fossem minhas e eu as deixasse sempre assim, vazias, à
minha espera. Ruas que, àquela hora, eram apenas os meus caminhos
da madrugada, da volta das minhas expedições boêmias.
A Chefatura de Polícia ainda estava fechada. Para evitar
explicações inúteis ao sonolento guarda, resolvi dar umas voltas
para passar o tempo. Pensei em Fábio de Andrada e Olavo Bilac
Pinto, revolucionários como eu, eles eram dos bons amigos, colegas
de faculdade e companheiros da minha primeira luta política: a
campanha do voto secreto. Lei desde 1927, o voto secreto continuou
no papel até 1929. As eleições continuavam a ser fraudadas,
vergonhosamente, pelo voto de cabresto, pela chamada eleição a
bico de pena. Bastava olhar para a fila de eleitores, cada um com a
sua cédula na mão – de cores e tamanhos diferentes – para saber
39
Presença
com uma margem mínima de erro o resultado do pleito. O
Presidente Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, pai de Fábio,
rebelava-se contra essa prática ignóbil que violentava a vontade
popular. Contrariando a maioria dos políticos, useiros e vezeiros
no conchavo eleitoral, pôs-se em campanha a favor do voto secreto,
convocando para tanto a liderança estudantil de Minas. No
idealismo e entusiasmo da idade – eu era presidente do diretório
do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito de Minas –
aderimos incondicionalmente. Fábio de Andrada, Olavo Bilac
Pinto, José Monteiro de Castro, Newton de Paiva, eu e tantos
outros organizamos caravanas de esclarecimento à opinião pública
com as quais percorremos praticamente todo o Estado de Minas.
Em Belo Horizonte, centro da vida política, organizamos
memoráveis e longuíssimas manifestações cívicas na Praça Sete. Mas
precisávamos de um teste para mostrar a todo o Brasil que o voto
secreto era um salto qualitativo. Nossa grande oportunidade surgiu
em 1929 quando Álvaro Mendes Pimentel, membro do Conselho
Deliberativo de Belo Horizonte, renunciou ao cargo. O Partido
Republicano Mineiro – PRM – apresentou Jair Negrão de Lima
como candidato das classes conservadoras, apoiado pelo prefeito
de Belo Horizonte, Cristiano Machado. Não podíamos perder
aquela chance. Imediatamente endossamos o candidato da oposição,
nosso professor Magalhães Drummond. Fazíamos o máximo em
favor do nosso candidato, mas a campanha de Jair Negrão de Lima
parecia levar grande vantagem. Pelo menos, Cristiano Machado já
se vangloriava da vitória, tinha como favas contadas não só os votos
dos conservadores mas também do funcionalismo da prefeitura.
Só a Guarda Civil representava mais de 200 votos.
Hugo Gouthier
40
Na noite de sábado para domingo de 5 de maio – dia das
eleições – sabendo que as cédulas de Jair Negrão de Lima tinham
sido distribuídas, queimamos o último cartucho: fomos na casa de
um por um dos guardas recolhendo as cédulas do nosso adversário.
Cédulas que nos foram docilmente entregues, já que eram
requisitadas pelo filho do Presidente do Estado.
A manobra deu certo: Magalhães Drummond recebeu
1.050 votos contra os 855 de Jair Negrão de Lima. Primeira
indiscutível vitória do voto secreto em Minas. Foi um delírio.
Comícios, passeatas... Acabamos partindo em multidão para o
palácio, a saudar Bias Fortes, Secretário de Segurança, responsável
pela lisura e ordem do pleito. Ainda me lembro do discurso
candente que Olavo Bilac Pinto pronunciou na ocasião.
Mais uma vez Minas Gerais apontava o caminho da
liberdade. E não nos contentamos com Minas Gerais. Saímos pelo
Brasil afora fazendo propaganda do voto secreto. Para os meus 19
anos, essa campanha em nome da justiça, da verdade, da honra de
nossas instituições foi uma verdadeira Bandeira. Muitos anos mais
tarde, ao desembarcar na Europa pela primeira vez, já a serviço do
Ministério das Relações Exteriores, sofri um grande choque cultural.
Mas a abertura definitiva para a vida deu-se ali, no final da minha
adolescência, quando, de coração sensível e mente alerta, descobri
o Brasil que se espraiava muito além das minhas montanhas
mineiras. E quando, ao descobrir o homem brasileiro, me descobri
e me assumi. Com a plena consciência de quem sou e de onde vim.
Consciência que moldou o meu caráter, estruturou a minha filosofia
de vida e permitiu que eu atravessasse incólume, e até com certa
graça, os difíceis anos deste mundo. Foi nessa ocasião que conheci
41
Presença
na Bahia o estudante Nelson Carneiro. Unindo-se a nós, emprestou
o brilho da sua oratória à campanha do voto secreto. No Recife, o
Presidente Estácio Coimbra dispensou-nos generosa acolhida,
recebendo-nos como hóspedes oficiais.
À campanha pelo voto secreto emendou-se o movimento
da Aliança Liberal, na qual os estudantes como eu tiveram intensa
participação. Nessa jornada, por exemplo, caminhei lado a lado de
um grande amigo da vida inteira, Paulo Pinheiro Chagas. Formado
em Medicina, na qual fez brilhante carreira, Paulo foi trabalhar
no Rio de Janeiro mas sempre se manteve unido a nós, lutando
por Minas todas as vezes que Minas precisou dele.
Em Belo Horizonte, fazíamos comícios em praça pública,
por todos os pontos da cidade, defendendo a candidatura de Vargas,
fustigando o governo federal, arrasando a indicação de Júlio Prestes.
Fui de trem com Assis Brasil e Batista Lusardo a Curvelo e Sete
Lagoas, parando de estação em estação, em vibrantes pregações
cívicas. Os discursos de Assis Brasil e Batista Lusardo, dois mestres
da oratória além de expoentes das articulações gaúchas – duravam
horas... Em Curvelo, por exemplo, reduto eleitoral de Antônio
Viana do Castelo, Ministro da Justiça de Washington Luís, cidade
escolhida exatamente por esse desafio, nossas pregações foram
marcadas por delirantes ataques ao governo. Digo nossas porque
eu também participava, tomava a palavra. Com a bravura dos
iniciados tentava seguir as pegadas dos mestres gaúchos. Sem
conseguir, no entanto, é óbvio, igualá-los não só no brilho como
no fôlego.
Por essas e por outras é que, naquela manhã dos meus 20
anos, já me sentia um velho e experiente revolucionário. E, como
Hugo Gouthier
42
tal, finalmente reuni-me a meus constantes companheiros de batalha
na sala de Álvaro Batista de Oliveira – Chefe de Polícia – de quem,
àquela altura, eu era chefe de gabinete. Estava todo mundo lá. E
todo mundo ciente de que aquele era o dia da revolução,
explodindo em uníssono pelo Brasil inteiro. Só faltava mesmo
marcar a hora para Washington Luís e seus adeptos verem os novos
rumos de um Brasil almejado por nós.
Enquanto no Palácio da Liberdade o Presidente
Olegário Maciel (sucessor de Antônio Carlos Ribeiro de
Andrada, eleito pelo voto secreto) e seu secretariado traçavam
os planos mestres da revolução em Minas, na Secretaria do
Interior e na polícia, da Rua da Bahia, cuidava-se dos detalhes
da sua execução. E aqui cabe uma curiosa reflexão sobre as
nuances de ciranda que assumiam então as relações de poder em
Minas. Pensando bem, talvez nem só em Minas, talvez nem só
então...
Um ano antes, em 1929, prefeito de Belo Horizonte,
Cristiano Machado fora nosso adversário na eleição de
Magalhães Drummond para o Conselho Deliberativo. Agora,
em 1930, Secretário do Interior de Olegário Maciel, era não só
nosso aliado, como grande líder da revolução. Dois anos depois,
no famoso episódio de 18 de agosto de 1931, não mais Secretário
do Interior, continuaria nosso aliado e líder mas seria então
opositor de Olegário Maciel.
A Secretaria do Interior e a Chefatura de Polícia
enchiam-se cada vez mais de correligionários, voluntários para
todo e qualquer serviço. Gente decidida a lutar e a morrer se
preciso fosse. Mas, há muito, acertáramos agir com cautela e
43
Presença
precisão para evitar derramamento inútil de sangue. Nossa missão
era ocupar os próprios federais, já que Minas inteira comungava
com a nossa causa e empunhava a nossa bandeira. Mas os
próprios federais estavam bem guardados.
Desde que se tornou patente que Minas, aliada ao Rio
Grande do Sul e à Paraíba, na Aliança Liberal, partia para a luta,
Washington Luís tomou suas providências. Uma delas foi
justamente colocar os prédios das repartições do governo federal
sob a proteção do Exército. Assim, por exemplo, em Belo
Horizonte, os pacíficos cidadãos postavam as suas cartas sob o
olhar vigilante de soldados armados.
A solução era, pois, atacar de surpresa, numa ação
fulminante e concomitante. Mas tinha tanta gente na polícia que
levamos algum tempo decidindo quem ia fazer o quê. Deviam ser
umas três horas da tarde quando o meu chefe, Álvaro Batista de
Oliveira, chegou para mim e disse, estendendo-me um revólver
Smith & Wesson:
– E você, Hugo, vai com o Gastão Soares de Moura e
quatro soldados da Força Pública tomar o prédio dos Correios e
Telégrafos.
Reagi como se não tivesse feito outra coisa na vida. Era a
minha missão e eu iria cumpri-la o melhor que pudesse. Até hoje
procuro mergulhar na alma do jovem que eu fui em 1930 para
tentar descobrir a fímbria do medo naquele feixe de entusiasmo.
Não, acho que não tive um instante sequer de medo consciente.
Nem foi um gesto louco de aventura inconseqüente. Foi um
impulso honesto e ardente. Um dos momentos mais puros da
minha vida.
Hugo Gouthier
44
Alguém me ensinava como usar a arma, outro aconselhava-
me como agir se ferido fosse. Confesso que não prestei muita atenção.
Naquela hora, naquele instante, a única e mais eficaz das armas estava
dentro de mim, era o meu entusiasmo, a luz de firmeza e decisão que
certamente fuzilaria dos meus olhos. E, como não tinha coldre, guardei
o revólver no bolso esquerdo interno do paletó.
Os grupos foram saindo rumo aos seus destinos.
Atacaríamos simultaneamente, na hora fixada de acordo com o Rio
Grande do Sul e que coincidia com o final do expediente, quando o
movimento era menor nas repartições. Às cinco e meia saí com Gastão
Soares de Moura e quatro soldados da Força Pública num carro em
direção aos Correios.
Era uma serena tarde de outono e as ruas do centro, cheias
de gente, mantinham o ritmo normal daquela hora. Como se nada
houvesse e como se o mundo não fosse mudar completamente daí a
instantes. Disse que não tive medo nenhum e agora, escrevendo estas
linhas, percebo que tive medo, sim. Medo de fracassar na minha missão.
O grande milagre da nossa Revolução de 30 foi o de
termos conseguido manter em segredo uma operação com tantos
adeptos. Era evidente que a população não suspeitava de nada. As
calçadas, como sempre, coloridas de apressados transeuntes. Num
cruzamento vi Ilka e Luizinha, irmãs de Fábio de Andrada, saindo
de uma livraria. Acenei para elas. Sorriram de volta para mim. Ia
tudo bem e normal no melhor dos mundos.
Quem visse aquelas seis pessoas não pensaria que o começo
da Revolução ia acontecer dentro de minutos.
Na porta dos Correios, sacamos as armas. Lembro que
custei um pouco a tirar o meu revólver, preso em alguma coisa no
45
Presença
bolso do paletó. Para maior precaução, segurei-o com as duas mãos
e, mantendo os braços esticados, entrei no prédio gritando:
– Começou a Revolução!
Não houve propriamente tumulto. Apenas um acentuado
pasmo. Gestos parados no ar, atrás dos guichês. Bocas abertas.
Inteiramente despreocupados, os soldados conversavam numa
rodinha, as armas ensarilhadas a um canto, fora do alcance de suas
mãos. Renderam-se imediatamente.
Com educação mas com firmeza, fizemos sair os poucos
usuários que lá se encontravam. E trancamos a porta do edifício.
Enquanto Gastão Soares de Moura foi procurar um telefone para
avisar a Chefatura de que éramos senhores da situação, dei atenção
a um funcionário que se lamentava chorosamente:
– Pelo amor de Deus, tenham a santa paciência mas
deixem-me conferir esses valores aqui... Depois, falta alguma coisa
e eu passo por ladrão.
Deixamos que o pobre homem conferisse os seus valores
e esperamos a chegada da Força Pública a quem passamos a missão
da guarda dos Correios.
Pedro Naya, o maior memorialista brasileiro da
atualidade, segundo Tristão de Athayde, conta o seu livro Galo
das Trevas, Memórias/5 às páginas 463 e 464:
“... – Quequiá? Teixeira
1
. Esperando? Alguém.
– Nada...
– Então fica quieto! Homem: larga esse relógio...
1
João Gomes Teixeira ou Teixeirão (N. do A.)
Hugo Gouthier
46
Começaram uma conversinha mole, beleza de tarde,
olh’aquela ali, olha com’é boa. Passava carro ou outro, gente se
recolhendo. Cinco e vinte verificou pela multésima vez o Teixeira
que já não podia disfarçar. Alguma coisa o inquietava que ele talvez
não pudesse confidenciar aos amigos.
– Afinal, Teixeira, quequiá? Com você, puxa! Que homem
mais desinquieto! Parece até que está com bicho-carpinteiro.
Eles estavam na esquina de Tupis. O Teixeira fixou de
repente um carro que virou no Espírito Santo raspando e
rangecantando numa derrapagem, que segurou-se nas travas como
animal que vai investir, investiu chegando mais para perto meio-
fio freou noutro rangido parou, abriu suas quatro portas
despejando seis homens armados de revólver 38 cano longo. Na
frente deles o Hugo Gouthier de Oliveira Gondim, ele próprio, a
comandar.
– Isto deve ser perseguição a algum malfeitor. Vam’ver
essa tromba armada que entrou Correio adentro. Deve ser
criminoso escondido por lá...
Mais gente acorria e começava a se aglomerar. Na porta
da repartição foram parados por um dos homens de revólver em
punho.
– Afastem-se! Aqui ninguém entra! – e reparando no
Teixeirão – Só o senhor, doutor, o senhor pode passar.
– Precisa não, Alcino. Já sei do que se trata. Vou correndo
pra Secretaria – disse o grangazá. E virando-se para os amigos:
Estourou a Revolução! Eu estava esperando essa operação chefiada
pelo Hugo e isto quer dizer que o comandante do 12 já está preso.
Era a primeira parte da missão desse choque.”
47
Presença
Voltamos triunfantes para a Chefatura de Polícia, onde
boas notícias nos aguardavam. O próprio Cristiano Machado se
encarregava de anunciá-las. A operação era um sucesso. Todas as
repartições públicas federais, todos os quartéis do Exército iam
caindo nas mãos dos revoltosos, sem tiros e sem sangue, só o Doze
– 12º Regimento de Infantaria – resistia.
Hoje é o moderno bairro de Cidade Jardim. Naquele
tempo, era árido descampado com as precárias construções do
regimento do meio. O regimento que não se rendia. Às cinco e
meia, seu comandante, Coronel José Joaquim de Andrade, legalista
ferrenho, fora preso em sua residência na Rua da Bahia. A mesma
rua onde eu morava, no Grande Hotel. A mesma rua onde eu
trabalhava, na Chefatura de Polícia.
O regimento está cercado, o comandante, preso.
Permitem-lhe que fale pelo telefone, ordenando a seus oficiais que
não resistam. Encarrego-me de fazer a ligação. Os troncos estão
ocupados e custo a conseguir linha. A campainha toca, uma voz
atende:
– Alô. Aqui é do Doze.
Passo em silêncio o fone ao Coronel Andrade. Ele o segura
e berra:
– Pelo amor de Deus! Resistam!
Resistiram quatro dias e renderam-se na manhã do quinto,
quando ninguém esperava mais.
O quartel tinha todas as condições de resistir. Além de
estar cheio de trincheiras e caminhos subterrâneos, dispunha de
farta munição. Com a água que lhe vinha da cidade cortada, cercado
por todos os lados pela força pública, pela polícia e pelos civis, o
Hugo Gouthier
48
Doze resiste. E então, nós, os revoltosos vencedores, nós, os
sitiantes, começamos a nos preocupar: estávamos quase sem
munição. Mais 46 horas de fogo cerrado e estaríamos perdidos.
Começou-se a pensar e a planejar a mudança da capital
para Sete Lagoas. Quando, de repente, às onze horas da manhã
do dia 8 de outubro, apareceu a bandeira branca erguida pelos
entrincheirados. Houve muitos mortos e feridos dos dois lados e
todos os oficiais e soldados que lá se encontravam foram presos.
Não sei mais o que é que fomos fazer lá, sei é que Paulo Monteiro
Machado, irmão de Cristiano Machado, e eu fomos os primeiros
civis a entrar no Doze depois da sua rendição. Entramos no exato
momento em que soldados da Força Pública substituíam os
soldados do corpo da guarda que iam sendo levados presos. E,
entre os da Força Pública, vi um conhecido meu, o cabo José
Luís.
O ambiente era de total desolação entre os legalistas
vencidos. Entre os revoltosos também não reinava a euforia. Os
ânimos estavam exacerbados pois corria o boato de que o Doze só
resistira por ter recebido a informação, passada por um traidor do
nosso lado, de que era precário o nosso estoque de munição. E já
se tinha até o nome do culpado: o Coronel Bragança, da Força
Pública, que fora encontrado dentro do quartel. Eu conhecia o
coronel e não o julgava capaz de tamanha traição. Resolvi conversar
com ele, extrair a verdade da sua própria boca. Fui encontrá-lo
recolhido ao corpo da guarda, sob a vigilância do cabo José Luís.
Mal me viu, o pobre coronel lançou-se nos meus braços:
– Dr. Hugo, eles querem me fuzilar! Pelo amor de Deus,
Dr. Hugo, não deixe que me fuzilem, pois eu sou inocente!
49
Presença
Procurei acalmá-lo da melhor maneira possível e, entre
soluços, ele me contou a sua história. Tinha um filho no quartel,
um filho muito querido, o tenente José Machado Bragança. E
penetrara no Doze unicamente para tentar salvar o filho ou morrer
com ele. Não traíra ninguém.
Acreditei na sinceridade de suas palavras. Sabia que,
apesar de emocionalmente instável, o Coronel Bragança era
um homem de bem. Prometi interceder por ele e saí
imediatamente à procura do Coronel Luís Fonseca, comandante
da Força Pública. Não tinha dado mais que alguns passos
quando cruzei com outro conhecido, o cabo Ananias. E, nesse
exato momento, ouvi o som de um tiro. Voltei correndo a
saber o que acontecera.
– O Coronel Bragança suicidou-se – informou-me o cabo
José Luís.
A porta da sala estava entreaberta. Vi o corpo apenas de
relance. Caído no chão, no meio de uma poça de sangue, tinha um
fuzil ao lado. No momento, achei meio estranho alguém se suicidar
com um tiro de fuzil. Mas o coronel estava tão desesperado... e a
confusão era tão grande que não pensei mais nisso. Tempo depois,
o cabo Ananias foi preso, acusado do assassinato do Coronel
Bragança. Que ele evidentemente não matou pois estava ao meu
lado quando ouvi o tiro.
Foi um tremendo erro judiciário. O pobre do Ananias
levou anos preso e nem sei se algum dia a sua inocência foi
reconhecida. Fiz tudo para defendê-lo, prestei inúmeros
depoimentos, o último dos quais, por escrito, em 1937, quando
estava em meu primeiro posto do Itamaraty, em Bruxelas.
Hugo Gouthier
50
Ponho a minha mão no fogo pela inocência de Ananias;
acho que o Coronel Bragança não se suicidou, tenho quase certeza
de que ele foi liquidado pelo cabo José Luís. Mas o cabo José Luís
desapareceu da face da terra desde aquele dia...
Belo Horizonte estava sob controle mas ainda havia
muitos focos legalistas espalhados pelo Brasil. E, de todos os pontos
do país dominados pelos revoltosos, saíram destacamentos para
combatê-los, numa verdadeira operação de varredura. De Belo
Horizonte, o primeiro que saiu, sob o comando do então tenente
Nelson de Melo, tinha mais de 500 homens; um batalhão da Força
Pública, mais inúmeros civis que a ele se iam incorporando.
Destacamento esse que logo recebeu a alcunha de Coluna da Morte.
Fui junto. Recebi a minha farda e me incorporei à tropa.
E comigo foram muitos amigos civis entre os quais me recordo de
Flávio Caldeira Brant, dos irmãos Roberto e Camilo Mendes
Pimentel, Arsênio Garzon, Júlio de Melo, Paulo Costa, Jacy de
Souza Lima e Paulo Gontijo. O grosso da tropa foi de trem. Alguns
oficiais e alguns civis, como eu, fomos de carro pela terrível estrada
que ligava Belo Horizonte a Juiz de Fora.
Em Benfica tivemos um entrevero com tropas legalistas
do qual saiu ferido, entre outros, o Jacy de Souza Lima. Dias depois
recebemos a notícia de que a revolução triunfara definitivamente.
Foi portanto uma curta guerra, de uma só batalha, a da Coluna da
Morte. Fomos de Belo Horizonte a Benfica, ao lado de Juiz de
Fora, mas teríamos ido ao Chuí. Não éramos militaristas, nem de
longe queríamos uma guerra fratricida. Éramos um punhado de
jovens idealistas e, se preciso fosse, teríamos marchado até o Chuí.
Ciranda Mineira
53
(“Florença minha, o que fias em outubro não alcançará
meados de novembro”, advertia Dante.)
Pois é. Em Minas também não deu outra coisa. Fizemos
a revolução em 3 de outubro e, em meados de novembro, já se
ouviam os primeiros acordes da ciranda.
O mundo não mudou completamente como eu esperava.
Ou melhor, mudou tão pouco que nem dava para perceber. A
primeira providência foi, naturalmente, demitir todos os que
haviam sido nomeados pelo Governo Federal e nomear em seus
lugares gente indicada pela situação. Outras se seguiram, entre as
quais a criação de um tribunal especial “para processo e julgamento
de crimes políticos e funcionais”. Tribunal que tinha por objetivo
real crucificar Arthur Bernardes e Epitácio Pessoa. Brilhante e
corajosamente combatido por Djalma Pinheiro Chagas, esse
tribunal acabou se transformando, em primeira instância, na Junta
das Sanções; em segunda, na Comissão de Correição
Administrativa. E foi se diluindo, se diluindo, até que não se falou
mais nisso.
Ganhar talvez seja bem mais difícil que perder. Penso
muito nisso quando leio sobre os jovens revolucionários de hoje.
Firenze mia...
... a mezzo novembre
non giunge quel che tu d’ottobre fili.
(Dante. Purg. C. VI, v. 143-144)
Ciranda Mineira
Hugo Gouthier
54
O Fernando Gabeira, por exemplo. O que seria dele se a sua
revolução tivesse triunfado? Teria atingido a serenidade que
transparece nos seus livros se, em vez do exílio na Suécia, tivesse
curtido aqui mesmo o exílio intrínseco da vitória? Quanto a mim,
tanta água passou por baixo da ponte, que consigo hoje escrever
com certo humor sobre aqueles dias de amargura.
A princípio nada mudou na minha vida particular. Nem
esperava mesmo que mudasse. Despi a farda da Coluna da Morte e
voltei para a faculdade para terminar meu curso de Direito.
Continuei morando na Rua da Bahia, no Grande Hotel, e
trabalhando na Rua da Bahia, na Chefatura de Polícia.
Aliás, eu não tinha nada para me queixar da vida. Órfão
de mãe, aos nove anos, de pai, aos 17, vivia desde então à minha
custa, com o suor do meu trabalho. Aos 20 anos, chefe de gabinete,
ganhava bem, tinha um automóvel à disposição, morava no melhor
hotel da cidade e tinha uma fabulosa turma de amigos.
Passei a vida inteira tentando encontrar uma resposta à
admiração geral sobre a minha capacidade de fazer amigos. “Você
é um gênio!” “Como é que você consegue tornar-se amigo dessa
maneira de príncipes e plebeus?” Confesso que não sei. Talvez tenha
mesmo esse pequeno talento. Todos temos direito a pelo menos
um, não é? Mas não extraí fórmulas nem desenvolvi técnicas. Por
isso, infelizmente, não posso dar a receita. Talvez tanta gente goste
de mim, simplesmente porque eu goste de tanta gente. Talvez o
meu faro tenha me ajudado a construir uma legião de amigos
interessantes. Isso eu possuo, um faro certeiro. Consigo sempre
distinguir uma personalidade marcante, criativa, plena, perdida no
meio de uma multidão de pessoas desinteressantes.
55
Presença
Em Belo Horizonte, então, a gente já nascia se
conhecendo. Quem não era parente era amigo de infância, era
vizinho. E, apesar de certos tabus, certas convenções ritualísticas
de comportamento a obedecer, o convívio social era mais íntimo.
Porque tudo era mais simples e era mais barato. Não havia luxos
exagerados nem ostentações. A decoração das casas – as mais ricas –
era sóbria, quase espartana. Ninguém tinha copeiro de luvas ou
servia caviar.
Mas voltemos a 1930. Era evidente que Getúlio Vargas
não se sentia confortável com o governo mineiro. Alegavam que
seria mais fácil para a implantação dos princípios da revolução se
ele pudesse designar um interventor de sua confiança em Minas.
Dentro dessa filosofia, Cristiano Machado (Secretário do Interior),
Carneiro de Resende (Secretário das Finanças) e Alaor Prata
(Secretário da Agricultura), tiveram um gesto de altruísmo e foram
ao Presidente Olegário Maciel propor a renúncia dos quatro,
deixando o caminho livre para o novo Governo Federal.
Do alto dos seus veneráveis 80 anos, Olegário Maciel não
quis nem ouvir falar. Era Presidente eleito pelo povo, em voto
livre e secreto, dera todo o apoio à revolução, cumpriria até o fim
o seu mandato. Era Presidente e Presidente continuaria. E só deixou
mesmo o Palácio da Liberdade quando faleceu, dois anos depois.
Os três secretários mantiveram a sua renúncia. Foram
então exonerados a 26 de novembro e para os seus lugares Olegário
convocou: Gustavo Capanema (Interior), Amaro Lanari (Finanças)
e Noronha Guarani (Agricultura), pouco depois substituído por
Ribeiro Junqueira. E, o que era mais grave, convocou sem uma
consulta prévia a Arthur Bernardes, Presidente do partido que o
Hugo Gouthier
56
elegera. Estava jogada a luva, tivemos que levantá-la. Mas entre a
mão e a luva, gastou-se um tempo precioso. Quando o PRM abriu
os olhos, já tinha perdido centenas de adeptos para a Legião de
Outubro.
Réplica tupuniquim do fascismo europeu, a Legião de
Outubro, fundada em Minas a pretexto de unir sob uma única
bandeira as várias ideologias que fizeram a Revolução de 30, esvaziara
o PRM. Muitos de nossos antigos correligionários, ridiculamente
fardados de cáqui, desfilavam por Minas Gerais gritando slogans;
um dos quais, de autoria do próprio Francisco Campos, é um
primor de violência: “Legião é braço e punho”.
O espantoso é que essa filosofia, tão radicalmente
contrária ao temperamento mineiro, foi ganhando terreno.
Conquistou não só Gustavo Capanema e Amaro Lanari, como até
o velho Olegário Maciel, que também passou a se fardar de cáqui...
Em fevereiro de 1931, aproveitando a oportunidade em
que os bispos mineiros celebravam missa campal na Praça Rui
Barbosa, a Legião de Outubro fez um enorme estardalhaço. Encheu
a praça de milhares de adeptos frenéticos. Francisco Campos –
então Ministro da Educação – subiu ao palanque e, em exaltada
pregação cívica, bradou por um governo forte.
Nossa surda revolta explodiu finalmente em agosto de
1931, quando o PRM promoveu uma grande reunião do partido.
Convenção essa que mereceu de Gustavo Capanema a seguinte
advertência, endereçada aos prefeitos mineiros: “Para sua orientação
cientifico-lhe, em nome do Presidente do Estado, que sua excelência
não considera amistosa ao governo a planejada reunião de alguns
membros da Comissão Executiva do PRM nesta capital.”
57
Presença
Realmente, estávamos longe de sermos amistosos. Mas,
apesar dos esforços de Capanema, a convenção foi um sucesso.
Compareci como secretário do Diretório Municipal do PRM –
seção Belo Horizonte, e vi quando o velho Teatro Municipal quase
veio abaixo com os aplausos e a revolta de mais de 900 delegados
de 200 municípios. A custo fomos impedidos de sair dali em passeata
até o Palácio da Liberdade para exigir a renúncia de Olegário Maciel.
Os ecos da convenção não demoraram a chegar ao Rio de
Janeiro. Imediatamente, Virgílio de Melo Franco e Oswaldo
Aranha começaram a articular a deposição do velho Presidente
mineiro. Na noite de 17 para 18 de agosto de 1931, chegou-nos a
notícia de que o Ministro da Justiça Oswaldo Aranha tinha
telegrafado e telefonado ao comandante do 12º RI (o famoso Doze),
Coronel Pacheco de Assis, ordenando-lhe que assumisse
provisoriamente o governo de Minas. Pouco depois era Pacheco
de Assis chamado ao rádio pelo General Jorge Pinheiro,
comandante da 4ª Região Militar, ratificando as ordens do Ministro
e informando que as tropas já estavam de sobreaviso para o caso de
alguma reação.
Eu e mais alguns outros integrantes do PRM corremos
para o Doze, receber instruções. Mas, antes, fomos fazendo o que
nos era possível. Por exemplo, João Gomes Teixeira, nosso
inesquecível amigo, tratou de prender o Secretário Ribeiro
Junqueira, como eu, residente no Grande Hotel – deixando-o lá
em seu quarto sob a vigilância de companheiros nossos.
Fiquei pasmo com a tranqüilidade que encontrei no
quartel. Coerente com as informações que fornecera à Capital
Federal de que Minas estava acéfala, Olegário não mandava e nem
Hugo Gouthier
58
iria resistir – Pacheco de Assis nem se dera ao trabalho de ir ao
Palácio. Mandara o Major Herculano Assunção comunicar en
passant ao Presidente que ele estava destituído e, principalmente,
iniciar os preparativos para a sua posse.
O coronel estava preocupadíssimo com os detalhes da
sua posse. E, mais do que tudo, com o discurso que pronunciaria.
Tudo o mais considerava resolvido. Já tinha até convidado o Dr.
Pedro Rache, amigo de Vargas tanto quanto seu, para Secretário
de Segurança. Percebendo o cerne das preocupações do Coronel
Pacheco, Dr. Pedro Rache bondosamente sugeriu que ele me
confiasse a redação do discurso. Sugestão aceita, o coronel
recomendou-me apenas:
– E não se esqueça de injetar alguma frase de Augusto
Comte nesse discurso porque eu sou positivista.
Com profunda humildade confesso que cheguei a redigir
algumas linhas. O que ninguém contava é com a reação de Olegário
Maciel. Correu de lá com o Major Herculano. Determinou que se
transformasse o Palácio numa fortaleza, com sacos de areia e ninhos
de metralhadora.
De manhã, chegou a contra-ordem do governo federal:
Olegário Maciel permanecia na Presidência. A um jornalista,
Oswaldo Aranha declarou que o episódio havia sido “um equívoco”.
Pensei nos homens do governo, presos lá no hotel, e vi
que a situação ia piorar para nós. Temeroso de que sofrêssemos
represálias, o coronel ofereceu-nos asilo no Doze. Nenhum do
nós aceitou a generosa oferta. De cabeça baixa, voltamos para o
hotel, onde, evidentemente, o Secretário Ribeiro Junqueira já estava
solto e a Força Pública esperando para nos prender.
59
Presença
E presos fomos para a Secretaria de Segurança, onde
passamos dias prestando intermináveis depoimentos.
Desgostoso e abatido, assim que me soltaram, fui me
refugiar numa fazenda de um contraparente do Presidente Arthur
Bernardes, perto de Ponte Nova, denominada Vau-Açu, hoje
pertencente ao Sr. João Cyrino Nogueira. Lá passei amargos
momentos de depressão. Só dois anos mais tarde compreendi o
que realmente se passara: Vargas queria que nós, do PRM,
depuséssemos Maciel. E ele apoiaria um fato consumado. Agora,
meter-se numa outra revolução, estava inteiramente fora de suas
cogitações. Se o Coronel Pacheco de Assis, em vez de perder tempo
preocupando-se com a posse, as nomeações e os discursos, tivesse
agido, talvez a História do Brasil tivesse seguido outro rumo
diferente.
E aqui cumpro uma dívida de justiça. Combati Olegário
Maciel com todas as armas ao meu dispor, mas sempre admirei
aquele homem firme, decente, digno até o fim da sua vida.
Formei-me pela Faculdade de Direito de Minas Gerais,
em 18 de agosto de 1931, numa turma de 53 diplomandos.
Deu essa turma várias figuras de proeminência no Brasil,
entre as quais, Pio Soares Canedo, ex-Vice-Governador de Minas
Gerais; José de Aguiar Dias, conhecido jurista que reside no Rio
de Janeiro; Desembargador Helvécio Rosemburg; Alberto Mourão
Russell, ex-Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro; Gilberto Dolabela, ex-Advogado-Geral do Estado de Minas
Gerais; Dnar Mendes Ferreira, Diretor do Banco de Crédito Real
de Minas Gerais; Orlando Magalhães Carvalho, ex-Reitor da
Hugo Gouthier
60
Faculdade de Direito de Minas Gerais, e outros queridos colegas
como: José de Lelis Silvino, Ivan Morais de Andrade, José de Assis
Santiago, Paulo Vieira de Brito, Waldomiro Sales Pereira, José Flávio
Nelson de Sena, Orlando Lopes Coelho, João Luís de Carvalho,
Hélio Licínio Barbosa, Ovídio Machado, Janir de Castro e Silva,
Teófilo da Costa Cruz, Luís Reis, José Pinto Coelho, Antônio de
Moura Castro, Nicolau Pitela, Luiz Romualdo da Silva, Celso Arinos
Mora, Danton de Souza, Marciano Alves Freire, Francisco Rogério
de Castro, José Soares Júnior, Advaldo Carneiro Santiago, e meus
antigos companheiros de estudos Stal Lagoeiro e Armando Caldeira
Brant. Prefiro silenciar sobre os que já faleceram, todos bons colegas
e dos quais guardo uma profunda saudade.
Considero os anos que vivi a seguir – de 1932 a 1936 –
como uma espécie de curso de pós-graduação de vida. Desistindo
de salvar o mundo, aprendi a sofrear a minha pressa e impaciência.
Descobri que não só com revoluções se constrói um país. Dizem
que a política é a arte do possível, pois, nessa arte, tive os melhores
mestres, os maestros da ciranda mineira, os gênios das acomodações
e composições.
Não tomei parte ativa na Revolução Constitucionalista
de São Paulo – simpatizei com ela a distância – portanto, graças a
Deus, não preciso contar aqui mais uma revolução. Cheguei a São
Paulo quando tudo já se havia consumado e fui procurar o meu
amigo Frederico Lacerda Werneck. Conhecendo os meus méritos
e sabendo que precisava trabalhar, propôs o meu nome para
advogado patrono do Departamento Estadual do Trabalho e
apresentou-me ao interventor federal de São Paulo, General
Waldomiro de Lima.
61
Presença
Nessa época, fiz inúmeros amigos. Pessoas que galgaram
postos importantes: Adalberto Pereira dos Santos, assistente militar
do General Waldomiro, chegou a Vice-Presidente da República, no
governo de Geisel; Gilberto Marinho foi subchefe da Casa Civil do
Presidente Dutra e, posteriormente, senador pelo Distrito Federal,
tendo ocupado por duas vezes a presidência do Senado Federal.
Ainda em São Paulo, posteriormente, travei
conhecimento com Vicente Rao, que tempos depois foi Ministro
da Justiça e também das Relações Exteriores. Foi ele quem me
apresentou a Armando Salles de Oliveira. A este devo de ter sido
colocado à disposição do Ministério da Educação e Saúde quando
me foi oferecido um lugar no gabinete de Gustavo Capanema. E
foi assim, emprestado pelo Departamento Estadual do Trabalho,
que eu vim para o Rio de Janeiro.
Pode parecer estranho que, tão pouco tempo depois, eu
viesse trabalhar no gabinete de um antagonista político da véspera.
Estranho, para quem não sabe, que, em Minas, política não faz
inimigos, podemos ser adversários, contendores em determinadas
situações. A política, para os mineiros, é um jogo de alta precisão,
onde as questões são resolvidas com espírito esportivo, sem ódios
e sem ressentimentos. Capanema precisava de mais um oficial de
gabinete e aceitou a indicação do meu nome feita por Dario de
Almeida Magalhães. De minha parte, aceitei com imensa satisfação
trabalhar com ele.
Gustavo Capanema é um dos maiores homens públicos
do Brasil contemporâneo, segundo o consenso geral. Ministro,
deputado e senador, em todos os postos que ocupou impôs-se ao
respeito e à admiração dos brasileiros.
Hugo Gouthier
62
Muito aprendi com Gustavo Capanema quando fui seu
Oficial de Gabinete e pude, desde então, admirar a maneira pela
qual cuidava dos problemas da pasta que Getúlio Vargas lhe
confiou. Pode-se dizer que Gustavo Capanema estava muito adiante
de seu tempo.
Nosso Chefe de Gabinete era, nada mais, nada menos,
do que Carlos Drummond de Andrade, o poeta a quem o
mundo deve um Prêmio Nobel. Naquela época, eu conheci e
convivi com a outra face do gênio – o funcionário enérgico e
exigente. Gerações de brasileiros têm aprendido com
Drummond o lirismo, o sentido da vida. Eu estava próximo
demais e assim, entre outras coisas, aprendi com ele o método e
a disciplina de trabalho.
De todos os meus colegas do gabinete, era mais ligado a
João Batista de Alencastro Massot, amigo fraterno da minha vida
inteira. Mas ninguém pode se esquecer de Antônio Leal da Costa.
A delicadeza em pessoa, era um mestre em cortar arestas, aparar
atritos, resolver dificuldades. Num Ministério que apenas iniciava
um longo caminho de reformas extensas, Leal Costa funcionava
como o amortecedor de um carro a percorrer estradas esburacadas.
Era uma peça essencial. E ainda tenho nítida na memória a figura
calada e reservada de outro colega, Carlos Adalberto de Oliveira
Cruz.
Uma das minhas atribuições precípuas no gabinete era a
de selecionar candidatos a cargos de menores escalões. Nesse
trabalho de seleção, tive que empenhar todo o meu conhecimento
da vida, do ser humano, das tricas políticas. E, aqueles a quem eu
fazia justiça, é claro, ficaram meus amigos.
63
Presença
Como sempre fui prestativo e cordial, vez por outra,
apareciam-me encargos inusitados. Certa feita, o Ministro
Capanema designou-me para acompanhar o Presidente Gabriel
Terra, do Uruguai, numa visita a Poços de Caldas. Foi um trabalho
dos mais agradáveis. Só que eu não pude resolver a única dificuldade
que se apresentou: os telefonemas internacionais da filha do
Presidente. Para desespero de Rubens de Mello, chefe do
Cerimonial do Itamaraty, que zelava pelos gastos da comitiva, a
jovem insistia em demoradas ligações diárias para Montevidéu, nas
quais falava inclusive com o seu cachorro... Dessa estada em Poços
de Caldas, ainda me lembro da presença simpática de Ernâni do
Amaral Peixoto, a esse tempo do gabinete do Presidente Getúlio
Vargas, e de José Armando de Afonseca, sobrinho do Ministro
José Carlos de Macedo Soares. Foi ele um dos que mais me
incentivaram a entrar para o Itamaraty.
Minha atividades, nem de longe, se limitavam ao
Ministério da Educação e Saúde. Como podia-se acumular vários
cargos, eu, por exemplo, tinha alguns: inspetor do ensino
secundário e chefe de seção do Ministério da Justiça. Participava
ainda de um escritório de advocacia com João Neves da Fontoura
(Dario de Almeida Magalhães era nosso representante em Belo
Horizonte) e iniciei-me no jornalismo.
Foi inesquecível a minha passagem pelo jornalismo.
Entrei para a redação de O Jornal, um dos principais órgãos dos
Diários Associados, grupo dirigido por essa locomotiva humana,
Assis Chateaubriand. E comecei bem, colega de Victor Nunes
Leal, David Nasser, Genolino Amado, Arnon de Melo e Carlos
Eiras.
Hugo Gouthier
64
Lembrar uma redação de jornal – pelo menos, como eram
nos anos 30, quando ensaiávamos a grande e inexplicável experiência
de viver, com suas idiossincrasias, seus tiques e seus truques é
historiar uma emoção.
Não cheguei a ser um profissional brilhante e organizado
como Victor Nunes Leal, nem o investigador raro e combativo
que foi David Nasser. Enquanto a maioria dos meus colegas
trabalhava em mangas de camisa, de peito aberto, eu era jornalista
de paletó e gravata, a quem cabia entrevistar autoridades,
parlamentares, pessoas que impunham uma presença mais formal.
Minha tarefa principal era cobrir o Palácio Tiradentes, onde
funcionava a Câmara Federal, mas Chateaubriand me utilizava
muito, e ao Arnon de Melo, para entrevistas durante a madrugada.
Entrevistas que, uma vez terminadas, em geral íamos analisar e
discutir à mesa de um bar tomando chope até o sol nascer.
Na redação, Victor Nunes Leal marcava sua presença,
ocupava seu espaço. Fez uma carreira brilhante e conseqüente.
Apresentado por Sobral Pinto, foi Chefe da Casa Civil de Juscelino.
Ministro do Supremo Tribunal, suas sentenças formaram
jurisprudência. Hoje, em seu escritório de advogado, continua
atendendo aos seus inúmeros clientes, nacionais e internacionais,
colocando a serviço de todos a sua alta cultura jurídica. E nunca
será demais lembrar que o seu livro Coronelismo, Enxada e Voto é
um clássico. Obra indispensável à pesquisa e ao entendimento do
fenômeno administração municipal brasileira, com os seus pecados,
omissões e corrupções.
Tenho muitas saudades daquele tempo. Saudades de tudo
e de todos. Saudades amplas, irrefreáveis. Provavelmente saudades,
65
Presença
como diriam os psicanalistas, de mim mesmo, do jovem Hugo
Gouthier, de paletó e gravata em suas noturnas andanças
jornalísticas.
Para mim, jornalista é aquele que pressente, caça e
testemunha o fato. E o dirige e enriquece com a sua experiência
profissional. Jornalismo não é só dar a notícia em primeira mão.
É, principalmente, dormir com ela, acalentá-la e interpretá-la,
fecundando-a. A notícia pode fazer vibrar. Só o comentário
profundo e abalizado da notícia faz pensar.
Apesar de tantas atividades estimulantes, eu estava ficando
impaciente. As fronteiras e os limites começavam a me prender,
me sufocar. Eu tinha 26 anos. Queria muito mais. Queria o mundo.
O Encontro e o Choque
com o Mundo
69
Muitos caminhos percorri na minha vida, descobrindo
povos e civilizações. Em tantos lugares finquei minha bandeira...
E, no entanto, continuo o mesmo faminto, curioso viajante. Mais
do que respostas, posso dizer que acumulei perguntas.
Desde menino tinha paixão pela diplomacia, um
verdadeiro reino mágico aos meus olhos de criança. Nada mais
sedutor do que ter um mundo inteiro como cenário de trabalho:
hoje, Londres ou Paris, amanhã, Bangkok ou Cingapura.
Dizem os psicólogos sociais que os povos das montanhas
são calados, introspectivos, dados a viver remoendo seus horizontes
estreitos. De acordo com essa teoria, eu seria um mineiro
degenerado, pois sempre tive fome de mundo, sempre senti a fúria
de um desbravador.
As noites – sem televisão – da minha meninice, em Dores
do Indaiá e Pitangui, eu as passava devorando livros. Todos os que
me caíssem nas mãos. Mas, ao contrário dos meninos da minha
idade, não me sentia atraído por obras de ficção, histórias de
mocinho e bandido. Eu gostava de ler sobre heróis de carne e osso.
Gente que viveu e lutou em lugares marcados nos mapas da
geografia. Extasiado, li centenas de biografias seguindo os passos
“... je ne puis pour autant appréhender le monde.
Quand j’aurais suivi du doigt son relief tout entier, je
n’en saurais pas plus”.
(Albert Camus, Le mythe de Sisyphe)
O Encontro e o Choque com o Mundo
Hugo Gouthier
70
dos grandes vultos da história universal. E, curioso, quase profético
para alguém que seria um dia grande amigo e admirador de Juscelino
Kubitschek, por muitos anos foi meu ídolo Pedro, o Grande, o
famoso construtor de São Petersburgo.
À minha moda e com os modestos recursos à minha
disposição, fui me preparando para o tão almejado futuro. Era
excelente aluno de História e Geografia e depois de meus exames
no Ginásio Mineiro falava corretamente francês.
Essa minha vocação não era segredo para ninguém. E,
um dia, chegou aos ouvidos de José Carlos de Macedo Soares,
Ministro das Relações Exteriores. Eu tive a sorte de prestar alguns
serviços ao Chanceler brasileiro, procurando e deslindando alguns
processos de seu interesse no Ministério da Educação. Ele gostou
do meu sistema de trabalho – ativo e disciplinado. Ficamos amigos.
Em 1936 o DASP ainda não havia introduzido a era dos
concursos no Brasil. Ou nomeava-se alguém diretamente para a
carreira diplomática, ou transferia-se alguém de outro Ministério.
Foi o meu caso.
Talvez tenha sido muita sorte, talvez estivesse em meu
destino. Quando Paulo Vidal ia cair na compulsória, abriu-se a
possibilidade de minha entrada para o Itamaraty. Macedo Soares
mandou me chamar. Ainda me lembro das suas palavras:
– Gouthier, você quer mesmo entrar para o Itamaraty?
Eu o acho talhado para a carreira e agora deu-se uma oportunidade.
Mas tem que ser feito imediatamente. Vamos sair daqui para o
Palácio, porque hoje é dia de despacho com o Presidente.
Depois de se avistar com o Presidente, o Chanceler
chamou-me para agradecer a Getúlio Vargas a minha nomeação
71
Presença
para o Itamaraty. Getúlio, com a sua característica simpatia pessoal,
disse-me:
– Parabéns, concordei com alegria na sua entrada para o
Itamaraty. Vou mandar lavrar o decreto imediatamente.
Naquele dia, 28 de outubro de 1936, Getúlio Vargas
assinou o meu decreto de transferência do cargo que ocupava no
Ministério da Justiça para o de cônsul de 2ª classe do Ministério
das Relações Exteriores.
Passei sete meses na secretaria antes de ser designado para
o meu primeiro posto e estagiei em vários setores do Itamaraty
para conhecer a casa – o trabalho e os colegas. Hoje, os jovens
diplomatas, depois de um concurso, passam três anos estudando
no Curso Rio Branco. Eu não tive esse privilégio. Autodidata, fiz
daqueles sete meses sete anos. Tão intensa e febril era a minha
dedicação. Só pensava nisso. E nesse ideal concentrava toda a força
e o vigor dos meus 26 anos. Lendo tudo, pesquisando tudo, pus-
me a par da rotina burocrática do Itamaraty. Armazenava toda a
sorte de informações e, cercando-me de pessoas de língua francesa
e inglesa, organizei para mim mesmo uma espécie de curso
audiovisual intensivo.
E, mais do que tudo, não me limitei a me informar e
pesquisar sobre o mundo que iria tentar conquistar, recolhi o
máximo de conhecimentos possíveis sobre a realidade brasileira,
esse mundo que eu iria representar lá fora. A prova desse afã é o
livro que publiquei na Bélgica, em 1938: Le Brésil et Les Échanges
avec L’Union Belgo-Luxembourgeoise.
Dessa obra, guardo um único exemplar. E ainda me
orgulho ao folhear as páginas amareladas pelo tempo. Foi um bom
Hugo Gouthier
72
trabalho, modesto, metódico, sério. Da minha seriedade de
propósitos, são testemunhas as palavras com as quais abri o livro:
“Ao publicar o presente trabalho, propus-me, em primeiro
lugar, dar aos exportadores e industriais belgas uma idéia, a mais
exata possível, da evolução da economia do meu país; a seguir,
colocar à disposição dos exportadores belgas e brasileiros indicações
objetivas e precisas das tendências comerciais, reveladas no
momento pelos mercados belgas e brasileiros. Os dados estatísticos
aqui reproduzidos foram gentilmente postos à minha disposição
pelo Conselho Federal de Comércio Exterior e pelo Departamento
de Estatística do Brasil. Utilizei ainda as mais recentes informações
publicadas em livros e revistas. Todas emanadas de fontes oficiais e
rigorosamente controladas...”
Acho que esse pequeno e despretensioso texto dá uma
nítida idéia de quem era eu, aos 27 anos, cônsul de 2ª classe.
Designado para a nossa embaixada em Bruxelas,
embarquei para a Europa num imenso transatlântico francês e tive
um memorável bota-fora. O cais cheio de parentes e amigos. Eu,
do tombadilho, emocionado, acenando ao som de J’ai deux amours:
Mon pays et Paris, que a orquestra de bordo atacava com entusiasmo
levemente desafinado.
As viagens de navio, notadamente as dos lentos navios
dos anos 30, dão ao ser humano a pausa necessária à adaptação.
Não é dormir no Rio e acordar em Paris. É ir se afastando
lentamente. É abrir um parêntese no real e no cotidiano para
que mente e corpo se acostumem. Desembarquei em Boulogne-
sur-Mer. E não esperei mais nada: fui me deslumbrando ali
mesmo.
73
Presença
Até hoje, desafio qualquer brasileiro, de qualquer idade
ou região, a conhecer melhor, admirar mais do que eu Boulogne-
sur-Mer, onde passei três dias em 1937. Percorri a cidade
lentamente, palmo a palmo, bisbilhotando tudo, deixando que a
atmosfera, o ambiente, penetrassem-me os sentidos. Perdi horas
na contemplação das praias do outro lado do Atlântico, como se
estivesse mergulhando no avesso, ou no direito, de Copacabana.
Era a sensação estranha de estar na Europa ainda não estando.
Sem pressa ou ansiedade, pois Paris ficava ali na esquina, me
esperando.
Daquela primeira estada em Paris, guardo a inesquecível
lembrança do impacto e do tumulto. Essa lembrança que é muito
mais delírio que lembrança.
A mistura da cor, do cheiro, dos sons. Da Sainte-Chapelle
com o Moulin Rouge, dos cais do Sena com Versailles, dos bistrôs
com os salões do Louvre, do teatro clássico com as vitrines
alucinantes dos grandes boulevards. De repente, em pleno Jardim
das Tulherias, pensei comigo mesmo: “Eu já estive aqui.” Claro,
estivera. Nas páginas dos livros devorados na minha adolescência.
Hugo, Dumas, Daudet... autores prediletos de uma geração de
típica formação francesa. Assisti a belíssimos e inesquecíveis
espetáculos. Ainda me lembro de Les femmes sont belles, com Cécile
Sorel, no Tabarin.
Tomei o trem em Paris e, quatro horas depois, descia em
Bruxelas. Era uma tarde abafada de verão e, como acontece muito
na úmida Bruxelas, chovia. Carlos Thompson Flores me esperava
na estação e me levou para um dos melhores hotéis da cidade, o
Hotel Royale. Dias depois, instalei-me num apartamento excelente
Hugo Gouthier
74
próximo à Avenue Louise. Naquele tempo, com o salário de um
cônsul de 2ª classe, no exterior, dava para se viver muito bem.
A minha vida e a de Thompson Flores se entrecruzaram.
Gaúcho de nascimento, ele fez os preparatórios comigo no Ginásio
Mineiro. Iniciamos nossa carreira diplomática juntos em Bruxelas.
Ambos fomos embaixadores na Itália.
Thompson Flores tinha mania de belos automóveis e me
convenceu a comprar um carro igual ao dele, um Packard dos
mais modernos. Essa foi a minha primeira providência para poder
circular e viajar. Aliás, em Bruxelas, onde chegara alguns meses
antes de mim, Thompson Flores foi meu guia e meu mestre. Sempre
que podíamos, aproveitando um fim de semana longo, dávamos
uma escapulida até Paris. A esse respeito, certa vez advertiu-nos o
Embaixador Souza Dantas:
– Se algum brasileiro lhes perguntar quando chegaram,
respondam que chegaram hoje e voltam amanhã. Ou ficarão
pensando que vocês não param em seu posto em Bruxelas.
Seguíamos o conselho apenas para evitar comentários
maldosos pois, na verdade, trabalhávamos muito em Bruxelas.
Éramos credenciados para a Bélgica e o Luxemburgo e as trocas
comerciais entre os três países eram intensas. Basta lembrar que a
Union Économique Belgo-Luxembourgeoise ocupava o quinto
lugar entre os exportadores de produtos para o Brasil, e, o oitavo
entre os importadores de produtos brasileiros.
Nosso Embaixador era Carlos Martins Pereira e Souza,
casado com a escultora e escritora Maria Martins – filha do ilustre
mineiro João Luís Alves, Ministro da Justiça do governo Arthur
Bernardes. Formavam um casal muito querido e prestigiado. Sua
75
Presença
casa era um ponto de encontro do que havia de melhor em Bruxelas.
Por suas mãos, fui introduzido na alta sociedade belga e apresentado
ao Rei Leopoldo III. Esse trágico personagem com o qual estabeleci
laços de amizade, anos mais tarde, quando voltei à Bélgica como
embaixador do Brasil e ele se encontrava praticamente confinado
no Palácio de Lacken.
A princípio, senti grande diferença de hábitos e costumes.
Nesse período, um fator positivo de adaptação foi a minha mania
de pontualidade. Sempre tive horror de chegar atrasado aos lugares,
como costumavam fazer os brasileiros para escândalo dos europeus.
Como já tive ocasião de mencionar, a vida social no Brasil – mesmo
entre os ricos e os poderosos – não tinha a sofisticação de hoje.
Tratei de agir com atenção e cautela para não chocar o requinte
das recepções belgas. Graças a Deus, sempre me saí a contento.
Mas só com o tempo desenvolvi meus talentos sociais. Hoje, sem
falsa modéstia, posso me considerar um grande conhecedor de
vinhos, especializado principalmente em Grands Crus. Em
Bruxelas, dei os meus primeiros passos nessa ciência e nessa arte.
Na Bélgica – que difere da minha preferência pois opta maciçamente
pelos Bourgogne – quando um menino nasce, o pai vai logo
tratando de organizar-lhe a cave.
Nas férias de 1938, aproveitei para viajar pela Europa de
automóvel. Lembro-me que fui com Afonso de Miranda Correia,
sogro de Glauco Rodrigues, até a Hungria, até a Tchecoslováquia,
por estradas excelentes, principalmente as autobahn alemãs.
Na verdade, sem conscientizá-lo lucidamente, passávamos
em revista o imenso campo de batalha no qual a Europa se
transformaria no ano seguinte.
Hugo Gouthier
76
Os sinais já estavam bem delineados. Na Alemanha, as
estrelas de David pichadas em amarelo nos muros dos judeus;
preparativos militares reforçando as fronteiras; movimentação de
tropas e armamentos por toda a parte.
Aparentemente, nada mudara. Teatros e restaurantes
repletos, exposições, inaugurações, festejos populares. Mas a guerra
surda rugia nos bastidores acumulando tensões. A todos os homens
de bom senso o conflito parecia inevitável... um dia. O que se
esperava era ganhar tempo. E, nessa espera, vivia-se febrilmente.
Numa atmosfera aquecida e de grande aparato, abre-se
em Nuremberg o 9º Congresso do Partido Nacional-Socialista,
para o qual o maior psicopata de todos os tempos, chamado Hitler,
mandou vir de Hofburg os emblemas do Santo Império Germânico.
E, diante desses signos sagrados para o povo alemão, em meio ao
sufocante aparato bélico, esbraveja:
– Nós somos a última Alemanha! Quando nosso
movimento chegar ao fim, daqui a muitos séculos, não haverá mais
Alemanha! Somente conosco ela poderá sobreviver, malgrado o
ódio do mundo.
Quanto mais lia essas notícias nos jornais, mais me
convencia da inevitabilidade da terrível guerra de conquista que se
anunciava. Houve um raio de esperança: Chamberlain. A Europa
chegou a respirar aliviada quando o velho do guarda-chuva foi a
Berchtesgaden, Bad-Godesberg e finalmente Munique para exibir
a sua cólera e a sua revolta na sonoridade de uma voz ameaçadora.
Às vezes vejo no cinema trechos dos noticiosos da época
e fico pensando: isso existiu! Eu estava lá! Parece incrível que um
ser humano tão grotesco quanto Adolf Hitler tenha conseguido
77
Presença
polarizar massas tão civilizadas, despertando o maior culto da
personalidade jamais visto no mundo.
A Bélgica vivia o sonho da neutralidade. Como se fosse
possível tocar a vida normalmente em cima de um barril de pólvora.
Saí de Bruxelas em janeiro de 1939. Escapei por um fio de presenciar
o sofrimento de um povo que aprendera a amar, a humilhação de
um rei que admirava e respeitava. Filho do ídolo e herói dos belgas,
Alberto I, Leopoldo III, um homem sério, simpático, um grande
estudioso, convencido de que não havia outra saída, assinou a
rendição incondicional da Bélgica, em 1940, e foi deportado para a
Alemanha.
Washington
1939
81
Meu desejo de conhecer bem o mundo se concretizava:
um ano e meio depois da chegada a Bruxelas, eu partia para
Washington. Nomeado embaixador nos Estados Unidos, Carlos
Martins Pereira e Souza solicitara a minha transferência. Fiquei
duplamente feliz, primeiro, com a consideração e apreço
demonstrado pelo meu chefe, levando-me com ele; segundo, pela
oportunidade de viver a América, outro cenário, outra civilização.
Desembarquei em Nova Orleans e, como fizera em
Boulogne-sur-Mer, iniciei as minhas descobertas devorando a cidade
menor mas cheia de encantamento. A cidade que ainda é um pouco
da Europa mas já é América.
Em Washington, instalei-me numa bela casa de
Georgetown e comprei um carro último tipo. Como já disse, o
Itamaraty pagava bem e as ajudas de custo permitiam-nos todo o
conforto.
O caso de Georgetown é muito curioso. Nos Estados
Unidos, até hoje, os brancos, encastelados em determinados bairros,
temem a invasão dos negros, e mesmo dos porto-riquenhos.
Se determinado número de famílias negras neles se instalar
as casas se desvalorizam, fazendo com que os moradores originais
Washington
1939
Hugo Gouthier
82
terminem por abandonar o local. Se ainda hoje isso ocorre, imagine-
se em 1939, quando o racismo imperava na América, os negros,
fortemente discriminados, ocupavam lugares separados nos
cinemas, nos meios de transporte, e não entravam em grande número
de lugares públicos – bares, restaurantes, hotéis e até hospitais.
Pois bem, em Georgetown deu-se o processo inverso, o único do
meu conhecimento. Um bairro modesto de negros – localizado
em situação esplêndida – foi sendo lentamente invadido pelos
brancos que ali construíram suas belíssimas mansões. Hoje em dia,
Georgetown é um chiquíssimo bairro de Washington, povoado
quase que unicamente por brancos. Quando lá cheguei, ainda havia
muitos negros, mas já moravam figuras importantes da
administração pública, políticos e milionários.
Se o meu trabalho na Embaixada de Bruxelas era grande,
na de Washington, era muitas vezes maior. Em razão da minha
inclinação natural e da minha experiência no setor, o Embaixador
Carlos Martins designou-me para o setor comercial, onde tive a
felicidade de participar de vários episódios muito importantes para
o desenvolvimento do Brasil.
Um belo dia, chega a Washington um cidadão brasileiro,
cujo nome não me recordo mais, para solicitar, em nome da Itabira
Iron Ore Corporation, um empréstimo. Nada conseguindo, foi-
se embora. Mas eu fiquei atento aos problemas e suas implicações.
Tinha seguido o desenrolar dos problemas suscitados pela extração
dos minérios de ferro do Cauê, em Itabira, Minas Gerais. Quando
o governo brasileiro concedera a concessão para extração do
minério à Itabira Iron Ore Corporation, empresa da Grã-Bretanha
subsidiária do grupo Percival Facquar, Arthur Bernardes levantou-
83
Presença
se e protestou. Nacionalista ferrenho e decidido, o primeiro que o
Brasil já teve, condenou a extração do minério para exportação
pura e simples. Exigia a sua industrialização, como fator de
progresso para toda a região.
A atitude do governo de Minas em relação ao minério de
ferro tem raízes históricas: a desenfreada exploração das suas jazidas
de ouro e diamante na época colonial, que deixou um rastro de
miséria e desolação, levando riqueza unicamente para a metrópole.
Os depósitos minerais não sendo renováveis, a posição do governo
mineiro era muito clara e acertada, e assim a exploração do Cauê
tinha que ser racional e indissoluvelmente ligada ao
desenvolvimento da região.
Por coincidência, passava por Washington, de volta de
um congresso, o engenheiro do Ministério da Agricultura Glycon
de Paiva. Conversamos muito e eu, sabendo-o grande conhecedor
de geologia, acabei lhe pedindo, em caráter particular, que me
fornecesse dados técnicos sobre as características e potencialidades
do minério de ferro brasileiro. Pouco depois, recebi um estudo
primoroso e detalhado. O que não é de se admirar, vindo de quem
veio. Glycon de Paiva, hoje conhecido e respeitado
internacionalmente, fez um belíssima carreira, tendo ocupado
postos relevantes a serviço do Brasil.
Com esse estudo nas mãos, comecei a pensar que, mais
dia, menos dia, os Estados Unidos acabariam entrando na guerra.
Precisariam de muito ferro no seu esforço bélico. Mesmo que a
Suécia não fosse invadida, conseguiriam continuar trazendo de lá
o seu indispensável suprimento de minério de alto teor de ferro e
mínimo de potássio? Foi então que eu entrevi a grande chance do
Hugo Gouthier
84
Brasil. O momento era excelente. Tínhamos poder de barganha,
podíamos vender-lhes o nosso minério nas bases exigidas pelo
desenvolvimento de Minas.
A essa altura, eu já estava bem ambientado em
Washington, mantendo relações cordiais com membros do
governo americano. Num almoço com Herbert Feiss,
conselheiro econômico do Secretário de Estado Cordell Hull,
manifestei-lhe o meu pensamento sobre o problema do minério
de ferro, do ponto de vista dos Estados Unidos e do ponto de
vista do Brasil. Feiss interessou-se vivamente, sobretudo
quando eu lhe sugeri uma solução prática para o caso: a
aplicação da Lend-Lease Bill (Lei de Empréstimo e
Arrendamento). A mesma lei que presidira recente acordo
entre a Inglaterra e os Estados Unidos para a instalação de
bases militares americanas em territórios britânicos da América
Central: a Inglaterra aceitava a instalação das bases e recebia
em troca destróieres americanos.
Feiss pensou muito no assunto e acabou me pedindo que
colocasse no papel e a minha sugestão.
Não me fiz de rogado e pus mãos à obra. O Embaixador
Carlos Martins leu o meu trabalho e aprovou-o integralmente.
Agora só nos faltava convencer o governo brasileiro.
Justo nessa época chegou a Washington uma missão
econômica brasileira. Chefiada pelo Ministro Arthur de Souza
Costa, era composta por João Daudt de Oliveira, Valentim Bouças
e Garibaldi Dantas entre outros. Tinham ido negociar um
empréstimo de 200 milhões de dólares e tratar da venda de algodão
e de outros produtos brasileiros.
85
Presença
A princípio, Souza Costa não queria conversar sobre o
minério do Cauê em Itabira, dados os antecedentes do caso e a
celeuma que havia provocado em Minas. Afinal, convenceu-se de
que esse caso era diferente. Não se tratava de entregar nossas reservas
ao estrangeiro. Fundar-se-ia uma empresa brasileira para a
exploração do minério; uma sociedade anônima composta por
capitais públicos e privados. A essa sociedade caberia o controle
total permanente de todas as operações de extração e
comercialização. Os americanos apenas nos emprestariam o
dinheiro. Pagaríamos a eles em minério através do Impor-Export
Bank. Souza Costa telefonou para Benedito Valadares e recebeu o
sinal verde do governador; uma vez que se garantisse a Minas um
percentual sobre o minério extraído em seu território, dariam todo
o apoio à iniciativa que o Governo Federal julgava oportuna.
Foi então realizada uma reunião tripartite entre o Brasil,
os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, na qual ingleses e americanos
se entenderam e firmou-se um acordo para a extinção da concessão
outorgada à Itabira Iron Ore Corporation. Fundou-se a Companhia
Vale do Rio Doce, à qual os Estados Unidos fizeram um
empréstimo de 17,5 milhões de dólares, para o início de suas
operações e reconstrução da Vitória-Minas, estrada de ferro
indispensável ao escoamento do minério pelo porto de Vitória, e
grande fator de desenvolvimento dos Estados de Minas e do
Espírito Santo.
Estava realizado o sonho de Arthur Bernardes. E a Vale
do Rio Doce teve como primeiro presidente outro mineiro ilustre,
Israel Pinheiro, mais tarde um dos responsáveis pela construção de
Brasília.
Hugo Gouthier
86
Contaram-me que ao chegar ao Brasil, numa cerimônia
pública, Souza Costa levantou-se e, sacudindo um maço de papéis,
bradou emocionado:
– Brasileiros, trouxe o Cauê de volta para o Brasil! Esse
Cauê que tem tirado noites de sono ao Presidente Getúlio Vargas.
Eu também me orgulho da minha modesta participação
na fundação da Companhia Vale do Rio Doce. O papel dessa
empresa no desenvolvimento brasileiro provou o quanto estávamos
certos.
Nessa época, cooperei com Ovídio de Abreu na questão
da Usina do Gafanhoto. Foi no governo de Benedito Valadares
que teve início a verdadeira fase de moderna industrialização de
Minas Gerais. Israel Pinheiro, com a sua visão de estadista, elaborara
os planos para a grande arrancada industrial de seu Estado. Filho
do Governador João Pinheiro, autor da célebre frase “Minas é um
Estado essencialmente agrícola”, não se conformou unicamente com
a ênfase à agricultura e à pecuária, dadas por seu pai. Seguindo o
rumo dos tempos modernos, optou pela primazia da
industrialização.
As novas fábricas, em projeto, situar-se-iam numa
revolucionária cidade industrial, centro cuja exigência fundamental
era o fornecimento abundante de energia elétrica. A melhor solução
seria o aproveitamento da Usina do Gafanhoto, que, infelizmente,
ainda estava no papel. Por isso, Ovídio de Abreu, então Secretário
de Finanças, foi a Washington buscar apoio para o desenvolvimento
do seu Estado.
O Embaixador Carlos Martins deu-lhe toda a cobertura
e designou-me para acompanhá-lo em seus entendimentos e
87
Presença
negociações com as autoridades americanas. Homem paciente e
decidido, Ovídio de Abreu resolveu permanecer em Washington
até conseguir os seus objetivos. Hospedou-se no Shoreham Hotel,
vizinho da Embaixada do Brasil, de onde só saiu meses depois,
quando obteve tudo o que queria para Minas. Ali mesmo, no seu
quarto do Shoreham, reuniu os dados e planos básicos que
elaborara no Brasil e redigiu um plano final, no qual dava ênfase à
obtenção de financiamento e autorização para a compra de
equipamentos da Usina do Gafanhoto.
Lutei com ele, abri-lhe as portas que pude de vários órgãos
da administração americana. Chegamos a acompanhá-lo, o
Embaixador Carlos Martins e eu, na entrevista que teve com Henry
Wallace – Vice-Presidente da República – e Summer Welles –
Subsecretário de Estado.
Ovídio acabou vencendo essa batalha. Conseguiu o
dinheiro, comprou os equipamentos e despachou-os para o Brasil.
Ainda celebrávamos a vitória quando, dias depois, recebemos a
notícia do afundamento por submarinos alemães do navio que
transportava o bendito material.
Começou tudo outra vez! Conseguir que o governo
americano autorizasse a reposição dos equipamentos, destruídos
pelas forças hitleristas, parecia impossível, pois as mais importantes
empresas dos Estados Unidos dedicavam-se quase que
exclusivamente ao esforço de guerra. A única saída foi incluir Minas
nesse esforço de guerra. Argumentamos que Minas era o maior
fornecedor de quartzo, material estratégico na época, necessário à
fabricação de vários equipamentos militares sofisticados. E demos
um quase ultimato: se Minas não recebesse a aparelhagem
Hugo Gouthier
88
indispensável ao seu desenvolvimento, dificilmente poderia
continuar exportando regularmente os cristais de rocha.
O nosso argumento prevaleceu. A Usina do Gafanhoto
foi construída e equipada e está lá, até hoje, fornecendo energia
hidrelétrica à Cidade Industrial.
Sempre fui um diplomata entusiasmado. Sempre me
empenhei com amor e dedicação total a todas as causas brasileiras
que me passavam pelas mãos. Nunca deixei de prestar auxílio a um
brasileiro que soubesse sofrendo fora de seu país. Quando tomei
conhecimento que Armando Salles de Oliveira, exilado do Brasil,
estava em Nova York fui visitá-lo; levar uma palavra de carinho ao
meu amigo, apoio moral a um brasileiro ilustre em desgraça. O
Embaixador Carlos Martins compreendeu e aprovou o meu gesto.
Quando foi a Washington, Armando Salles procurou-me e eu o
acompanhei em todas as visitas que fez aos monumentos históricos.
Lembro-me que ele quedou-se pensativo, talvez refletindo sobre o
futuro do Brasil, diante das célebres palavras de Lincoln, gravadas
em mármore no Lincoln Memorial: “... and that government of
the people by the people for the people shall not perish from the
earth.”
Depois, fiquei sabendo que Armando Salles estava sendo
vigiado pelo Ministro Paulo Hasslocher, que comunicava o
resultado das suas investigações diretamente ao Presidente Getúlio
Vargas.
Pearl Harbor
91
Era um dia claro e gelado, típico do inverno no hemisfério
setentrional, Garibaldi Dantas estava novamente em Washington,
como sempre, para tratar dos negócios de algodão do Brasil. Saí
com ele para dar umas voltas de automóvel antes do almoço. Era
domingo, 7 de dezembro de 1941.
Rodávamos devagar, conversando, pela estrada que corre
às margens do Potomac. Fato raro nessa época do ano, nevara
alguns dias antes e os parques estavam cobertos de branco.
– Você precisava ver isso aqui em abril, quando as
cerejeiras florescem e... – dizia eu, quando a voz do locutor, no
rádio do carro, interrompendo a música suave, cortou-me a frase:
“Esta manhã, os japoneses atacaram Pearl Harbor”. Enquanto a
informação oficial era transmitida em palavras sóbrias, de contida
fúria, percebi nitidamente que alguém ao lado do microfone:
deixava escapar: “The yellow bastards!” Bastardos amarelos! Tornou-
se o grito de guerra dos Estados Unidos. Instantes depois, ouvíamos
as palavras famosas do Presidente Roosevelt: “A day which will
live in infamy...” (Um dia que viverá na infâmia...).
Se o ataque foi traiçoeiro e vil, a guerra propriamente
não foi surpresa para ninguém. Há meses as relações entre os Estados
Pearl Harbor
Hugo Gouthier
92
Unidos e o Japão vinham se deteriorando cada vez mais. Era evidente
que a paz estava por um fio. A última esperança era um acordo
diplomático de última hora. E esse acordo parecia estar nas mãos
de Suburu Kurusu, o mais ocidentalizado dos diplomatas japoneses,
enviado especialmente a Washington pelo General Tojo.
Kurusu era velho conhecido e amigo nosso, meu e do
Embaixador Carlos Martins. Casado com uma americana, dona
Alice, pai da linda moça Fay Kurusu, servira em Bruxelas onde era
muito querido e respeitado. Assim que soube da notícia de Pearl
Harbor, Cordell Hull convocou-o e interpelou-o aos berros:
– Hoje é um dia de vergonha internacional! O senhor
nos traiu, nos apunhalou pelas costas... Ainda ontem discutíamos
acordos...
Pobre Kurusu. Tenho certeza de que ele não sabia de
nada. Era um homem decente e sensível. Um intelectual, autor de
belíssimos haicais. Não tive nunca oportunidade de discutir com
ele sobre a guerra, propriamente dita, mas muitas vezes deixou-me
entrever seus sentimentos pacifistas de profunda rejeição à violência.
E, justamente por essas qualidades publicamente reconhecidas, foi
usado pelo governo japonês para ganhar tempo e preparar a maior
de todas as traições deste século. Não sei que fim levou Kurusu.
Sei que a formosa Fay casou-se, anos mais tarde, no Japão... com
um oficial americano.
Se os americanos receberam com ódio a notícia do
ataque a Pearl Harbor, não traduziram esse ódio em gestos
desvairados de protesto. Concentraram-se na ação disciplinada
e eficiente que, desde as suas origens, presidiu a construção desse
grandioso país. Não me lembro de nenhum quebra-quebra, de
93
Presença
passeatas inflamadas... A vida continuou no ritmo de sempre, talvez
um pouco mais acelerado. Da noite para o dia, assim como surgem
na rua inesperados guarda-chuvas aos primeiros pingos de uma
forte torrente de verão, surgiram nas ruas os uniformes. De todas
as cores e feitios. Quem tinha um uniforme, qualquer que fosse a
organização a que pertencesse, vestiu-o. Como se, no Brasil, até os
membros da Academia de Letras envergassem seus fardões.
Na segunda-feira, Garibaldi Dantas e eu tínhamos uma
reunião marcada, às três da tarde, no Ministério da Agricultura.
Pensamos que, com a declaração de guerra, a reunião seria
desmarcada. Para nosso pasmo, não só ela foi mantida, à mesma
hora, como os americanos concentraram-se nas negociações do
algodão com a argúcia e firmeza de sempre. Como se tratassem de
um caso de vida ou de morte.
O Embaixador Carlos Martins organizou na embaixada
um verdadeiro serviço de inteligência para melhor informar o
governo brasileiro sobre o andamento da guerra. Tinha bons contatos
entre os americanos – amigo de Summer Welles, Secretário de Estado,
e de Adolph Berle Junior, assistente de Cordell Hull – ia quase todos
os dias ao Departamento de Estado saber como iam as coisas.
Adolph Berle, que mais tarde seria Embaixador no Brasil,
era também meu amigo. Lembro-me que um dia, num breakfast que
me ofereceu em sua casa, disse-me apontando para o mapa do Japão:
– Isso aqui, quando a guerra terminar, vamos transformar
numa colônia de pescadores...
Dessa minha primeira estada em Washington, há que
recordar ainda um episódio importantíssimo para a nossa
economia: a fundação da Companhia Siderúrgica Nacional, em
Hugo Gouthier
94
Volta Redonda, da qual o Embaixador Carlos Martins foi um dos
grandes artífices.
Os americanos eram contra a localização de uma usina
siderúrgica em Volta Redonda, longe do ponto de extração e longe
do porto. Defendiam a sua implantação em Itabira, ou mesmo em
Vitória, no Espírito Santo. Carlos Martins cooperou muito com
Ernâni do Amaral Peixoto, então governador do Rio de Janeiro.
Sua atuação foi decisiva para os bons resultados da missão brasileira
a Washington chefiada pelo Dr. Guilherme Guinle e integrada,
entre outros, pelo General Edmundo Macedo Soares e Byington
Júnior.
Apesar do racionamento de gasolina e das dificuldades
inerentes à guerra, tive oportunidade de conhecer os Estados
Unidos de costa a costa. Fiz amigos para toda a vida e acumulei
recordações preciosas. E, no momento em que escrevo estas linhas,
ainda ecoam em meus ouvidos a bem-humorada música que as
rádios não se cansavam de repetir então: “Praise the Lord, but pass
the amunition...” (Louve o Senhor, mas passe a munição...). Foi
uma grande lição de vida e de valor. E é com imensa nostalgia que
recordo aqueles anos de minha juventude.
A Última Ofensiva
de Hitler
97
Cheguei a Londres em meados de setembro de 1944. Fazia
pouco mais de três meses que a BBC, utilizando como código os
plangentes versos de Verlaine, avisara aos povos dominados da
Europa que a invasão da Normandia estava em marcha. Os mais
otimistas esperam o fim da guerra para qualquer momento. A
Alemanha, no entanto, contra todas as expectativas, luta ainda,
ataca, encontra forças para seus estertores desesperados.
Naquela época, os quadros do Itamaraty eram bem
menores, havendo até uma certa dificuldade de preencher-se as vagas
em todas as representações do Brasil no exterior. Por motivos
óbvios, o posto de Primeiro-Secretário na Embaixada de Londres
não era dos mais cobiçados... Posso dizer até que fui como
voluntário. Como nunca tive medo de nada – nem de bala, nem de
fome – acedi prontamente ao convite que me fez o Ministro
Oswaldo Aranha.
– Gouthier, você não quer ir para Londres? Sei que você
é um homem com determinação para enfrentar uma missão dessas
e terei muito gosto em assinar o seu decreto de transferência.
– Com o maior prazer, ministro. O senhor me designe
que eu parto imediatamente para Londres.
Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone
(Paul Verlaine, Chanson d’Automne)
A Última Ofensiva de Hitler
Hugo Gouthier
98
Mas entre o dizer e o fazer, entre a pressa de um jovem
cheio de garra e a concretização dos seus objetivos, havia um oceano
cheio de submarinos inimigos. Fui para a Inglaterra devagar via
Nova York, onde fiquei num hotel esperando o aviso de que havia
lugar para mim num avião do Air Transport Comand. No dia
combinado, um oficial veio me buscar e me levou até a base, em
Baltimore, onde finalmente embarquei para Londres.
As viagens em transportes de guerra eram das mais
desconfortáveis, já que não havia poltronas e cada um se acomodava,
como podia, nos estreitos bancos laterais totalmente ocupados.
Para passar o tempo, fui conversando – de Nova York a Londres
– com o editor do Star and Stripes, jornal do Exército americano
distribuído em vários países aliados. Discutindo todos os problemas
que inevitavelmente enfrentaríamos no pós-guerra. Como a maioria
da população americana e européia, criticamos acerbadamente os
acordos de Yalta, prevendo as disputas que surgiriam sobre as
chamadas “zonas de influência”.
Hoje, quando a relembro, parece-me profética aquela
conversa inflamada entre um jovem diplomata brasileiro e um jovem
jornalista americano. Só tempos depois, a tensão que os dois
prevíamos ganharia um nome: guerra-fria. A verdade é que os
russos acabavam sempre levando a melhor nos acordos. O que é
fácil de compreender: enquanto o governo dos Estados Unidos e
dos outros países aliados tinham que, democraticamente, dar
satisfações à opinião pública ansiosa pelo término das hostilidades,
Stalin não dava satisfações a ninguém, negociava de mãos livres,
como melhor entendesse. Além do mais, doente e profundamente
abatido, Roosevelt, obviamente, cedia à opinião de alguns de seus
99
Presença
assessores imbuídos de ideais de esquerda. Ainda acredito que a
exigência de uma rendição incondicional da Alemanha foi um
lamentável equívoco. Tratados de paz – em separado – teriam
evitado erros fundamentais como, por exemplo, a formação do
Corredor de Berlim; teriam tornado a organização da vida no pós-
guerra muito mais tranqüila para os povos do ocidente.
Vinha pelos ares discutindo o futuro do mundo e, assim
que desembarquei, levei um choque do presente. Servira em
Bruxelas antes da guerra, em Washington, durante a guerra mas
longe do front; nada que lera ou vira nas telas tinha me preparado
o suficiente para a desolada visão de uma Londres devastada pelos
bombardeios. Até hoje, ainda posso sentir aquele cheiro
característico de pó e de fogo. Mas se a terra era arrasada, a alma
dos ingleses permanecia íntegra, firme. Nesses quase cinco anos de
conflito, tinham desenvolvido um completo esquema de
comportamento que lhes permitiu não só resistir com dignidade à
guerra como até vencê-la.
É nesse exato momento da minha chegada que os chefes
aliados se reúnem em Quebec para resolver o tratamento a ser
dispensado ao povo alemão depois da rendição incondicional,
esperada até o fim do ano, no mais tardar. Nessa reunião aprovam
o terrível plano Morgenthau, de acordo com o qual toda a indústria
alemã será destruída, todas as fábricas demolidas. A Alemanha “será
transformada num país agrícola de caráter pastoril. O Japão, numa
colônia de pescadores”. Esse plano, aceito sem muita convicção,
nunca será posto em prática, ou condenaria à morte um dos povos
essenciais da Europa, desativaria o dínamo da Ásia. Mas fornece
aos alemães uma razão para morrerem de armas na mão.
Hugo Gouthier
100
Hitler reúne forças para a última ofensiva. Para
reconstituir seus exércitos destruídos, decreta o alistamento em
massa de todos os alemães de 16 a 60 anos. Quer dizer: arrebanha
feridos mal curados, velhos, quase crianças... Mesmo assim farão
número e se baterão como desesperados. Às vésperas da paz, na
madrugada de um novo dia na nossa história, a luta recrudesce.
Caem as bombas, às centenas, e os céus da Inglaterra novamente se
iluminam das chamas da destruição, como nos piores tempos da
blitzkrieg.
Fui recebido em Londres, com simpatia e carinho, pelo
nosso Embaixador J.J. Muniz de Aragão e pela Embaixatriz D.
Belita, todos dois descendentes de brasileiros ilustres. Ele, do Duque
de Caxias, ela, de Rodrigues Alves. Bem relacionados e hospitaleiros,
muito facilitaram a minha adaptação aos dias difíceis que a Inglaterra
atravessava.
Assim que me hospedei no hotel Claridge’s deram-me
instruções de como devia agir em caso de bombardeio. Afixado na
porta do meu quarto havia um quadro de outras instruções mais
precisas, explicando o caminho e a seção do abrigo subterrâneo do
hotel que o ocupante daquele quarto devia procurar.
Naquela primeira noite tive o meu batismo de fogo. Senti
na pele as aflições por que passam as populações civis de uma cidade
bombardeada. Por volta de uma hora da manhã fui acordado pelas
sirenes do hotel. Barulho capaz de despertar um morto. Seguindo
as recomendações, calcei apenas os chinelos e joguei meu sobretudo
por cima do pijama. E não me lembrei de mais nada, cheguei por
instinto ao lugar que me estava reservado nos porões do hotel
transformado em abrigo. Outros hóspedes, empregados, homens
101
Presença
e mulheres, foram chegando, com ar de habitués, como quem
cumpre uma rotina banal. Não vinham em silêncio, não gritavam,
trocavam idéias em tom normal, como se apenas continuassem uma
longa conversa há muito tempo encetada. Sentei-me no chão, a um
canto, entre um senhor careca e uma lourinha magra, de cabelos
enrolados sob espessa rede e um creme gorduroso espalhado sobre
o rosto. Falou-me com detalhes das rosas que cultivava em sua casa
no Devonshire. Só parou de falar quando as sirenes anunciaram o
fim do bombardeio. Então, polidamente, desejou-me boa noite e
fomos todos dormir. Uma hora depois, as sirenes tocaram
novamente. No abrigo, senti falta do senhor careca. À medida que
os alarmes se sucediam, os freqüentadores iam escasseando. No
último, já manhã alta, estávamos sozinhos, eu e uma senhora com
um bebê de colo.
Não custei muito também a me habituar à cidade de ruas
escuras e janelas sem luz, aos faróis dos carros cobertos de pano
preto, à própria batalha aérea executada diretamente sobre as nossas
cabeças. Nunca vi espetáculo mais impressionante do que a caça
dos aviões ingleses às bombas V1, metralhando-as para que
explodissem no ar, causando menos dano lá do que no solo.
Comecei a achar natural a grande massa da população
masculina vestir-se dos mais variados tipos de uniformes e acabei
por reconhecer com facilidade não só as nacionalidades – ingleses,
americanos, australianos, etc. – e as armas a que pertenciam, como
cheguei a identificar até os regimentos.
Os grandes hotéis – Savoy, Claridge’s, Dorchester –
funcionavam como se nada houvesse, apenas a comida não era lá
essas coisas. Em Picadilly havia pequenos bares animadíssimos onde
Hugo Gouthier
102
se reuniam jovens dos quatro cantos da terra mas principalmente
americanos.
Os almoços no Claridge’s, como até hoje, eram famosos,
um verdadeiro ponto de encontro de celebridades. Todas muito
bem recebidas sob o olhar atencioso de Charles Manta, um maître
em grande estilo. Nesse hotel, onde morava também o Rei George,
da Grécia, tive oportunidade de travar conhecimentos que me
foram utilíssimos na estada em Londres. Lá reencontrei John
Foster, meu colega de Washington, onde trabalhava na Embaixada
inglesa, comissionado no posto de General, chefe dos Serviços
Jurídicos do Exército inglês. Amável e prestativo, o meu amigo
prestou-me relevante ajuda. Conseguiu-me, por exemplo, a coisa
mais difícil de se obter naqueles tempos negros, um apartamento
em Mayfair, o ponto mais chique e cobiçado da cidade.
Foi realmente uma sorte e um achado. Muito bem
relacionado, Foster soube que esse apartamento, de propriedade
de uma companhia de seguros, ia ser entregue pelo seu locatário,
Lorde Baldwin, ex-Primeiro-Ministro. Imediatamente apresentou-
me como candidato e aconselhou-me a fazer um contrato por nove
anos, dispensando a “cláusula diplomática” que me permitiria
rescindi-lo no momento da minha transferência da Inglaterra.
Graças a esse bom conselho, quando deixei Londres, três anos
depois, passei adiante o aluguel do apartamento com excelente ágio.
Em resumo, morei três anos na Inglaterra – de graça – numa
maravilhosa penthouse, com salão de recepção, dois quartos, dois
banheiros, ricamente mobiliada e, last but not least, na esquina de
Grosvenor Square com South Audley Street... o coração do
esnobismo londrino.
103
Presença
Além do apartamento lindo e uma empregada fabulosa –
Mrs. Ivy – eu tinha condições de servir ótima comida, o que não
era freqüente na maioria dos lares ingleses, submetidos a estrito
racionamento. Além dos generosos cupons oferecidos ao corpo
diplomático, eu era um privilegiado, fora nomeado representante
do Brasil no Comitê de Exportadores de Carne. Tinha direito a
tanta carne que distribuía entre os colegas da embaixada e os amigos
mais chegados. É preciso que se diga que não houve proteção alguma
nessa minha nomeação. Alguém tinha que representar a América
Latina juntamente com a Argentina e o Uruguai. Apesar do Brasil
ser pequeno exportador de carne, fui designado para o posto.
Por essas e por outras, minha casa vivia cheia de amigos.
Uma open-house permanente. A essa altura, eu já tinha uma roda
imensa de relações, graças sobretudo a Bob Notman, um homem
de extraordinário talento para o convívio social.
Brasileiro, de tradicional família paulista, jovem ainda fora
para a Inglaterra estudar. E foi ficando. Secretário particular de
Lord Beaverbrook – um dos homens mais poderosos da Inglaterra,
amigo íntimo de Churchill, dono de importante cadeia de jornais
encabeçada pelo Daily Express de Londres – Notman teve
oportunidade de conhecer todo mundo. Não era nem bonito nem
rico – pelo contrário, ganhava pouquíssimo como auxiliar
contratado da Embaixada brasileira – mas graças ao seu charme e à
sua extrema simpatia era muito querido e popular. Como os amigos
de Bob Notman acabaram meus amigos, conservo até hoje amizades
daquela época.
Uma locomotiva da sociedade londrina de quem fiquei
muito amigo era Lady Bailey, uma mulher extraordinária.
Hugo Gouthier
104
Americana, descendente dos Vanderbilts, inteligente, alegre,
interessante sem ser bonita, tinha propriedades espalhadas pelo
mundo inteiro. Morava também em Grosvenor Square, num prédio
que mais tarde foi vendido para que nele se construísse a Embaixada
americana. Em Leeds, a uns 30 quilômetros de Londres, tinha um
impressionante castelo que pertencera a Henrique VIII. Todo
remodelado interiormente, com os confortos modernos exigidos
por uma americana milionária, o castelo tinha ainda um campo
particular de golfe de 18 buracos!
Conheci Lady Bailey por intermédio de uma de suas filhas
casada com um americano, que era da nossa roda em Washington.
E ela me convidou para passar o meu primeiro weekend na
Inglaterra, no castelo onde costumava oferecer fins de semana
famosos a personalidades mais famosas ainda. Não sei como ela
conseguia, em plena guerra, mas seus jardins eram primorosamente
bem cuidados, sua mesa, farta e bem servida; seus hóspedes, tratados
como reis. Teria provavelmente velhos empregados de toda a vida.
Haveria cerca de 30 convidados e, excelente anfitriã, Lady
Bailey procurava não só deixar todo mundo à vontade como tentava
descobrir o passatempo predileto de cada um. E fui então
submetido a um constrangedor diálogo:
– O senhor joga golfe?
– Infelizmente, não.
– Tênis, talvez?
– Receio que não.
– Já sei. Pratica equitação!
I am sorry, Lady Bailey, nem isso... – respondi
cabisbaixo, sentindo-me um ser desprezível, completamente inútil.
105
Presença
Mas Lady Bailey não era mulher de se deixar vencer sem
lutar e, num súbito rasgo de inspiração, exclamou:
– Nesse caso, tem que jogar cartas!
– Um poquerzinho eu jogo. – Suspirei aliviado.
O dia inteiro senti-me observado, delicadamente, a
distância. Ao entardecer, Lady Bailey já tinha compreendido que
há mais esportes sobre o céu e a terra do que os preferidos, em
massa, pelo povo inglês. Na hora de formar as mesas de jogo,
chegou-se a mim e confidenciou-me com sutileza vitoriana:
– Vou sentá-lo ao lado da mais bela mulher do Reino
Unido. – E segredou-me ainda mais baixo. – Please, be nice to
her.
Aquela noite, em vez de contar o número de bombas VI
caídas, como de costume, passei contando os inumeráveis atributos
de Lady X. Os visíveis e os adivinháveis.
Terminado o jogo, a dona de casa pediu-me que
acompanhasse a formosa hóspede até os seus aposentos que, por
feliz coincidência, ficavam justamente ao lado dos meus. Aposentos
prenhes de história, pois, segundo conta a lenda, era deles que
Henrique VIII costumava assistir à missa e, provavelmente, rogar
a Deus que lhe desse forças para casar com tanta freqüência. Antes
de alcançar os nossos apartamentos, que ficavam numa ala do castelo
oposta à dos salões, tivemos que atravessar os jardins. Era pleno
outono, uma estação linda no campo inglês. E ainda me lembro
dos passos leves de Lady X pisando as folhas secas caídas sobre a
grama. Chegados aos aposentos a nós destinados, convidei-a para
tomar uma taça de champanha em minha suíte. E ela aceitou com
a maior naturalidade...
Hugo Gouthier
106
Antes de passar adiante, quero lembrar que, naquele
weekend no castelo de Lady Bailey, presente quase todo o
ministério britânico, ouvi muitas conversas sobre os líderes da
guerra.
Fiquei sabendo, por exemplo, que Winston Churchill, o
grande líder conservador, o maior artífice da vitória dos aliados,
agüentava tudo, menos mulher feia. Saía mais cedo de qualquer
jantar onde constatasse que a maioria das mulheres era feia. Mais
tarde, encontrei referências a essa simpática idiossincrasia em dois
de seus livros: A Crise Mundial e Memórias de Guerra. Obras,
aliás, indispensáveis a quem desejar conhecer os bastidores da
Segunda Guerra Mundial.
Despeço-me com pesar do castelo de Lady Bailey e volto
para o meu apartamento em Londres, minhas ocupações e o hobby
que contraí então, para o resto da vida. Sem falsa modéstia, sei que
sou um homem de bom gosto, um apreciador da beleza e da
harmonia. Adolescente, já me interessava e lia muito sobre os
movimentos artísticos. Vivendo na Europa, aprendi a degustar
museus. Mas foi pela mão de Josias Carneiro Leão que me tornei
um colecionador. Hoje, embaixador aposentado e dono de uma
das melhores coleções de arte do Brasil, Josias, então Primeiro-
Secretário como eu, contagiou-me da sua paixão e apresentou-me
aos principais marchands-de-tableaux de Londres.
Diplomatas no exterior, sempre teve mania de comprar
prata, porcelana, tapetes. “Eu tenho tantos quilos de prata, e você?”
É uma das perguntas que mais se ouve na nossa carreira. Eu nunca
tive essa mania. Companhia das Índias, tapetes orientais, prata
inglesa contrastada, antigüidades nunca fizeram muito o meu
107
Presença
gênero. A procura, a descoberta, as negociações e a compra de
bons quadros foi a minha grande mania londrina. Principalmente
porque, no fim da guerra, com tão pouco dinheiro circulante para
tão prementes necessidades, conseguia-se comprar telas maravilhosas
por uma ninharia. E, ainda por cima, à prestação... Comecei a
percorrer as galerias de arte, a namorar dias um quadro, a entabular
longas negociações. Tornei-me um especialista na arte de pechinchar.
Meu primeiro quadro foi um Picasso. Comprei-o pela
quantia exata de 450 dólares. E, assim mesmo, para escândalo de
alguns amigos que comentaram a minha loucura de dar tanto
dinheiro por um Picasso. Vendi-o muito mais tarde por 100 mil
dólares; hoje valeria uns 2 milhões de dólares. Em seguida, adquiri
um Duffy, depois dois Modigliani... chegando a formar uma
pinacoteca razoável.
Quando em 1968 fui violenta e arbitrariamente cassado
pela revolução – só porque era amigo de Juscelino, a quem odiavam
de tanto invejar – tive que me desfazer de alguns quadros para
comprar o meu apartamento em Paris. Lá conservo ainda algumas
das minhas preciosidades que revolução nenhuma no mundo me
obrigará a vender. Um Chagall, por exemplo, que é o quadro
predileto de minha mulher.
Evidentemente, não colecionei só quadros... Aos 34 anos
tive muitas namoradas, de todas as nacionalidades. Mas nunca hei
de me esquecer de Rose, uma bela inglesa de olhos azuis, sem
maiores compromissos com a coerência. Cheia de inesperados e
originais arroubos, foi talvez a mais divertida. Vivia se queixando
das imensas filas que tínhamos que enfrentar para ver um filme de
cinema. Filas das quais só as senhoras grávidas estavam isentas. Pois
Hugo Gouthier
108
bem, um dia marcamos encontro na porta de um cinema. E Rose
me surpreende chegando, muito tranqüila, com uma enorme barriga
de travesseiro sob o vestido. Naquela época, um pouco de alegria,
umas boas risadas, valiam qualquer sacrifício, qualquer ousadia...
era preciso esquecer a guerra. Saíamos do cinema e, em geral, íamos
para o Millroy, a mais barulhenta boate da cidade. Nos tornamos
freqüentadores tão assíduos que lá tínhamos guardada a nossa
própria garrafa de uísque.
O problema do uísque merece uma referência especial.
Era praticamente impossível comprá-lo na Inglaterra, cuja fome
de divisas obrigava a exportar até a última garrafa. Os diplomatas
tinham direito a importar tudo o que quisessem, pudessem e
conseguissem. Nós então importávamos de volta algum do uísque
escocês que a Inglaterra exportara. E íamos buscar na alfândega,
pagando-o em dólares... Artifícios para sobreviver com graça e
dignidade!
Enquanto a paz não vinha, eu trabalhava intensamente,
nomeado que fora Encarregado de Negócios do Brasil junto ao
governo dos países ocupados com sede em Londres: Bélgica,
Holanda, Iugoslávia, Noruega, Polônia e Tchecoslováquia. Foi
assim que conheci muito rei, muito chefe de Estado e tive
oportunidade de prestar-lhes alguns relevantes serviços.
Mal a Alemanha assinou a rendição, fui procurado pelo
Ministro das Relações Exteriores da Polônia. Comunicou-me que
a Inglaterra estava para reconhecer, por aqueles dias, o governo
socialista de Lublin; mais uma vitória russa para desespero de muitos
poloneses que não se conformavam de sair de uma guerra contra o
fascismo para cair nas mãos do comunismo. Ciente desse desagrado,
109
Presença
a Inglaterra oferecera a cidadania inglesa a todos os soldados
poloneses descontentes que se encontrassem em Londres. A maioria
recusou, revoltada com o que consideravam uma atitude pusilânime
e traiçoeira da Inglaterra. Perguntou-me então o Ministro se estaria
disposto a conceder vistos brasileiros aos poloneses – gente
trabalhadora e qualificada – que pretendiam se instalar no Brasil.
Mas isso teria que ser feito com a maior rapidez, antes que o governo
de Lublin fosse reconhecido. Na mesma hora consultei por telefone
o Itamaraty e recebi permissão para agir como melhor me parecesse.
Em dois ou três dias dei mil e tantos vistos. Dos quais, uns 300
fixaram-se no sul do Brasil. Imigração de primeira ordem para um
país que despertava para a era industrial: engenheiros, mecânicos,
técnicos de todas as áreas. Gente que veio, adaptou-se, gostou, ficou
e trabalhou para o nosso desenvolvimento. Até hoje recebo visitas
de poloneses radicados no Paraná e em Santa Catarina, ainda gratos
por tê-los eu encaminhado à sua nova pátria. Muitos fizeram
fortuna.
No dia em que a Alemanha finalmente assinou o tratado
de rendição incondicional, o povo inglês suspirou aliviado e
literalmente explodiu de alegria. A cidade toda iluminou-se de fogos
de artifício. Cantava-se e dançava-se nas ruas. Picadilly Circus,
naquela época o verdadeiro coração popular da cidade, foi baile,
foi feira, foi comício. E lá fui eu com a multidão. Com tanto
entusiasmo e distração, que nem senti quando um ladrão me aliviou
do relógio de ouro.
A mais do que merecida festa de um povo castigado, de
um povo heróico, durou pouco. Era mister reconstruir a cidade,
apagar o rastro do sofrimento e da dor. E já no dia seguinte
Hugo Gouthier
110
formaram-se as brigadas de voluntários. Voluntários para todos
os tipos de serviço. E, com a mesma determinação e coragem com
que enfrentaram a guerra, os ingleses puseram-se árdua e
laboriosamente a trabalhar para a paz. Foi nessa época que revoadas
de brasileiros começaram a chegar a Londres. Eram missões
econômicas, enviados especiais, estudantes, turistas. O fluxo de
intercâmbio recomeçava.
A primeira visita oficial de autoridades brasileiras foi a
do Ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura.
Assinou a 21 de setembro de 1946 um acordo comercial com a
Grã-Bretanha. Durante sua estada em Londres homenageei-o com
uma recepção em meu apartamento.
Lembro-me bem da chegada do novo adido militar,
General José Pessoa, acompanhado da família. Uma família de dar
orgulho ao Brasil. Ele, um homem extremamente elegante, culto e
educação, casado com D. Mary, uma grande dama. As filhas,
Elizabeth e Joy, fizeram sucesso em Londres pela sua graça e beleza.
Anos mais tarde viriam a se casar com os meus amigos Rogério
Marinho e Antônio Seabra Moggi.
De 1945 a 1948 fui um dos diretores do Conselho de
Administração e Reabilitação das Nações Unidas – UNRRA –
plano do governo americano destinado a ajudar os países devastados
pela guerra – como representante não só do Brasil mas de toda a
América Latina. Uma de nossas incumbências era distribuir as
verbas destinadas aos países necessitados. Nessa época, viajei muito
a serviço da UNRRA. Os representantes dos países vinham a nós
solicitar ajuda e nós, além de examinarmos minuciosamente seus
dossiês, muitas vezes íamos verificar in loco a justeza de suas
111
Presença
pretensões. Nosso trabalho era imenso, não se limitava à
distribuição das verbas; cabia-nos a seleção de pessoal especializado,
a organização administrativa dos projetos de recuperação e o
posterior acompanhamento e fiscalização dos trabalhos.
Eram todos casos dramáticos que envolviam altas somas.
Como no caso da Iugoslávia, por exemplo que requisitava uma
verba de 50 milhões de dólares, para a sua reconstrução. Dissequei
toda a papelada e cheguei à conclusão de que a sua pretensão era
justificada. Meu voto foi decisivo para a concessão dessa verba de
50 milhões de dólares.
No papel, isso parece muito fácil, uma questão de cifras.
Na verdade, ao conhecer ou negar certas verbas, dávamos veredictos
de vida ou de morte para povos inteiros. Era um caso de consciência
delicadíssimo já que o dinheiro concedido pelos americanos, através
da UNRRA, apesar de generoso, era limitado. Ilimitados eram a
destruição, a fome, as enfermidades, o desespero. Aqueles papéis,
submetidos ao nosso escrutínio, não vinham apenas cheios de
números, vinham empapados de lágrimas e sangue. Com essa aguda
consciência, procurei julgar todos os casos que me chegavam às
mãos.
O mundo despertava do pesadelo da Segunda Guerra
Mundial. Consciente de que era preciso vasculhar-lhe as causas,
por mais remotas em extensão e profundidade, para que não
acontecesse uma terceira. E vivemos então a fase terrível da exibição
de culpas inimagináveis. Vêm à tona os horrores dos campos de
concentração, dos guetos, das torturas, do genocídio. E, enquanto
os criminosos de guerra são julgados em Nuremberg, os povos se
unem na Organização das Nações Unidas para assegurar que crimes
Hugo Gouthier
112
como esses nunca mais possam ocorrer. Em abril de 1945 é
promulgada em São Francisco, na Califórnia, a Carta das Nações
Unidas. A primeira, a histórica Assembléia-Geral, reúne-se em
Londres em janeiro de 1946. Uma espécie de vestibular da ONU.
O Embaixador Ciro de Freitas Vale era o nosso delegado.
E eu fui designado Secretário-Geral da Delegação, cujo chefe era o
Embaixador Souza Dantas. Encarregado da parte de chancelaria,
eu tratava da cozinha da casa, como costumamos dizer no
Itamaraty. Nessas modestas funções de bastidores – que no entanto
exigiam concentração e agilidade mental – segui passo a passo
aquelas memoráveis sessões. Enfronhei-me tão a fundo nos
problemas mundiais que, finda a Assembléia-Geral, fui designado
membro do Grupo Consultivo de Peritos da ONU.
É curioso como tudo na minha vida se encadeia numa
seqüência lógica e harmoniosa. Vivi a guerra e testemunhei a paz.
Passei no tumultuado vestibular de 1945 e, por assim dizer, recebi
o meu diploma quando, em 1953, fui designado alternate do
Delegado do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York. E
não vou me alongar nesses preparatórios, porque eles não foram só
meus, são de um mundo inteiro que ainda hoje tenta aprender a
difícil lição da convivência pacífica. E, além do mais, constam de
milhares de compêndios de História.
Quero apenas dedicar algumas palavras ao Embaixador
Souza Dantas de quem, desde então, tornei-me grande amigo. Uma
figura ímpar como cultura e visão e como pessoa humana.
Residente em Paris havia mais de 47 anos, Souza Dantas nunca
tivera a curiosidade de atravessar a Mancha. Foi uma experiência
fantástica mostrar a ele e à sua companheira Marie Bell – famosíssima
113
Presença
atriz francesa – a minha Londres. Prazer que dividi com Paulo
Carneiro, que também fazia parte da delegação brasileira. Deixamos
Souza Dantas cheio de remorsos por ter negligenciado tanto a
Inglaterra... Quando fui transferido para Paris, ele já não era o
embaixador do Brasil mas continuamos amigos inseparáveis pela
vida afora. Sempre que chegava a Paris, ia visitá-lo. Quase sempre
acabávamos no teatro, assistindo a uma peça de Marie Bell.
Maravilhosa tanto em comédias ligeiras, como La bonne soupe,
quanto em tragédias clássicas, como a sua inesquecível Phèdre.
Depois de sua morte ainda me fez uma terna surpresa.
Deixou-me como lembrança a sua espada de embaixador. Recebi-a
das mãos de Paulo Carneiro com um recado de Souza Dantas:
“Apesar de não termos servido juntos, quero com esse gesto
significar-lhe o meu reconhecimento pelo seu carinho e apreço.”
Admirável Mundo Novo
117
Ao regressar de sua viagem de inspeção à FEB, em fins de
1944, o Marechal Eurico Gaspar Dutra foi recebido pelo Presidente
Vargas. Conversaram longamente. Passo a palavra a Osvaldo
Trigueiro do Vale, que assim descreve a cena em seu livro O
General Dutra e a Redemocratização de 1945:
– “Presidente, a oficialidade acha injusto que os brasileiros
morram nos campos de batalha da Itália para implantar a democracia
na Europa, quando aqui no Brasil não há democracia.
– Eu também quero a democracia e acho que já está na
hora. – respondeu Getúlio entre duas baforadas de charuto. – Até
já conversei a respeito com o Ministro da Justiça, Dr. Marcondes
Filho. Vou pedir a ele que o procure amanhã para lhe expor a
nossa idéia de uma Constituição Corporativa.
– Presidente, eu já ouvi falar nessa democracia corporativa.
Não me entusiasma a palavra. Prefiro dizer que o Brasil precisa de
uma democracia mesmo.”
Essa pequena cena registra muito bem o temperamento e
as convicções do Marechal Dutra. Homem de poucas palavras, ia
direto ao assunto. Profunda e sinceramente legalista, não admitia
artifícios e subterfúgios. Sempre lutou para fazer deste país uma
... Presidente, o que o Brasil precisa é
de democracia mesmo.
(Eurico Gaspar Dutra)
Admirável Mundo Novo
Hugo Gouthier
118
democracia. Uma democracia sem adjetivos. Uma democracia
mesmo.
Rapaz modesto, reservado e estudioso, Dutra nasceu com
a vocação militar. E se formou dentro do mais puro estilo da Escola
Francesa. Quando, como capitão, fez a Escola Superior de Guerra,
teve excelentes mestres: a Missão Militar Francesa, chefiada pelo
General Gamelin. Ao contrário da Escola Militar Alemã, que tão
nefasta influência exerceu em vários países da América Latina, a
Escola Francesa preconizava o Exército como “o grande mudo”.
Organismo não-intervencionista, criado para garantir a ordem,
manter as instituições e defender as autoridades legitimamente
constituídas. Nessa mentalidade arraigadamente legalista, Dutra
pautou toda a sua vida. E tanto colaborou para a queda do ditador
Vargas, quanto empossou – na data aprazada – o Presidente Vargas
eleito pelo seu povo.
Conheci pessoalmente o Marechal Dutra em Washington,
onde eu servia, quando de sua visita oficial aos Estados Unidos.
Fui designado pelo Embaixador Maurício Nabuco para organizar
e acompanhar a programação da comitiva presidencial composta,
entre outros, pelo Ministro das Relações Exteriores Raul Fernandes
– por quem sempre tive imensa admiração, pelo Castello Branco –
hoje nosso Embaixador na Grécia, e pelo João Dutra – filho do
Presidente.
Calado, quase tímido, discreto inclusive no trajar, não
fosse a sua posição como chefe de Estado, Dutra poderia passar
despercebido. Era preciso penetrar na sua intimidade para
descobrir-lhe a firmeza e a energia, e a visão clara e moderna que
tinha do seu país e do mundo. Só mais tarde, Chefe do Cerimonial
119
Presença
da Presidência, tive o prazer de privar da sua intimidade, quando
ele me convidava quase todos os dias a partilhar o seu almoço frugal
no palácio e conversávamos sem reservas. Mesmo assim, eu me
lembro que ele ouvia muito mais do que falava e, quando o fazia,
era sempre de forma serena e ponderada. Equilíbrio e moderação
talvez sejam as palavras que melhor definam Eurico Gaspar Dutra,
um grande Presidente, a quem o Brasil não fez ainda a devida justiça.
Já Truman era um homem descontraído e brincalhão.
Recordo que, no jantar que o Presidente Dutra lhe ofereceu,
Truman inesperadamente me apontou e disse:
– Aquele ali é amigo da minha filha Margaret.
Era mesmo. Naquela época Washington ainda era uma
cidade relativamente pequena e todos se conheciam. Muito
simpática, Margaret iniciava a sua carreira de cantora. A esse
respeito, diga-se de passagem, nada enfurecia mais o Presidente
Truman do que ouvir a menor restrição aos talentos artísticos da
filha.
Depois da grande recepção na Embaixada fomos todos –
a comitiva do Presidente Dutra, o Embaixador Nabuco e Margaret
Truman – terminar a noite em minha casa com champanha e música
brasileira.
Ainda permaneci algum tempo em Washington, cidade a
que me afeiçoara, centro de decisões políticas internacionais e grande
escola diplomática.
Quando Francisco D’Alamo Louzada foi promovido a
embaixador, sendo designado para um novo posto, ele e João Dutra
indicaram o meu nome para assumir o seu cargo no Palácio do
Catete. Fui então posto à disposição da Presidência pelo Itamaraty.
Hugo Gouthier
120
Minhas funções como Chefe do Cerimonial, em 1950, resumiam
o que hoje é executado por um batalhão de gente de vários órgãos
e departamentos. Cuidávamos, é claro, do protocolo das
apresentações de credenciais, dos banquetes, recepções e
festividades de todos os tipos, mas tínhamos também a tarefa de
preservar a imagem do governo, num cuidadoso trabalho de
relações públicas. Por vezes, funcionávamos como o porta-voz
do Palácio.
Digo preservar, e não criar uma imagem pois,
extremamente severo e conservador, Dutra jamais aceitaria a
sugestão de modificar o menor dos seus gestos para agradar a alguém.
Felizmente, não tínhamos que enfrentar as câmaras de televisão,
nossos contatos eram basicamente com a imprensa escrita e com o
rádio. Nesses delicados contatos – em que uma palavra mal escolhida
pode acarretar graves conseqüências – minha prévia experiência
jornalística muito me valeu.
Nessa mesma ocasião, o Marechal Dutra assinou o
seguinte decreto secreto, referendado por todos os Ministros:
“O Presidente da República resolve designar o General
de Exército Newton de Andrade Cavalcanti, Chefe do Gabinete
Militar da Presidência da República, o Ministro Plenipotenciário
Hugo Gouthier de Oliveira Gondim e o Coronel Pedro da Costa
Leite, Chefe do Gabinete da Secretaria-Geral do Conselho de
Segurança Nacional, para, em comissão, sob a presidência do
primeiro:
a) Articular com os órgãos governamentais competentes
a execução pronta das medidas deliberadas para a defesa
econômica do País, em face da situação mundial;
121
Presença
b) Sugerir a adoção de medidas complementares que, em
determinados casos, se fizerem necessárias para o fiel
cumprimento das decisões do governo.”
Curioso decreto em que a segurança nacional é associada
à defesa econômica do país! Curioso, hoje em dia, quando segurança
nacional em geral é associada a problemas ideológicos e políticos.
Em 1950, a deterioração econômica era considerada a grande ameaça
que o decreto sigiloso nos mandava combater.
Nos dias que correm, o mundo todo enfrenta a crise
econômica gerada pelos preços do petróleo. A de 1950 resultava
da escassez de materiais do pós-guerra. Nossas atribuições, nessa
comissão, eram principalmente manter-nos atentos e bem
informados, tomar conhecimento das dificuldades enfrentadas por
vários órgãos públicos e empresas privadas. E levar ao governo
não só a notícia desses problemas, como, muitas vezes, soluções
sugeridas por aqueles que os enfrentavam diretamente.
Era um serviço estimulante e gratificante que nos
obrigava a conversas diárias com os Ministros das várias pastas e
coleta de informações nos mais diversos níveis empresariais. Em
resumo, éramos os porta-vozes, os descomplicadores, os que
aproximavam o governo dos que mais necessitavam de medidas
governamentais.
Aprendi muito com o Presidente Dutra, um homem de
vontade de ferro mas cujo livro de cabeceira era a Constituição.
Tive o prazer de participar do seu governo. Vi de perto o quanto
ele soube prezar a democracia e desprezar os desvios
anticonstitucionais; o quanto de dedicação emprestava ao cargo
que desempenhou de forma tão natural, simples e eficiente.
Hugo Gouthier
122
Só uma coisa não aprendi com Dutra: madrugar... Às
cinco e meia da manhã ele já estava pronto para os despachos no
Catete. Todos nós, seus assessores mais diretos, tínhamos que
acompanhá-lo. Eu, um homem visceralmente da noite, um bom
boêmio, tomava minhas precauções. Por exemplo, mantinha num
armário na minha sala no palácio um traje de passeio completo.
Muitas vezes saí do Golden Room diretamente para o Catete,
tomando apenas o tempo de trocar o smoking antes de entrar no
salão do Presidente.
Se começava cedo, o expediente também terminava cedo.
Às dezoito horas, impreterivelmente, o Presidente se recolhia. Esses
hábitos morigerados me traziam algumas dificuldades na programação
dos eventos sociais da Presidência. Mesmo no caso de ilustres visitantes
estrangeiros, o jantar devia ser servido às 20 horas para que o início
das recepções nunca ultrapassasse as 21 horas. Certa vez, foi quase que
impossível para mim conciliar os horários espartanos do Marechal
Dutra com os horários descontraídos do Presidente Videla, do Chile.
Fiz verdadeiros malabarismos de cronometragem e finalmente consegui
que, tendo o Presidente Videla se despedido, o Presidente Dutra
pudesse retirar-se às 22 horas. Amante da noite e cheio de amigos que
fizera no Rio quando Embaixador do Chile, Videla apenas fingira
retirar-se estrategicamente. Assim que o Dutra saiu, ele voltou e a
festa foi até de madrugada.
Muita gente só se lembra de Dutra como o “Presidente
que fechou os cassinos e o Partido Comunista”. Ele fez muito,
muito mais do que isso. Deu um exemplo de governo flexível e
humanizado, de uma administração limpa, metódica, livre de
nepotismos e empreguismos.
123
Presença
E nunca será demais lembrar o Plano SALTE no qual,
pela primeira vez na nossa história, pensava-se na solução
programada dos problemas de saúde, alimentação, transporte e
energia. Nesse primeiro esboço de Brasil grande, apresentado em
Belo Horizonte por ocasião de sua campanha eleitoral, Dutra
ocupou-se ainda da educação e produtividade agrícola e industrial.
Temas inspiradores que levantou e debateu na presença de Benedito
Valladares e Juscelino Kubitschek, respectivamente governador de
Minas e prefeito de Belo Horizonte.
Para Eurico Gaspar Dutra não havia nada mais sagrado e
mais legítimo do que o voto popular. Foi com indignação que
recebeu, no final do seu mandato, a sugestão de prolongá-lo não
empossando o novo presidente eleito, Getúlio Vargas.
Certa feita presenciei uma cena típica das reações do
Marechal Dutra. Estávamos na sua sala de despachos, Dutra, José
da Cunha Ribeiro e eu. Anunciado, entrou na sala o General
Zenóbio da Costa. Vinha fardado, tenso e com o quepe embaixo
do braço. Cumprimentou o Presidente, fez-nos um leve aceno de
cabeça e colocou o quepe sobre a mesa.
– Presidente, comenta-se na cidade a iminência de um
golpe que visa mantê-lo no poder – afirmou Zenóbio ainda um
tanto empertigado.
– Tolices, boatos – cortou Dutra serenamente. – Passarei
o cargo ao meu sucessor no dia previsto pela Constituição.
– Nesse caso, Presidente, darei uma declaração aos jornais
negando a veracidade desses boatos.
– Se o senhor fizer isso, general, mando prendê-lo
imediatamente.
Hugo Gouthier
124
E Dutra levantou-se, muito sério, dando por terminada a
audiência. Zenóbio pediu licença e retirou-se tão apressadamente
que esqueceu o quepe sobre a mesa. Se bem me lembro, foi o Cunha
Ribeiro que correu atrás dele para entregá-lo. Para o Marechal
Dutra, o simples fato de um oficial-general perder tempo em
desmentir um boato desses constituía uma quebra grave de
disciplina.
Diplomacia em
“D” Maior
127
“... A diplomacia moderna requer dos seus agentes, sobre
vasta capacidade de trabalho, bons nervos.”
“... Hoje em dia, o agente diplomático lida com questões
de engenharia e de pintura; de biologia e de música; de política
com P grande e mesmo infelizmente com p pequeno; de comércio
e de administração pública.”
“... E a verdade é que o indivíduo nasce diplomata. As
qualidades do diplomata são intrínsecas, a observação e a experiência
podem, evidentemente, desenvolvê-las, mas não podem criá-las onde
não existam de nascença...”
Talvez essas poucas frases já possam dar uma idéia do que
é esse pequenino imenso livro de Maurício Nabuco: Algumas
Reflexões sobre Diplomacia. Obra básica, eu não diria apenas para
os diplomatas brasileiros, mas para todos os funcionários dos
Ministérios de Relações Exteriores do mundo. Pois nela, meu
grande mestre o Embaixador Maurício Nabuco, graças à lucidez
da sua mente brilhante, consegue sintetizar o vir a ser e o ser de um
diplomata, no mesmo estilo altivo e despojado de seus outros livros.
Não creio que haja existido jamais alguém com maior
visão crítica da sua profissão do que Maurício Nabuco. Conhecia-
Diplomacia em “D” Maior
Hugo Gouthier
128
lhe todos os meandros, as potencialidades e os perigos, as amplas
perspectivas e os desvãos obscuros. Porque, antes de mais nada,
possuía uma percepção nítida, gestáltica, do mundo como um todo
e do seu país nesse mundo; da humanidade como um corpo vivo e
de si mesmo como parcela celular dessa humanidade.
Eu tinha pouco mais de dez anos de Itamaraty quando
fui designado para Washington onde ele era embaixador. Maurício
Nabuco foi na realidade o meu mestre no Itamaraty. Estimulou-
me a voar com as minhas próprias asas, guiando-me com o apoio
da sua aprovação e o farol do seu exemplo.
Dizem os filósofos orientais que o exemplo não é o melhor
caminho do ensinamento... é o único. Foi com a sua própria vida
que Maurício Nabuco ilustrou as qualidades que considerava
essenciais para o exercício da diplomacia. E como ele gostava muito
de gráficos e mapas, darei aqui um esquema das virtudes capitais
do meu amigo e mestre, utilizando palavras suas para explicitá-las:
Paciência - “Nas carreiras de acesso, é preciso aguardar
vaga para subir. E quase sempre todas as vagas provêm do infortúnio
alheio: aposentadoria, demissões, falecimentos. Passar uma vida
inteira esperando dissabores de terceiros não será, certamente, a
melhor forma de desenvolver sentimentos nobres, nem elevação
de espírito.” Maurício Nabuco trabalhou anos na Secretaria de
Estado sem aceitar excelentes postos no exterior. Só em 1934, três
anos depois da fusão do quadro da Secretaria com os dos corpos
diplomáticos e consultar, concordou com a sua designação para
embaixador do Brasil no Chile porque “já então as vagas do antigo
pessoal de Secretaria haviam beneficiado sobremodo o pessoal do
corpo diplomático. Assim pude aceitar sem prejudicar ninguém”.
129
Presença
Imparcialidade - “Não há lugar, no corpo diplomático,
para agentes influenciáveis que, neste ou naquele posto, se deixam
levar por preferências pessoais contra ou a favor de nações, regimes,
indivíduos ou castas.” Seguindo as pegadas do seu ilustre pai,
Maurício Nabuco era visceralmente anti-racista. Nas grandes causas
e nos pequenos episódios constrangedores. Eu me lembro, por
exemplo, que numa festa em Washington, oferecida à sua sobrinha
Vivi, filha de seu irmão José, percebendo que rapaz nenhum tirava
as filhas do embaixador da Abissínia para dançar, foi pessoalmente
providenciar pares para elas entre os secretários da embaixada.
Tenacidade - “A tenacidade, sem a qual nada se leva a cabo,
é também indispensável, como o são a coragem física e moral.
Aquela, para expor com franqueza situações por vezes
desagradáveis e evitar aborrecimentos maiores...” Imensa prova de
tenacidade deu Maurício Nabuco na Conferência de Havana, em
julho de 1940, quando se discutiu a questão da administração
provisória das colônias. Apresentou um projeto e defendeu-o até a
total aprovação da sua tese, tendo que enfrentar e dobrar o temível
Cordell Hull. Vitória tão legítima que, anos mais tarde, quando
seu nome foi proposto como embaixador do Brasil em Washington
e temia-se que os Estados Unidos lhe recusassem o agrément, foi
concedido com a maior presteza e simpatia. Coragem também
nunca lhe faltou. Durante a guerra foi às frentes de batalha visitar
os pracinhas debaixo do fogo alemão.
Discrição - “É talvez a mais difícil de empregar-se com
proveito, visto que só convém ser discreto com discernimento e
medida. A discrição carrancuda, de olhar vago, esquivo, é a mais
comum e certamente a mais inútil. Só muita agilidade de espírito
Hugo Gouthier
130
permite ser discreto sem se parecer apalermado, ou, o que é pior,
malcriado.” Superiormente discreto soube ser Maurício Nabuco
ao não mencionar, sequer uma vez, as razões que o levaram a
afastar-se do Itamaraty, cinco anos antes da compulsória, com
aquela impressionante dignidade que foi para todos uma lição de
conduta.
Como seu pai Joaquim Nabuco, atuou em Washington
de maneira intensa. Atravessou os Estados Unidos, de costa a costa,
falando aos estudantes das universidades, divulgando o Brasil de
uma forma tão contagiante que os levava a percebê-lo como um
país autônomo, líder de um grande continente. Isso, numa época
em que os americanos tinham olhos unicamente para a Europa.
Bem relacionado internacionalmente, jantava com
Churchill e almoçava com Roosevelt. Pode-se dizer que, através
do seu imenso amor pelo Brasil, não o representava apenas,
personificava-o.
Maurício Nabuco ensinava a todos nós que ser diplomata
não é somente exercer a diplomacia. Um diplomata deve se interessar
por todos os problemas do Brasil, mesmo os mais alheios à carreira
diplomática. Assim, ele me explicava que não poderia haver
integração nacional sem a uniformização das bitolas das estradas
de ferro, e citava, como exemplo, o esforço dos Estados Unidos
unindo a costa do Atlântico ao Pacífico sem mudar de trem. Esse
seu interesse pelo Brasil poderia ter evitado muitos equívocos no
sistema ferroviário brasileiro.
Lembro-me dele, revejo-o sempre em pensamento,
igualmente à vontade, em suas duas moradias: no Itamaraty e na
velha casa da família, na Rua Marquês de Olinda, entre a solenidade
131
Presença
de paredes construídas por escravos, os longos corredores, o
pequeno elevador interno que usei tantas vezes...
Depois que ele morreu, recebi uma carta de José Nabuco,
seu irmão e testamenteiro, dizendo-me que ele me havia deixado
um peso de papel. Está aqui, neste instante, como sempre estará,
sobre a minha mesa de trabalho. Uma lembrança de carinho de
um amigo inesquecível.
Os Anos Dourados do Rio
135
Avatlântica, Avatlântica, aqui me tens de volta! Tão
completamente, que às vezes me pergunto se jamais saí, fui embora.
Tantas vozes, tantos rostos, tantas terras longínquas percorridas
não teriam sido um sonho? Se a verdade de um homem, a mais
pura, é a sua juventude, então a minha é a Avatlântica que descortino
desta janela aberta sobre a piscina do Copacabana Palace. Debruço-
me sobre o mar e mergulho nas gostosas recordações do passado.
Dos dias em que, muito menos bem-instalado, divertia-me muito
mais. Dos anos dourados do Rio de Janeiro.
Na década de 40, certamente não haveria uma jovem de
topless deitada ali, tostando-se ao sol. Não haveria tantos carros,
tanta pressa e tanto susto. Como dizia o poeta, naquela época “a
Olhos verdes sem dó de mim,
Ai Avatlântica!
Ondas da praia onde morais,
Olhos verdes intersexuais.
Ai Avatlântica!
Olhos verdes sem dó de mim,
Olhos verdes, de ondas sem fim,
Ai Avatlântica!
Olhos verdes, de ondas sem dó,
Por quem me rompo, exausto e só,
Ai Avatlântica!
Olhos verdes, de ondas sem fim,
Por quem jurei de vos possuir,
Ai Avatlântica!
Olhos verdes sem lei nem rei,
Por quem juro vos esquecer,
Ai Avatlântica!
(Manuel Bandeira, Alumbramentos)
Os Anos Dourados do Rio
Hugo Gouthier
136
escola era risonha e franca”. Talvez porque a miséria ainda fosse
mantida a uma prudente e higiênica distância, a tecnologia ainda
não houvesse descoberto a poluição, a violência ainda não explodisse
em assaltos e agressões. Talvez, apenas porque eu fosse jovem...
A noite
Eu tinha uma turma grande de amigos, das mais
animadas, liderada pelos irmãos Silveira – Guilherme e Joaquim
– incrivelmente criativos e imaginosos em tudo o que se referisse
a boas farras e boemia. Naquele tempo, se usava muito as
expressões: farra, farristas... Sem conotações malévolas ou
críticas. Às vezes até com uma ponta de admiração. Faziam parte
do nosso grupo: Hugo Meira Lima, Álvaro Portinho –
denominado Alvaralhão, pela sua estatura imponente – Nelson
Baptista, Aloysio Salles, Mário Reis, Armando Serzedelo
Correia – mais conhecido como Le Bel Armand, por motivos
óbvios – Horácio de Carvalho, Carlos Novis, Clementino
Lisboa, Ângelo Sertório, Appius Fabrizzi, Walther Quadros,
José Campos de Oliveira, Orlando Meringolo e outros. Uma
juventude boêmia, ousada mas sadia. Nem se pensava ou se falava
em drogas. Eu acho até que a maconha, pelo menos no Brasil,
ainda nem tinha sido inventada. Nosso esporte predileto era a
corrida de obstáculos. Correr atrás das mulheres ou fugir
correndo das mulheres, conforme o caso.
Tudo girava em torno do Copacabana Palace. Uma
passada pelo Golden Room era obrigatória antes ou depois de
qualquer programa. Como, aliás, tinha sido desde a sua construção
137
Presença
em 1922, podendo-se dizer que a moderna Copacabana nasceu e
floresceu do sucesso do seu tradicional hotel.
Os irmãos Guinle caracterizavam-se por uma visão
grandiosa do futuro do Rio. Suas casas forma verdadeiros marcos
da cidade, inesquecíveis pontos de referência. Na ilha de Brocoió,
na Avenida Atlântica, no Parque Guinle, no Flamengo ou no
Parque da Cidade, todas tinham o indelével sinete da família: classe,
conforto, grandiosidade. Por isso, não é de se admirar que Otávio
Guinle, o mais observador de todos, dedicasse grande parte da sua
vida a um hotel que passou a ser o centro social da Capital Federal.
Otávio Guinle, mais do que marcar uma época, fez uma
época. Convocou o engenheiro francês M. Guire para que
construísse na esplêndida faixa de terreno da família, na Avenida
Atlântica – ao lado da casa dos Duvivier, dos Berardinelli e da
Mère Louise – um grande hotel na tradição dos melhores da Europa.
A fachada do Copacabana lembra muito a do Hotel Negresco de
Nice, por exemplo.
Otávio Guinle foi um dos precursores da ciência da
hotelaria, ensinada hoje em dia, a nível de curso superior, em várias
universidades da Europa e dos Estados Unidos. Alguém me disse
que os subterrâneos, a infra-estrutura operacional de um desses
imensos hotéis modernos, a parte escondida, enfim, é muito maior
do que a parte exposta aos hóspedes. São as cozinhas, as despensas,
as caves, as copas, as rouparias, as lavanderias, os escritórios, as
oficinas de todos os tipos... Muitos hotéis até já são dirigidos por
computador. Pois bem, Otávio Guinle era um computador
humano, um hoteleiro autodidata dos mais refinados. Bem-nascido,
bem-viajado e bem-informado, era um epicurista detalhista. Com
Hugo Gouthier
138
o paletó guardado em um pequeno armário do seu escritório, de
suspensórios largos e amabilidade de um verdadeiro gentleman,
controlava o seu império. Todos os dias, em passadas firmes,
percorria, pelo menos duas vezes, a extensão do seu reino.
Atravessava a pérgula, examinava o fundo da piscina, comentava
com o maître, inspecionava a cozinha e os bastidores do teatro, a
carpintaria. Sabia tudo. Passava os dedos nos móveis, dava pela
falta de um cinzeiro.
Profundo conhecedor da natureza humana, selecionava
como ninguém o seu pessoal e soube fazer escola. Avaro de gestos
e palavras, sabia comandar e transformou o seu staff no melhor e
no mais talentoso do Rio. Ninguém até hoje pode esquecer de
Ferry Wunsh, o maître dos maîtres, homem de mil olhos, memória
infalível e profissionalismo exacerbado, chefe e amigo de seus
colaboradores, alguns dos quais trabalharam até recentemente no
Copacabana Palace, como, por exemplo: Emílio Castilla da Costa,
Francisco de Rezende Lobo, José Pinto de Almeida, Agostinho
Reimão da Conceição, José de Oliveira – o popular Três por Dois
(sempre trabalhou três dias seguidos, folgando dois). Garçons que
representam a tradição viva de um hotel, a memória de uma cidade.
Outra pessoa que não se pode esquecer é Geraldo Ávila Alvim,
conhecido por Mineiro, que entrou para o Copacabana Palace em
1951, menino ainda, colocado pelo Senador Tancredo Neves e hoje,
o Mineiro é uma peça fundamental aos freqüentadores da pérgula
do Copacabana para os recados e mensagens telefônicas.
A história de Ferry Wunsh é digna de um príncipe russo
da noite parisiense. Iniciou a sua carreira em 1915 como aprendiz
do famoso L’Oie d’Or, de Praga, onde serviu muitas cabeças
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Presença
coroadas: o Rei Afonso XIII da Espanha, o Rei Alberto da Bélgica,
a Rainha poetisa Marie da Romênia, o Rei Carol, o Rei Fuad el
Awal (pai de Farouk), o Rei Zaghu da Albânia, o Ràs Tafari da
Abissínia...
Foi Otávio Guinle que inventou uma das maiores
instituições das décadas de 40 e 50: o Barão Max Von Stuckart.
Descobrindo-o na Europa em plena guerra, trouxe-o para o Copa.
E os shows do Barão, espetáculos notáveis de brilho e bom gosto,
mudaram a noite carioca.
O Barão saía percorrendo o Brasil de norte a sul à procura
das mais belas mulheres, contratava os melhores figurinistas,
cenográfos, coreógrafos para as suas riquíssimas produções. Mas é
preciso dizer que, nessa época, o dinheiro rolava solto na noite,
nas mesas de roleta, bacará e chemin de fer. E foi o Barão que
inaugurou a Meia-Noite, uma boate bem menor que o Golden
Room, mais aconchegante e sofisticada – com suas mesas de espelho
a refletirem as jóias e os decotes. Para mim, na lembrança e na
saudade, a mais gostosa boate do mundo e dos tempos.
Oscar Orsntein e Caribé da Rocha por muitos anos
dirigiram a parte artística do Copacabana Palace. Foram eles os
responsáveis pelas apresentações no Rio de Edith Piaf, Sammy Davis
Junior, Ella Fitzgerald, Nat “King” Cole, Tonny Bennet, Charles
Aznavour e tantos outros nomes mágicos.
Foi no Golden Room, na noite de estréia do show Em
Busca da Beleza, que sofri o impacto da presença fulgurante de
Maria Della Costa. Quase uma adolescente, a linda gaúcha aparecia
seminua e o seu corpo escultural nos tirava o fôlego, arrasava
corações. Muitos anos mais tarde, tivemos o enorme prazer de
Hugo Gouthier
140
recebê-la em Roma onde ela participava de um festival de cinema.
Maravilhosa como sempre mas já então artista consagrada de teatro
e televisão. Mulher cujo talento associado à força de vontade
transcendeu a própria beleza, transformando-a num verdadeiro
mito das nossas artes cênicas, adorada por gerações. E, quem quiser
conhecer a outra face do sucesso é só ir até Parati e encontrar a
Maria Della Costa hoteleira refinada. Seu pequenino hotel,
impregnado de sua feminilidade gaúcha, oferece, além da comida
esplêndida e que não engorda, um carinhoso atendimento
personalizado.
Falar em Golden Room é lembrar Gisela e Carlos
Machado, dois nomes que são verdadeiros sinônimos do showbiz
brasileiro. Iniciando-se no Cassino da Urca, Carlos Machado em
pouco tempo conquistou a cidade inteira, sendo unanimemente
eleito Rei da Noite. Mas o ponto alto de suas carreiras, a
consagração definitiva, eles a conseguiram com a montagem, no
princípio da década de 60, do maior de todos os musicais brasileiros,
um show de categoria realmente internacional: O Teu Cabelo Não
Nega, com música do imortal Lamartine Babo.
O Copacabana Palace sempre esteve repleto de gente
famosa, personalidades notáveis das mais diversas áreas registraram
seus nomes no Livro de Ouro. Lá aparece o de Santos Dumont,
em 1928, e o de Stefan Zweig, em 1936... Eu mesmo, através dos
anos, cruzei em seus salões com Marlene Dietrich, Rita Hayworth,
Kim Novak, Lana Turner, John Wayne, Rock Hudson e tantos
outros. E, numa noite de estréia no Golden Room, não só cruzei
com a belíssima Illona Massey no apogeu da sua fama. Caí por ela.
E, como a célebre intérprete de Balalaika também não resistiu aos
141
Presença
meus encantos, nosso amor foi eterno... enquanto durou: o prazo
de uma semana.
Muitos momentos importantes, muitas páginas da nossa
história foram escritas entre as quatro paredes de um apartamento
do Copa. No que Arthur Bernardes Filho ocupava, por exemplo,
consolidou-se a candidatura de Juscelino Kubitschek ao governo
de Minas. Lembro-me do encontro que tivemos, Horácio de
Carvalho e eu, para discutir o apoio do PR de Minas a JK, e Arthur
Bernardes nos recebeu de manhã com champanha e caviar. Naquele
dia, contrariando seus hábitos de homem simples, Juscelino comeu
caviar e bebeu champanha. Meses depois, quando no mesmo lugar
e às mesmas horas celebrávamos a vitória, exausto da campanha ele
preferiu um sólido café com leite.
Se alguém um dia for escrever com amor e carinho a
história da noite carioca, provavelmente começará assim: e no
primeiro dia fez-se o Copacabana Palace, no segundo fez-se o Vogue
e no terceiro, o Sacha’s.
Depois de um “divórcio amigável” com o Copacabana
Palace, o Barão construiu o seu pequeno hotel e a sua famosa boate,
da qual dizia o Príncipe Ali Khan: “É o único lugar do mundo
onde se pode comer bem a qualquer hora da noite.” Talvez devesse
dizer “da noite e do dia”, já que as noites do Vogue terminavam
sempre depois das nove da manhã. E não se podia fazer por menos,
ninguém tinha coragem de sair antes, envolvidos todos na magia
do ambiente. Atmosfera dirigida e supervisionada pelos olhos
atentos e penetrantes do maître Luiz, que até hoje pontifica no
Special de Ipanema. No pequeno palco do Vogue, apresentavam-
se os maiores nomes da música de então, de Leny Eversong a Juliette
Hugo Gouthier
142
Greco, de Aracy de Almeida a Danny d’Auberson. Nas mesas, ou
na minúscula pista de danças, comprimiam-se os fiéis habituais e os
visitantes ocasionais de apenas uma noite de glória.
No dia 15 de agosto de 1955 espalhou-se pela cidade
estarrecida e desolada a trágica notícia: o Vogue estava em chamas.
Incêndio que não só destruiu um verdadeiro clube de celebridades
como levou a vida de dois grandes amigos de todo mundo:
Waldemar e Glorinha Schiller. Incêndio que encerrou um período
da vida noturna do Rio e expôs ao ridículo o Major Sadock de Sá,
do Corpo de Bombeiros. Aquele que virou marchinha de carnaval
juntamente com a cordinha que aconselhava a todas as senhoras
manterem sob o travesseiro para casos de incêndio.
Falando do Vogue, recordo-me de um caso curioso e
inusitado. Havia ao seu lado um prédio desapropriado para as
obras de alargamento da avenida. Mas a sua derrubada vinha se
arrastando e o monstrengo continuava lá, no meio da rua,
poluindo o visual e atrapalhando o trânsito. O problema tornou-
se crucial no momento da visita do Presidente Eisenhower,
quando o cortejo devia passar pela Prado Júnior. Tive então uma
idéia que transmiti a Juscelino: destruir o prédio a dinamite. Hoje,
a palavra seria implodir. Juscelino gostou e marcou a implosão
para a madrugada do dia seguinte. E lá fui eu, junto com o Otto
Lara Resende, para o inusitado programa: assistir em meio a uma
multidão de curiosos a inédita experiência de implosão de um
edifício no Brasil.
O Sacha’s foi o primeiro e único competidor que o Vogue
jamais teve. Separando-se do Barão, Sacha Rubin abriu a sua própria
boate, ali no Leme de saudosa memória. Sua marca era a música
143
Presença
suave para um estilo de vida que os americanos tão bem definem
na expressão intraduzível: gracious living.
Sacha Rubin, que começou a estudar música na primeira
infância, aos 17 anos já era profissional. Pianista romântico, seu
estilo encantou Viena, Zurique, Carlsbad, Baden-Baden,
Chamoniz, Saint-Moritz, Budapeste, Cairo, Alexandria, Beirute,
Damasco, Bagdá, Istambul, Ancara, Londres e, provavelmente,
todos os outros nomes do mapa, se não tivesse vindo de Londres
para o Rio, onde fixou-se para sempre. Recentemente fui com o
Bernard Campos ouvi-lo em Petrópolis, no restaurante Le Moulin.
Foi uma noite de saudade e nostalgia. Na melhor forma de ontem,
de hoje, de sempre, seus dedos eternos, brincando com as teclas,
tocaram para nosso enlevo doces noturnos de Chopin.
E, antes que esmoreça a noite e se anuncie o raiar do dia,
preciso recordar meus tumultuados amores com Teda Diamant.
Não me lembro mais em que madrugada nossos caminhos se
cruzaram, se foi no Vogue, no Sacha’s ou, mais provavelmente, no
verdadeiro e supremo templo da boemia que era a boate do Assírio.
Sei apenas que me encantei com a sua beleza loura, com o sonoro
nome francês a encobrir o sangue quente italiano. Me encantei
tanto, me envolvi tanto, que comecei a cobri-la de presentes: flores,
bombons, perfumes, e até jóias. O escritório de advocacia do João
Neves da Fontoura, com o qual eu colaborava, terminara a
liquidação do Banco Pelotense de Minas Gerais e eu entrara num
bom dinheiro, como pagamento dos meus serviços. Sentia-me rico
e agia como tal. Eis senão quando, estava eu, uma tarde, conversando
no Amarelinho da Avenida Rio Branco numa roda de amigos, e
um homem se aproximava e nos oferecia para comprar uma placa
Hugo Gouthier
144
de platina com brilhantes – na época, a jóia mais cobiçada das
mulheres. Quase me cai o queixo de espanto quando reconheço o
broche que dera a Teda apenas uma semana antes. Não havia
sombra de dúvida: era o mesmo! Furioso, saí dali para o Hotel
Itajubá, onde morava a minha amada, a tirar satisfações. Toda a
minha revolta, toda a minha fúria derreteram-se em imensa
gargalhada quando ela, fixando em mim seus olhos rasos d’água,
protestou na maior inocência:
– A culpa foi sua! Você me enganou! Eu pensei que você
fosse gigolô e, de repente, você vira coronel! Eu tive que arranjar
outro gigolô para mim!
O dia
Nas décadas de 40 e 50, até a maneira do brasileiro morar,
vestir-se e viver sofreu radical transformação. Dois homens foram
fundamentais para essa mudança: Henrique Liberal e Walther
Quadros.
Antes de Henrique Liberal, a decoração de interiores era
praticamente desconhecida. Os brasileiros de maior poder
aquisitivo mobiliavam a casa enchendo-a de pesadas peças de
jacarandá. Sala de jantar, quarto de dormir eram encomendados
ao Leandro Martins ou ao Laubisch. Muitos tapetes, cristais,
veludos, quadros franceses, prata inglesa e um ou outro toque
oriental. Henrique foi o primeiro decorador do Brasil. Achando
um pecado usar-se à beira do mar móveis pesados, imitações do
europeu, acabou com isso tudo. Ainda me lembro do apartamento
de sua irmã, a internacional Dulce Liberal Martinez de Hoz – por
145
Presença
muitos anos considerada a mulher mais elegante e bela de Paris –
no qual, para escândalo de muitos, Henrique fez uma decoração
revolucionária. Mandou cobrir os sofás daquele algodão listrado
típico de calça de imigrante português, iluminou as janelas com
cortinas de lonita de cores vivas, casando os móveis de estilo de
Dulce com o sol tropical lá fora.
Walther Quadros, um homem que transmitia bom gosto
a tudo o que tocava, teve o seu primeiro sucesso com uma casa de
modas. James, chamava-se, e contava com a direção segura do célebre
camiseiro Lespion, que Walther importou especialmente da
Argentina para fazer escola aqui no Rio. A roupa que o carioca
elegante de todas as classes sociais veste até hoje – os ternos, os
ombros, as golas, as camisas, os lenços de seda, os sapatos, as meias
longas – vem de Walther Quadros, que era pessoalmente muito
elegante, só perdendo para o Aloysio Salles que, por sua vez,
disputava o título de melhor dançarino com o Nelson Baptista. E,
diga-se de passagem, nenhum deles era milionário, filho de pai rico.
Naquele tempo era possível ser alguém, viver com classe e categoria
com muito pouco dinheiro.
A segunda vitória de Walther Quadros foi a revista
Sombra. Tudo o que hoje não se discute mais, faz o deleite da
classe média, e até das classes menos favorecidas economicamente –
os potins sobre gente famosa, o relato de acontecimentos sociais
notáveis, desfiles de moda, concursos de beleza – saía pela primeira
vez no Brasil nas páginas de uma revista. Walther fazia tudo na
Sombra, da diagramação aos contratos de venda de espaço
publicitário. Ele mesmo fechava negócio com os anunciantes. Graças
à Sombra, por exemplo, os desfiles de Miss Elegante Bangu
Hugo Gouthier
146
obtiveram êxito e repercussão nacionais. Como os modelos eram
desfilados por lindas mulheres de sociedade – Lourdes Catão, Tereza
Souza Campos, Dolores Guinle e muitas outras mais – o algodão
brasileiro ganhou prestígio, saiu da envergonhada prateleira das
chitas e passou a exibir-se em grandes noites nos salões.
A Sombra estava presente em todas as festas, fosse baile
de debutantes ou baile glamour girl, recepções oficiais, torneios,
concursos. Havia um jantar de casaca e champanha depois do
espetáculo da Comédie Française? A Sombra estava lá. Chegava o
Duque de Alba? A Sombra ia recebê-lo.
As colunas sociais
E já que estou falando da revista Sombra e outros
precursores, acho melhor fazer um parêntese para os dois homens
que abriram as portas do colunismo social, essa nova modalidade
de jornalismo hoje inteiramente consagrada em todo o mundo
ocidental: Jacinto de Thormes e Ibrahim Sued.
Nascido Manuel Bernardez Muller – Maneco, para os
amigos – surgiu pela primeira vez com o pseudônimo Jacinto de
Thormes, em 1943, no Diário Carioca, levado pelas mãos de
Prudente de Morais Netto. Com ele surgiu a palavra colunista,
pois antes, quem escrevia sobre assuntos sociais, políticos e
diplomáticos eram os cronistas, o primeiro dos quais foi João do
Rio e, o mais famoso, Gilberto Trompowski – que se assinava
G.D.A. Jacinto de Thormes fez escola e não tardou muito para
que uma febre de colunas sociais invadissem os jornais de todo o
país, até das menores cidades do interior. Depois de 25 anos de
147
Presença
carreira, Maneco afastou o Jacinto e formou com Armando
Nogueira e João Saldanha o time de cronistas esportivos que
acompanharam os anos mais gloriosos do nosso futebol. Em 1970,
Jacinto ressuscitou por apenas um período muito breve. Hoje, é
Manuel Bernardez Muller quem se ocupa de entrevistas especiais
para os jornais e televisões. Suas matérias, sempre espirituosas,
escritas com estilo e bom humor, refletem o seu talento. Está sempre
à altura dos seus entrevistados, sejam eles homens do gabarito de
um Guilherme Figueiredo, Gilberto Freyre, Afonso Arinos, Carlos
Drummond de Andrade, Pedro Nava, Fernando Sabino, Otto
Lara Resende, Hélio Pelegrino, Paulo Mendes Campos e tantos
outros.
Hoje, o homem que inventou o colunismo social é um
jornalista dos mais sérios, um expoente da comunicação total.
Ibrahim Sued foi outro fenômeno que aconteceu pouco
depois. Começou com uma coluna chamada Zum-Zum, no jornal
A Vanguarda. E já fazia muita gente madrugar para comprar o
jornal e ver o que ele dizia. Já polarizava a opinião pública com
suas engenhocas vocabulares, suas expressões estrangeiras, suas
palavras de duplo sentido, seu jornalismo tremendamente opinativo
e intrigante. Há notícias que só o Ibrahim sabe dar, fatos que na
sua boca ganham formidável ressonância. Palavras simples mas que,
às vezes, são capazes de remover montanhas, abalar ministérios...
Hoje Ibrahim tem uma coluna no O Globo, sindicalizada em outros
órgãos da imprensa do Brasil e colabora na revista Vogue, edição
francesa.
Fecho este capítulo com uma menção de apreço a D.
Mariazinha Guinle. A que segurou a bandeira e manteve acesa a
Hugo Gouthier
148
chama das tradições do Copacabana Palace. Otávio Guinle morreu
e ela, que até então tinha vivido como uma princesa, da noite para
o dia transformou-se numa dinâmica e enérgica empresária. Graças
a ela, para felicidade de todos os que amadurecemos à sombra desse
grande centro social, o Copacabana Palace continua vivo,
enfrentando a dura concorrência com a classe e a categoria de sempre.
Lembranças de Família
151
Eu me pergunto, às vezes, se o homem sociável que sou,
sempre cercado de multidões de amigos, não tenta, em vão,
esconder ou consolar o menino solitário que fui.
Não tinha sete anos quando perdi minha mãe. Caçula de
uma família de sete filhos, eu nascera prematuro. “Esse menino
nasceu apressado” – Costumava dizer minha mãe. Um vulto sóbrio
e distante, uma voz enérgica e uma frase – “esse menino nasceu
apressado” – é tudo o que me ficou de minha mãe na lembrança.
Meu pai, Francisco Gouthier de Oliveira Gondim, nasceu
em Sobral, Estado do Ceará. A família Gondim veio para o Brasil
procedente de Portugal onde existe, hoje, uma província com esse
nome. Suas origens remontam a tribos procedentes da Escandinávia
que se fixaram na região normanda, na França. Mais tarde,
emigraram para Portugal devido às constantes lutas que ali se
tratavam. O nome originário é Gunderoto e Gunderedo. No
museu dos Vikings, na Noruega, estão relíquias dessa época.
Plasmaram-me assim diferente,
com águas de angústia
argila de sede,
braçadas de azul.
O dom de querer o infinito e
amar o mais próximo.
Nas geografias procuro
território imaginário
de ternuras e silêncios.
...............................................
(Carminha Gouthier, poesias)
Lembranças de Família
Hugo Gouthier
152
A família Gondim fixou-se em Pernambuco e ramificou-
se pelos Estados do Nordeste (Ceará, Rio Grande do Norte,
Paraíba e Alagoas) entrelaçando-se com os Correia de Oliveira,
Guedes, Sabóia, Andrade, Bandeira de Mello entre outros,
produzindo destacados vultos das letras, artes, ciências, magistério,
jornalismo. Entre os quais, por exemplo, o Ministro João Alfredo
Correia de Oliveira, paladino da libertação dos escravos, Assis
Chateaubriand Bandeira de Mello, Leão Gondim de Oliveira,
Gilberto Chateaubriand, Murilo Gondim, Marinho de Andrade,
Professora de Direito Regina Gondim, Desembargador Belarmino
Gondim, Engenheiro Jorge Gondim, General João Gondim,
Monsenhor Gondim (ex-Governador do Rio Grande do Norte),
Pedro Gondim (ex-Governador da Paraíba), Jornalista Josélio
Gondim, e outras figuras de destaque em diversas atividades no
Brasil.
Ainda moço, meu pai mudou-se para o Rio de
Janeiro, vindo a trabalhar no comércio, inclusive como
exportador de café. Minha mãe, Maria José de Souza, era
filha de fazendeiros e comerciantes portugueses radicados em
São Paulo do Muriaé e Carangola (Minas Gerais). Da família
Souza descende o ex-Ministro Heitor de Souza, do Supremo
Tribunal Federal.
Casaram-se e lhes foram nascendo os filhos. Mas meu
pai não teve sorte nos negócios e, devido a constantes problemas
de saúde na família ou em busca de melhores condições para educar
os filhos, mudou-se sucessivamente para Carangola, Rio de Janeiro,
Belo Horizonte – onde eu nasci – e Dores do Indaiá – onde minha
mãe morreu.
153
Presença
Ao contrário da maioria dos mineiros da minha geração,
nem nasci nem vivi, nem me criei em fazendas, caçando passarinho,
tomando banho de rio, sentado aos domingos em torno da mesa
do velho solar. Era o último filho de uma mulher cansada de tantas
gestações e desiludida de tantas mudanças. Quando ela morreu, a
família fracionou-se e vieram os colégios internos, as férias em casas
de parentes.
Carminha Gouthier, casada com Hudson, meu irmão
mais velho, Juiz de Direito em Bom Despacho e, posteriormente,
em Mariana, foi dos parentes a que mais espiritualmente me liguei.
Embora eu já tivesse 18 anos, trabalhando e vivendo à minha própria
custa, Carminha passou a assumir, aos meus olhos, a figura de uma
quase mãe. Poetisa de profunda sensibilidade, intensamente mística
e católica, é uma mulher culta que, sem sair de Minas, viajou nas
páginas dos seus livros e na sua imaginação fecunda. Com muito
senso de compreensão e calor humano, ela e Hudson formavam
um casal agradável de se conviver porque se amavam e se
completavam em todos os sentidos. Carminha e meu outro
cunhado, Ovídio José dos Santos, médico e político em Dores do
Indaiá, minha belíssima irmã Haydée, foram as pessoas que mais
influíram na minha formação de adolescente, com o seu carinho e
com o seu exemplo.
Passei vários anos fora do Brasil como diplomata. No
Rio, em 1951, conheci minha mulher Laís, numa festa no Country
Club, sendo a ela apresentado por Aloísio Clark Ribeiro. Na
primeira dança, perguntei se queria se casar comigo. Laís ficou
meio perplexa e, apesar da corte insistente e apaixonada que
continuei a lhe fazer, custou a decidir-se. A duras penas, concordou
Hugo Gouthier
154
que eu falasse com seu pai: o legendário Bernardo Sayão Carvalho
Araújo.
“Por favor, chegue às cinco em ponto, porque antes das
sete tenho que examinar uns tratores”, disse-me ele, seco e apressado,
ao marcar um encontro comigo às cinco horas da manhã na casa de
uns parentes onde se hospedava. Felizmente bem treinado que eu
andava pelo Marechal Dutra, estava lá na porta às dez para as cinco.
Meio aflito com um horário tão insólito para se pedir a mão de
alguém, creio que cheguei a fazer fantasias de perseguição:
provavelmente tinham ido dizer ao homem que eu era um boêmio
inveterado, um perigo para moças de família. Fechei a guarda,
preparei um longo discurso e já entrei na defensiva. Só para ser
imediatamente desarmado pela figura impressionante, pela simpatia
irradiante daquele que se tornou um dos meus maiores amigos de
todos os tempos, o meu inesquecível sogro Bernardo Sayão. A
simpatia foi mútua e instantânea e ele terminou por me dizer: “Já
vi que você é um homem de bem. Por mim, podem se casar. Só
depende da Laís.” E isso foi um pouquinho mais difícil.
Laís também nasceu em Belo Horizonte e também perdeu
a mãe muito cedo e viveu entre o Colégio Sion, de Petrópolis, e a
casa dos seus avós maternos, Professor Francisco Mendes Pimentel
e Áurea Mendes Pimentel. O Professor Mendes Pimentel foi um
jurisconsulto dos mais conhecidos no Brasil, tendo sido Reitor da
Universidade de Minas Gerais. Com o falecimento de minha sogra,
Bernardo Sayão casou-se novamente, com uma grande companheira,
Hilda Fontenele, e teve quatro filhos. Muito apegada a todos da
família, Laís vacilava em ausentar-se do Brasil para fazer a opção de
vida que representa casar-se com um diplomata.
155
Presença
Mas eu estava decidido, pois percebera, desde o primeiro
instante, que a vida sem ela não fazia mais sentido para mim. Laís
era tudo o que eu sonhara, meiga, linda, culta e superiormente
bem-humorada e tranqüila. Encerrado o governo Dutra, parti em
missão para os Estados Unidos, mas não desisti do cerco. Telefonava
todos os dias, escrevia, mandava flores e cheguei ao desatino de
cometer alguns versos. E, finalmente, quando Laís resolveu casar
comigo, foi uma decisão consciente: assumiu para toda a vida esse
marido às vezes difícil que eu sou – com a mesa sempre cheia de
convidados, sem avisar, a qualquer hora do dia. Sempre tive o
maior orgulho de minha mulher, e da sua presença marcante em
todos os ambientes que freqüentamos, da maravilhosa esposa, mãe
e avó que ela é.
Casamos em Nova York e passamos a lua-de-mel na
Europa antes de partirmos para Teerã. E aqui estamos, 30 anos
depois, levando a bom porto o nosso barco.
Bernardo Sayão
Quero dedicar algumas palavras de especial apreço a essa
legendária e romântica figura de desbravador que é o orgulho da
nossa família. Sua biografia todo mundo conhece, posso apenas
acrescentar algumas pinceladas, fruto da nossa convivência.
Sayão era um homem de belo físico, desempenado, um
verdadeiro tarzã, não só físico, como no entranhado amor pela
natureza. Apesar de ter nascido e se criado no Rio, detestava cidades
e se proclamava um homem do mato. Estudou engenharia
agrônoma em Piracicaba, onde foi colega de Rui Mendes Pimentel
Hugo Gouthier
156
e Luiz Simões Lopes, dois homens que tiveram muita influência
na sua vida. Rui apresentou-o à sua irmã Lígia, com a qual Sayão se
casou e teve duas filhas: Laís e Léa; Luiz Simões Lopes levou-o a
Getúlio Vargas, que então promovia a famosa Marcha para o Oeste,
e designou-o imediatamente para fundar em Goiás uma colônia
agrícola. Sayão aceitou, deixou a família em Belo Horizonte e
embrenhou-se no interior do país. Hoje, Ceres, a colônia que ele
fundou, é uma próspera cidade com milhares de habitantes.
Eu próprio tive o prazer de apresentar Sayão a Juscelino.
Vice-Governador eleito de Goiás, ele precisava, com o Governador
Ludovico Teixeira, tratar com o Presidente de algum assunto do
interesse daquele Estado. Juscelino ficou encantado.
– Mas que sorte, Sayão, você aqui! Eu estou atrás de você
há muito tempo. Você há muito tempo. Você é o homem que
precisamos para Diretor-Executivo da Novacap, que eu acabo de
fundar.
– Com certeza o senhor me procurou no lugar errado,
Presidente. Procurou na cidade e só me encontram no mato. Se o
senhor quiser, embarco amanhã.
Desesperado, Ludovico Teixeira protestava:
– Você não pode fazer isso, Sayão. Você é Vice-
Governador de Goiás!
Mas Bernardo podia. Tanto podia que fez: largou tudo e
se dedicou de corpo e alma à construção da nova capital e à abertura
da Belém-Brasília.
Eu me lembro que, nessa mesma ocasião, Juscelino
perguntou:
– Diga-me uma coisa, é verdade que você dirige até trator?
157
Presença
Sayão sorriu e, sem nada responder, exibiu as suas mãos
fortes e calejadas.
Nesse maravilhoso sonho de bandeirante, tornado
realidade, Sayão viveu três anos intensos de realizações febris.
Desgraçadamente morreu em fins de 1959, quatro dias antes de
concluir a estrada que rasgara na selva e poucos meses antes da
inauguração da capital que ajudara a construir, com Israel Pinheiro,
o grande administrador. Nós estávamos em Bruxelas quando
recebemos uma carta dele na qual insistia, e ainda me lembro das
palavras textuais “... faço questão de que vocês venham assistir ao
encontro do Brasil do Norte com o Brasil do Sul, pois estou
concluindo o que prometi a Juscelino, a estrada Belém-Brasília de
integração nacional”.
Nem discutimos, deixamos as crianças com a governanta,
tomamos o avião e viemos assistir a esse momento histórico. Teria
Laís pressentido alguma coisa? O fato é que ela nem parou no Rio,
seguiu direto para Brasília. Eu fiquei por uns dias, pois queria
conversar com Juscelino. E fui visitá-lo no Palácio Rio Negro, em
Petrópolis, onde ele veraneava com a família. Havia, como sempre,
muita gente, políticos, em torno do Presidente que, assim que me
viu, afastou-se e, pegando-me pelo braço, conduziu-me para outra
sala. Surpreendi-me com o seu semblante sério e profundamente
comovido e recebi uma verdadeira punhalada quando ele me disse:
– Hugo, acabo de receber um rádio anunciando que Sayão
sofreu um grave acidente.
Pelos seus olhos lacrimejantes compreendi que o meu
sogro havia morrido. Vendo o meu desespero, Juscelino colocou
à minha disposição o seu avião particular para que eu fosse, sem
Hugo Gouthier
158
demora, ao encontro da minha mulher. Saí ao alvorecer e cheguei
de manhã cedo numa Brasília também morta. Com a horrível
notícia a cidade toda parou para chorar. E, como ainda não havia
cemitério, os candangos, em 24 horas, tiveram que improvisar um
para receber o corpo de Bernardo Sayão.
Juscelino foi, em seguida, para Brasília especialmente para
assistir ao enterro, onde fez um discurso, entrecortado de lágrimas,
no qual afirmou que a morte de Sayão havia sido uma vingança da
natureza contra o desbravador da selva.
Muitas lendas cercam a sua morte, alguns chegaram a
inventar que ele fora vítima de um ataque dos índios. Nada disso é
verdade. Bernardo Sayão foi abatido por um galho de uma árvore
frondosa que se derrubava para terminar a abertura da estrada. O
trauma foi tão violento que seu chofer morreu de desgosto e foi
enterrado num túmulo ao lado do seu querido patrão e amigo.
Um dia, quando a memória desse país valer um pouco
mais, vão escrever a epopéia da vida de Bernardo Sayão. Por
enquanto, poucos sequer sabem que a Belém-Brasília tem o seu
nome.
No Reino de Persépolis
161
Faz pouco tempo, o mundo assistiu a uma tragédia persa
digna de uma tragédia grega: a agonia, paixão e morte do meu
amigo o Xá Mohamed Reza Pahlevi, um dos últimos monarcas da
terra a deterem nas mãos as rédeas do poder. Tragédia em tom
maior gravada, capítulo por capítulo, em letras garrafais nas
manchetes dos jornais. Terrível solidão de um homem rejeitado,
sua verdadeira via-crucis, exposta passo a passo pelas telas de
televisão. O mesmo homem que, há menos de uma década, cercado
por legiões de amigos e chefes de estado, celebrava em 1971 os
2.500 anos da fundação de Persépolis na mais suntuosa festa de que
este século tem memória.
Mesmo os seus mais ferrenhos antagonistas, mesmo todos
aqueles que com certa razão o acusavam de ter permitido os excessos
de violência da Savak contra as lideranças liberais do Irã, mesmo os
seus piores inimigos devem ter se condoído do triste fim do “Rei
dos Reis”, um ser humano ilustre e sóbrio que dedicou a vida ao
projeto de modernização do seu país.
A meu ver, o seu erro e a causa da sua desgraça foi
justamente tentar impor – a qualquer preço – modernos conceitos
ocidentais de vida, progresso e felicidade a um povo medieval ainda
No Reino de Persépolis
Hugo Gouthier
162
imerso em denso clima de fanatismo religioso. No afã de arrancar
o Irã do marasmo onde se deteriorava há séculos, Reza Pahlevi –
um liberal de índole e formação – acabou cedendo, deixando-se
envolver pelos generais que o cercavam e exigiam o endurecimento
do regime.
Éramos jovens, todos os quatro – Laís e eu, Soraya e ele –
quando nos conhecemos e ficamos amigos no final da primavera
de 1952, em Teerã. Ele, um rei garboso com toda a vida e a glória
pela frente; eu, Ministro Plenipotenciário do Brasil no Irã. Mas o
momento histórico que o milenar país atravessava não era dos mais
felizes. No ano anterior, o parlamento aprovara a lei de
nacionalização do petróleo, ratificada pelo Xá, mas russos e ingleses
ainda trabalhavam nos bastidores. O Primeiro-Ministro Mossadegh
– líder do partido Frente Nacional – pretendia avançar ainda mais
nos seus projetos nacionalistas e preparava-se para assumir o governo
com poderes ditatoriais. O que realmente conseguiu, um mês
depois, colocando o Xá numa posição delicada e incômoda. Havia
muito ódio e tensão no ar.
A primeira coisa que estranhamos em Teerã foi o clima,
as drásticas mudanças de temperatura. No inverno, metros de neve
cobrindo os jardins; no verão, um calor seco e sufocante.
Construída sobre um planalto elevado e semi-árido,
pontilhado de altas montanhas e áreas desérticas, Teerã é uma cidade
moderna e desprovida de atrativos especiais. Ao contrário, por
exemplo, de Isfahan – a cidade natal de Soraya – antiqüíssima,
pitoresca e cheia de charme. A Legação do Brasil era uma casa
ampla e confortável, cercada de belos jardins... maltratados e
esburacados. Naquela época, raros eram os aparelhos de ar-
163
Presença
condicionado em Teerã e os jardins e as piscinas tinham um papel
indispensável nos meses de calor. Como o verão se aproximava,
tratamos de remodelar os nossos. Foi então que a necessidade
forçou-me a aprender as duas primeiras palavras da língua do país.
O jardineiro era um homenzinho mirrado – enrolado num lençol
à moda de Gandhi – e tão monossilábico e decidido quanto eu.
Hemerus! (Hoje!) – dizia-lhe eu, mil vezes, tentando
impor a minha autoridade.
Farda! (Amanhã!) – contrapunha ele com doçura, mais
outras mil.
No Irã, a língua oficial é o iraniano. Como as nossas,
uma língua do grupo indo-europeu, apenas escrita em caracteres
arábicos. Premida pela contingência de ter que dirigir um batalhão
de criados – 10 ao todo – Laís a princípio desenvolveu uma curiosa
linguagem de palmas. Depois de ter se perdido um dia na rua,
tentando em vão encontrar alguém que falasse inglês ou francês
para orientá-la, pôs-se a estudar o iraniano, chegando a dominá-lo
razoavelmente.
Adotamos alguns dos hábitos e costumes do Irã e
improvisamos outros para nos defender do desconforto dos dias
tórridos. Por exemplo, transformamos os subterrâneos da casa –
sombrios e frescos – em agradáveis salas de lazer onde, como nos
bons porões mineiros, recebíamos amigos para ouvir música, jogar
ou conversar. Para dormir, fazíamos como todo mundo.
Tínhamos uma cama montada e feita no terraço. No Irã, durante
o verão, só se dorme ao ar livre, seja em terraços, jardins, telhados,
seja em colchões abertos nas calçadas. Só que, às cinco horas da
manhã, era preciso entrar para continuar a dormir dentro de
Hugo Gouthier
164
casa, fugindo não só do sol como, principalmente, do gargalhar
dos corvos. Pesadelo impressionante, digno de filmes de
Hitchcock.
Para quem viveu no Irã, não constitui surpresa alguma as
notícias veiculadas pela imprensa pela imprensa a dos hábitos
primitivos ou de violência de Khomeini e seus fanáticos. Nós
conhecemos uma cidade em que as poucas mulheres visíveis na rua
circulavam envoltas no chador. E não era somente na rua. Nossa
lavadeira, por exemplo, chegava de chador, lavava a roupa de
chador, e saía de chador. No plano doméstico, vivíamos em estado
de vigilância permanente contra os roubos da criadagem, pois, de
acordo com as suas crenças, roubar de um cristão não constituía
pecado nenhum.
O obscurantismo dessas crenças tornava-se bem concreto
e palpável por ocasião das cerimônias do Ramadã – nono mês do
calendário muçulmano dedicado à prece, ao jejum e à flagelação. É
curioso notar que, para os velhos, a flagelação do Ramadã era uma
coisa simbólica na qual apenas tocavam de leve nos seus corpos
com as pesadas correntes. Já os jovens e ardorosos flagelavam-se
para valer. O sangue escorria mais e mais à medida que a procissão
avançava. Certa vez, um copeiro nosso castigou-se tanto que
quebrou três costelas...
As condições higiênicas e sanitárias da cidade eram as mais
precárias. Basta dizer que a Embaixada britânica fornecia água
potável a todo o corpo diplomático. Água – proveniente do
impressionante compound que era a Embaixada britânica, uma
verdadeira cidadela fortificada – que chegava até nós em tonéis no
lombo de pitorescos burricos.
165
Presença
Outra lembrança curiosa que tenho é a das visitas dos
mercadores de tapetes. Mal eles chegavam – e chegavam
constantemente aos montes – mandava-se trazer uma vasilha de
água quente. Se o tapete, esfregado com água quente, largasse tinta,
o copeiro se encarregava de mandar embora o mercador debaixo
dos maiores insultos; caso contrário, o tapete era legítimo e podia-
se dar início ao complicado ritual das negociações.
Raras são as ocasiões em que o chefe de representações
diplomáticas brasileiras recebe normas escritas para a condução de
suas atividades no posto que irá ocupar. No caso do Irã, havia
instruções escritas, expedidas ao tempo do governo do Marechal
Dutra e entregues ao meu antecessor em Teerã, Ruy Pinheiro
Guimarães. Recomendações que não tinham sido modificadas até
a época em que chefiei a Legação e diziam o seguinte:
“... O Rei (o Xá) de fato constitui a única força unificadora
e estabilizadora do Irã. O desejo de obedecer às diretrizes do Xá é
um dos movimentos mais significativos dos últimos anos. Foi
graças ao Xá que o governo iraniano conseguiu declarar ilegal o
partido Tudeh (comunista), cuja subserviência a Moscou ficou
patente nos acontecimentos do pós-guerra... Vossa Excelência
deverá acompanhar o desenvolvimento da questão do petróleo que
toca de tão perto as relações entre o Irã e a Grã Bretanha.”
Além dessas instruções, encontradas por mim nos arquivos
da nossa Legação em Teerã, sempre entendi que um representante
diplomático serve melhor às boas relações e ao prestígio do seu
país se lograr conquistar a estima do chefe de Estado perante o
qual está credenciado. Por isso, sempre procurei corresponder ao
acolhimento e à distinção que me dispensou o Xá.
Hugo Gouthier
166
Simpatizamos um com o outro desde o primeiro dia,
quando, na sala do Trono do Pavão, lhe apresentei as minhas
credenciais. Dias depois, essa simpatia mútua foi confirmada ao
recebermos um convite para jantar com o Xá. Ocasião em que
conversamos muito e descobrimos que tínhamos muitos interesses e
amigos em comum. Daí em diante, a nossa amizade desenvolveu-se
de forma espontânea e natural.
Como o protocolo iraniano impedia os imperadores de
visitarem Embaixadas e casas particulares – até de Ministros do
governo – o Xá costumava reunir um grupo de amigos para
passarem o dia com ele, às sextas-feiras, que é o domingo
muçulmano. Cada semana ele nos recebia num palácio diferente e,
com maior freqüência, no de Chemiran, que está para Teerã como
Petrópolis para o Rio. Palácios cheios de peças preciosas e
riquíssimos tapetes, circundados sempre de belíssimos jardins. Um
luxo nada agressivo por combinar tão bem com o ambiente, a
atmosfera iraniana. E, apesar da qualidade dos móveis e objetos, o
seu assemblage, a decoração propriamente dita deixava a desejar.
Só anos mais tarde Reza Pahlevi contratou um decorador da
Maison Janssen, de Paris, para tratar da reforma dos interiores
dos seus palácios.
Chegávamos pela manhã a tempo de nadar na piscina, tomar
sol e praticar algum esporte. Eu, o menos esportivo dos homens até
então, acabei contagiado pela animação do Xá e cheguei a integrar
um time de vôlei. Depois do almoço e da siesta, espalhavam-se tapetes
persas sobre os gramados, abriam-se mesas de jogo e lá sentávamos
debaixo das mangueiras para uma descontraída canastra. Ainda me
lembro do Xá protestando com a mulher, como qualquer mortal:
167
Presença
– Não pode, minha querida Soraya. Você já jogou e carta
batida não é recolhida.
À noite, assistíamos a bons filmes europeus ou americanos.
O champanha rolava e o maravilhoso caviar iraniano era comido
com colher.
Educado na Suíça como a maioria dos jovens de classe
alta do Irã, o Xá era um homem extremamente atraente e atencioso.
Falava inglês e francês tão bem quanto o iraniano e conhecia mais
literatura francesa do que muito intelectual francês. Linda
realmente, Soraya era um misto do laisser-aller oriental com um
certo pragmatismo germânico. Estavam casados apenas há dois anos
e davam a impressão de amor e felicidade. Apesar de viverem
cercados por uma das famílias mais numerosas e presentes que eu
conheço.
Além dos programas das sextas-feiras, fazíamos, os quatro,
longos passeios de carro, pois o Xá adorava dirigir pelas estradas
em alta velocidade. Como também era um piloto experimentado.
Certa feita levou-nos em seu avião particular, pilotado por ele, até
o Mar Cáspio, enquanto Soraya, que morria de medo de avião,
seguia com outros amigos de automóvel.
Nesse pequeno palácio todo de mármore, do Mar Cáspio,
cercado por jardins encantados repletos de faisões, passamos com
um pequeno grupo simpático uma temporada deliciosa. Laís estava
grávida, esperando a Cláudia, e levava horas tricotando. E eu me
lembro que Soraya se interessava muito, perguntava, queria saber
tudo o que ela estava sentindo.
Quero frisar que, apesar de não ter recebido nenhuma
recomendação para que adotasse atitudes de reserva em relação ao
Hugo Gouthier
168
Xá, à medida que os convites se multiplicavam, mantive o Itamaraty
permanentemente informado a respeito, através de constantes
comunicações. E, como também nos dávamos muito bem com o
Primeiro-Ministro Mossadegh, com o qual inclusive jantamos
algumas vezes, incluía nas minhas mensagens detalhes desse
relacionamento.
Se a nossa vida, por um lado, era agradável e divertida,
por outro, ia se impregnando da crescente tensão política. O
fanatismo, mantido em estado latente, volta e meia explodia aqui e
ali. Raro era o dia em que não se ouvia em Teerã o ruído de rajadas
de metralhadora. E, a partir da meia-noite tínhamos que obedecer
ao toque de recolher imposto por Mossadegh.
A esse respeito, lembro-me de um caso muito divertido no
qual, sem o saber, Ovídio de Abreu livrou-nos de um aperto. Tínhamos
ido jantar com o Ministro Llambi, também muito amigo do Xá, na
Legação da Argentina e perdemos a noção do tempo. Já passava da
meia-noite quando uma patrulha armada e mal-encarada nos fez parar
cruzando as baionetas na frente do carro e pedindo para ver o nosso
salvo-conduto. Eram, obviamente, rapazes do interior, rudes e
analfabetos, e o nosso chofer – um armênio prodigioso que falava 11
línguas, entrou em pânico. Mas Laís teve uma súbita inspiração: abriu
a bolsa e de lá tirou um telegrama que recebêramos do Ovídio de
Abreu anunciando sua próxima chegada a Teerã.
– Mostre isso aqui a eles – disse ela estendendo o telegrama
ao chofer atônito.
Deu certo. O papel passou de mão em mão, foi examinado
e discutido e, finalmente para não serem obrigados a nos confessar
sua incapacidade de decifrá-lo, deixaram-nos passar...
169
Presença
Nesses tempos de tensão e crise, em que o Primeiro-
Ministro todo-poderoso sustentava posições opostas às do rei,
não era segredo para ninguém as óbvias ligações de Mossadegh
com Moscou. E, às vezes, muito ao de leve, ao correr de uma
conversa, o Xá deixava escapar algum comentário irônico ou
amargo. Mas nunca, jamais, em tempo algum, chamou-me de lado
para fazer-me confidências ou para aconselhar-se comigo. Nós,
assim como os Llambi, os Henderson, sua família e seus amigos
mais chegados, fazíamos parte do lazer do Xá, dos seus momentos
de distração e descontração. Mesmo que eu não fosse um
diplomata, bastaria ser o mineiro prudente e bem-educado que
sou para não tocar em assuntos delicados que o meu próprio
anfitrião evitava.
Muitos anos depois, transpirou na imprensa européia uma
curiosa história, segundo a qual, quando do seu exílio em Paris, o
Aiatolá Khomeini desabafara com alguém o seu ressentimento
contra mim. Recordando o Brasil, apontara-me como o principal
“responsável ideológico” da decisão de Reza Pahlevi de assumir
“poderes tirânicos e ditatoriais” depois da queda de Mossadegh. Se
não fosse trágico, seria até engraçado atribuir-me poderes
maquiavélicos de manipulação de reis – à distância no tempo e no
espaço. Pois eu já estava no Brasil há muitos meses quando
Mossadegh encontrou o seu destino: foi derrubado e preso. Destino
ao qual talvez escapasse, se a modesta solução por mim sugerida ao
embaixador americano tivesse sido adotada...
O meu chamado “incidente com Mossadegh” foi, na época,
assaz ventilado na imprensa brasileira. A perspectiva dos anos não
alterou a minha visão dos fatos, e a sucessão dos acontecimentos
Hugo Gouthier
170
históricos – como a violenta revolução fanática dos aiatolás – apenas
confirmou o acerto da sugestão de uma solução pacífica e definitiva.
Como eu já disse, o clima no Irã era então de insegurança
e espionagem generalizadas. Nós, os chefes de missões diplomáticas,
procurávamos sempre manter contato uns com os outros, trocando
idéias e informações sobre os problemas que o país atravessava. E
assim foi que mantive longas conversas com o meu colega, o
Embaixador dos Estados Unidos.
A essa altura, o Irã há havia rompido suas relações
diplomáticas com a Inglaterra e, a pedido do Embaixador
americano, expus-lhe o meu ponto de vista. Parecia-me que os
Estados Unidos estavam com a faca e o queijo na mão para –
literalmente falando – comprar a briga, terminando com o dissídio
entre o Irã e a Inglaterra. Bastaria, para tanto, firmar um acordo
com o Irã fornecendo-lhe um empréstimo capaz de minorar a sua
grave situação econômica.
Henderson aparentemente gostou da idéia e solicitou-me
que a colocasse no papel. Ele, então, a encaminharia a Washington
para que fosse examinada entre outras fórmulas de solução do
conflito. Friso a expressão outras fórmulas porque, mais tarde,
ficou provado que havia pelo menos uma outra fórmula, mais
radical: a da CIA...
Acedi prontamente, seguindo o regulamento do serviço
diplomático brasileiro que estabelece taxativamente: “... as missões
diplomáticas brasileiras procurarão manter relações de cordialidade
com as demais missões acreditadas no mesmo Estado, prestando-
lhes os bons ofícios que elas requeiram”. Alinhavei as minhas idéias
em forma de carta ao Embaixador americano, sempre realçando
171
Presença
que a mesma era escrita “em caráter pessoal, sem envolver qualquer
responsabilidade do meu governo”.
Não sei como essa carta – entregue pessoalmente por mim
a Henderson – foi parar nas mãos de Mossadegh. Mas foi. Tanto
que, dias depois, recebi um telegrama do Itamaraty determinando
o meu imediato regresso ao Rio. O telegrama não falava em persona
non grata, mencionava apenas uma denúncia recebida através da
nossa Embaixada em Buenos Aires. Mas eu entendi logo e pedi,
sem perda de tempo, uma audiência ao Ministro de Relações
Exteriores do Irã. O Ministro Fatemi não só manifestou grande
surpresa, como telefonou na minha frente a Mossadegh pedindo
que me recebesse. Saí dali para a casa do Primeiro-Ministro, que
conversou comigo ainda deitado na cama do seu quarto de dormir.
Negou energicamente ter dado qualquer instrução no sentido da
minha retirada do país. Segundo ele, o embaixador do Irã na
Argentina, ciente das divergências entre o Primeiro-Ministro e o
Xá – e da minha amizade com este último – agira por conta própria.
A desculpa esfarrapada não me satisfez absolutamente e eu fiz ver
a Mossadegh que, de qualquer maneira, em obediência às ordens
do meu governo, seria obrigado a deixar o Irã imediatamente.
Ajeitando-se entre os lençóis, Mossadegh, sem alterar a serenidade
do semblante, declarou-me que só lhe restava, então, lastimar a
minha partida. Nunca mais o vi. Meses depois caiu o Primeiro-
Ministro e foi preso. E, logo a seguir, morreu.
Ao me despedir do Xá, relatei-lhe a cena.
– Ele sempre nega o que faz e o que diz, mesmo diante de
testemunhas da maior confiança – explicou-me o meu amigo,
continuando, com amargura. – O Dr. Mossadegh é useiro e vezeiro
Hugo Gouthier
172
nisso. Mas não se impressione, ele não agiu contra você. Esse gesto
visa apenas me atingir mais uma vez.
Em seguida, profundamente entristecido, Reza Pahlevi
ditou a seguinte e emocionada carta ao seu secretário particular
Ernest Perron:
Sr. Ministro e meu caro amigo:
É com estupefação e tristeza que tivemos notícias de sua
ida. Sua ausência e de madame Gouthier deixarão um grande vazio
entre nós.
Sua Majestade Imperial, o Xá, dignou-se encarregar-me
de exprimir a V. Exa. seus sentimentos de estima, de confiança e de
amizade, seu grande pesar por sua partida. O Sr. e madame
Gouthier, entre os raros íntimos recebidos na Corte Imperial,
foram o casal mais fino cujo tato e amabilidade constantes
conquistaram todos os corações. Não é sem emoção que suas
Majestades Imperiais os vêem partir. Se existem sombras difíceis
de atravessar, o sol brilha sempre acima das nuvens. A verdade e a
justiça acabam por ser iluminadas em favor daqueles a quem Deus
ama. Estou convencido de que esta época em que nós vivemos, de
mentiras e de intrigas, terá um fim. Que Deus os guarde e abençoe
a ambos. Nossos caminhos um dia se cruzarão de novo e nossos
soberanos bem-amados reencontrarão sua preciosa amizade.
Queira crer, senhor Ministro, nos meus sentimentos,
muito respeitosamente devotados, e na minha indefectível afeição.
ass.) E. Perron.”
Vinte e sete anos depois da minha saída do Irã, chegou a
vez do Xá ver-se obrigado, pelo fanatismo político-religioso, a
173
Presença
abandonar o seu país e começar uma dolorosa peregrinação pelo
mundo em busca de abrigo e tratamento. Apesar dos esforços
incansáveis de Zahedi, seu amigo até o fim, todas as portas iam se
fechando para ele. Anwar Sadat foi o único chefe de Estado a recebê-
lo com carinho fraternal e sem constrangimento.
Era uma figura das mais interessantes, como animal político
e como ser humano. Nascido na aldeia de Mit Abu el Ken (província
de Munufiya) no delta do rio Nilo, muçulmano educado em
Alexandria, Anwar Sadat, desde a juventude, lutou pelos legítimos
interesses do Egito. Admirador e seguidor do Coronel Gamal
Abdel Nasser, apesar de ser casado com a filha de um egípcio e
uma inglesa, sempre conspirou contra o domínio inglês e lutou na
Segunda Guerra Mundial para expulsá-los do Egito. Agindo nesse
ponto em uníssono com Menahen Begin, que fez o mesmo na
Palestina.
Esse “sacristão que sabe dizer amém”, como o Sadat se
referia maliciosamente Nasser, nunca foi um intelectual,
confessando-se até inimigo de toda e qualquer teorização. Pode-se
medir a sua essencialmente pragmática capacidade política por suas
atitudes fulminantes e inesperadas. Como a expulsão dos soviéticos
em 1972 e o cancelamento do Tratado de Amizade com Moscou;
o ataque a Israel, em 1973, e o acordo para a desmilitarização do
Sinai. Em resumo, um político hábil capaz de sentir o momento
de lutar e a hora de pacificar; um homem sensível e fiel, capaz de ir
contra a opinião pública acovardada do mundo inteiro para estender
a mão a um amigo em crise.
Falando em Egito, preciso fazer um flashback, que agora
me ocorre, de um episódio muito interessante da minha mocidade.
Hugo Gouthier
174
Em Paris, após a guerra, conheci Louis-François Poncet,
irmão do ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros da França, Jean-
François Poncet. Ficamos amigos inseparáveis, íamos juntos para
toda a parte. Estávamos um dia no aeroporto de Lisboa à espera de
um avião, com dez horas de atraso, quando encontramos o Príncipe
Dom João de Orléans e Bragança. Não faço a menor idéia do que
íamos fazer em Istambul, pela excelente razão de que nunca
chegamos lá. Dom João, com a sua irresistível simpatia, nos
convenceu a mudar de rumo e seguir com ele para o Cairo, onde
nos hospedaria na Embaixada do Brasil posta à sua disposição pelo
Embaixador Caio de Mello Franco, ausente do posto. E nem
precisou lançar mão de muitos argumentos para nos convencer,
porque quem conhece a Dom João sabe que o prazer da sua
companhia é irrecusável.
No Cairo, estava à nossa espera o Encarregado de
Negócios, Pimenta Bueno, que foi da maior gentileza conosco.
Mal acabávamos de nos instalar na Embaixada quando chegou um
mensageiro do Rei Farouk: Dom João e seus amigos estavam
convidados para um jogo de pôquer naquela mesma tarde, na
Auberge des Pyramides. Já fui com o pé atrás, pois alguém me
preveniu que era muito desagradável jogar com o rei, um péssimo
perdedor, e, lá chegando, tive a impressão de estar entrando no
“fim do império romano”... Numa das salas reservadas do hotel,
cercado de belas mulheres a disputarem a honra de sua preferência,
o gordo Farouk era o símbolo da decadência. Naquele instante,
senti que o seu fim estava marcado.
Louis-François eu inventamos uma desculpa, alegando não
sabermos jogar pôquer. Então, organizou-se para nós uma excursão
175
Presença
de camelo pelo deserto, cada um acompanhado por uma bela jovem.
Parecia uma excelente idéia, só que, em pouco tempo, eu e minha
companheira, Sybill Sceuiouska, os perdemos dos outros. Sem
bússola, rodamos a esmo durante horas. E só voltamos tarde da
noite. Tão tarde que encontramos todos aflitíssimos. Juro que não
tive um instante de medo, inteiramente absorto pela triste história
da sua vida que me contava Sybill. Filha de um antigo diplomata
polonês, deixara-se seduzir pelos encantos do Príncipe Ali Khan –
famoso por prometer casamento a mulheres bonitas – abandonado
o marido, para ser logo depois abandonada por Ali. Em vão, tentei
consolar a sua amargura e restabelecer a sua fé nos homens.
Agradecida por ter desabafado as suas mágoas, deu-me a sua
amizade, que eu pude retribuir, anos mais tarde, em Paris, contando
o episódio ao meu igualmente amigo Ali Khan. Gosto de pensar
que foi por isso que Ali Khan incluiu Sybill Sceuiouska em seu
testamento.
Um outro saldo positivo dessa visita ao Cairo foi o
romance de Dom João com Dona Fátima, que acabou em
casamento.
Legenda Prejudicada
pelo Recorte
179
Em Londres, por ocasião da assinatura de acordos
comerciais com a Inglaterra, o Ministro das Relações Exteriores
do Brasil, João Neves da Fontoura, e o Chanceler inglês, Aneurin
Bevan. Presentes: J. J. Muniz Aragão (nosso Embaixador junto à
Corte de St. James), Embaixador Rubens Ferreira de Melo (Chefe
do Departamento Econômico do Itamaraty), Ministro Carlos
Alfredo Bernardes (Assistente do Chanceler João Neves), Carlos
Alberto Aguiar Moreira (Secretário Particular do Presidente
Dutra), o Autor (com os acordos a serem assinados), Egídio Câmara
de Souza (Ministro dos Assuntos Econômicos da Embaixada do
Brasil em Londres), um Funcionário do Foreign Office e Carlos
Júlio Vieira (do Escritório Comercial do Brasil em Londres).
(Seção de Fotos).
Legenda Prejudicada pelo Recorte
Os Estados Unidos da
América do Norte
183
E mais disse ainda o nosso grande pensador: “Nenhuma
das minhas idéias políticas se alterou nos Estados Unidos, mas
ninguém aspira o ar americano sem achá-lo mais vivo, mais leve,
mais elástico do que os outros saturados de tradição e autoridade,
de convencionalismo e cerimonial. Essa impressão não se apaga na
vida. Aquele ar, quem o aspirou uma vez, prolongadamente, não
o confundirá com o de nenhuma outra parte: sua composição é
diferente da de todos”. E o que Joaquim Nabuco escreveu no
alvorecer do século vinte – antes portanto dos horrores das duas
grandes guerras mundiais – foi e ainda é uma grande verdade. A
mesma que senti na pele quando, em 1953, desembarquei em Nova
York com Laís e nossa filha Cláudia, nascida no Brasil logo depois
do nosso regresso do Irã.
Pisava um terreno bem conhecido no qual já vivera
ativamente alguns maravilhosos anos da minha mocidade, quando
servi por duas vezes em Washington, na embaixada. Na última vez
como conselheiro, trabalhando sob as ordens do grande diplomata,
“... Não sei se o céu de Nova York não me pareceu
o mais belo do mundo; o que sei é que ele derrama
em ondas de luz a alegria, a vida, a coragem, sobre a
mais admirável procissão de mocidade e de beleza
humana que jamais passou diante dos meus olhos, a
que flui e reflui todas as tardes e manhãs da Quinta
Avenida para o Central Park.”
(Joaquim Nabuco, Minha Formação)
Os Estados Unidos da América do Norte
Hugo Gouthier
184
humanista e homem de sociedade que foi Maurício Nabuco, eu
morava no elegantíssimo bairro de Georgetown e fiz uma legião
de amigos e de amigas... Numa extensa gama que ia de Margaret
Truman a Dorothy Lamour. Não sei muito explicar por que, mas
a verdade é que caí nas graças de vários colunistas sociais que não se
cansavam de citar o meu nome junto com os do beautiful-people
que circulava na capital americana. Hoje, não é sem contida vaidade
que, folheando o meu velho álbum de recortes, revejo o meu rosto
jovem de sorriso aberto e releio as referências – simpáticas ou
maliciosas – de algumas das línguas mais temidas da imprensa
daquela época: Dorothy Kilgallen, Mary Thayer, Betty Beale,
Baronesa Stackelberg, Evelyn Peyton Gordon...
“... Hugo Gouthier gives at least one big cocktail party a week...
he knows everybody from cabinet ministers to the so called
international-set...”
“... Another party very chic and gay was given by Hugo Gounthier
in honor of Sharmon Douglas, the pretty blonde daughter of the
American Ambassador to the Court of St. James.”
À minha saída de Washington, em 1943, transferido para
a Secretaria de Estado, fui cumulado por uma série de jantares e
recepções em minha honra. Dentre as muitas referências de jornais
que marcaram esses eventos, destaco as seguintes:
Times Herald:
“... Hugo Gouthier, departing Brazilian Counselor, was in the
honoree spotlight at the gala party hosted yesterday by Randolph
185
Presença
Rouse. Among the 70 guest invited from Capitol Hill and
residential society were John Kennedy and his sister Miss Eunice
Kennedy...”
“Greek menu on Eire’s Day:
... Mr. and Mrs. Blake Clark’s chose the private banquet room
of the New Athens for their fete which honored the soon-to-
depart Brazilian Counselor Hugo Gouthier.”
The Washington Post:
“Mr. Gouthier again is honor guest.
Another farewell party for Hugo Gouthier was given last
evening. The popular counselor of Brazilian Embassy was
honored at a dinner given by the Ambassador of Iran and Mme.
Ala. In the company last evening was Miss Eunice Kennedy...”
“Mr. Gouthier is decorated.
Hugo Gouthier, popular retiring Brazilian Counselor, took double
bows yesterday at the Colombian Embassy, scene of a farewell
cocktail fete in his honor, hosted by the Colombian Ambassador...
Highlight of the party came when the Ambassador decorated
the Order of Goyaca, a medal of much historical significance
and the only one presented by Colombia.
Ambassador Nabuco of Brazil, his sister Miss Carolina Nabuco
and Miss Eunice Kennedy were among the 60 guests...”
New York Enquirer:
“... Talk has it that Hugo Gouthier, the Brazilian Embassy
number one good will promoter, is taking much more than a
Hugo Gouthier
186
friendly interest in Eunice Kennedy, former Ambassador Joseph
P. Kennedy’s daughter.”
Uma das homenagens que me deixaram profundamente
emocionado foi o almoço que me ofereceram vários maîtres-d’hôtel
de Washington. Essa homenagem foi em conseqüência do meu bom
relacionamento com eles. Além disso, não esquecia de presenteá-
los e a seus filhos com uma pequena lembrança no Natal.
Voltava novamente aos Estados Unidos, agora a Nova
York, em 1953, dez anos mais velho com mulher e filha. E muito
mais experiência. Da vida, da guerra e do trágico razor’s edge onde
se equilibram os destinos dos povos. Para minha sorte, Laís também
adorava os Estados Unidos, onde passara uma inesquecível
temporada na casa do Embaixador Adolph Berle, amigo do seu
pai, Bernardo Sayão. Assim, foi com grande alegria que nos
instalamos no simpático e espaçoso apartamento da Park Avenue e
me preparei para enfrentar as agruras do meu difícil cargo da ONU.
A minha nomeação para delegado substituto do Brasil
junto às Nações Unidos fora recebida pela imprensa com os maiores
elogios. “... A nomeação do diplomata causou a melhor impressão
em todos os círculos, notadamente por constituir mais um ato
público de reparação pelo incidente conhecido que afastou o
Ministro da chefia de nossa representação no Irã...” dizia o Estado
de Minas. Sua folha de serviços é a melhor garantia que temos de
que o Ministro Hugo Gouthier, no seu novo posto, servirá ao
Brasil com a eficiência e o brilho costumeiros...” afirmava o Correio
da Manhã. Quanto a mim, nunca duvidei da minha firmeza de
propósitos e capacidade de trabalho, mas, ao assumir meu posto
187
Presença
na missão brasileira junto à ONU, sabia muito bem o que me
esperava. Toda a minha experiência passada junto a organismos
internacionais preparara-me para perceber, sentir os primeiros e
tênues sinais de tensões geradas pelo intrincado jogo do power
play das grandes potências. Conhecia perfeitamente os bastidores
das Nações Unidas, participante que fora da primeira Assembléia-
Geral reunida em Londres.
Nesse momento, o Conselho de Segurança da ONU
era formado por 11 países-membros: cinco permanentes –
Estados Unidos da América, União Soviética, Reino Unido
da Inglaterra e Irlanda do Norte, França e República da China
com direito a veto – e sete eleitos pela Assembléia-Geral por
períodos de dois anos. O Brasil e a Colômbia haviam sido
eleitos representantes da América Latina no Conselho. Assim,
o jogo do poder político internacional nos atingia bem de
perto. Participávamos do órgão executivo das Nações Unidas,
o mais dinâmico dentro do objetivo básico de salvaguardar a
paz e a segurança mundiais promovendo a cooperação
econômica, social e cultural entre as nações. Era um trabalho
árduo e espinhoso a exigir freqüentes encontros de trabalho,
total e permanente disponibilidade de todos os 11 delegados.
Como a paz e a segurança do mundo ainda não estavam
garantidas – como não estão até hoje – vivíamos praticamente
em estado de alerta. A qualquer hora podia explodir um
conflito no Oriente Médio, uma disputa na Ásia, um atentado
na África, uma revolução na América Latina...
Durante a minha gestão participei de inúmeros projetos,
intervim nas mais diversas polêmicas que afligiam os mais
Hugo Gouthier
188
longínquos países. Alguns casos, pelo que representaram ou pelo
que revelaram, merecem um registro especial.
Guatemala: um exercício de precisão
A maior e, potencialmente, a mais rica das repúblicas da
América Central, a Guatemala enfrentou através da história todo
o tipo de entraves ao seu desenvolvimento. Das repetidas e
continuadas lutas políticas aos desastres naturais, como por exemplo
o terrível terremoto de 1976. Em 1954 era presidente o Coronel
Jacobo Arbenz Guzmán, de nítidas tendências comunistas, que
iniciou o seu programa de reforma social adotando drásticas
medidas, para profundo descontentamento das classes dominantes
do país que, mobilizando a opinião pública, fê-la pegar em armas
para derrubar o seu governo. Acreditando-se vítima de interesses
ocultos de determinados monopólios e agressividade declarada dos
seus vizinhos – Honduras e Nicarágua – Arbenz pediu socorrou à
Organização dos Estados Americanos (OEA) e às Nações Unidas,
apresentando, no mesmo dia, denúncias ao Comitê Interamericano
de Paz, da OEA, e ao Conselho de Segurança da ONU.
Os russos, que há muito ansiavam por uma brecha por
onde introduzir um pé no continente americano, aproveitaram-se
imediatamente da situação e, numa primeira reunião do Conselho
de Segurança, vetaram a entrega do caso da Guatemala à OEA,
alegando ser esse um problema de competência da ONU, e
convocando imediatamente uma reunião de emergência do Conselho
para a tarde do dia seguinte quando, incluídas na agenda por votação,
seriam julgadas as denúncias apresentadas pela Guatemala.
189
Presença
Deviam ser umas quatro e meia da manhã e a campainha
do meu apartamento tocava insistentemente. Acordei assustado e,
ainda trôpego de sono, vou abrir a porta e dou com as figuras
tresnoitadas de Henry Cabot Lodge, delegado dos Estados Unidos
na ONU, e Allen Dulles, chefe da CIA. Tenso, meu amigo e
vizinho da Park Avenue, Cabot Lodge apressou-se em explicar:
– Meu caro Hugo, precisamos da sua ajuda para impedir
que os Estados Unidos sejam crucificados nesse caso da Guatemala.
Desculpe a hora mas é da maior urgência.
Realmente, faltavam menos de 12 horas para a reunião de
emergência do Conselho na qual eu representaria o Brasil, já que o
delegado permanente, o ilustre Professor Ernesto Leme – ex-Reitor
da Faculdade de Direito de São Paulo – estava num hospital para
tratamento de saúde. E era óbvio que não íamos apenas julgar os
conflitos de uma república da América Central, íamos decidir uma
questão vital para o futuro das Nações Unidas.
Um grande amigo meu, e renomado psicólogo, costuma
afirmar que “a vida não fica pronta nunca”. Com a minha
experiência em organismos internacionais, ouso acrescentar “... nem
a paz mundial”. Não há lei ou organização internacional capaz de
prevenir ou curar – de uma vez por todas – males profundos de
um país, problemas de intrincadas raízes sócio-econômicas e
culturais que, na maioria das vezes, nem mesmo o desenrolar da
história consegue solucionar sem sangue e sem fogo. Consegue-se
apenas, atuando no momento exato, com energia e a mais alta
precisão, congelar a crise, deter a hemorragia ou evitar a precipitação
de uma avalanche. A meu ver, todos os organismos mundiais e
regionais são uma espécie de pronto-socorro da paz. E, naquela
Hugo Gouthier
190
madrugada de junho de 1954, tratava-se precisamente de resguardar,
de salvar a ONU, o maior de todos os pronto-socorros da paz
mundial. E salvar também o prestígio e a competência da
Organização dos Estados Americanos pois o que os soviéticos
pretendiam era, aproveitando-se do conflito na Guatemala usando
como alavanca o sofrimento do povo da Guatemala, minar a ONU
e destruir a OEA.
O Artigo 52 da Carta das Nações Unidas é tão claro
quanto lógico ao reconhecer as funções específicas de mantenedores
da paz dos organismos regionais. Afirma, sem deixar o mínimo
lugar a dúvidas, que os países membros desses organismos regionais
devem fazer todos os esforços para resolverem suas desavenças antes
de levarem-nas ao Conselho de Segurança da ONU. Em outras
palavras: a ONU deve suplementar a ação dos grupos regionais,
não substituí-la. Um conflito de competência entre as duas
organizações quebraria o equilíbrio da balança, minaria todo o
sistema de segurança internacional. O caso da Guatemala era, pois,
um verdadeiro teste de resistência da capacidade de equilíbrio dessa
balança. Sem falar que não interessava absolutamente aos Estados
Unidos – nem a todas as outras democracias da América – a
instalação de um regime comunista no hemisfério. E, se o problema
da Guatemala entrasse em pauta no Conselho de Segurança, a
primeira providência sugerida pela Rússia e inevitavelmente votada
seria o envio de uma missão da ONU para a verificação in loco das
denúncias do seu presidente. Quaisquer que fossem os resultados
das apurações dessa missão, o mal já estaria feito. A simples presença
de observadores da ONU – civis e desarmados – seria recebida
pelos revoltosos como uma traição, ou como uma tentativa de
191
Presença
intimidação. Das duas uma: ou a guerra civil grassaria pela
Guatemala, ou, dominada a revolução, Arbenz fortalecido abriria
as portas da América à penetração do comunismo internacional.
O problema, além de complicado, era delicadíssimo.
Deixei Cabot Lodge e Dulles tomando um cafezinho na sala e fui
telefonar do quarto para Vicente Rao, Ministro das Relações
Exteriores do Brasil. Conversamos longamente, com as cartas na
mesa. Com a sua aguda clarividência jurídica, Rao apoiou
integralmente a tese que sugeri de non adoption of the agenda,
considerando-a, àquela altura, a única medida capaz de tirar o caso
da Guatemala das garras soviéticas. Lembro-me que ainda
acrescentou antes de desligar:
– Hugo, você tem a experiência e a sensibilidade necessárias
para conduzir nosso barco no meio dessa tempestade. Eu lhe dou
carta branca para fazer tudo o que puder contra o comunismo.
Acordei Echeverria Cortes, o delegado da Colômbia e
meu colega no Conselho de Segurança, e pedi-lhe que fosse
imediatamente à minha casa. Discutimos abertamente o caso, em
todos os seus meandros e implicações, e como Echeverria concordou
integralmente com o meu ponto de vista ficou acertado que
agiríamos por duas linhas de conduta concomitantes. Enquanto os
delegados do Brasil e da Colômbia preparariam uma proposta
conjunta de não aceitação da agenda do caso da Guatemala, o
Departamento de Estado empenhar-se-ia, em Washington, junto
aos delegados da Organização dos Estados Americanos, para que
fizessem uma reunião de emergência da OEA dedicada à Guatemala,
antes da votação da nossa joint resolution no Conselho de Segurança
da ONU.
Hugo Gouthier
192
Foi uma verdadeira corrida contra o relógio. Convoquei
todos os meus colaboradores diretos, homens do maior gabarito:
Carlos Alfredo Bernardes, Sérgio Armando Frazão, Silveira da
Mota e Meira Pena. Trabalhamos arduamente na cuidadosa redação
do documento e, antes do meio-dia, ele estava pronto e assinado
por mim e por Echeverria. Por outro lado, convencidos de que a
Guatemala não podia recorrer em primeira instância ao Conselho
de Segurança da ONU, sem desprestígio para a OEA, os delegados
dos estados americanos puseram-se em ação: fizeram uma reunião
de emergência do Comitê Interamericano de Paz, às duas horas da
tarde, na qual formaram um grupo de investigação – composto de
delegados dos Estados Unidos, Brasil, Cuba e México – para estudar
a questão da Guatemala.
Fazia um calor sufocante em Nova York naquele dia 25
de junho quando, enfim, me dirigi para a memorável sessão do
Conselho de Segurança. A tensão reinante em todo o edifício das
Nações Unidas era quase palpável, concentrando-se sobretudo na
multidão que se acotovelava nas galerias do plenário. Multidão
composta, em massa, por esquerdistas pró-Arbenz e que quase
explodiu de revolta quando correu pela sala o boato de que, naquele
exato momento, a Cidade de Guatemala se encontrava sob o fogo
de pesado bombardeio de aviões procedentes de Honduras e
Nicarágua.
Ainda ouço o eco das vozes, relembro as fisionomias
graves e os discursos inflamados. Cabot Lodge abriu os debates
alertando sobre os nefastos resultados que adviriam da interferência
da ONU nos direitos da OEA. Afirmava que o comunismo
internacional aproveitava-se para lançar as duas organizações da
193
Presença
paz uma contra a outra, abalando o prestígio e a força de ambas.
O delegado da União Soviética – Semyon K. Tsarapkin – contra-
atacou dizendo que os Estados Unidos pretendiam apenas esvaziar
as Nações Unidas transformando-as num organismo sem a menor
autoridade. Por que não deveria atuar a ONU num caso tão nítido
de agressão estrangeira a um governo legalmente constituído?
Estariam as Américas fora do raio de alcance das Nações Unidas?
Quando chegou a minha vez, levantei-me e, o mais
serenamente possível, sem arroubos emocionais de oratória, expus
em palavras simples e diretas o meu ponto de vista baseando-me, o
tempo todo, nos sábios princípios estabelecidos pelo Artigo 52 da
Carta das Nações Unidas que mandava dar a César o que era de
César... Ou seja: que as disputas regionais fossem analisadas, em
primeira instância, pelos organismos regionais. Só então joguei o
meu último trunfo, a notícia do fato consumado, a notificação
que o Conselho acabara de receber comunicando-nos as
providências tomadas, poucas horas antes, pelo Comitê
Interamericano de Paz da OEA. “Agora só resta ao Conselho de
Segurança aguardar a notificação dos resultados dos trabalhos
encetados pela Organização dos Estados Americanos”, declarei,
com convicção, acrescentando: “Só depois de estudarmos essas
conclusões, poderemos agir, se for o caso.” Echeverria Cortes
apoiou-me veementemente. Afirmando que a nomeação pelo
Conselho de Segurança de um outro comitê, além da redundância
seria um ato de descrédito à OEA, absolutamente intolerável para
a Colômbia. Depois de cinco horas de debates, procedeu-se à
votação e a tese de não aceitação da agenda do caso da Guatemala
foi aprovada por cinco votos a quatro. De um lado, Brasil, Estados
Hugo Gouthier
194
Unidos, Colômbia, Turquia e China Nacionalista; do outro,
União Soviética, Líbano, Nova Zelândia e Dinamarca. França e
Inglaterra abstiveram-se de votar.
Naquele momento histórico, cinco anos antes da vitoriosa
revolução de Fidel Castro em Cuba, impedimos a implantação de
um regime comunista na América, preservando a honra e a
dignidade das Nações Unidas e dos Estados Americanos. A
revolução na Guatemala seguiu o curso natural ditado pela maioria
da população. Arbenz foi derrubado e sucedido por Castillo Armas
que, talvez devido à redundância contundente do seu nome, foi
assassinado três anos mais tarde.
Dias depois da vitória da nossa tese no Conselho de
Segurança, recebi a seguinte carta do Ministro Vicente Rao: “É
com prazer que lhe apresento os meus cumprimentos por sua recente
atuação no Conselho de Segurança, quando ali se examinou a
questão da Guatemala. Cumpria que adotássemos uma atitude
decidida em favor mesmo da colaboração entre a ONU e os
organismos regionais, nos termos da própria Carta. Posso assinalar
com satisfação que as instruções que lhe enviei foram cumpridas
de maneira eficiente. Suas qualidades de negociar e de homem de
ação, que todos já conhecíamos, foram postas plenamente em jogo
e os resultados obtidos fazem honra à diplomacia brasileira. Graças
à sua cooperação eficaz, pudemos manter no Conselho o princípio
da competência do sistema regional, e fazê-lo plenamente vitorioso,
a despeito do voto soviético, o que não foi novidade. A evolução
dos acontecimentos mostrou quão acertada era a nossa orientação.”
Meses mais tarde, quando compareci à festa de casamento
de Manuel Vargas, no Palácio do Catete, disse-me em voz bem alta
195
Presença
o Presidente Getúlio Vargas: “Se a revolução que você e o Rao
fizeram na Guatemala não tivesse dado certo eu demitiria os dois.”
E, dando-me um forte abraço acrescentou rindo: “Você foi bem
mais esperto do que muito chefe de missão que ficava me enviando
mensagens confirmando a solidez de Arbenz e a fragilidade do
movimento revolucionário. Não conte nada ao Rao, porque
pretendo fazer-lhe uma surpresa, mas quando ele vier me consultar
sobre as próximas promoções no Itamaraty, vou lhe dizer que já
tenho um candidato e que é Hugo Gouthier de Oliveira Gondim.”
E, lembrei-me, então, do que narrou Paulo Pinheiro Chagas, meu
amigo e companheiro de várias jornadas cívicas no Brasil:
“E como explicar o fato acontecido com um amigo nosso,
ao ser recebido, em audiência, por Getúlio Vargas? O então ditador
todo-poderoso, em pleno fastígio do Estado Novo, do mesmo
passo que ouvia a conversa do visitante, distraía-se escrevendo num
papel ao jeito de quem imita uma assinatura: Hugo Gouthier de
Oliveira Gondim, Hugo Gouthier de Oliveira Gondim...”
Oriente Médio: Bolero de Ravel
“A situação no Oriente Médio ameaça transformar-se num
estopim de guerra, com a mescla dos sentimentos nacionais e
religiosos às manobras de fermentação orientadas habilmente pela
Rússia, contra as potências ocidentais, tornando-se difícil prever até
onde serão conduzidos os acontecimentos. Uma série de ocorrências
mostra claramente a idéia de um plano articulado para lançar o mundo
muçulmano contra as nações do Pacto do Atlântico, culminada numa
seqüência de atentados políticos que vêm liquidando estadistas...”
Hugo Gouthier
196
Esse trecho, que poderia muito bem aparecer hoje em
qualquer jornal do dia, foi extraído de uma conferência que
pronunciei em 1951 na Escola Superior de Guerra, a respeito do
dissídio anglo-egípcio no Canal de Suez. Dizia eu ainda:
“A questão da presença das tropas britânicas no Canal é
matéria que decorre de um tratado, livremente negociado e
livremente consentido. É de considerar-se que, a partir de 1947,
não mais se encontra no solo egípcio, com exceção da zona do
Canal, nenhuma forma britânica. Nas ruas do Cairo e de
Alexandria, já não existem mais os quartéis e as casernas de tropas
britânicas, içando o pavilhão estrangeiro. Já obteve assim o Egito,
em grande parte, satisfação aos ditames do orgulho nacional.
No mundo convulso de hoje, de ameaças iminentes de
guerra, a segurança do Canal de Suez é ponto fundamental para a
sobrevivência da liberdade e da paz universais. A solução ideal para
essa garantia seria a sua internacionalização, com forças das Nações
Unidas. Até hoje, entretanto, devido à oposição soviética, ainda
não pôde ser criada essa força internacional, prescrita na Carta de
São Francisco.
O Conselho de Segurança procurará, evidentemente,
escolher a via de conciliação que deve presidir às suas deliberações,
mas o respeito aos tratados tem sido a pedra angular que inspira as
decisões de todos os organismos internacionais.”
Mal poderia eu, então, que, três anos mais tarde, como
delegado do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, seria
chamado a manifestar-me sobre a difícil questão do Canal de Suez.
Ocasião na qual defendi o princípio de pacta sunt servanda, base
de toda a tradição internacional brasileira. Depois de acalorados
197
Presença
debates, chegou-se finalmente a um acordo, pelo qual as forças
britânicas deveriam se retirar a 20 de junho de 1946. Podendo, no
entanto, ser reativada a sua base por um período de cinco anos –
no caso de ataque a um dos países árabes ou à Turquia. Acordo
que, infelizmente, não impediu que, em julho de 1956, Nasser
nacionalizasse bruscamente o Canal de Suez provocando um
conflito sangrento entre o Egito, Israel, França e Inglaterra,
posteriormente suspenso pela atuação enérgica da ONU.
Nesse verdadeiro Bolero de Ravel das relações entre o
Ocidente e o Oriente Médio ou o Extremo Oriente, atuei várias
vezes como delegado no Conselho de Segurança. Lembro-me, entre
outros, de um curioso episódio relativo às tênues e flutuantes
fronteiras entre Israel e a Jordânia. Ocasião em que dei o meu
voto para que se estabelecesse um debate amplo sobre a questão
das fronteiras, como era, aliás, o pensamento de todos os líderes
do Ocidente. O delegado do Líbano, Charles Malik, que tinha
todo o apoio do soviético Andrei Vishinsky, pretendia restringir
os debates à questão escrita dos conflitos de Nahalin. Para tanto
achou-se no direito de atacar o meu voto. Entretanto, o que ele
queria dizer é que, consoante o pensamento do meu país, muito
lutei no Conselho de Segurança da ONU para que Israel não fosse
sufocado pelo mundo árabe sob as bênçãos do Kremlin.
Reader’s Digest:
uma proposta tentadora
Minha paixão pela pintura aproximou-se de DeWitt
Wallace, editor do Reader’s Digest, por ele fundado com sua mulher
Hugo Gouthier
198
Lila e que se tornou na maior e mais bem-sucedida casa editorial de
que se tem notícia. O encontro se deu num jantar oferecido por
um amigo comum, Thomas Dewey, na época Governador do
Estado de Nova York.
Eu já conhecia a fama da coleção dos Wallaces, considerada
no gênero, a mais valiosa coleção particular em todo o mundo, e
para conhecê-la em pessoa já visitara a sede do Digest em
Pleasantville, pequena cidade ao norte de Nova York, no
Westchester County, que abriga parte da coleção, sempre aberta à
visitação pública. Agora, iria ter oportunidade de conhecer a outra
parte – preciosíssimas telas de Monet, Corot, Pissarro, Cézanne,
Gauguin, enfim todos os grandes da escola de impressionistas
franceses, cujos quadros estavam em High Winds, mansão
residencial dos Wallaces, também no Westchester, onde o metro
quadrado de terra é o mais caro do mundo.
Do convívio, meu e de Laís, com Wally e Lila nasceu
uma sólida amizade que iria durar para sempre. Arte, imprensa,
política mundial eram os tópicos mais comuns em nossas palestras.
Em realidade, Lila era, no casal, a Mecenas das Artes, enquanto
Wally se interessava muito particularmente por educação, sendo o
maior sustentáculo do Macalester College, sua Alma Mater na
cidade de Saint Paul, Minnesota.
Um dia, porém, Wally me surpreendeu com um convite
para trabalhar na sua organização. “Me assuntou”, como se diz em
Minas: “A chefia das Edições Internacionais será sua, se você quiser.”
Os termos da proposta verbal foram informais, mas ele logo
acrescentou: “Formalizo o convite por escrito neste minuto.
Depende de você, Hugo.” O convite era um desafio, revistas nos
199
Presença
cinco continentes na época impressas em dez idiomas, trabalho
fascinante, um quadro de Corot no meu escritório! E havia o lado
financeiro, nada desprezível, cheque semanal de salário na casa dos
cinco dígitos, Christmas Bonus ultragenerosos, aposentadoria
milionária... Mas enquanto isso se passava, o Governo Belga dava
o agrément para a minha designação como Embaixador brasileiro
em Bruxelas, e então falou mais alto o meu amor pelo Brasil e pela
carrière. Optei por me manter a serviço do meu país.
Já em Bruxelas, mandei um artigo-testemunho solicitado
pelo Digest, saído primeiramente nas edições em língua francesa
sob o título “Un Excellent Compagnon”, posteriormente publicado
nas demais edições do Digest.
Não vi os Wallaces muito mais vezes depois da minha ida
para a Europa, mas os recordo sempre carinhosamente. Com muito
pesar soube do falecimento de Wally em princípios de 1981, aos
94 anos. Foi uma figura humana excepcional. Lila ainda vive. Foi
sua companheira e incentivadora durante mais de 60 anos.
Entre as belas e as feras
Os ilustres visitantes
O Consulado-Geral em Nova York sempre foi, e sempre
será, um dos postos mais cobiçados do Itamaraty. No meu caso,
então, era ideal. Sair de delegado junto às Nações Unidas e assumir
o Consulado-Geral significava mudar de posto sem trocar de casa,
continuar no nosso gostoso apartamento convivendo com uma
legião de amigos. Assim, quando o Ministro Vicente Rao
consultou-me – por telegrama confidencial – aceitei sem vacilar e
Hugo Gouthier
200
com o maior entusiasmo. E minha mulher suspirou aliviada pois
esperávamos a chegada de Bernardo para qualquer momento. Hoje
em dia, com as modernas técnicas de ultra-sonografia, não é
vantagem saber-se o sexto do bebê antes do nascimento.
Intuitivamente, naquela época, Laís e eu sempre soubemos que era
menino, dessa vez, e se chamaria Bernardo, em honra ao seu ilustre
avô e meu querido sogro, Bernardo Sayão. E ele nasceu no dia
exato em que o furacão Hazel varreu Nova York, chegando a
quebrar uma de nossas vidraças.
Ainda me lembro que passara a noite redigindo um
relatório especialmente trabalhoso e, pela manhã, preparava-me
para ir ao aeroporto receber alguém quando Laís me preveniu:
– Cancele tudo e vamos correndo para o hospital que o
Bernardo vem aí com a Hazel.
Morávamos na Park Avenue na altura da Rua 50 e o
Doctor’s Hospital ficava no outro lado da cidade, na 86 junto ao
rio. Aquela foi a meia hora mais angustiante da minha vida. Sentado
ao lado do chofer do táxi, fui o tempo todo lhe implorando que
avançasse os sinais vermelhos. Porque, com criança que já chega
trazendo furacão não se brinca...
Das feras do contrabando e da pirataria internacionais,
contra as quais travei dura batalha, falarei mais tarde. Agora, quero
primeiro lembrar com saudades a vida gostosa e divertida que
levamos em Nova York cercados de bons amigos e lindas amigas.
Era a época máxima das noitadas no El Moroco, onde o beautiful-
people dos quatro continentes se reunia para jantar e dançar ao
som envolvente de uma orquestra magnífica. Fizemos amizade com
o proprietário, John Perona, e sempre nos davam mesas excelentes.
201
Presença
Ali conhecemos Aristóteles Onassis e ficamos amigos de Stavros
Niarchos; ali atravessei noites descontraídas conversando com
Howard Hughes, o então jovem e simpático milionário que a vida
iria transformar num verdadeiro mito da solidão e da amargura.
Ali, sentada ao meu lado num dos famosos sofás zebrados, conheci
Marilyn Monroe que devorava um pedaço de frango, seguro pela
mão, enquanto o caldo lhe escorria pelo queixo de porcelana.
Outro ponto de encontro obrigatório, esse da nítida
predileção dos brasileiros, era o Copacabana, onde cantava muito
o Frank Sinatra e onde levamos Jânio Quadros e D. Eloah para
assistir ao one-man show de Sammy Davis: Mr. Wonderful. Laís
gostou tanto do espetáculo que voltou lá mais três ou quatro vezes
para vê-lo, sozinha. Eu me limitava a ir levá-la e buscá-la à saída.
Naquela época, dona de uma coluna diária de jornal,
pontificava a terrível Elza Maxwell, temida pela sua língua
implacável. Ai daquele que caísse na sua antipatia... Felizmente
não foi o nosso caso pois ficamos muito amigos e ligados. Na
intimidade, Elza era uma mulher encantadora, divertida e super
bem-informada. Cheia de alegria de viver, não se cansava nunca e
tinha um élan de fazer inveja aos mais jovens. Tremendamente
segura de si e consciente do poder que exercia sobre as pessoas, não
tinha papas na língua. Nascida de uma família bem modesta, fez-se
na vida à custa do seu próprio esforço e talento, e, apesar de seus
hábitos pessoais singelos, convivia com a maior naturalidade com
os grandes nomes do seu tempo.
Um dia, Elza nos telefonou para perguntar:
– Laís, estou organizando um cruzeiro pelas ilhas gregas
a convite do nosso amigo Niarchos, posso contar com vocês dois?
Hugo Gouthier
202
Pensando que o cruzeiro fosse na semana seguinte, minha
mulher ficou animadíssima, já planejando as roupas que iria precisar.
Só que, como acontece nos países civilizados, os programas são feitos
com grande antecedência e aquele era... para dali a um ano. Chegamos
a pensar que iria cair no esquecimento e foi com surpresa que, um
ano depois, recebemos o lembrete da nossa amiga: o passeio estava
de pé e deveríamos nos encontrar em Veneza dentro de dez dias.
Se houve algum cruzeiro de sonho no mundo, foi esse,
que os jornais logo denominaram “o cruzeiro das celebridades”.
Éramos 100 os privilegiados, acomodados com o máximo requinte
e conforto, num navio esplêndido, sob a liderança de três guias
poliglotas formados na Sorbonne. De alguns, ficamos amigos para
o resto da vida. Dos outros, guardo alguns nomes e a lembrança
de 15 dias, de confraternização na alegria. Havia artistas de cinema,
como Olivia de Havilland, no auge da fama; pretendentes ao trono,
como os príncipes Alexandre e Maria Pia, da Iugoslávia, que, numa
festa à fantasia improvisada, vestiram-se modestamente de
cozinheiro e arrumadeira; grandes damas inglesas, como a Duquesa
de Argylle e Lady Westminster, esta, com nome de abadia e um
temperamento gelado e condizente; estadistas, como o ex-Primeiro-
Ministro francês Paul Reynaud; figuras destacadas da sociedade
italiana como Rudi e Consuelo Crespi, os Pecci-Blunt, os
Brandolini; magnatas americanos, como os Byron Foy; Reinaldo
e Mimi Herrera, da Venezuela... Em resumo, três brasileiros –
Laís, eu e Aimée de Heren – cercados por mais 97 celebridades do
mundo inteiro.
Apesar de toda a noite haver uma festa, onde as mulheres
se apresentavam de longo e faiscantes de jóias, madrugávamos todos.
203
Presença
Ninguém queria perder o show que, aos oitenta e tantos anos, a
Baronesa Lo Mônaco – a popular La Mofa – nos oferecia nadando
energicamente de um lado para o outro da piscina. Em Atenas
fomos recebidos – com toda a pompa e circunstância – pelo Rei
Paulo e sua Rainha Frederica. Houve apenas um problema:
nenhuma das senhoras a bordo havia levado chapéu que o protocolo
exigia para a recepção. Foi uma verdadeira corrida que esvaziou as
chapeleiras de Atenas.
Patrocinado por Stavros Niarchos, que seguia o nosso
navio em meu maravilhoso iate, abrindo-nos todas as portas, o
cruzeiro tinha um objetivo específico: promover o turismo nas
ilhas do Peloponeso. Por isso, viajaram conosco registrando todos
os passos dos colunáveis correspondentes de tudo quanto é jornal
e revista importante. O único brasileiro, repórter e fotógrafo a
serviço do Cruzeiro, era o então jovem e iniciante Luiz Carlos
Barreto, hoje o mais famoso produtor de cinema do Brasil, pai
dos cineastas Bruno e Flávio Barreto.
Provavelmente um cruzeiro desses seria hoje impossível.
Se mais não fosse, por razões de segurança. Nos dias violentos que
correm, um navio repleto da nata da sociedade internacional –
estadistas, magnatas, nobres e artistas – exigiria pelo menos a
proteção de mais dois outros cheios de guardas armados.
Outro grande acontecimento social, sem fins publicitários
mas que repercutiu também na imprensa do mundo inteiro, foi o
jantar que oferecimentos em Nova York ao Xá do Irã e Soraya.
Em nosso apartamento não cabiam confortavelmente mais de 40
pessoas para jantar e foi difícil restringir a lista de convidados sem
ferir suscetibilidades. Convidamos, evidentemente, Elza Maxwell,
Hugo Gouthier
204
que ainda não tivera oportunidade de conhecer Reza Pahlevi.
Grace Kelly também realçou o jantar com sua beleza e sua classe.
Foi um jantar belíssimo, no qual o Xá entrou com as flores e o
caviar. E ele ficou agradavelmente surpreso ao encontrar a bela
Grace que já conhecia de Hollywood quando – por ser a mais
elegante, refinada e ladylike de todas as estrelas – ela fora
designada para ser a sua cicerone. Grace também não se esqueceu
dessa festa e, anos mais tarde, quando nos vimos novamente,
foi a primeira a mencioná-la insistindo em que gostaria de nos
retribuir aquele prazer.
“Se eu tivesse a intenção de reinar” escreveu o
historiador Louis Veuillet “só dois tronos do mundo me
tentariam: o do Czar de todas as Rússias, que reina sobre
milhões de almas, e o do Príncipe de Mônaco, que pode conhecer
pelo nome todos os seus súditos.” No pequeno reino encantado
de Mônaco, tive a oportunidade de assistir com Laís ao
casamento de Caroline, a filha da artista de cinema nascida com
uma estrela de princesa na testa. Caroline que cresceu amiga da
minha filha Cláudia, a quem os Príncipes de Mônaco ofereceram
um outro belo jantar em Paris por ocasião do seu casamento.
Em Nova York, as nossas relações com o Xá
continuaram as mesmas de Teerã. Como ele adorava jogar
pôquer, tínhamos uma roda, em geral constituída por Fleur
Cowles, Adhesir Zahedi, Ministro das Relações Exteriores do
Irã, Soraya, Laís e eu. Relações tão cordiais e descontraídas que
o Xá resolveu, um dia, me dar um Rolls-Royce de presente,
como sinal de seu apreço e amizade. Agradeci comovido a
lembrança mas recusei firmemente o presente. E o Embaixador
205
Presença
Luís Bastian Pinto deve se lembrar desse episódio que ele
presenciou.
A primeira providência que tomei ao assumir o
Consulado-Geral em Nova York foi mudá-lo para melhores
instalações no próprio Rockefeller Center. Numa cidade de
tamanho bom gosto, o nosso consulado – apertado em salinhas
acanhadas e mal mobiliadas – fazia um triste contraste com os de
outros países. Como diz a minha mulher, eu não sou um engenheiro
frustrado porque sou um engenheiro realizado, de tantas obras
que fiz pelo mundo afora. Aluguei salas condizentes com o prestígio
do nosso país, chamei o decorador oficial do Rockefeller Center e
montamos um escritório digno e agradável de se trabalhar e receber
visitantes.
Comodamente instalado, arregacei as mangas e preparei-
me para enfrentar as feras da pirataria e do contrabando. Eram
verdadeiras quadrilhas montadas para lesar a nossa economia através
da fraude cambial, da importação ou exportação irregulares, da
falsificação de documentos e de todo o tipo de infração da legislação
cambial e aduaneira do Brasil. Foi então que eu, um homem que
passou a vida colecionando amigos, fiz a minha primeira e terrível
leva de inimigos. Tão acirrados que chegaram à ameaça de jogar
ácido sulfúrico em mim e na minha família, tendo eu que pedir
garantias de vida à polícia de Nova York.
Foi antes da implantação da indústria automobilística no
Brasil, e a importação de automóveis era um verdadeiro inferno.
Havia o tráfico desatinado de direitos de importação – todo mundo
achava que bastava ter um passaporte para ir aos Estados Unidos
buscar um carro, vendido na volta por somas fabulosas – ou o
Hugo Gouthier
206
despacho puro e simples dos automóveis que eram retirados na
alfândega com mandado de segurança. Para coibir esse abuso e essa
tremenda evasão de divisas, limitei a concessão de licenças de
embarque de carros ao mínimo possível, estritamente previsto por
lei. E fui além: fiz um acordo com todas as companhias regulares
de navegação marítima – das costas oriental e ocidental dos Estados
Unidos e do Canadá – pelo qual essas empresas se negariam a
transportar carros para o Brasil sem a indispensável aprovação
consular. No dia em que assinamos o convênio, havia só no porto
de Nova York cerca de mil automóveis sem documentação
aguardando o embarque...
Mas a desonestidade não se limitava à importação de
automóveis de luxo. Percebi logo que era extensa e poderosa a
rede de traficantes da exportação. O saque consistia em despachar
mercadorias brasileiras para os Estados Unidos acompanhadas de
documentação falsa: quanto à qualidade e quantidade, conseguindo
por elas, debaixo do pano, uma soma de dólares bem maior do
que a declarada. Passei então a submeter a rigoroso escrutínio todos
os papéis que passavam pelo escritório do consulado. Em poucos
meses de penosas diligências, descobri dois contrabandos – um de
café e outro de cera de carnaúba – que representavam um prejuízo
para o nosso fisco da ordem de vários milhões de dólares. Depois
disso, consegui montar um mecanismo eficiente de investigação e
controle que permitia fossem as autoridades competentes
rapidamente alertadas e, em muitos casos, punidos os responsáveis
pelos crimes e infrações.
Agi com a maior energia e vigor e, diga-se de passagem,
ninguém ousou jogar ácido sulfúrico na minha cara...
207
Presença
Os ilustres visitantes
Uma das coisas de que mais me orgulho na minha carreira
diplomática foi o atendimento que sempre dediquei a todo e
qualquer brasileiro no exterior – do mais humilde trabalhador, ao
mais ilustre visitante. Nunca ninguém precisou marcar audiência
comigo e, fosse onde fosse, minhas portas – até a da minha própria
casa – estavam permanentemente abertas aos brasileiros. Emprestava
dinheiro do meu bolso, arranjava empregos, bolsas de estudo, locais
de moradia. Incomodava meus amigos para servir aos meus
conterrâneos com todo o tipo de problemas: dos mais sérios, como
saúde e sobrevivência, aos mais cômicos, como brigas de marido e
mulher.
E não só a brasileiros no exterior. Passei a vida fazendo
favores a amigos, amigos de amigos, conhecidos e desconhecidos.
O caso dos remédios, por exemplo, é típico. Brasileiro sempre
teve mania de doença e adora tomar remédios, principalmente os
difíceis de serem obtidos. Em Nova York, então, as requisições de
remédios beiravam as raias da loucura. Raro era o sábado ou o
domingo em que eu não tinha que mandar abrir uma farmácia
para atender a um pedido de urgência. Bom brasileiro que sou,
levando muito a sério tudo o que se refere a produtos farmacêuticos,
agia com a maior rapidez possível... e impossível. Lembro-me que,
certa feita, Dra. Eliane Gomes, irmã do Brigadeiro, solicitou-me
um remédio, num dia, e recebeu-o em sua casa no Rio, no outro.
Chegou a me telefonar para agradecer.
Quando Cônsul-Geral em Nova York recebi –
promovendo contatos e levando para passear – inúmeras
Hugo Gouthier
208
personalidades brasileiras que lá chegavam em caráter oficial ou
particular. Ministros, governadores, senadores, deputados,
diplomatas, oficiais das Forças Armadas, prefeitos, médicos,
engenheiros, advogados, comerciantes, técnicos especializados,
artistas, estudantes, turistas e doentes. Dentre tantas visitas, destaco
algumas.
Eugênio Gudin
Em outubro de 1954, Eugênio Gudin, então Ministro da
Fazenda, passou por Nova York, em trânsito para Washington onde
ia presidir a Delegação do Brasil às reuniões do Banco Internacional
de Reconstrução e Fomento e as do Fundo Monetário Internacional.
Como chefe atento da sua pasta, Gudin já sabia dos meus esforços
no consulado para defender os interesses da Fazenda Pública
brasileira. Mas lá, ele viu com os próprios olhos a extensão da minha
batalha e a precisão da estratégia que montei. Ao regressar ao Brasil,
escreveu-me agradecendo a colaboração que prestei “na defesa dos
interesses nacionais contra a pirataria nacional e internacional”.
Gilberto Freyre
Estava eu no consulado em Nova York quando o
precursor da sociologia do Brasil foi receber o seu título de Doutor
Honoris Causa da Universidade de Colúmbia. Tive o prazer de
acompanhá-lo, a honra de tornar-me seu amigo. Mais do que tudo
o que eu possa dizer, dizem as palavras com que autografou para
mim o belo álbum comemorativo dos seus 80 anos, Gilberto Poeta -
209
Presença
Algumas Confissões:
“Para Hugo Gouthier, recordando sua presença mais do que
amiga no doutoramento h.c. de um brasileiro pela Universidade
de Colúmbia, presença que supriu a ausência de outros
brasileiros; Hugo, diplomata cultural; Hugo, que conquistou
nos Estados Unidos e na Europa tantas simpatias valiosas; Hugo,
sempre sensível à arte, este livro de arte com palavras de um
talvez poeta muito amigo desse Hugo admirável.”
Jânio Quadros
Em princípios de 1955, governador eleito de São Paulo,
para descansar da dura campanha eleitoral, antes da sua posse, Jânio
Quadros, acompanhado de D. Eloah e de sua mãe, foi passear na
Europa e nos Estados Unidos. E, procedente de Londres, chegou
a Nova York, onde fui recebê-lo com Laís no então aeroporto
internacional de Idlewild. Infelizmente não foi uma chegada
auspiciosa. Descia do avião, alegre e contente, um livro de Abraham
Lincoln em punho – que provavelmente viera lendo durante a
viagem para pôr-se bem dentro do espírito do liberalismo
americano – quando as autoridades alfandegárias deram pela ausência
do seu atestado de vacina. Portador de passaporte diplomático,
Jânio Quadros fora vacinado mas não se preocupava em levar o
atestado julgando que este não lhe seria exigido. Além do mais,
não foi tratado pelo médico de plantão no aeroporto com a
deferência devida a um governador de estado brasileiro.
Profundamente irritado, Jânio exigiu do representante da
Hugo Gouthier
210
companhia de aviação que providenciasse o seu imediato regresso
ao Brasil no primeiro avião. Chamado a intervir, conversei com o
médico e, depois de certo tempo, tudo se resolveu satisfatoriamente.
Mas, abalado com o impacto daquele primeiro contato desagradável,
o governador foi do aeroporto até o centro da cidade externando
o seu desapontamento com a civilização americana. E me lembro
tentando demovê-lo daquela desilusão:
– Não é bem assim, governador. O senhor vai ver, é um
grande país e um grande povo. Tenha um pouco de paciência e
estou certo de que, dentro de três dias, o senhor terá mudado
completamente de opinião. Não se trata de uma campanha armada
contra o senhor, foi apenas um lamentável qüiproquó.
Realmente, menos de três dias depois, Jânio Quadros
estava outro: eufórico e entusiasmado, esquecido do desagradável
episódio. Apresentei-o, então, não só à maravilhosa vida noturna
de Nova York como a um grupo de banqueiros internacionais
com os quais ele teve oportunidade de conversar longamente,
inspirando-se para traçar seus planos de governo do Estado de São
Paulo.
Carlos Lacerda
Fomos amigos antes de os conhecermos. Quando houve
o meu incidente com Mossadegh e as esquerdas brasileiras se
mobilizaram para me atacar, atribuindo-me a responsabilidade de
nefandas confabulações contra o líder nacionalista iraniano, sem
mesmo me conhecer pessoalmente Carlos Lacerda passou a me
defender em editoriais da Tribuna da Imprensa brilhantes e
211
Presença
inflamados com eram do seu costume. Fiquei profundamente
tocado pela simpatia daquela aliança espontânea e perfeitamente
gratuita. Posso dizer que fiquei seu amigo não pelo fato de ter ele
me defendido, mas pela maneira como me defendeu, como se
houvesse penetrado a minha alma, entendido e participado das
minhas mais secretas motivações. Num mundo em que as pessoas
se trancam em suas redomas, cercados de incompreensão por todos
os lados, fiquei feliz em abrir as portas da minha a tão cálido
entendimento, a tão veemente crédito de confiança. Na minha volta
de Teerã, fui procurá-lo para lhe agradecer e estabelecemos uma
tão sólida amizade que, meses mais tarde, quando nasceu minha
filha Cláudia, convidamos Letícia, sua mulher, para madrinha.
Talvez eu seja um dos poucos que Lacerda – um homem afável e
descontraído no trato pessoal – tenha conquistado através da sua
pena, em geral um instrumento de luta temperado a ferro e a fogo.
Estranha e fascinante personalidade! Extraordinário amigo
dos seus amigos, inimigo implacável. Pessoa humana, bondosa e
sensível, orador desabrido e delirante. Todos temos os nossos
sufocantes demônios interiores, creio que os de Carlos se apossavam
dele tão mal pegava da pena. Como se, para ele, a palavra escrita
tivesse o mesmo poder da poção mágica que transformava o Dr.
Jekyll em Mr. Hyde. E ele se deixava possuir pelo poder violento
e fantástico das palavras, sua sonoridade, seus múltiplos sentidos.
E, possuído, brincava com elas – ora dominando-as, ora sendo
dominado – num jogo perigoso, de vida ou de morte. Creio que
muitas vezes na vida amaldiçoou o seu embriagante poder verbal,
e implorou a Deus que lhe concedesse o dom da serenidade, um
pouco de paz e tranqüilidade.
Hugo Gouthier
212
Mas Carlos Lacerda era assim, no fragor da batalha, não
se incomodava de quebrar alguns ovos. Quando defendia alguém,
abria um tal leque de ataque que muitas vezes atingia gente que
não tinha nada com a briga, era até amiga do defendido.
Em fins de 1955, temendo ser preso pelo então Ministro
da Guerra Marechal Henrique Teixeira Lott – o novo marechal de
ferro do Brasil – Carlos exilara-se em Havana. Que não era ainda a
Cuba de Fidel e sim a de Batista. De lá ele me telegrafou anunciando
a sua próxima chegada a Nova York, dando o número do vôo e
acrescentando: “... chego sem dinheiro e sem agasalho”.
Fazia um frio bárbaro, do mais rigoroso inverno nova-
iorquino, e eu fui com Laís buscá-lo no aeroporto levando-lhe um
sobretudo. Assim que nos viu, ele me abraçou dizendo: “Você é
louco! A sua simples presença aqui no meu desembarque vai
prejudicá-lo e comprometê-lo com o Lott e o Juscelino.” Respondi-
lhe que não poderia adivinhar o que pensaria o marechal mas que
Juscelino seria o primeiro a compreender o meu gesto de
solidariedade para com um grande amigo. E dali fomos para o
nosso apartamento onde Carlos ficou hospedado por uns tempos.
Posteriormente, com a ajuda de outros amigos, arranjou um
pequeno apartamento, num subúrbio de Nova York, para onde
se mudou. Mas continuamos a nos ver e a nos falar com freqüência.
Pode-se imaginar o meu espanto quando, certa manhã,
abro o New York Times e dou com uma carta atrabiliária – assinada:
Carlos Lacerda – denunciando Juscelino Kubitschek de ter sido
eleito Presidente do Brasil com o voto dos comunistas; fato que
certamente iria, no seu entender, impedir a sua posse. Eu, acusado
por muitos no Brasil de pertencer ao Clube da Lanterna,
213
Presença
exclusivamente pelo fato de ter hospedado Carlos Lacerda em minha
casa em Nova York, nem de leve suspeitava que ele estava se
preparando para assumir publicamente uma atitude violenta dessas
contra o presidente legalmente eleito do seu país. E, pior ainda,
mandar uma carta daquelas ao jornal de um país estrangeiro.
Naquela mesma tarde tive outra surpresa: Laís recebeu um enorme
buquê de rosas, com uma outra carta de Lacerda. Agradecia-lhe a
hospitalidade e pedia-lhe que tentasse minorar o meu desagrado.
Terminava dizendo: “Política não tem entranhas. Perdoe-me.”
Passamos algum tempo estremecidos e só voltamos
realmente às boas depois de 1964, já então cassados ambos pela
Revolução. Pacificado interiormente, tendo a duras penas conseguido
dominar os seus tumultos e atingindo um distanciamento crítico
equilibrado e ponderado. Carlos Lacerda tentou em vão formar
uma Frente. Ampla de união nacional e aproximou-se dos seus antigos
adversários políticos. Infelizmente já era tarde demais. Tarde para
ele, tarde para Juscelino, tarde para Jango.
Sinto saudades do meu amigo Carlos Lacerda, acho que
faz muita falta ao Brasil a presença de um pensamento brilhante
como o dele, mas uma das coisas que mais me doem é saber que ele
morreu sem escrever o seu livro definitivo, a obra que esperávamos
da sua cultura e que ele ficou devendo à sua própria grandeza. Ele
mesmo parecia temer que isso acontecesse quando escreveu em A
Casa do Meu Avô: “Onde ficou aquele famoso livro, o romance
essencial que me prometi deixar ao mundo antes de morrer; o
legado definitivo, inapagável sinal da minha presença, de tantas
experiências acumuladas para nada a não ser o prazer ocasional de
me sentir vivo?”
Hugo Gouthier
214
Desgraçadamente, sinal inapagável da sua presença, Carlos
Lacerda deixou apenas na lembrança dos que com ele conviveram
o som estentóreo de sua voz capaz de abalar governos. Quem o
ouviu falar no Palácio Tiradentes, no Caminhão do Povo, nas ruas
e nas praças do Brasil, nunca mais se esquecerá do orador hipnótico
que mantinha a sua audiência em estado de delírio ou transe quase
sensuais.
Eu, pelo menos, não considero nem livro definitivo,
nem legado, o volume publicado sob o nome de Depoimento,
que nem sequer foi um depoimento maduro e pensado. Trata-
se apenas do resultado apressado de uma entrevista concedida,
quase às vésperas de sua morte, a um punhado de jornalistas
que, por 34 horas consecutivas, crivaram-no de perguntas, lá
no seu Sítio do Alecrim, em Petrópolis. Lá onde ele gostava
mesmo é que o deixassem em paz cultivando as suas rosas.
Só à exaustão dessa gravação, atormentado por 34
horas ininterruptas, posso atribuir o equívoco registrado nesse
Depoimento a folhas 175:
“Antes das eleições, quando eu estive em Lisboa, era
Cônsul-Geral em Nova York o Hugo Gouthier. Estou
voltando atrás um pouco porque o fato é importante. Durante
a candidatura do Juscelino, Hugo Gouthier era Cônsul-Geral
me Nova York e amicíssimo do Juscelino, sempre foi amigo
dele. Eu estava em Lisboa quando recebi um telefonema do
Gouthier, um longo telefonema de quase duas horas – em que
ele me oferecia a Prefeitura do Rio em troca da minha
neutralidade à candidatura do Juscelino. Ele não queria nem
o meu apoio, queria apenas que não me metesse na campanha.
215
Presença
Tive que explicar longamente por que isso era impossível...
Muito mais tarde, quando me encontrei com o Juscelino, por
ocasião da Frente Ampla, em Lisboa, perguntei se ele tinha
realmente me oferecido a Prefeitura do Rio em troca do meu
silêncio durante a campanha presidencial de 55, e ele
confirmou.”
Infelizmente, nem Juscelino nem Lacerda estão vivos
para corrigir o engano. Realmente, eu telefonara de Nova York
para Carlos Lacerda em Lisboa. Realmente, eu lhe dera um
recado de Juscelino. Mas nunca, jamais, em tempo algum tentei
calar a sua boca comprando-o com a Prefeitura do Rio de
Janeiro. Tentativa de suborno, a meu ver, mais desabonadora
para ele do que para mim, pois a consciência geral considera um
pouco mais grave vender a própria consciência do que tentar
comprá-la...
Juscelino só queria paz. O poder, para ele, só significava
a capacidade de estabelecer a paz para nela trabalhar pelo futuro
do Brasil. Sempre pediu paz e deu paz, perdão, anistia. Juscelino
tinha tanto a fazer que considerava um desperdício gastar o tão
limitado tempo de vida que nos é concedido em quizílias
menores. Sendo amigo chegado dos dois adversários políticos,
tentei uma aproximação, uma conciliação digna. Aconselhei ao
meu amigo Carlos Lacerda que não enveredasse numa campanha
pessoal, apaixonada e injusta contra o meu amigo Juscelino que
num ponto podia tranqüilizá-lo: não nomearia um prefeito do
Rio de Janeiro sem antes consultá-lo. Tendo em vista o grande
interesse que ele sempre demonstrara pela cidade e o
conhecimento de causa que tinha dos possíveis candidatos.
Hugo Gouthier
216
Juscelino Kubitschek, Presidente eleito
Em fins de 1955, Juscelino Kubitschek comunicou-me o
seu desejo de visitar os Estados Unidos na qualidade de Presidente
eleito. Imediatamente fui tratar de sua estada em Nova York, mas
deparei-me com dois problemas. Primeiro, o Presidente Eisenhower
estava na Flórida convalescendo de um enfarte; segundo, mesmo
que não estivesse, o governo americano não se resolvera a dar a
Juscelino o tratamento de Presidente eleito, temeroso de que a
UDN ainda conseguisse anular a sua eleição, optavam por dispensar-
lhe o tratamento de um visitante ilustre. Pequena nuance
diplomática de imensas implicações políticas. Tratado apenas como
visitante ilustre, Juscelino não se hospedaria em Blair House, a
residência oficial em Washington, e estaria impedido de falar no
Congresso americano. Telefonei ao meu amigo e lhe contei o que
se estava passando. Juscelino ficou muito contrariado, a imprensa
exploraria o caso chegando talvez a prejudicar a sua acolhida na
Europa como Presidente eleito. Prometi-lhe então empenhar-me a
fundo na mudança de atitude do governo americano e logo a seguir,
comuniquei-me com o Embaixador do Brasil em Washington –
João Carlos Muniz – explicando-lhe o que eu pretendia fazer, com
o que concordou sem hesitar. E fui imediatamente procurar o meu
amigo Cabot Lodge, que fora um dos principais artífices da eleição
de Eisenhower e era seu amigo pessoal de longa data. Amigo e
conselheiro de confiança.
Compreendendo logo tudo, Cabot Lodge, sem perda de
tempo, telefonou para Eisenhower e, em dois minutos, a situação se
desnuviou. Juscelino Kubitschek seria tratado nos Estados Unidos
217
Presença
como Presidente eleito do Brasil, seria recebido em Key West, na
Flórida, pelo Presidente Eisenhower e todo o resto do programa
seria cumprido. Deu-me apenas Cabot Lodge uma delicada sugestão:
“Não poderia Juscelino, em seu discurso no Congresso, definir sua
posição em face do comunismo e expor as medidas que pretendia
tomar, em seu governo, contra a inflação?” Sugestão feita de amigo
para amigo e não entre dois representantes de países vizinhos, o que
poderia ser interpretado como uma ingerência nos negócios internos
do Brasil. Mas eu compreendi perfeitamente o ponto de vista de
Cabot Lodge. Primeiro porque a imprensa mundial vinha fazendo
alarde do apoio dado à eleição de Juscelino pelos comunistas; segundo,
porque os americanos, naquela época, viviam uma verdadeira
paranóia: o terror da inflação e, provavelmente, atribuiriam ao
programa de metas de Juscelino poderes inflacionários. Nesse ponto,
Juscelino evidentemente não faria concessões, e nem iria sequer
discutir o programa prioritário do seu governo diante do Congresso
americano. Já o caso das acusações que lhe faziam de ligações com os
comunistas era mais fácil. A própria cúpula do Partido Comunista
Brasileiro – ilegal no Brasil – nunca fizera qualquer declaração de
apoio a Juscelino. Além do mais, o voto era secreto e livre e não
trazia atestado ideológico. Não cabia a Juscelino pedir aos comunistas
que não votassem nele. Como não coubera a Milton Campos –
candidato da UDN – fazer o mesmo no momento da sua eleição
para Governador de Minas.
Em resumo, Juscelino foi recebido por Eisenhower,
hospedou-se em Blair House, deu entrevista à imprensa no National
Press Club, cumpriu todo o programa oficial e, falando ao
Congresso americano, disse tudo o que bem queria.
Hugo Gouthier
218
Em Nova York, o Prefeito Robert Wagner ofereceu-lhe
um almoço, no qual foi saudado por Nelson Rockefeller e recebeu
um diploma de honra da cidade pelos seus relevantes serviços
prestados à causa pública. Eu mesmo lhe ofereci um banquete no
Hotel Ambassador que contou com a presença das figuras mais
representativas da política, da indústria, da imprensa, do comércio
e de várias outras áreas dos Estados Unidos. Nessa festa, apresentei
Juscelino a diversas personalidades importantes do panorama
americano, entre as quais, Cabot Lodge, Averrel Harriman –
Governador do Estado de Nova York – e Thomas Dewey – ex-
Governador do Estado de Nova York e duas vezes candidato à
Presidência dos Estados Unidos.
Muitos outros jantares e almoços foram oferecidos ao
Presidente eleito do Brasil, por entidades de vários setores, entre
as quais: A Pan American Society, a American-Brazilian
Association, a National Coffee Association e o Pan-American
Coffee Bureau a cujo almoço compareceram mais de 800 pessoas.
Juscelino Kubitschek de Oliveira, com a sua classe, dinamismo,
inteligência e simpatia, passando por cima de seus detratores,
conquistara definitivamente o coração dos americanos.
João Goulart
O último dos poderosos brasileiros a visitarem Nova
York quando eu era Cônsul-Geral foi João Belchior Marques
Goulart, Vice-Presidente do Brasil. Chegou acompanhado de sua
jovem e bela esposa, Maria Teresa. A seu pedido, limitamos ao
mínimo os seus compromissos, tanto os de caráter público quanto
219
Presença
os de caráter privado. A convite do Cardeal Spellman, assistiram a
uma missa solene na Catedral de São Patrício. Na homilia, o cardeal
agradeceu a presença do Vice-Presidente do Brasil, dedicando-lhe
palavras de amizade e carinho; depois, ofereceu um almoço aos
visitantes.
Também homenageei-os com uma recepção, em minha
casa, que teve a presença de destacadas figuras do meio político,
social e industrial de Nova York. Fui com eles visitar o prédio das
Nações Unidas onde o Embaixador Cyro de Freitas Valle lhes
ofereceu um almoço ao qual estiveram presentes Dag Hammarskjöld
– então Secretário-Geral da ONU – e delegados dos países
americanos, além de vários chefes de empresas brasileiras em Nova
York.
A hora do adeus
Quando, em fins de 1956, depois de três anos intensos e
proveitosos, deixei Nova York para assumir o posto de Bruxelas,
meus amigos organizaram um verdadeiro festival de despedidas.
Um banquete do Prefeito Robert Wagner, um almoço da
American-Brazilian Association, um jantar do Embaixador Henry
Cabot Lodge, e dezenas de outras manifestações de afeto e
consideração, a mais concreta das quais – uma medalha de ouro
representando a Cidade de Nova York e seus cinco boroughs
guardo com imenso carinho. Ao entregar-me essa decoration disse-
me o prefeito que ela havia sido igualmente concedida a dois outros
grandes homens: o Almirante Byrd, desbravador da Antártida, e
o Lord Mayor de Londres.
Hugo Gouthier
220
Eu partia dos Estados Unidos promovido a embaixador
e o governador de Nova York, Thomas Dewey, escreveu-me a
propósito da minha promoção.
“Tivemos Mrs. Dewey e eu uma sensação de orgulho
pessoal ao saber de sua promoção a Embaixador e desejamos ambos
felicitá-lo. A parte triste é que me parece que isso vai significar a
sua partida de Nova York, o que nenhum de nós deseja. Sua missão
aqui tem sido um tão grande sucesso que todos lamentaremos a
sua partida, se ela se verificar. Deve haver uma maneira de conservar
o título e permanecer aqui ao mesmo tempo.”
Mas não havia. Fizemos as nossas malas, lançamos um
último olhar cheio de melancolia pelo nosso apartamento da Park
Avenue, cenário de tantos momentos felizes, fechamos a porta e
fomos embora.
Essa é a vida de um diplomata. Chegar, deitar raízes, dar-
se e receber, e logo depois romper as amarras e partir para
recomeçar de novo. Porque, como dizia Sêneca: a vida é breve e a
arte é longa...
O Início da
Desburocratização
223
Sou um homem modesto, com senso crítico bastante para
nunca tentar me enfeitar com as penas do pavão. Neste caso, no
entanto, com orgulho advogo para mim os direitos de precursor.
Que me perdoe o simpático Ministro Hélio Beltrão, mas fui eu o
introdutor da desburocratização no Brasil, numa época longínqua
em que ele ainda devia andar pela faculdade.
Foi em junho de 1956 e eu passava umas férias no Brasil,
antes de ser promovido a Embaixador e removido para Bruxelas.
A pedido de uma senhora, viúva modesta e muito minha amiga,
fui procurar o seu processo de aposentadoria, para ver a quantas
andava e por que não se concluía. Passei dias na repartição
competente, indo de seção em seção. Finalmente consegui encontrar
o enorme e empoeirado calhamaço do qual constavam dezenas de
despachos: “... salvo melhor juízo”, “... à consideração superior”
etc., etc... Tudo para conceder a uma pobre mulher, que trabalhara
a vida inteira pensão à qual tinha direito líquido e certo.
Saí dali impressionado e fui conversar com Juscelino, então
Presidente da República. Fiz-lhe ver a necessidade imperiosa de
acabar com uma prática que representava inútil desgaste para a
administração e era um tormento para todo mundo. Sugeri-lhe
O Início da Desburocratização
Hugo Gouthier
224
que despachos opinativos e conclusivos abolissem a série interminável
de despachos intermediários. Juscelino concordou na hora e
mandou chamar João Guilherme de Aragão, presidente do DASP.
O mesmo administrador exemplar que foi mais tarde Ministro
para Assuntos Econômicos de Juscelino, Secretário-Geral do MEC,
durante a gestão do Ministro Eduardo Portella, e é hoje diretor-
regional do Senac em Brasília.
Formamos um grupo de trabalho, João Guilherme de
Aragão, eu e alguns dos seus assessores. Em menos de um mês
tínhamos estudado o assunto e elaborado o Decreto nº 39.510,
dispondo sobre o funcionamento de uma Comissão de Simplificação
Burocrática (COSB), que Juscelino sancionou no dia 4 de julho de
1956. Decreto tão minucioso e amplo do qual transcrevo uma parte,
pois não afirmo nada sem provar.
“O Presidente da República, usando da atribuição que
lhe confere o artigo 87, item I, da Constituição, decreta:
Art. 1º – Funcionará, junto ao Departamento
Administrativo do Serviço Público, uma Comissão de Simplificação
Burocrática (COSB), constituída de cinco membros, um dos quais
servirá de secretário-executivo, incumbida de promover a
simplificação nas normas e rotinas administrativas, de modo a evitar
a duplicidade de atribuições, excesso de pareceres e de despachos
interlocutórios.
Parágrafo Único. O secretário-executivo da COSB atuará
em articulação com o Serviço de Organização e Métodos (SOM)
que será o órgão de coordenação dos trabalhos de simplificação
das normas e rotinas administrativas.
Art. 2º – Incumbe à comissão de que trata este decreto:
225
Presença
a) estudar os meios de descentralização dos serviços
mediante delegação de competência, fixação de responsabilidade e
prestação de contas da autoridade, pela execução dos trabalhos que
se acham sob a sua jurisdição;
b) promover medidas junto aos Ministérios quanto ao
exame da situação atual das repartições e das rotinas que merecem
providências imediatas de correção;
c) supervisionar as atividades das subcomissões ministeriais
abaixo referidas, traçando-lhes normas de sistematização dos
trabalhos a serem efetuados.”
Em 12 artigos, ficava não só estabelecida a filosofia
desburocratizante do governo como detalhada e explicitada a estratégia
necessária para implantá-la. E o decreto vinha datado e assinado:
“Rio de Janeiro, em 4 de julho de 1956; 135º da
Independência e 68º da República.
Juscelino Kubitschek
Nereu Ramos
Renato de Almeida Guillobel
Henrique Lott
José Carlos de Macedo Soares
José Maria Alkimim
Lúcio Meira
Ernesto Dornelles
Clóvis Salgado
Parsifal Barroso
Henrique Fleiuss
Maurício de Medeiros”
Hugo Gouthier
226
Só uma coisa me pergunto: por que meandros da
burocracia desviou-se o decreto desburocratizante de Juscelino até
o momento em que foi efetivamente dinamizado e aperfeiçoado
pelo Ministro Hélio Beltrão?
Se a minha desburocratização custou mais de 20 anos para
ser posta em prática, outra sugestão descomplicadora foi aceita e
imediatamente concretizada: o pagamento em cheque ao
funcionalismo. Parece mentira, mas até 1956 os funcionários
recebiam os seus salários em metal sonante. Pode-se imaginar o
tempo perdido nas enormes filas formadas à frente dos guichês
por esse Brasil afora...
O Tempo Reencontrado
229
Dezessete anos depois, voltei como Embaixador a
Bruxelas, que havia sido o primeiro posto da minha carreira
diplomática. Mais maduro, pude usufruir em toda a sua plenitude
a magia do reecontro com a cidade das brumas que, nas palavras de
Verhaeren – seu poeta maior – “além de uma cidade é atmosfera e
poesia”. Um novo ciclo se abria, num crescendo diferente, e com o
qual eu sequer sonhara. Tais são as surpresas do destino.
Recebi de Juscelino todas as provas inequívocas de
amizade e posso dizer, em sã consciência, que jamais faltamos um
ao outro. E assim seria, até o fim da minha vida, se a fatalidade não
o tivesse arrancado prematuramente do nosso convívio. Eu era
Cônsul-Geral em Nova York quando ele me telegrafou
comunicando a minha promoção a Ministro Plenipotenciário de
1ª classe – na época, correspondente a Embaixador – e pedindo-
me para escolher o posto que desejasse. Fiquei muito feliz com
mais essa demonstração de apreço e confiança e tinha certeza de
que ele realmente me daria o posto que eu solicitasse. Decidido a
não deslocar ninguém, a não passar por cima dos outros – falou
mais alto o coleguismo e a solidariedade profissional – respondi-
lhe que me mandasse para Cuba, posto vago há algum tempo. Qual
“... pourtant lorsque les soirs sculptent le firmament
de leurs marteaux d’ébène, la ville au loin s’étale et
domine la plaine comme un nocturne et colossal
espoir.”
(Émile Verhaeren, Les Campagnes Hallucinées)
O Tempo Reencontrado
Hugo Gouthier
230
não foi a minha surpresa quando soube que o Itamaraty iria pedir
o meu agrément ao governo belga. Fiquei aflito pois, em Bruxelas,
se encontrava o meu amigo, e um dos mais ilustres diplomatas,
Vasco Leitão da Cunha. Disseram-me que o próprio Vasco pedira
a sua remoção para Cuba, onde encontraria o clima favorável à sua
saúde, mas eu quis me certificar e fui conversar com Maurício
Nabuco, meu amigo e do Vasco e, em tudo e por tudo, o meu
modelo no Itamaraty. Nabuco não só confirmou aquelas
informações como agradeceu-me a elegância do gesto, a seu ver um
exemplo para todos os que abraçassem uma carreira como a nossa,
dedicada essencialmente a promover o bom entendimento entre
os homens. Só depois de receber a aprovação do meu mestre,
entreguei-me ao prazer de concordar com a minha designação para
a Embaixada em Bruxelas, capital à qual dedicava especial carinho.
A Embaixada do Brasil estava instalada numa mansão
senhorial – no imponente e sóbrio estilo dos hôtels particuliers das
classes nobres e abastadas da Bélgica e da Holanda, na Av. de
Tervueren, 245, no belíssimo bairro residencial de Wolwe – Saint
Pierre, a pouca distância do centro da cidade, dos Ministérios e do
Palácio Real. Separada da rua por uma alta grade de ferro, aberta
em dois largos portões, a Embaixada ostentava uma nobre fachada
revestida de pedra – em estilo Luís XVI – e dispunha de imensos
jardins, cobertos de flores. Em resumo, tinha todas as vantagens
que a tornavam única entre as de outras missões diplomáticas de
Bruxelas, e apenas um grave defeito: era alugada.
Dispensa defesa a política que recomenda às missões
diplomáticas no exterior instalarem as suas sedes em prédios
próprios. Assim procedem as grandes nações por razões econômicas
231
Presença
óbvias – haja vista a fortuna pela qual foram vendidas as antigas
Embaixadas no Rio. Mas eu vou mais além. Considero a Embaixada
de um país – reconhecidamente tão sagrada como qualquer outro
milímetro do seu território – uma espécie de casa paterna de todos
os cidadãos daquele país, um marco, um porto, um ponto de apoio.
E, portanto, deve ter um endereço fixo, eterno, com alma e
fisionomia próprias, com caráter inconfundível, para sempre
marcados na lembrança.
Construída, em 1928, por um belga de família tradicional,
Fernand Pisart, de acordo com o projeto do famoso arquiteto
holandês M. Brinkman, durante muitos anos a bela casa serviu-lhe
de residência. Dizem que a construção, dirigida pelo próprio Pisart,
sem o intermédio de empreiteiros, durou cerca de cinco anos, tais
as exigências de esmero no trabalho e na qualidade do material.
Depois que ele morreu, como a sua viúva residisse nos Estados
Unidos durante a guerra, a casa teve um curioso destino. Primeiro,
abrigou o General-Comandante das forças alemãs de ocupação;
depois, com a mudança da sorte nas armas, foi residência do
Marechal Montgomery, comandante das tropas inglesas de
libertação.
Mais tarde, por iniciativa do Embaixador Antônio Camilo
de Oliveira, foi alugada ao governo brasileiro. Madame Pisart,
ciosa da preservação do alto padrão do seu imóvel, para evitar
inconvenientes desfigurações, preferiu alugá-lo com os móveis,
tapetes e objetos de adorno. E recusava-se a vendê-lo com medo de
que viesse a ser demolido e seu imenso parque loteado para a
construção de modernos blocos de apartamentos. Consegui
convencê-la de que não era esse o objetivo do Brasil – pelo menos
Hugo Gouthier
232
a curto e a médio prazos – e ela viu-se obrigada, pelos altos custos
dos impostos, a desfazer-se da sua propriedade e aceitou a minha
oferta. E, mesmo antes de concretizado o negócio, já o Itamaraty
recebia propostas excelentes de desistir da aquisição por expressiva
margem de lucro.
O Itamaraty deu total e imediato apoio à minha sugestão,
e José Carlos de Macedo Soares – então Ministro das Relações
Exteriores – autorizou a abertura das negociações concretizadas
posteriormente durante a gestão do titular da pasta que o sucedeu,
Francisco Negrão de Lima. É dever de justiça salientar que, nessas
duas fases, coube papel de destaque ao Chefe do Departamento de
Administração, Embaixador Fernando Ramos de Alencar, que
acompanhou atentamente todos os trâmites da transação imobiliária
e, por suas rápidas e eficientes providências, muito contribuiu para
que a Embaixada do Brasil pudesse dispor de uma sede condigna
em Bruxelas. Na Secretaria-Geral, os Embaixadores Décio Moura
e Antônio Mendes Vianna também não se esquivaram em apoiar e
prestigiar a iniciativa. Nas medidas complementares da compra,
igualmente cooperaram com a sua boa vontade o Chefe da Divisão
de Material, Secretário Paulo Brás Pinto e Silva; o Subchefe da
mesma, Secretário Francisco José Novais Coelho; e o Secretário
Expedito de Freitas Rezende, Assistente do Chefe do Departamento
de Administração.
Uma vez efetuada essa primeira compra, parti para a
segunda: uma antiestética casinha, colada ao lado esquerdo da
Embaixada – pelo sistema de parede-meia. Ciente do nosso
interesse, o proprietário do monstrengo recusava-se a vendê-lo.
Deu-me muito trabalho, exigiu-me uma paciência franciscana e
233
Presença
grande poder de persuasão mas consegui finalmente comprá-lo e
demoli-lo. Até hoje não compreendo como é que o senhor Pisart
permitiu a construção daquele pequeno horror grudado à sua
bela casa, desfigurando-a. E o engenheiro adormecido em mim
mais uma vez despertou.
Ficamos empolgados principalmente com a reconstrução
do parque, à qual nos dedicamos, orientando o melhor jardineiro
que a Embaixada já teve, um encantador gentleman, de cachimbo...
Os resultados foram tão extraordinários que durante todo o tempo
que passamos em Bruxelas – mais de três anos – nunca compramos
uma rosa e a casa vivia repleta de flores.
Como sempre, minhas obras são rápidas e eficientes,
tamanho empenho ponho nelas. Para isso, contei com a preciosa
colaboração do Arquiteto-Decorador João Maria dos Santos, que
por sorte minha se encontrava na Bélgica. Nem preciso falar dos
seus talentos, basta mencionar que um júri, altamente qualificado,
concedeu-lhe o Grande Prêmio Internacional de Decoração e
Arranjo de Interiores, pelo seu magnífico trabalho no pavilhão do
Brasil na Exposição Internacional de Bruxelas. Mas é indispensável
mencionar que João Maria não ganhou um tostão do Itamaraty:
prestou a sua colaboração na reforma da Embaixada a título
gracioso, pelo orgulho de servir ao seu país.
E foi um excelente trabalho. Pretendemos e alcançamos,
dentro de requintado bom gosto, a modernização do interior da
casa, conservando a sua dignidade estrutural. Todo o conjunto em
tons discretos, harmoniosos sem serem monótonos, evitando os
exageros que fogem aos fins severos de uma residência do chefe de
missão diplomática.
Hugo Gouthier
234
Se o projeto não custou nada, sua execução custou o
mínimo, pois foi confiada a uma pequena empresa que venceu a
concorrência de preços por nós efetuada, a Robert Durart, que
assim mesmo ainda acabou nos fazendo um bom abatimento.
Não nos limitamos à residência e seu parque – de quase 7
mil metros quadrados, com duas estufas de plantas ornamentais –
transformamos em casa de hóspedes um pequeno pavilhão que,
em estado lastimável, existia ao fundo do jardim.
Um diplomata não tem a menor obrigação de ser mestre-
de-obras. Talvez por isso, quando tudo ficou pronto, recebi de
Fernando Ramos de Alencar uma carta em que, entre outras coisas,
me dizia:
“... Sinto ser da minha obrigação agradecer-lhe o grande auxílio
que deu à minha gestão no DA, proporcionando-me a
oportunidade de realizar transação tão vantajosa para o
Itamaraty. Isso queria dizer-lhe da maneira mais sincera e
espontânea.
Neste capítulo, não posso deixar de acrescentar que
também tratei de melhores instalações para a nossa chancelaria.
Quando lá cheguei, ela funcionava na Avenue Louise, 108. A
localização não podia ser melhor, mas o imóvel, antiga residência
familiar precariamente adaptada, era velho e inadequado. Após
autorização do Itamaraty, transferi a chancelaria para um
moderníssimo edifício comercial na esquina da Rue de la Science
com a Rue de la Loi, onde ocupamos a ala principal do segundo
pavimento. E, entre a ciência e a lei, ficamos muitos anos mais.
235
Presença
Recordações de Bruxelas
O protocolo da Corte estabelecia que, depois de
apresentadas credenciais ao Rei Balduíno em cerimônia pomposa,
os chefes de missões diplomáticas visitariam o ex-Rei Leopoldo III
no próprio Palácio Lacken, onde ele residia. Gesto delicado de
devoção filial ao monarca destronado. Nessas ocasiões, éramos
recebidos não só pelo ex-Rei Leopoldo III como também pela
Princesa Rethy.
Elegante, instruída, finíssima e bela, a princesa nunca foi
aceita pela alta sociedade belga, que não lhe perdoava a precedência
nas festas da corte. Naquela época, Balduíno ainda não era casado
e a princesa, para desgosto da nobreza local, exercia o papel de
primeira-dama. Em sua devoção à Rainha Astrid, incapaz de
esquecer sua adorada soberana tragicamente morta num acidente,
em plena juventude e beleza, o povo também hostilizava a sua
sucessora. Talvez toda essa antipatia fosse atraída apenas pela sua
fulgurante presença. Ainda me lembro dela, num grande baile no
Palácio Real, vestida por Dior da cabeça aos pés, toda de branco,
longa capa de cauda e tiara de brilhantes.
Essa festa, aliás, merece um reparo especial. Com as agruras
da guerra e da política, há mais de 30 anos os salões do Palácio Real
não se abriam para um grande baile. Assim, no primeiro depois de
tanto tempo, o rei viu-se obrigado a fazer uma longa lista de
convidados... mais de 1.500 pessoas. A nobreza, a política, o Corpo
Diplomático, a administração, os fornecedores do rei e outras
dezenas de categorias. Apinhado, o imenso palácio não coube para
tanta gente que se espalhou pelos jardins e – literalmente falando –
Hugo Gouthier
236
subiu pelos postes. Felizmente a família real reservou uma sala,
onde se podia respirar, para a nobreza, os diplomatas e os amigos
mais chegados.
Outro acontecimento social importante na vida da Corte
era o garden-party oferecido anualmente no Palácio de Lacken.
A Exposição Universal
de Bruxelas
Nossa vida social, já intensa dentro da Bélgica, e por ser a
Bélgica tão próxima de tantos países europeus onde tínhamos
grandes amigos, chegou a paroxismos inéditos por ocasião da
inauguração da Exposição. Laís já tinha medo de atender o telefone,
pois quando lhe perguntavam “adivinhe quem está falando!” podia
ser qualquer um, vindo de qualquer parte do mundo: uma irmã
do Xá do Irã, uma colega do Brasil, um representante diplomático
na Europa, um banqueiro americano ou um armador grego.
Adorávamos as visitas, apenas não conseguíamos nos desdobrar
para recebê-los todos – à nossa moda mineira, carinhosa e amiga –
por mais jantares que improvisássemos, ou bailes, ou chás, ou
excursões...
Laís se desdobrava para recepcionar a todos, apesar da
responsabilidade de dirigir uma casa imensa e um batalhão de
empregados. Como fez no dia em que Elza Maxwell chegou a
Bruxelas de surpresa e telefonou perguntando se podia levar lá em
casa uma amiga dela... Maria Callas. Organizou-se às pressas uma
recepção digna da famosa cantora que, agradecida, ficou nossa amiga
para o resto da vida.
237
Presença
Já no fim de 1956 estava eu às voltas com a famosa
Exposição de Bruxelas que se inauguraria em 1958. Tinha quase
dois anos pela frente mas não perdi um minuto, tão grande
anunciava-se o trabalho.
Minha primeira providência foi convidar Sérgio Bernardes
para projetar o pavilhão do Brasil. Esse homem que eu sempre
admirei, que deixou a marca do seu gênio espalhada pelo mundo
em memoráveis obras de arquitetura, criou comigo laços de amizade
definitiva. Pois somos parecidos em muitas coisas, entre as quais o
entusiasmo febril e o trabalho ritmado e minucioso. Nem ele nem
eu temos medo de problemas, se decidimos enfrentá-los, um a um,
à medida que forem aparecendo.
Sérgio acedeu imediatamente ao meu convite indo a
Bruxelas, onde se hospedou conosco para traçar os planos iniciais.
Lembro-me que fazia um frio terrível e ele, não satisfeito com a
excelente calefação da Embaixada, passava os dias trabalhando
enfiado no casaco de peles da mulher. Para horror da nossa
camareira, que o considerava completamente louco.
Acabamos montando na Embaixada um verdadeiro
escritório a serviço do pavilhão do Brasil. Sérgio confiou a parte
estrutural a Paulo Fragoso e Eduardo de Barros.
E eu ali, esforçando-me para que o meu país fizesse um papel
bonito naquela mostra. Aflito porque o dinheiro não havia ainda
chegado do Brasil, assinei uma promissória avalizada por Sérgio, e
levantamos num banco o dinheiro para as despesas iniciais. Parecíamos
um bando de fanáticos dispostos a salvar o mundo, trabalhando noite
e dia. E fomos conseguindo tudo, graças não só ao meu empenho
mas, sobretudo, à capacidade oceânica e incansável de Sérgio.
Hugo Gouthier
238
Nós não acreditávamos só no Brasil, acreditávamos
também em nós mesmos e na vibratilidade do nosso
companheirismo, onde destaco a cooperação de Caio de Lima
Cavalcanti, Ministro de Assuntos Econômicos, pessoa das mais
escrupulosas e exigentes, que eu designei para zelar pela
aplicação dos recursos – que acabaram chegando do Brasil –
destinados à construção do pavilhão.
Da fase da decoração, encarregou-se Wladimir
Murtinho, hoje Embaixador. E os jardins ficaram por conta
do genial Roberto Burle Marx que, com o seu talento, soube
traçá-los maravilhosamente dentro da mesma linha de
criatividade que presidira ao arrojado projeto da obra
arquitetônica.
Para Comissário-Geral foi escolhido o Dr. Edgar
Baptista Pereira, homem dinâmico e correto, que se mostrou
inexcedível no cumprimento de suas funções.
Teve o Dr. Edgar Baptista Pereira a cooperação de
Caio de Lima Cavalcanti, Ministro de Assuntos Econômicos
da Embaixada, escolhido como Comissário-Geral Adjunto, e
funcionando como Comissários Francisco Lisboa Figueira de
Melo, José Augusto de Queiroz, Alondo Caldas Brandão,
Cônsul Michael Corbett e Oswaldo Behn Franco, e como
Administrador-Geral Terêncio Furtado de Mendonça Porto.
Os demais membros do Comissariado foram os seguintes:
Comissão técnica – Wladimir Murtinho, Presidente; Sérgio
Wladimir Bernardes, Arquiteto-Chefe; Nicolai Fikoff,
Arquiteto-Assistente; Max Winders, Arquiteto de Consulta;
João Maria dos Santos, Decorador-Chefe; Eduardo Anahory,
239
Presença
Decorador-Assistente; Jack van de Beuque, Decorador-
Assistente; Artur Lício Pontual, Decorador-Assistente; Libbe
Smit, Encarregado da Iluminação; Mário Dias Costa,
Encarregado do Serviço de Publicações; Serviços especiais –
Herculano Borges da Fonseca, do Banco do Brasil; Octavio
Cintra Leite, do Instituto do Café; Fernando Balaguer, do
Instituto do Mate; Orlando Gomes Calaza, do Ministério da
Educação; Jorge de Carvalho Britto Davis, Informações
comerciais; Secretariado – Stella Baptista Pereira, Renée
Prueffer, Maria José Nonnenberg e Lucy Teixeira.
Um competente corpo de lindas hostesses – moças
educadíssimas, bem-informadas e poliglotas – encarregou-se
do contato direto com o público, orientando-o, respondendo
a todo o tipo de perguntas, resolvendo problemas os mais
variados. As jovens primas Lourdes e Helena de Brito e Cunha,
Lúcia Cortez, Lygia Coutinho e tantas outras deram um belo
exemplo da classe, da cultura e do dinamismo da mulher
brasileira. Numa exposição farta de nomes famosos, uma das
recepcionistas do pavilhão americano era Lee Bouvier, irmã
de Jacqueline Kennedy Onassis, que se casou mais tarde com
o Príncipe Stanilas Radzwill.
Não é de se estranhar que o pavilhão do Brasil – que
basicamente reproduzia os ciclos econômicos da nossa história
– ganhasse o grande prêmio da Exposição Universal de Bruxelas
– 1958. Convém salientar que o pavilhão do Brasil custou cerca
de 200 mil dólares, ao passo que pavilhões como os dos Estados
Unidos e da Rússia custaram mais ou menos 5 milhões de
dólares.
Hugo Gouthier
240
Festejando a Exposição
Nem preciso dizer que quem estava na Europa em 1958 –
residente ou de passagem, brasileiro ou amigo de outras plagas –
deu pelo menos um pulo a Bruxelas para visitar a Exposição ou
participar de alguns dos festejos que promovemos. O prédio
principal e o pavilhão de hóspedes viviam com lotação esgotada.
Por ocasião da inauguração, houve dois acontecimentos principais
dignos de registro: primeiro, organizamos um concerto, depois o
grande baile – era moda naquela época – ao qual acorreram
personalidades do mundo inteiro.
O concreto, para um grupo fechado de amigos mais
íntimos – cerca de uns cem – foi regido pelo próprio maestro Villa-
Lobos, que executou, entre outras, para enlevo dos presentes, as
suas Bachianas... Isso foi na véspera da abertura da Exposição e
estava entre nós a Rainha Elizabeth, mãe de Leopoldo. Uma grande
personalidade, charmosa como uma marquesa de ilustrações
francesas, cheia de vida e participação. Tendo demonstrado vivo
interesse em conhecer o nosso pavilhão, Laís concordou em exibi-
lo para ela antes da inauguração oficial. Esse oferecimento, feito ex
abundantia cordis, custou-lhe caro. Nossos últimos convidados
despediram-se alta madrugada e, antes das dez horas da manhã, a
rainha passou por lá para buscar minha mulher. E juntas
percorreram o pavilhão do Brasil, palmo a palmo. A Rainha
Elizabeth, interessadíssima por tudo, pedindo referências exatas
sobre os cristais da Bahia, o Ciclo do Café, a cana-de-açúcar, a
altura do Corcovado... Laís partindo para a improvisação do seu
fecundo imaginário...
241
Presença
Depois houve o baile, para festejar o prêmio concedido
ao pavilhão do Brasil. Burle Marx encarregou-se da decoração
dos salões da Embaixada, com centenas de orquídeas e antúrios
trazidos de avião do Brasil como oferta da Panair. Havia duas
orquestras e os nossos jardins iluminados pareciam saídos de um
conto de fadas. Estava todo mundo! De Londres veio nosso mais
constante freguês e exigente hóspede, o Embaixador Assis
Chateaubriand; de Paris, um expressivo contingente: o
Embaixador Caio de Mello Franco e a Embaixatriz Iolanda; o
Príncipe Jean-Louis de Faucigny Lucinge, que viria a se casar
com a brasileira Sylvia Regis de Oliveira; vestida pelo seu predileto
Balmain, a eternamente elegante Perla Lucena – hoje Mattisson –
nossa grande amiga e madrinha de casamento de minha filha
Cláudia; o simpático casal de São Paulo, Sérgio e Renata Mellão,
o jovem Barão Edmond Rothschild, então solteiro e cobiçado;
Paulo Carneiro e sua mulher; Elza Maxwell e os brasileiros, Ary
e Adelaide de Castro; Sarah Kubitschek e as filhas; Célia Braga,
Lúcia Cortez, Lourdes e Helena de Brito e Cunha, e tantos outros
que me falha a memória; da Bélgica, a nobreza e a alta sociedade
em peso, lideradas pelos Príncipes de Ligne. Sem falar, é claro,
do nosso grande amigo e colega: Porfírio Rubirosa.
Porfírio era Embaixador da República Dominicana em
Bruxelas. Homem encantador, cheio de alegria e savoir-faire e,
além do mais, excelente cozinheiro... Certo dia, não só
providenciou, para uma festa nossa, uma maravilhosa orquestra
de Saint-Tropez – cidade que só ele praticamente conhecia naquela
época – como encarregou-se de preparar um feijão delicioso à
moda dominicana.
Hugo Gouthier
242
Num desses vários jantares oferecidos à época da
Exposição, cometi a maior gafe da minha vida. Sentado à mesa
em frente a um senhor francês que passou a noite discursando
– com grande conhecimento de causa – sobre navios e
embarcações, apesar dos sinais frenéticos que me fazia Laís, de
outra mesa, dirigi-me a ele, o jantar inteiro, como se fosse um
armador. Só mais tarde soube que se tratava de Maurice Druon,
escritor francês, membro da Academia, famoso sobretudo por
seus livros históricos como Les Rois Maudits e tantos outros
bestsellers.
Assis Chateaubriand não parava em Londres. Volta e
meia aparecia em Bruxelas, sempre exigindo uma coisa que é
do meu feitio oferecer: jantares, almoços, regados a bons
vinhos, muita alegria e lindas mulheres.
Mas uma das maiores alegrias que tive em Bruxelas
foi conviver com a inteligência de Otto Lara Resende,
mineiro como eu, que havia sido nomeado Adido Cultural
na Bélgica. Tive o prazer de desfrutar intimamente da
companhia agradável e humana do autor de Boca do Inferno,
O Lado Humano, e tantos outros livros devorados pelos
seus leitores. Redescobrir a Europa com ele – em nossas
inúmeras andanças – foi uma verdadeira glória. Imprevisível,
original, Otto tem uma imensa febre de viver, uma paciência
infinita de conhecer pessoas. A única vez que o vi fugindo
do convívio social foi por ocasião da sua eleição para a
Academia Brasileira de Letras, quando seus amigos tiveram
que praticamente arrastá-lo para que fizesse as visitas de
praxe aos acadêmicos.
243
Presença
Os ilustres visitantes
Nunca fui sectarista e, sobretudo no exercício de minhas
funções diplomáticas, nunca discerni entre os adeptos da situação
e os que a ela se opunham.
Recentemente derrotado por Juscelino nas eleições
presidenciais, o Marechal Juarez Távora foi a Bruxelas visitar Caio
de Lima Cavalcanti, seu amigo. Percebendo a situação
constrangedora em que se encontrava – os embaixadores todos
fugiam dele – ofereci-lhe uma recepção de 300 pessoas e levei-o
para visitar o rei. Sabedor do fato, Juscelino escreveu-me: “Era
exatamente isso que eu desejava que você fizesse.”
E por que não receber condignamente Juarez Távora,
um homem tão identificado com as causas do seu país desde 1930?
Mostra-se que um país é realmente democrático agindo abertamente,
sem ódios e ressentimentos políticos.
Um belo dia, terminávamos tranqüilamente de almoçar
– por acaso estávamos os quatro sozinhos: Laís, eu, Cláudia e
Bernardo – quando o porteiro-chefe da Embaixada veio nos avisar,
cheio de dedos e com um leve tom de reprovação na voz: – Está aí
fora um casal de brasileiros com duas crianças, armas e bagagens.
Não compreendi bem o nome, a senhora é muito bonita mas ele
usa umas botas de cano longo...
Levantei-me imediatamente para ver quem era. E tive o
prazer de receber o Vice-Presidente em exercício do Brasil, Jango
Goulart, acompanhado de Maria Teresa, Denise e João Vicente.
Um tanto intimidado, falando em tom suave como era
seu costume, Jango perguntou-me se estaria disposto a hospedá-lo
Hugo Gouthier
244
na Embaixada pois, viajando de carro pela Europa com a família,
vira-se obrigado a fazer aquela parada inesperada em Bruxelas, onde
não tinham reservas em hotel.
Imediatamente mandei preparar para eles o pavilhão de
hóspedes e eles gostaram tanto da acolhida – inclusive porque seus
filhos puderam brincar à vontade no parque com os nossos – que
a parada programada inicialmente para três dias estendeu-se por
uma agradável estada de uma semana.
Em Busca de Novos
Mercados para o Brasil
247
Encontrava-me como Embaixador em Bruxelas quando
recebi um chamado do então Ministro das Relações Exteriores
Francisco Negrão de Lima, em seu nome e no do Dr. Lucas Lopes,
titular da Fazenda, para chefiar uma missão ao sudeste da Ásia. A
missão especial foi constituída pelo Dr. Francisco de Paula Assis
Figueiredo, representante do Conselho do Desenvolvimento; o
Coronel Arthur Napoleão Montagna de Souza, representante do
Grupo Executivo da Indústria Automobilística; Sr. Arnaldo Walter
Blank, gerente da Carteira de Comércio Exterior; Sr. Lázaro
Baumann das Neves, assessor técnico da Carteira de Câmbio do
Banco do Brasil; Secretário Paulo Amélio do Nascimento Silva,
do Departamento Econômico do Ministério das Relações
Exteriores. E funcionou também como auxiliar da Missão Especial
a Sra. Dulcinéia de Mendonça Vargas Moreira.
Os objetivos dessa missão foram definidos pelos dois
Ministérios responsáveis como sendo os de coleta de dados e
informações exatas sobre a estrutura econômica dos países do
sudeste asiático, seus sistemas de comércio exterior e pagamentos,
bem como sobre as possibilidades de colocação, nesses mercados,
de produtos brasileiros, quer agrícolas quer industriais, e,
Em Busca de Novos Mercados para o Brasil
Hugo Gouthier
248
reciprocamente, sobre a eventual colocação no Brasil de produtos
dos países visitados. Tratava-se, portanto, de uma missão fact-finding,
cuja principal finalidade era a de trazer uma fotografia econômica
e comercial, tão completa quanto possível, dos países incluídos em
seu itinerário oficial, de forma a permitir que os exportadores e
importadores brasileiros tomassem conhecimento de uma nova área
de comércio, a respeito da qual quase nada se conhecia no Brasil.
Durante a missão especial observei que a característica
mais marcante do comércio exterior brasileiro, no que se referia à
exportação, era a falta de agressividade. País com sua pauta de
exportação composta basicamente de produtos de relativa
inelasticidade de demanda, habituamo-nos a uma mentalidade
passiva, esperando que o comprador viesse à nossa porta ao invés
de irmos oferecer nossa mercadoria junto aos possíveis interessados.
Assim, pôde a missão especial verificar, ao longo de seus contatos
com exportadores e importadores de várias praças, como Cingapura
e Hong Kong, que o Brasil e seus produtos de exportação, até
mesmo o café, eram praticamente desconhecidos ou figuravam nas
estatísticas com números irrisórios.
Num mundo que se caracterizava pela aspereza da luta
pelos mercados novos, na qual se utilizavam todos os recursos da
moderna técnica de comerciar, o exportador brasileiro se
apresentava ainda munido de arco e flecha, sem catálogos, sem
mostruários, sem listas de preço, sem conhecer as peculiaridades
de cada mercado, sem agentes ou representantes, em suma, sem
mentalidade exportadora.
Por outro lado, estava ainda o exportador brasileiro
habituado a depender em demasia da ação governamental. Não
249
Presença
defendi uma abstinência radical do governo e sim um traçado de
linhas gerais da política de comércio exterior, restringindo sua
interferência na execução desta política àqueles casos em que a
iniciativa privada se revelasse insuficiente ou inadequada.
Abordei também a situação do café fazendo sugestões para
a entrada deste produto nos mercados visitados e defendendo uma
ação conjugada entre os produtores de café e o IBC, com vistas a
conquistar novos mercados e manter os já existentes, evitando a
deterioração da posição do café diante da concorrência africana e
asiática.
Pareceu-me ser indiscutível que o principal esforço
brasileiro devia orientar-se, paulatinamente, para a diversificação
da pauta exportadora, incluindo outros produtos que não os
primários, de modo a evitar os inconvenientes experimentados por
toda e qualquer economia reflexa.
Durante a visita oficial à Tailândia, tive ocasião de abordar
o assunto do estabelecimento de relações diplomáticas formais entre
o Brasil e a Tailândia. Acentuei que sua importância como país
importador e exportador havia pesado em nossa decisão de criar
em Bangkok uma Embaixada efetiva, salientando nosso desejo de
participar mais ativamente do mercado importador tailandês, não
só com o café e outros produtos agrícolas, mas também com
produtos acabados, assim como sublinhei que esse país era um dos
grandes fornecedores de estanho e borracha, produtos de que o
Brasil era forte consumidor. Recebi a afirmação de que o governo
tailandês teria o maior prazer em colaborar com a missão especial,
e, futuramente, com a Embaixada do Brasil em Bangkok, cuja
criação seria de grande importância para a Tailândia pois, sendo o
Hugo Gouthier
250
mercado tailandês livre nas suas importações, a penetração de um
novo exportador dependeria essencialmente do seu grau de
competição.
Finalmente, durante a minha estada em Bangkok, foram
formalmente estabelecidas as relações diplomáticas entre o Brasil e
a Tailândia na categoria de Embaixada, sendo trocadas notas por
mim e pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Bangkok, no
dia 17 de abril de 1959. O titular da referida pasta, Sr. Thanat
Khomann, havia sido meu colega nas Nações Unidas, onde
desenvolvemos laços de amizade e, por isso, os trabalhos da nossa
missão tiveram uma redobrada cooperação no governo tailandês.
Também nas Filipinas aproveitei a oportunidade de meus
contatos, durante a missão especial, para sondar a posição do
governo filipino com respeito ao estabelecimento de relações
diplomáticas formais. Verificando haver em Manila verdadeiro
interesse pela questão e entendendo que ao governo brasileiro
conviria apressar o andamento da matéria, tive entrevista com o
Presidente da República das Filipinas, na qual acertei
definitivamente os detalhes para a criação de uma missão
diplomática efetiva no país.
Em Kuala Lumpur, entrei em contato com o Ministério
dos Negócios Estrangeiros, a fim de verificar se seria possível
apressar o estabelecimento formal de relações diplomáticas entre o
Brasil e a Federação Malaia.
Havia a necessidade de consultar previamente o seu
Embaixador em Washington, já que o governo da Malaia tinha a
intenção de confiar-lhe a representação cumulativa no Rio de
Janeiro, verificando que tal representação não significaria uma
251
Presença
sobrecarga demasiada que o impedisse de bem desempenhar suas
funções junto ao governo brasileiro.
Foi-me prometido que seria dado tratamento urgente à
questão e manifestando-me, ao mesmo tempo, o interesse em serem
estabelecidas relações diplomáticas com o Brasil, que seria assim o
primeiro país da América Latina a fazê-lo.
Constatava-se que, sendo os objetivos de nossa missão a
obtenção de um estudo sobre a estrutura econômica dos países visitados,
seus sistemas de comércio exterior e a possibilidade de incremento no
comércio com o Brasil, chegou-se à conclusão de que:
a) era necessária a presença física nessas áreas, com o
estabelecimento de relações diplomáticas normais para
melhor relacionamento político;
b) a complementação do estabelecimento das relações
diplomáticas seria o permanente contato entre
empresários, através da abertura de agências brasileiras
de exportação (trading companies) para encurtar a
distância da comercialização dos nossos produtos num
contato direto com os compradores e consumidores.
Teríamos, assim, a vantagem do conhecimento das
preferências e dos hábitos da população, dos
competidores, dos preços e das nossas deficiências;
c) como conseqüência direta dessa expansão seguiam-se
outras atividades subsidiárias para facilidade do
intercâmbio, como agências bancárias públicas e
privadas, não só nos novos mercados, como também
nos tradicionais.
Hugo Gouthier
252
Várias das sugestões que apresentei no relatório sobre a
missão especial foram adotadas pelo Ministério das Relações
Exteriores, Ministério da Fazenda e órgãos da administração
pública brasileira.
Nos últimos anos o Brasil passou a adotar uma política
agressiva em busca de novos mercados para a exportação de
produtos brasileiros.
A figura central de todo esse movimento é o Embaixador
Paulo Tarso Flexa de Lima, Chefe do Departamento de Promoção
Comercial do Ministério das Relações Exteriores, desde 1971.
Tive o orgulho de tê-lo, na Embaixada do Brasil em
Roma, como colaborador dos mais eficientes, quando ainda era
Primeiro-Secretário.
O Embaixador Paulo Tarso, que tem a confiança do
Chanceler Saraiva Guerreiro, é homem que não mede esforços
para obter divisas para o Brasil, direta ou indiretamente. Promoveu
a entrada do Brasil no mercado dos países do Terceiro Mundo,
obtendo contratos para a construção de ferrovias, além de outros
que implicam exportar a tecnologia brasileira. Chefiou missões
acompanhado de empresários em vários pontos do mundo, seja na
África negra, no Oriente Médio e mesmo na América do Sul.
Acompanha sempre o Presidente João Figueiredo com empresários
nas suas viagens que são, de ordinário, programadas com vistas ao
entrosamento direto entre os empresários brasileiros e os dos países
visitados.
Por essas e por outras razões, o Embaixador Paulo Tarso
Flexa de Lima foi escolhido o Homem de Visão de 1981, tradicional
prêmio que é conferido pela revista Visão.
Em Roma como os
Romanos
255
Através deste livro, já tive oportunidade de expor, aqui e
ali, muitas das minhas idéias sobre a fascinante carreira diplomática
à qual me dediquei com muito entusiasmo. Talvez não seja demais
acrescentar que um dos segredos do seu fascínio é a visão ampla e
total que ela nos possibilita do nosso próprio país. Visão abrangente,
construída passo a passo.
Muito se tem falado dos inconvenientes a que estão sujeitos
os diplomatas e as suas famílias, obrigados a levantar acampamento
mal acabam de criar raízes num lugar. Se, pelo lado afetivo, esses
inconvenientes ocorrem, por outro lado – o da total maturação
como indivíduo e como cidadão – são absolutamente indispensáveis
e enriquecedores. Não é o mundo, apenas, que um diplomata acaba
conhecendo, é também, e sobretudo, a sua própria pátria, pois
dois países nunca se relacionam da mesma maneira nem dividem os
mesmos interesses. No meu caso, a cada novo posto, era um pouco
mais do Brasil que eu aprendia a conhecer e a amar.
Quando, em novembro de 1959, vim ao Rio de férias,
Juscelino me convidou para assumir a chefia da nossa Embaixada
em Roma. Agradecido a mais essa prova de confiança do Presidente,
comecei sem perda de tempo, e como sempre foi do meu costume,
Em Roma como os Romanos
Hugo Gouthier
256
a me preparar para ocupar condignamente e com conhecimento
de caso o meu cargo.
Minha primeira surpresa foi constatar o número de
repartições brasileiras existentes em Roma. Embaixada, Chancelaria,
Consulado, Serviço de Imigração, Escritório Comercial, Lóide
Brasileiro, Instituto do Café, Instituto Cultural Brasil-Itália,
Câmara do Comércio e mais algumas, todas absolutamente
indispensáveis ao bom entendimento dos dois países. Preocupado,
tratei de entrar em contato com o Grupo Interparlamentar Brasil-
Itália, presidido pelo Deputado Ranieri Mazzili, e com o
Encarregado de Negócios da Itália, no Brasil, Carlo Enrico Giglioli.
Das nossas longas conversas, deduzi que o ideal seria a
criação de uma Casa do Brasil, em Roma, capaz de abrigar todas as
repartições acima mencionadas, além dos escritórios da Panair e
das companhias de turismo e navegação ligadas ao Brasil. Capaz
ainda de receber as delegações brasileiras junto à FAO e outras
conferências internacionais. Enfim, precisávamos de uma verdadeira
Cidade do Brasil dentro da cidade de Roma. E fomos conversar
com Juscelino.
Escusado dizer que Juscelino adorou a idéia: construir
cidades era com ele mesmo... E pediu-me que pusesse imediatamente
o preto no branco. Dias depois, apresentei ao Ministro das Relações
Exteriores, Horácio Lafer, um projeto, que o Ministério
consubstanciou na Exposição de Motivos nº 29 de 2 de março de
1960, que submetia à aprovação do Presidente os planos para a
construção da Casa do Brasil em Roma.
No mesmo dia, Juscelino aprovou essa exposição de
motivos com o seguinte despacho, no qual transparece o seu
257
Presença
entusiasmo: “Aprovado. Recomendo ao Ministério das Relações
Exteriores e da Fazenda tomarem, em caráter de urgência, todas as
medidas sugeridas na presente exposição de motivos, bem como as
complementares que se fizessem necessárias. Designe-se o arquiteto
Oscar Niemeyer para organizar o projeto.”
E, em caráter de urgência, lá fui eu para Roma a fim de
assumir a Embaixada, tendo como primeira obrigação procurar
um terreno onde se edificaria um prédio à altura das tradições
brasileiras. Mal apresentei as minhas credenciais, solicitei uma
audiência ao Presidente da República Italiana, Giovanni Gronchi,
com o objetivo de verificar a possibilidade da doação, pelo governo
italiano, de um terreno que conviesse às finalidades da Casa do
Brasil, em reciprocidade à doação, feita pelo governo brasileiro,
de um terreno destinado à construção da Embaixada da Itália em
Brasília.
O Presidente Gronchi foi amabilíssimo, o prefeito de
Roma, encantador, os deputados, extremamente solícitos e
prestimosos. Mas, tornou-se logo evidente, os únicos terrenos
disponíveis em Roma para serem doados ficavam muito longe da
velha Roma, no novo bairro da EUR. Realmente, sendo Roma
um pouquinho mais velha do que Brasília, a reciprocidade, em
termos práticos, era impossível...
Palácio Doria Pamphili
Passei a procurar um terreno para comprar no centro da
cidade. Sem perceber, a princípio, que estava instalado no próprio:
no terreno ideal, no Palácio Doria Pamphili.
Hugo Gouthier
258
Em fins de 1959, às vésperas de sua aposentadoria, o então
Embaixador do Brasil, Adolpho Cardozo de Alencastro Guimarães,
informou à Secretaria do Ministério das Relações Exteriores que a
Princesa Orietta Doria Pamphili lhe havia manifestado o seu
propósito de vender o palácio da Praça Navona, cujo piano nobile a
nossa Embaixada ocupava há mais de 40 anos, por um bilhão,
oitocentos e seis mil e quinhentas liras. Excluindo-se da venda a Igreja
de Santa Inês e o Colégio Pamphili. Mas, nessa ocasião, não se pensara
ainda na aquisição de uma Casa do Brasil em Roma e a soma parecia
excessiva para a compra de uma sede de Embaixada.
Estava eu em plena caçada ao terreno ideal, quando chegou
a Roma o Ministro Antônio Francisco Azeredo da Silveira, então
Chefe do Departamento de Administração, que prontificou-se a
me ajudar nessa procura. Embora recorrêssemos ao assessoramento
da Banca Nazionale del Lavoro, as dificuldades revelaram-se
insuperáveis. Além de serem elevadíssimos os preços dos terrenos,
existia em Roma uma série de exigências, arquitetônicas e
arqueológicas, que eliminavam totalmente a possibilidade de se
construir, no centro da cidade, um edifício moderno e arrojado
como era a intenção do governo brasileiro.
De repente, percebi que a única saída, em Roma, era fazer
como os romanos: comprar um palácio. E que palácio havia em
Roma melhor do que o nosso?
Sem falar na localização absolutamente ímpar – a dois
passos do Corso Vittorio Emanuele, a três, da Villa Borghese – na
mais bela praça da cidade, ponto de turismo obrigatório, o palácio
dispunha de esplêndidos salões e área capaz de comportar todos os
órgãos e repartições que se pretendia para a Casa do Brasil.
259
Presença
Devo dizer que o Embaixador Edmundo Barbosa da Silva,
de passagem por Roma, era um dos entusiastas da compra do
Palácio Doria Pamphili e me dizia que eu saberia enfrentar os
trabalhos de sua restauração. Também muito me incentivaram o
então Ministro-Conselheiro Sérgio Correa da Costa e o Primeiro-
Secretário Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva.
Designei então uma comissão, integrada pelo Ministro-
Conselheiro Sérgio Correa da Costa, pelo Ministro para Assuntos
Econômicos, Arízio de Vianna, e pelo Primeiro-Secretário Geraldo
Eulálio do Nascimento e Silva, para entrarmos em entendimentos
com a Princesa Doria Pamphili e estudarmos a situação de várias
famílias e instituições – até mesmo um pensionato – que há anos
ocupavam os outros andares do palácio.
Nessa ocasião, Juscelino foi a Lisboa, acompanhado do
Ministro Horácio Lafer, e eu decidi ir até lá conversar pessoalmente
com eles. Acertado o assunto, voltei a Roma e, depois de infindáveis
negociações, ainda consegui um abatimento de última hora e, no
dia 31 de agosto de 1960, foi assinado um contrato de promessa de
compra e venda do Palácio Doria Pamphili pelo preço de 900 mil
dólares. Três dias depois, recebi da Secretaria de Estado o seguinte
telegrama:
“Congratulo-me com Vossa Excelência e rogo aceitar os
meus agradecimentos pelo inestimável serviço que prestou ao
Itamaraty ao negociar com grande êxito e alto senso prático a
aquisição do Palácio Doria Pamphili, que tanto enriquece o
Patrimônio Nacional. Vossa Excelência, mais uma vez, com espírito
público e amor à Casa, traz à solução do problema de nossas
missões diplomáticas uma contribuição memorável.”
Hugo Gouthier
260
Finalmente, a 17 de outubro – sete meses depois da minha
chegada a Roma, foi lavrado o contrato definitivo de compra e venda,
registrado no I Ufficio Atti Pubblice de Roma, sob o nº 4.814.
Nem pude celebrar em paz a vitória pois a imprensa
italiana abriu, indignada, as baterias contra a transação. Construído
em meados do século XVII pelo arquiteto Girolamo Rainaldi –
mas traindo a intervenção de Francesco Borromini, o colaborador
de Bernini – o Palácio Doria Pamphili era considerado na Itália
uma jóia rara do estilo barroco. Os jornais lembravam o grande
desgosto que representara a venda do Palácio Farnese para a
Embaixada da França, no princípio do século, e como o protesto
público havia conseguido sustar a do Palácio Barberini.
L’Unità, órgão do Partido Comunista, bradava: “O
Ministério Público afirma não ter sido ainda informado da venda
do Palácio Doria Pamphili, uma das construções mais significativas
da sua época. Do seu lado, o senhor Hugo Gouthier, Embaixador
do Brasil, afirma que já assinou contrato de compra e venda.”
“O Palácio é adornado de belíssimos afrescos e inúmeras
obras de arte... seu ornamento maior é a grande galeria projetada
por Borromini e pintada por Pietro da Cortona... por essas e por
outras razões, esperamos que o governo encontre verbas para
impedir a sua venda a um país estrangeiro.” Afirmava em longo
artigo Il Messagero.
“O Estado deve comprar o Palácio Doria Pamphili.”
“Não, à venda do Palácio Pamphili.” “Uma iniciativa perigosa para
o Palácio” eram algumas das manchetes que conclamavam os
italianos a sustarem a venda do que consideravam valiosa peça do
seu patrimônio histórico e cultural.
261
Presença
“A venda do Palácio Farnese, ao governo francês, foi
realizada, em parte, por ódio à Itália. Por extremo despeito de sua
proprietária, Maria Sofia (Duquesa da Baviera, última rainha das
Duas Sicílias) revoltada com a nação que a privara de seus domínios.
A venda ao Brasil do Palácio Pamphili é feita unicamente para
pagar impostos. A filha e herdeira de Filippo Doria Pamphili, o
príncipe antifascista que protegeu os judeus e foi prefeito de Roma
depois da libertação, poderia cedê-lo ao Estado como pagamento
do imposto de transmissão. Mas não existe ainda na Itália uma lei
que permita ao fisco aceitar um monumento em vez de dinheiro,
por mais insigne e notável que ele seja.” Queixava-se o L’Espresso
Mese.
Sem abrir mão dos direitos do Brasil assegurados pelo
contrato de venda, procurei tranqüilizar a opinião pública italiana
e recebi com carinho e distinção os representantes da imprensa.
Pois a questão pegou realmente fogo com a carta da Associação
Nacional para a Tutela do Patrimônio Artístico da Nação, Itália
Nostra, publicada por L’Unità, Paese Sera e Momento-Sera. A carta,
depois de fazer um breve histórico do palácio e de mencionar as
pinturas de Pietro da Cortona, Poussin e outros artistas, afirmava
ser absolutamente indispensável que o governo italiano,
considerando a ocasião particularmente favorável, se substituísse
ao governo do Brasil, exercendo o seu direito de opção.
Acrescentava, ainda, que o preço era vantajoso e que se o Estado
não agisse, o palácio correria o risco de ser gravemente alterado
em sua fachada e interiores.
Dado o prestígio da associação Itália Nostra, constituída
das figuras mais representativas do mundo das letras, das artes e da
Hugo Gouthier
262
ciência, apressei-me em responder à sua carta. Resposta que foi
fartamente divulgada.
“O Embaixador Hugo Gouthier afirma que não pretende
levar o Palácio Doria Pamphili para o Brasil”, comentava o Telesera.
Il Tempo, um dos órgãos mais tradicionais da Itália,
publicava na íntegra na primeira página, a minha carta da qual
reproduzo um pequeno trecho:
“Todas as obras que estamos fazendo foram
escrupulosamente idealizadas e delineadas de acordo com a
Superintendência de Belas-Artes e Monumentos do Lácio, que nos
tem dado toda a sua inestimável assistência... Essa fiscalização não
somente foi aceita pela Embaixada como foi desejada e solicitada
por nós, a fim de que o Palácio possa ser restaurado na sua pureza
arquitetônica primitiva.”
A História
A origem e a etimologia das palavras sempre me fascinou.
A da aprazível e harmoniosa Piazza Navona é um exemplo bem
divertido. Até hoje, ela conserva a forma oblonga das suas origens:
Circo de Domiciano (51-96 A.D.), depois, Circo do Imperador
Severo Alessandro (235 A.D.) construído sob as ruínas do primeiro.
E, no nome, guarda os ecos de suas funções passadas. Eram circos
de luta e chamavam-se Agone – do grego Agôn, que quer dizer
combate, e deu em português agonia... Agone, Nagone, Navone,
Navona...
Terminada a era das liças em praças públicas, já por volta
de 1600, vivia em Roma uma mulher sedutora e maquiavélica,
263
Presença
Olimpia Pamphili, nascida Maidalchini. Graças às suas intrigas,
ela conseguiu fazer nomear Papa o seu cunhado, Giambattista,
que reinou sob o nome de Inocêncio X. Um péssimo pontífice
que, sob a influência terrível daquela mulher, só fez abusar da
autoridade e tratar de enriquecer-se. Olimpia mandava e
desmandava, pelo que eu pude aprofundar. Para ela, Inocêncio X
fez construir o palácio e demolir as velhas edificações que
circundavam a praça, substituindo-as por novas no estilo que era o
furor da época: o barroco. Felizmente, em matéria de arte, a nefanda
senhora tinha bom gosto, pois chamou Gian Lorenzo Bernini para
fazer as três fontes que decoram a praça, lá instalando também o
obelisco – cópia romana da arte egípcia – que adornava o Circo de
Macêncio, na Via Appia Antica.
Que me perdoem os meus leitores, mas não resisto à
tentação de relatar uma outra curiosidade histórica. Esse obelisco,
alçado na Piazza Navona em 1649, simplesmente porque Olimpia
o achava decorativo, tem quatro faces incrustadas de hieroglifos,
de alto a baixo. Só 200 anos mais tarde, em 1824, quando
Champollion decifrou a Pedra da Roseta, o mundo ficou sabendo
que aquelas inscrições celebravam exatamente os feitos do
imperador Dominicano e de seu pai Vespasiano. Coincidência das
mais impressionantes, como se o espírito do imperador tivesse
guiado as trêfegas mãos da cunhada do Papa.
A decoração interna do Palácio foi confiada aos maiores
artistas da época – Pietro da Cortona, Poussin, Brandi, Allegrini,
Dughet, Romenelli, Gimignani, Canazei, Algardi e tantos outros.
A Galeria Cortona, a mais bela e imponente, inspirada na obra de
Virgílio, reproduz a vida de Enéias, desde a sua chegada às costas
Hugo Gouthier
264
do Lácio até a luta final e a vitória do príncipe troiano. Os demais
salões são quase todos cassetonados e decorados com afrescos, no
centro dos quais brilha o famoso brasão dos Pamphili. Brasão
também de Inocêncio X e, como tal, reproduzido na Basílica de
São Pedro.
A entrada principal, os pátios, a escadaria são considerados
verdadeiras obras de arte pela sua beleza e harmonia de formas.
Dignas de relevo são as quatro colunas jônicas que sustentam a
sacada do palácio.
O Palácio Pamphili também teve seus inúmeros ilustres
visitantes. Nele, reza a história, hospedaram-se, por exemplo, Maria
Sobiesky, Rainha da Polônia; o Príncipe de Gales, neto de James
II; o Rei Frederico Guilherme, da Saxônia; a Rainha Cristina, da
Suécia e muitos outros.
Isso tudo, nos seus tempos de glória, que duraram séculos.
Quando o Brasil o comprou, fora o andar alugado à Embaixada, o
palácio atravessava uma fase de grande decadência, transformado
numa verdadeira cabeça-de-porco. As fachadas, apesar de
escalavradas e em estado lastimável, ainda guardavam um certo
decoro, mas os pátrios internos, para os quais se abriam as janelas
penduradas de roupas, eram a perfeita imagem de um cortiço.
Além de decadente, o palácio estava apinhado de gente. No
andar térreo, escritórios comerciais; nos outros, residências familiares
onde moravam mais de 200 pessoas ao todo. Por lei, uma vez efetuada
a compra, tínhamos direito de despejar os antigos moradores. Além
de não querer prejudicar famílias modestas, que viviam em precárias
condições financeiras, se entrássemos na Justiça, passar-se-iam anos
antes que fossem definitivamente julgadas todas as questões.
265
Presença
Assessorado pelo advogado da Embaixada, estudei caso
por caso, oferecendo a cada inquilino uma indenização conforme
as circunstâncias.
Os escritórios comerciais foram os primeiros a fazer
acordo pois, assim que começassem as obras, como mandam as
posturas municipais italianas, para proteção dos transeuntes, as
fachadas seriam completamente recobertas por uma espécie de
tapumes fechados.
Deixei por último uma inquilina que lá havia nascido e
que dizia preferir a morte a se mudar. Arranjei para ela um outro
apartamento, muito melhor, na própria Piazza Navona dos seus
amores. Era uma senhora, de mais de 70 anos, que adorava violetas.
Um dia convidei-a a dar uma volta comigo pela praça. Quando
chegamos em frente ao prédio, sem nada antecipar que escolhera
para ela morar, entreguei-lhe um molho de chaves e um ramo de
violetas, dizendo apenas: “Espero que a senhora goste.”
Emocionada, agradeceu-me com uma efusão bem italiana e, no dia
seguinte, toda contente, desocupou o seu velho apartamento.
Os custos
Assim que inaugurei a Casa do Brasil em Roma, escrevi
e publiquei um livro de 500 páginas historiando e documentando
toda a transação. Documentando, inclusive, com fotografias de
antes, durante e depois das obras. Aqui, limitar-me-ei a uns
poucos números expressivos. Consideradas as quantias
despendidas desde a compra do palácio até a instalação, nesse
imóvel, das repartições brasileiras sediadas em Roma, verifica-
Hugo Gouthier
266
se que o custo global da Casa do Brasil foi de um bilhão,
quatrocentos e trinta e seis milhões, oitocentos e noventa e quatro
mil, quatrocentas e doze liras (Lit. 1.436.894.412).
Vale acrescentar que, em outubro de 1960, o Banco di
Roma procedeu a uma nova avaliação do mesmo, tendo manifestado
a sua opinião: “Somente o terreno onde se encontra localizado o
palácio vale um bilhão e meio de liras.”
Um bilhão e meio de liras, ao câmbio de 1960,
representavam cerca de 2 milhões e 300 mil dólares ou, ao câmbio
de hoje, cerca de 230 milhões de cruzeiros.
Se se considerar, ainda, que o Palácio Doria Pamphili
tem uma área construída de 16.700 metros quadrados, chega-se
à conclusão de que o metro quadrado construído, mobiliado e
instalado custou a irrisória quantia de Cr$ 13.880,00.
Para a organização dos trabalhos e controle das verbas,
adotei normas e princípios que foram aprovados pelo Itamaraty
e entreguei a direção ao atual Embaixador do Brasil na ONU,
Sérgio Correia da Costa, então Ministro-Conselheiro. Homem
rigoroso e competentíssimo, espírito altamente organizador, sua
cooperação inexcedível foi um dos fatores de maior importância
para a nossa ambiciosa empresa.
Pedi à Secretaria de Estado a designação de uma
comissão de verificação para acompanhar os trabalhos e contei
com a boa vontade e a compreensão dos atuais Embaixadores
do Brasil em Berna e em Washington, Fernando Ramos de
Alencar e Antônio Azeredo da Silveira, que exerciam na época,
respectivamente, as funções de Secretário-Geral e Chefe do
Departamento de Administração do Itamaraty, sendo que
267
Presença
Azeredo da Silveira acompanhou, de perto, a recuperação do
palácio.
A restauração e as surpresas
As obras de restauração foram feitas em ritmo de Brasília.
Duraram exatamente um ano, dois meses e dezoito dias: de 17 de
agosto de 1960 – data da assinatura do contrato de compra e venda,
a 5 de novembro de 1961 – data da inauguração da Casa do Brasil,
em Roma.
Tudo se fez sob a supervisão da Superintendência de Belas-
Artes, da Itália. E os arquitetos que dirigiram a parte técnica da
reconstrução – Goffredo Lizzani, de Roma, e Olavo Redig de
Campos, do Itamaraty, fizeram um trabalho memorável.
Em dezembro de 1960, o Ministro Horácio Lafer fez
uma visita oficial à Itália para tratar da trasladação dos corpos dos
pracinhas brasileiros sepultados em Pistóia e para presidir a
cerimônia da incorporação do Palácio Doria Pamphili ao
patrimônio nacional. Depois de nos visitar, escreveu ao Presidente
Juscelino:
“Acabo de visitar as instalações da Embaixada do Brasil
no Palácio Doria Pamphili em Roma. O trabalho de restauração,
o bom gosto fazem com o Brasil possua hoje uma das mais lindas
Embaixadas do mundo, adquirida a preço mínimo. Esta notável
obra se deve ao espírito empreendedor e inteligente do Embaixador
Hugo Gouthier, que se torna credor de toda a gratidão do governo
brasileiro. Congratulando-me pelo apoio dado por Vossa Excelência
a esta notável obra, sendo eu seu Ministro do Exterior...”
Hugo Gouthier
268
Ao mesmo tempo, determinou que o Itamaraty registrasse
em folha o seu elogio. Em discurso proferido na solenidade de
implantação da Casa do Brasil salientou:
“Para que isto fosse conseguido, em benefício do Brasil e
da Itália, era preciso que houvesse um homem que trabalhasse com
o coração e que tivesse, no seu cérebro, aquela fantasia criadora
que é a fonte de todas as grandes obras. Foi preciso que contássemos
com um dos maiores valores da diplomacia brasileira, um homem
de dinamismo, de entusiasmo, uma fonte criadora e amiga da causa
pública – Hugo Gouthier. Para que se cumprisse o que eu posso
qualificar de um milagre, porque fazer em poucos meses uma
restauração com foi feita, convencer um governo como o do Brasil,
que está longe, convencer um governo como o da Itália, que, embora
perto, também, examina com profundidade esses problemas,
atravessar, enfim, toda esta continuidade de dificuldades, só uma
alma de lutador, só um coração cheio de fé, só um homem de
valor excepcional poderia conseguir. E eu quero, em nome do
Presidente da República e do Brasil, felicitar o nosso Embaixador
em Roma por esse notável trabalho, que ficará como uma glória
para os seus filhos, porque poucos poderão realizar o que ele
realizou aqui.”
De repente, não mais que de repente, como dizia Vinícius
de Moraes em seu poema, fiquei famoso em Roma: elogiado,
entrevistado, incensado pela mesma imprensa que poucos meses
antes combatia ferozmente o meu projeto. Sem mérito algum da
minha parte. Dessa vez, por pura sorte. Já no final da obra, ao se
demolir algumas paredes e tetos falsos em suas salas que davam,
respectivamente, para a Via dell’Anima e para o Largo Pasquino,
269
Presença
apareceram afrescos do século XVII que, por mais de um século,
haviam ficado ocultos e dos quais não havia nem registro nem
memória.
Num país arraigado às suas tradições, foi uma verdadeira
festa. E, da noite para o dia, passei de sul-americano espoliador dos
tesouros culturais italianos a um mecenas iluminado.
“La scoperta si deve alla cura ed alla passione con le quali
l’Ambasciatore del Brasile, Hugo Gouthier, há promosso i lavori di
restauro che hanno permesso...”
Assim se expressavam os jornais. Paese Sera, de 8 de
novembro de 1961, publicou ampla reportagem ilustrada na qual
dizia: “Com afrescos de artistas de várias escolas representando
uma das mais completas galerias da pintura romana do seiscento, os
luxuosos salões do austero edifício são pouco conhecidos, mesmo
dos estudiosos. Por isto, os entendidos não se pronunciaram ainda
sobre o valor total dos afrescos descobertos nas duas salas.”
A seguir, transcreve o mesmo jornal algumas declarações
do arquiteto Goffredo Lizzani, um homem além de competente
apaixonado.
“Para mim trata-se de obras notabilíssimas.
Estilisticamente aqueles afrescos são perfeitos. E representam uma
importante documentação do costume da época de instintivamente
transmitir calor, tornar acolhedores e harmoniosos os ambientes.
Passamos de surpresa em surpresa. Havíamos percebido
que, sob os dois tetos falsos, havia um vazio. Praticadas
cuidadosamente algumas perfurações, notamos que as paredes eram
Hugo Gouthier
270
inteiramente cobertas de afrescos. Não hesitamos mais: derrubamos
os tetos falsos, trouxemos à luz aquelas obras de arte que o
Embaixador Gouthier, imediatamente, mandou restaurar.”
Enquanto em Roma eu me dedicava 24 horas por dia à
restauração do Palácio Doria Pamphili e aos meus outros deveres
diplomáticos, no Brasil, parece que as chamadas “forças ocultas”
trabalhavam para instaurar o caos político que finalmente, em 1964,
explodiu na Revolução.
Terminado o seu mandato, como era de direito e de
costume, Juscelino passara a faixa a Jânio Quadros, eleito pelo
povo por expressiva margem de votos. Seis milhões. A maior
votação jamais conseguida por um brasileiro. E o novo Presidente
começou a governar, empunhando a vassoura como prometera na
sua campanha eleitoral.
Tudo parecia ir bem no melhor dos mundos,
principalmente a continuidade da vida democrática, quando, de
repente, sem que nada o prenunciasse – e sem que até os dias de
hoje nada o explicasse a contento – no dia 25 de agosto de 1961, o
Presidente Jânio Quadros, num gesto dramático que deixou a nação
estarrecida, renunciou, fez as malas e foi-se embora.
Estava criado o impasse: de um lado a Constituição,
mandando que se empossasse o Vice-Presidente eleito; de outro,
uma fração das Forças Armadas opondo-se a isso, alegando
tendências esquerdistas de Jango Goulart. E o Brasil quase mergulha
na Guerra Civil.
Para quem está longe, de mãos amarradas pela distância,
mergulhado na ansiedade, colado ao telex, ao telégrafo e ao telefone,
numa hora dessas ainda há um componente e travo de amargura.
271
Presença
Foi pois com grande alívio que recebi a notícia da instauração do
regime parlamentarista no Brasil, votado pelo Congresso Nacional
como uma saída conciliatória. Mais aliviado fiquei ainda quando,
assumindo a Presidência, Jango Goulart compôs o seu gabinete
confiando a Tancredo Neves – um político ilustre na melhor
tradição mineira – a Presidência do Conselho de Ministros.
Dois meses depois, tive o prazer de abraçar o meu amigo
Tancredo Neves, em visita oficial à Itália. Aproveitamos a
oportunidade para inaugurar a Casa do Brasil, com a presença do
Primeiro-Ministro Amintore Fanfani e diversas outras autoridades
italianas e brasileiras.
Em seu discurso, Fanfani salientou as dificuldades que
tiveram de ser superadas para que o seu governo não exercesse o
direito de opção à compra do palácio. Afirmou estar feliz por
verificar que os trabalhos de restauração podiam ser considerados
motivo de orgulho para os brasileiros e os italianos.
Naquele dia, eu me senti um homem realizado. Não
apenas comprara e restaurara um imóvel raro e precioso, mas
firmara uma filosofia de conduta: a mentalidade de reunir num só
lugar todas as repartições brasileiras, emprestando a cada uma a
dignidade das funções diplomáticas.
Na Casa do Brasil passaram a funcionar imediatamente o
Consulado, a Chancelaria, o Serviço de Imigração, as Missões
Militares e muitos outros órgãos. Foi também criada uma biblioteca
infantil e uma outra tradicional – denominada Biblioteca Tulio
Ascarelli, por sugestão do Ministro San Thiago Dantas.
Conversando com o Ministro San Thiago Dantas, quando
de sua passagem por Roma, chegamos à conclusão de que seria
Hugo Gouthier
272
muito interessante instalar um serviço gráfico na Casa do Brasil
para a impressão de folhetos e outras publicações indispensáveis à
promoção e ampla divulgação na Europa do Brasil e das coisas
brasileiras. Expus-lhe os meus planos e o Ministro não só
concordou entusiasmado como tomou imediatas providências:
mandou vir de Ulm um dos melhores profissionais, encarregado
dos trabalhos gráficos da Universidade, e confiou a ele a
responsabilidade de planejar a nossa oficina. Uma vez instalada e
dotada do mais sofisticado equipamento europeu, chamei para
dirigi-la Glauco Rodrigues – hoje um dos maiores pintores
brasileiros – então, diretor de arte da requintada revista Senhor.
A doce vida romana
Mas nem tudo foi cal, cimento, pintores, andaimes e
tapumes. A família de um chefe de missão diplomática não pode
ficar em recesso, esperando o término das obras da sua casa. A
minha adaptou-se logo à rotina difícil daquela fase. Cláudia e
Bernardo foram para o colégio, para as aulas de equitação, e, em
pouco tempo, falavam italiano como gente grande.
Adorávamos Roma, aquele cheiro de eternidade e, eu
freqüentemente, lia trechos de um de meus livros favoritos
Promenade dans Rome, de Stendhal, para me provar como nada
havia mudado no cenário dos últimos 100 anos. Encantava-nos
percorrer as barraquinhas que, ao menor pretexto de festa,
armavam-se na Piazza Navona e, sempre que podíamos e o tempo
permitia, íamos passar o dia com as crianças, em Ostia. Era então
um dia glorioso de paz e alegria. Praia italiana, daquela época,
273
Presença
oferecia tranqüilos prazeres inigualáveis. Exatamente como se vê
nos filmes, armavam-se mesinhas sobre a areia, onde garçons bem-
humorados vinham nos servir o escaldante talharim perfumado de
mozzarella e pomodoro.
Engraçado como a gente esquece tudo na vida, menos os
perfumes. E a simples menção daquele cheirinho me transporta de
volta à serenidade de um tempo relaxante, sem agressões e violências.
Por comprarmos e restaurarmos o Palácio Doria Pamphili,
passamos a ser considerados na Itália – onde as crises econômicas
acompanham fielmente o desenrolar dos séculos – o mais rico de
todos os países sul-americanos. Mas nem por isso precisamos tomar
medidas especiais de precaução: minha mulher dirigia seu próprio
carro e, como única segurança, tínhamos o velho porteiro da
Embaixada.
De Roma, nosso incansável interesse irradiou-se pela Itália
inteira. Sôfregos, aproveitávamos as férias, todos os feriados, para
descobrir e percorrer novos recantos. Lembro-me de momentos
inesquecíveis dessa época. Um outono na campanha fiorentina;
um verão na costa amalfitana, numa casa plantada a pique sobre o
mar, que alugamos da primeira mulher de Carlo Ponti; uns dias
serenos que precedem a estação turística em Capri; noites de final
de primavera, em Veneza, quando Laís e eu mais gostávamos de
percorrer as ruas de madrugada, desertas de pombos e banhadas
de luar; memoráveis estréias no Scala de Milão, capazes de obrigar
a platéia mais adversa à arte operística a assistir ao espetáculo sentada
na ponta da cadeira.
Quando chegamos a Roma, já tínhamos inúmeros amigos,
alguns dos quais nos acompanharam no cruzeiro de Stavros
Hugo Gouthier
274
Niarchos: Rudi e Consuelo Crespi, os Pecci-Blunt, os Brandolini,
a Baronesa Lo Monaco. Outros conquistados em nossas andanças
mundo afora, como os Agnelli, de Turim, e os príncipes Colonna.
Nascida Sursock, Isabel Colonna era libanesa. Ela e o marido,
camareiro do Papa como todos os seus antepassados, viviam no
palácio mais bonito de toda Roma. O imenso Palácio Colonna.
Tão grande – ocupava todo um quarteirão – que vivia
permanentemente em obras – acabava a pintura ou reforma numa
ala, começava noutra – e tinha uma equipe, praticamente vitalícia,
de pedreiros, pintores, eletricistas... Era uma grande família
tradicional italiana com tradicionais tendências internacionalistas.
O pai casou-se com uma libanesa, o filho com uma romana
belíssima, a Milagros Colonna.
Um dos nossos maiores amigos dessa época foi o
Embaixador da França, Gaston Palewski. Grand Seigneur, sedutor
e solteirão, Palewski era a coqueluche das mulheres. Tanto que o
Palácio Farnese – sede da Embaixada da França – passou a ser
chamado na intimidade: La gastonnière... Homem de De Gaulle,
era também muito amigo de Giscard d’Estaing, então Secretário
das Finanças, que o visitava freqüentemente em Roma, onde tivemos
ocasião de travar boas relações.
Palewski era também um grande amante das artes e
colecionador de Picassos. Vivíamos trocando favores: “Posso levar
uns amigos meus que estão em Roma para visitar o seu palácio? O
nosso está às suas ordens para trazer os seus.” Dividíamos ainda
nosso amor pela Itália. Se não me falha a memória, desde aquela
época, Gaston fazia parte da Comissão da UNESCO para a Defesa
e Conservação de Veneza.
275
Presença
Instalados numa tão bela Embaixada, tínhamos
praticamente a obrigação moral de abrir constantemente os seus
salões para festas de todos os tipos: almoços, jantares, bailes... como
era mania da época. É preciso lembrar que tínhamos em Roma
uma lista dupla de convidados diplomáticos: os representantes junto
ao Quirinal e os representantes junto ao Vaticano. Somados à
imensa roda de amigos que tínhamos na Itália e espalhados por
toda a Europa, formavam multidões de convidados em perspectiva.
Tínhamos sempre muitos hóspedes, principalmente
mulheres. Lembro-me de certa ocasião em que me senti como um
sultão em seu harém. Aliás, o Marajá de Jaipur hospedava-se
conosco: dois homens cercados de mulheres – Laís, a Maharani,
Elza Maxwell, Jacqueline de Ribes, Senhora Georges Revay e mais
umas três ou quatro – não só em casa, no Palácio Doria Pamphili,
como em todos os teatros e restaurantes que freqüentávamos.
Estávamos em Roma há poucos meses quando lá se
realizou a XVII Olimpíada. Não me recordo bem, mas acho que
não ganhamos nenhuma medalha de ouro. Os únicos atletas
brasileiros a conquistarem prêmios foram os de pesca submarina e
os de equitação. Nessa última categoria, representou
condignamente o Brasil o excelente ginete Nelson Pessoa. Os
concursos hípicos realizados na Villa Borghese foram maravilhosos.
Era lá, aliás, que se exercitava Bernardo todas as manhãs. A ver se
desgastava um pouco a colossal energia herdada provavelmente do
avô materno...
Dávamos muitas festas e ainda me lembro de um
memorável baile que oferecemos às filhas de Juscelino e ao qual
compareceram vários artistas de cinema, como George Hamilton,
Hugo Gouthier
276
David Niven e muitos outros. Amigos nossos desde os Estados
Unidos. Como memoráveis foram todas as celebrações romanas
que cercaram a coroação do Papa Paulo VI. Num almoço oferecido
a Jango, Juscelino comentou comigo:
– Que sorte a minha, o único cardeal meu amigo vira
Papa. Realmente, quando o Cardeal Montini visitou o Brasil,
Juscelino levou-o para conhecer Brasília em seu avião particular e
ficaram muito amigos.
O que eu gostava mesmo de fazer era rodar de automóvel,
sem pressa, pela Via Appia Antica; pesquisar os arredores, descobrir
recantos novos. E o que costumávamos chamar em família “a nossa
dolce vita” era escaparmos os quatro – Laís, eu, Cláudia e Bernardo
– sem pompas e sem convidados, para um pequeno restaurante da
Piazza Navona, onde jantávamos e de onde saíamos perto da meia-
noite para ir até a esquina comprar o Herald Tribune.
Por ocasião da inauguração da Casa do Brasil, estávamos
tão exaustos que não promovemos nenhuma grande festa. Apenas
os indispensáveis atos protocolares e oficiais. Terminados os quais,
brindamos os nossos convidados de honra Mimi e Horácio Lafer
com um concerto de música de câmara do seiscento, seguido de um
buffet. A acústica do palácio era maravilhosa e convidamos alguns
de nossos amigos para que desfrutassem conosco daquela simpática
noite.
Era também comum emprestarmos os nossos salões para
festas de caridade, entre as quais, se bem me lembro, houve um
grande desfile promovido pela Rhodia do Brasil.
Amamos aquela cidade desde o primeiro instante e para
sempre. Mas houve um momento em que essa nossa ligação a Roma
277
Presença
foi, por assim dizer, sacramentada: quando recebi uma homenagem
da cidade em cerimônia imponente realizada no Campidoglio.
Senti-me envaidecido e orgulhoso pela distinção a mim conferida e
subi emocionado a larga escadaria desenhada por Miquelângelo,
como se Marco Aurélio em pessoa, e não a sua estátua, me aguardasse
lá em cima para uma conversa definitiva. Naquele instante, senti-
me uma parcela viva e integrante da latinidade, herdeiro e
representante de uma tradição milenar.
Éramos três os homenageados: a Rainha da Inglaterra,
representada pelo seu Embaixador em Roma, Gaston Palewski e
eu. Nessa ocasião foi-me entregue um diploma e medalha
comemorativa de vermeille tendo de um lado reproduzido o
Campidoglio Romano e do outro lado a catedral de São Pedro e o
nome Hugo Gouthier gravado.
Os Ilustres Visitantes
Os Duques de Windsor
Conhecemos o Duque e a Duquesa de Windsor em
Veneza, em 1954, às vésperas do cruzeiro organizado por Niarchos.
Estávamos hospedados no Hotel Gritti, como eles, e Elza Maxwell
nos apresentou. Mais tarde, encontramo-nos esporadicamente em
Paris, Bruxelas e Nova York, mas foi nos anos 60 em Roma que
nossas relações se estreitaram e estabelecemos uma amizade sincera
e duradoura.
Laís tornou-se, desde então, fervorosa admiradora da
Duquesa, que considerava uma das mulheres mais elegantes e
Hugo Gouthier
278
requintadas que jamais conheceu. Uma mulher sempre
admiravelmente bem vestida para qualquer evento de qualquer hora
do dia ou da noite. Como homem que não entende muito de moda,
posso dizer que, sem ser propriamente bonita, a Duquesa transmite
beleza, charme e categoria. Mais rainha do que muitas cabeças
coroadas. Uma dona-de-casa maravilhosa, transforma o ato de
receber em uma ciência e uma arte. Ambientes sempre lindos, menus
deliciosos e variados. Dizem que toma nota do que serviu em cada
jantar para, repetindo os convidados, não repetir os mesmos pratos.
Tem um verdadeiro instinto, um dom de combinar as pessoas, e
sabe, como ninguém, orientar suavemente as conversas, mantendo
sempre o tom das suas reuniões.
Se querem saber a minha opinião, foi um caso de amor
mesmo. De amor paixão. Percebia-se isso ao vê-los sempre muito
unidos, sempre brincando um com o outro, como se dividissem
um alegre segredo, só deles conhecido. Sofisticado, dotado de
imenso senso de humor, o Duque de Windsor adorava a
verdadeira mise en scène que a Duquesa criava ao seu redor e ele
nunca, jamais, em tempo algum encontraria no Palácio de
Buckingham.
Falar nisso, lembro-me que uma vez, em Paris, eles nos
convidaram para uma sessão privada do filme feito sobre a sua
vida. Filme que começava com as palavras do Duque sobre o Palácio
de Buckingham: “I never liked that Palace, there is too much draft.”
Trocadilho bem inglês, pois draft tanto quer dizer “corrente de
ar” como, na gíria, “corrente de opiniões”, pressões...
Príncipe de Gales, ele esteve em visita ao Rio, onde
conheceu Negra Bernardes, de quem nunca se esqueceu e por quem
279
Presença
sempre perguntava. Quando Cláudia, nossa filha, casou-se em Paris,
a Duquesa fez questão de comparecer ao casamento. Carinhosa
distinção de uma grande amiga pois, idosa e adoentada, não costuma
freqüentar mais esse tipo de cerimônias.
Eliezer Batista da Silva
Certo dia, recebi em Roma um telefonema de Eliezer
Batista da Silva, então, como hoje, Presidente da Companhia Vale
do Rio Doce. Queria que eu organizasse para ele no Palácio Doria
Pamphili uma reunião de compradores de minério de ferro. Os
habituais e os possíveis.
Dele, eu só conhecia a reputação de homem inflexível,
capaz de enfrentar os maiores obstáculos em defesa dos interesses
do Brasil. Mas o assunto me apaixonava, tanto que eu havia sido
um dos responsáveis pela fundação da Vale do Rio Doce. Concordei
imediatamente e marcamos a data da reunião à qual ele
compareceria.
Quando Eliezer entrou na Embaixada, no dia aprazado,
já lá estavam quinze big-shots do setor siderúrgico italiano.
Realmente a cúpula que detinha o poder de decisão.
Antes de abrirmos a reunião, apresentei Eliezer,
mencionando inclusive que ele era um poliglota, dominando um
leque de idiomas no qual constavam vários dialetos, como o croata,
por exemplo. Nem sei quem me informara de tanta sabedoria mas
os italianos ficaram impressionadíssimos. E cheios de respeito, pois
com homem que fala croata – sem ter nascido e vivido na Iugoslávia
– não se brinca...
Hugo Gouthier
280
Daí para a frente, Eliezer conduziu a reunião. Pôs as cartas
na mesa expondo os seus objetivos de vender minério a longo prazo
e para entregas futuras. E respondeu com competência e segurança
a todas as perguntas, dando as mais detalhadas informações sobre
o seu programa de expansão da Vale do Rio Doce, de melhoria do
sistema ferroviário e portuário. Por outro lado, demonstrou
cabalmente perfeito conhecimento de causa do programa
siderúrgico da Itália.
Naquele dia, Eliezer Batista da Silva fechou todos os
contratos que quis, deixando-me mais impressionado até do que
os próprios italianos.
Meses depois, indo ao Rio a serviço, relatei o fato ao
Ministro San Thiago Dantas, que me pediu encarecidamente que
repetisse tudo aquilo ao Presidente João Goulart.
Jango ouviu em silêncio. Quando terminei o meu relato,
disse com suavidade:
– O Professor San Thiago queria que eu nomeasse esse
senhor, Eliezer Batista da Silva, Ministro das Minas e Energia. O
que o senhor acaba de me contar convenceu-me plenamente. Vou
nomeá-lo.
E pegando no telefone, ligou para o San Thiago a dar-lhe
a boa nova. Quem não gostou da notícia foi o Eliezer. Recusou o
cargo alegando temer que um novo Presidente da Vale, cedendo a
pressões políticas, não realizasse o programa projetado. A solução
foi nomeá-lo Ministro das Minas e Energia permitindo-lhe acumular
o posto de Presidente da Vale.
Não conto esse episódio para me gabar frivolamente, vestir
a pele de eminência parda, de fazedor de Ministros. Menciono o
281
Presença
fato para que se saiba que colaborei sempre com a seleção de homens
capazes de conduzir o futuro deste país. Acredito firmemente que
um Presidente da República deve cercar-se dos mais competentes
assessores, pois ninguém sabe tudo e pode governar sozinho, isolado
numa torre de marfim. É preciso saber ouvir as opiniões abalizadas,
criar um espírito de equipe e confiar nele.
A família Kennedy
Camelot chamavam naquela época ao entourage do
Presidente Kennedy, pequena corte de brilhantes privilegiados que
o cercavam e com ele dividiam a filosofia do New Society,
associando-a à romântica legenda do Rei Arthur e dos Cavaleiros
da Távola Redonda.
Preciso aqui fazer um flashback das minhas relações com
os Kennedy.
Conheci John Kennedy por volta de 1948 quando, todos
os dois solteiros, morávamos ambos em Georgetown, Washington,
e eu era Primeiro-Secretário e ele deputado pelo Estado de
Massachusetts. De vizinhos, passamos naturalmente a
companheiros de programas e noitadas e acabamos bons amigos.
E, amigo de John, passei a freqüentar a casa da família, que reunia
sempre, em animadas recepções, políticos, banqueiros, intelectuais,
jornalistas, líderes sindicais, artistas... Enfim, a nata do que havia
de mais representativo nos Estados Unidos.
Seu pai, Joseph Kennedy, depois de fazer fortuna, sonhara
com a Presidência e dirigia todas as suas energias naquela direção.
Hugo Gouthier
282
Suas ambições políticas, no entanto, foram por terra quando, como
Embaixador na Inglaterra, opôs-se publicamente a qualquer ajuda
americana aos aliados. E, enquanto Hitler avançava pela Europa, a
filosofia apaziguadora do Embaixador, apoiada nos passos trôpegos
de Neville Chamberlain, minava a sua carreira. Era, além do mais,
frontal adversário de Roosevelt. Quando este foi reeleito, em 1940,
por maioria esmagadora, Joseph Kennedy perdeu o seu posto de
Embaixador. Transferiu então os seus sonhos para o filho mais
velho, Joseph Junior, e passou a treiná-lo para a presidência.
Quando este morreu na guerra, o sonho foi novamente
transferido e as esperanças – já agora de todo o clã – concentraram-
se no segundo colocado: John Fitzgerald Kennedy. E a sua carreira
foi vertiginosa.
Em 1952 elegeu-se senador, derrotando o concorrente
republicano Henry Cabot Lodge e, em 1960, aos 43 anos chegou à
Presidência.
Representante do Brasil nas Nações Unidas, em 1953, fiquei
amigo de Cabot Lodge. Ainda amargurado com a derrota do ano
anterior, confidenciou-me que perdera não só devido aos méritos
pessoais do seu contendor mas também, em grande parte, por causa
dos famosos tea-parties promovidos pelas temíveis irmãs Kennedy.
Eunice sempre foi uma mulher fascinante, inteligente, fina,
perceptiva e irônica. Era solteira quando a conheci e tive uma grande
queda por ela, aliás, correspondida. O tumulto da vida acabou por
nos separar mas construímos uma amizade muito bonita que perdura
até hoje.
Lembro-me de suas argutas tiradas que provocavam
infindáveis comentários. “Quando se vive numa grande família é
283
Presença
preciso muita habilidade para manter o seu espaço inviolado.”
Costumava ela dizer, enquanto invadia o espaço dos seus irmãos e
cunhados...
Certa vez, quando, muito mais tarde, lembrei a Ethel,
mulher de Bob, essas palavras de Eunice, ela comentou: “É uma
pena que ela não seja homem, porque seria o melhor Presidente da
família Kennedy.”
Realmente, dona de uma personalidade invulgar, Eunice é
antes de tudo uma grande realizadora, graças à sua imensa capacidade
de metodizar a vida. A Fundação Patrick Joseph Kennedy, que ela
dirigiu, é uma prova inequívoca de seu empenho em todas as atividades
que exerce. Profundamente devotada aos carentes e aos excepcionais,
dedicou-se intensamente a eles até mesmo quando o seu marido
Sargent Shriver era Embaixador na França.
Patrícia, a mais bonita, alia à sua beleza uma certa gravidade,
característica bem marcante dos Kennedy. Não se deixou abater nem
pelo divórcio de Peter Lawford, seu marido e famoso ator, amigo
íntimo de Sinatra. Sempre que chegávamos a Nova York, no máximo
uma meia hora depois de nos termos instalado no hotel, recebíamos
um telefonema seu marcando encontro para jantarmos juntos. Laís
e eu nunca deixamos de atender ao seu convite. Jantávamos,
conversávamos, ríamos, vivíamos intensamente a nossa amizade.
Preparando a viagem do Presidente Goulart
aos Estados Unidos
Em 1962, recebi em Roma um telefonema do Ministro
San Thiago Dantas que se achava numa situação delicada: Jango
Hugo Gouthier
284
pretendia fazer uma visita aos Estados Unidos mas ele temia que
essa visita não fosse oportuna, pois a imprensa americana vinha
atacando seguidamente o Presidente João Goulart, em razão da
desapropriação de determinadas companhias de utilidade pública,
promovida pelo Governador do Rio Grande do Sul, Leonel
Brizola. Pediu-me o Ministro que fosse lá verificar pessoalmente o
terreno e ajudar a preparar a visita presidencial com o Embaixador
Roberto Campos, se o resultado da minha sondagem a aconselhasse.
Imaginando que o Embaixador Roberto Campos, que
assumira recentemente o seu posto nos Estados Unidos, pudesse
sentir-se constrangido com a minha interferência, antes de embarcar
para Washington, telefonei para ele. Ao contrário, Campos alegrou-
se muito com a minha visita e insistiu para que eu me hospedasse
na Embaixada.
Mal cheguei, entrei em contato com Kennedy que,
passando por cima da sua agente, convidou-me para almoçar com
ele, naquele mesmo dia. Durante o almoço, contei-lhe das
preocupações do Chanceler brasileiro. Kennedy ouviu-me
atentamente. Quando terminei a minha exposição, ligou
imediatamente para o prefeito de Nova York, Richard Wagner.
Conversaram sem pressa, francamente. Ao desligar, John virou-se
para mim e disse:
“Tranqüilize o Presidente João Goulart. Ele terá uma
recepção das mais significativas, nos Estados Unidos. Wagner manda
dizer que faz isso tanto pelo Brasil, que admira e respeita, quanto
por você, que o hospedou em Londres durante a guerra.”
Resolvido esse primeiro passo, faltava o segundo:
conseguir que Kennedy recebesse Goulart somente na presença do
285
Presença
intérprete, pois San Thiago Dantas temia interpretações errôneas
e indiscrições das quais sempre lançam mão os aproveitadores, em
oportunidades como essas.
John Kennedy acedeu a mais esse pedido meu e, por seu
lado, manifestou-me o desejo de discutir com Jango o problema
do xisto betuminoso do litoral de São Paulo e Paraná. Fiz-lhe
ver que o momento não era apropriado para trazer à baila esse
assunto, pois um governo marcantemente nacionalista como o
de Jango não toleraria sequer a menção de nossas reservas
minerais. Reservas intimamente ligadas ao problema do petróleo,
numa época em que, no Brasil, nem se admitia a hipótese de
“contratos de risco”.
John compreendeu tudo e concordou com as minhas
ponderações. Sem pé atrás, de coração aberto. Sabia as dificuldades
que enfrentava no seu governo e respeitava as dificuldades dos
outros.
Quando os dois Presidentes finalmente se encontraram,
John Kennedy quebrou intencionalmente o protocolo,
provavelmente para nos colocar mais à vontade. Assim que nos
viu, depois de cumprimentar João Goulart, foi logo perguntando:
– Hugo, onde é que você comprou esse traje? Está muito
elegante.
Sorri, porque a roupa era inglesa, feita no mesmo alfaiate
dos Kennedy: John King Wilson. E, abrindo o paletó, entrei no
tom e brinquei:
– Você gosta? Se quiser eu posso lhe dar o endereço.
Em Nova York, o prefeito Richard Wagner organizou
admiravelmente bem a recepção. Sem o menor constrangimento
Hugo Gouthier
286
ou contratempo, Jango desfilou em carro aberto pelas ruas
embandeiradas, como o chefe de um Estado amigo.
Numerosas foram as recepções e reuniões de trabalho.
Várias, com o Presidente Kennedy, das quais participei juntamente
com os Embaixadores Walther Moreira Salles – então Ministro da
Fazenda – Roberto Campos e Mário Gibson Barboza.
No decorrer de um banquete na Casa Branca, falando de
improviso, John Kennedy saudou o Presidente Goulart, ressaltando
a importância da visita para o relacionamento dos dois países. Como
Jacqueline Kennedy não se encontrava nos Estados Unidos, Maria
Teresa desistira da viagem, mas à mesa, naquela noite, encontravam-
se duas brasileiras: minha mulher Laís, e Elizinha, mulher de
Walther Moreira Salles. Kennedy agradeceu a sua presença. E disse
mais: considerava importante que, quando algum homem fosse
cogitado para uma alfa função pública, antes de tudo, se entrevistasse
a sua mulher, principalmente ao se tratar da escolha de um diplomata
para representar o seu país numa nação amiga. Mulheres como
Laís e Elizinha, acrescentou, dignificam as funções de seus maridos
e contribuem efetivamente para o bom relacionamento entre os
países.
O Chanceler San Thiago Dantas, terminada a visita
presidencial aos Estados Unidos, enviou ao Primeiro-Ministro
Tancredo Neves telegrama apontando os resultados como uma
vitória da orientação de nossa política externa. Nesse telegrama
elogiou os que contribuíram para o êxito da visita, fazendo menção
especial à atuação do Ministro da Fazenda Walther Moreira Salles
e dos Embaixadores Roberto Campos e Hugo Gouthier. No seu
telegrama o Chanceler brasileiro ressaltou a “cooperação valiosa
287
Presença
do Embaixador Hugo Gouthier, especialmente convocado para
colaborar nos preparativos da viagem presidencial”.
Os resultados da viagem do Presidente Goulart foram os
melhores possíveis e a imprensa do Brasil e dos Estados Unidos
salientou uma fase auspiciosa nas relações entre os dois países.
Kennedy manifestou em atos esse seu desejo e várias
medidas foram postas em ação pelo seu Governo com esse objetivo.
No tocante à parte econômica, o Ministro da Fazenda Walther
Moreira Salles permaneceu em Washington alguns dias para ultimar
negociações com o Secretário do Tesouro e o Fundo Monetário
Internacional. Ao mesmo tempo, o Presidente Kennedy convocou
reunião de 150 pessoas para pôr em execução a preparação de
projetos para a ajuda dos Estados Unidos ao Brasil no contexto da
Aliança para o Progresso.
Muitos observadores da política brasileira acreditam que
se o Presidente Goulart não tivesse abandonado o regime
parlamentarista, na difícil conjuntura do momento, com homens
experimentados como Trancredo Neves e San Thiago Dantas o
país não teria descambado para a situação que se criou e que levou
o Presidente a desafiar as Forças Armadas com a reunião dos
sargentos no Automóvel Clube no Rio de Janeiro, acontecimento
que, por assim dizer, fez eclodir o movimento de 1964.
Brizola quer saber
Abro aqui um parêntese na história da minha vida em
Roma e adjacências. Depois da visita de João Goulart aos Estados
Unidos e ao México, de volta ao meu posto na Itália e de passagem
Hugo Gouthier
288
pelo Rio, hospedei-me no Copacabana Palace. Assim que cheguei,
recebi um telefonema de Leonel Brizola, então Governador do
Rio Grande do Sul, que estava também hospedado no anexo do
Copa. No estilo contundente de falar, carregando no sotaque
gaúcho, que ele tinha naquela época, disse que precisava conversar
comigo com a máxima urgência. Sugeri-lhe que fosse ao meu
apartamento e, cinco minutos depois, ele batia à minha porta. Mal
entrou e foi desabafando. Soubera de certas conversas sigilosas entre
os Presidentes Kennedy e Goulart. E, segundo lhe tinham
informado, Jango se comprometera a encontrar uma forma capaz
de ressarcir – ainda que parcialmente – a expropriação dos bens da
ITT, determinada por ele, Brizola. E concluía o seu arrazoado
exaltado e temperamental – bem distinto do tom que hoje exibe
em suas declarações públicas – dizendo:
– Embaixador, o senhor é um homem bem-intencionado,
mas uma coisa eu lhe digo: só por cima do meu cadáver é que eles
vão conseguir modificar o meu decreto de expropriação.
Ouvi tudo sem me alterar. Nada mais longe da verdade.
Kennedy e Goulart sequer tocaram no caso da ITT. Aliás, como
pude aprofundar em minhas sondagens preliminares à visita de
João Goulart aos Estados Unidos, por determinação do governo
brasileiro, o próprio Kennedy achava que os capitais americanos
deviam evitar sempre a área de serviços de utilidade pública,
essenciais. Serviços que, no seu entender, para evitar atritos, deviam
ser nacionalizados mediante acordo com as concessionárias ou
arbitragem.
Percebendo que se excedera, Brizola acalmou-se e aceitou
a minha sugestão de discutirmos o assunto com o Ministro San
289
Presença
Thiago Dantas que, por minha sugestão, foi imediatamente
encontrar-se conosco no Copacabana.
Na presença do Ministro das Relações Exteriores, Brizola
mostrou-se mais ponderado mas ainda muito amargo. San Thiago
Dantas afirmou-lhe que não havia ainda uma decisão definitiva
sobre o assunto e prometeu-lhe levar ao Presidente as suas
considerações.
E o assunto não teve solução no Governo de Goulart.
Nos bastidores da coroação
de Paulo VI
No dia 21 de julho de 1963, sucedendo no trono de São
Pedro a João XXIII, Paulo VI foi coroado Papa. E, longe de sonhar
quão próximos estavam do seu fim, John Kennedy e João Goulart
foram a Roma – Kennedy seria assassinado menos de quatro meses
mais tarde e Goulart, destituído, cerca de oito meses depois.
Jango, cuja ida a Roma foi considerada pela oposição
como uma manobra política já que poucos foram os chefes de
Estado a comparecer, hospedou-se na Embaixada do Brasil no
Vaticano e presenciou todas as cerimônias. Kennedy chegou logo
após a coroação.
Naquela ocasião, achava-se em Roma uma amiga nossa,
Jane Englehart. Filha do Cônsul Honorário do Brasil em Hong-
Kong, falecido há muitos anos, era casada com Charles Englehart,
uma das grandes fortunas do mundo, considerado o “rei da platina”
e sócio de Sir Harry Oppenheimer, o maior produtor mundial de
ouro e diamantes. A pedido de Jane, oferecíamos um almoço ao
Hugo Gouthier
290
Senador Mike Mansfield, para o qual convidamos também Elizinha
e Walther Moreira Salles.
Estávamos no meio do almoço, quando o Presidente João
Goulart chamou-me ao telefone. Testemunha que fora dos laços
de amizade que me uniam ao Presidente Kennedy, pediu-me que
lhe conseguisse uma entrevista com ele. Fiz-lhe ver que isso era
quase impossível, pois o Presidente Kennedy era hóspede oficial
do governo italiano e a sua permanência na cidade, de menos de 48
horas, tinha todos os seus minutos programados pelo protocolo,
Jango insistiu, afirmando que se tratava de um assunto de
importância vital para o Brasil.
Fiz o que pude e, para minha surpresa e satisfação, mais
uma vez passando por cima da sua agenda para me atender, John
Kennedy conseguiu reservar uma hora para nós, na Embaixada
dos Estados Unidos.
Parecendo aliviado, Goulart recomendou-me que
guardasse sigilo sobre esse encontro. Até mesmo para os membros
de sua comitiva. Afirmei-lhe que esse segredo era impraticável
porque a entrevista, sem a menor sombra de dúvida, iria ser do
conhecimento da imprensa e, conseqüentemente, do nosso Ministro
das Relações Exteriores – naquela época, Evandro Lins e Silva. Por
uma questão de respeito ao meu chefe na carreira diplomática,
sugeri ao Presidente Goulart que o Doutor Evandro nos
acompanhasse à Embaixada dos Estados Unidos.
E assim foi feito.
Quero ressaltar que não tinha a menor idéia do que Jango
queria com Kennedy. Só quando a ele se dirigiu tomei
conhecimento do assunto: tratava-se do vencimento de um
291
Presença
compromisso de, se não me falha a memória, 100 milhões de
dólares, com o Banco Mundial. O Ministro da Fazenda, Professor
Carvalho Pinto, não tinha como saldar essa dívida e Jango solicitou
a interferência de Kennedy na dilatação do prazo de vencimento.
John Kennedy ouviu com simpatia e prometeu
imediatamente interessar-se pelo caso. Mas, chamando-me à parte,
declarou-me que precisava ter uma conversa particular com João
Goulart. Sós os três e o seu intérprete.
Quando ficamos sozinhos, com muito tato, declarou que
os Estados Unidos queriam muito ajudar o Brasil mas não
encontravam correspondência no governo brasileiro, cujo
Presidente era cercado de inimigos declarados dos Estados Unidos.
E citou Darcy Ribeiro, Chefe da Casa Civil da Presidência, e Raul
Riff, Assessor de Imprensa.
João Goulart respondeu que tais óbices não persistiam,
pois era seu pensamento nomear Darcy Ribeiro para outra função,
no campo educacional. A Casa Civil seria entregue ao jornalista
Danton Jobim. Quanto a Raul Riff, iria servir como Adido de
Imprensa em alguma Embaixada.
Qual não foi a minha surpresa ao ler mais tarde, nos
jornais brasileiros, uma declaração, atribuída ao Presidente João
Goulart, segundo a qual o Presidente Kennedy lhe solicitara aquela
entrevista em Roma, prontificando-se até a comparecer à Embaixada
do Brasil.
Sobre a conversa que eles tiveram – na qual Goulart, na
minha frente, pediu ajuda dos Estados Unidos prometendo afastar
Darcy Ribeiro e Raul Riff – nenhum jornalista publicou uma
linha...
Hugo Gouthier
292
Profundamente contrafeito com a notícia, escrevi ao
Presidente João Goulart, manifestando-lhe a minha estranheza pela
distorção dos fatos. Não tive a honra de receber uma resposta à
minha carta.
Quando Ted Kennedy escapou milagrosamente – muito
ferido mas vivo – do acidente de aviação que matou o seu piloto,
ainda convalescente passou por Roma. Reuni então alguns amigos
– entre os quais o Senador Luís Fernando Freire e Claudine de
Castro – para recebê-lo e celebrar a sua vitória sobre a morte.
O caminho das Índias
Kumar Man Singh de Jaipur – Jaí, para os íntimos – era
uma bela figura de homem, elegante, esportivo e superiormente
bem-educado. Gyatri Devi de Jaipur – que os amigos chamavam
carinhosamente de Ayesha – era, simplesmente, uma beldade, de
imensos olhos negros inesquecíveis, maneiras suaves e porte
autoritário de rainha.
Não me lembro bem quem nos aproximou, mais tarde.
Talvez tenha sido Lee Radzwill, irmã de Jacqueline Kennedy. Ou,
mais provavelmente, Ali Khan, pois me recordo muito bem de
uma deliciosa temporada em Deauville que passamos Laís e eu, Jai,
Ayesha e Ali.
E nossas vidas foram se entrecruzando. Recebi-os na nossa
Embaixada, em Bruxelas, por ocasião da Exposição Universal de
1958, e fomos por eles recebidos em sua maravilhosa casa de Saint
Hill, na Inglaterra, quase um pequeno palácio. Ocasião em que
tivemos a oportunidade de ver Jai, brilhante jogador de pólo,
293
Presença
exercitar-se nos campos e Windsor e Cowdray Park, liderando a
equipe indiana contra a do Príncipe Phillip.
Em 1961, depois de uma exaustiva campanha eleitoral que
a elegeu membro do Parlamento indiano, “pela mais espantosa
maioria que alguém jamais recebeu numa eleição”, como diria John
Kennedy, Jai e Ayesha foram descansar uns dias em Roma conosco,
no Palácio Doria Pamphili, recém-inaugurado. E combinamos
retribuir-lhes a visita nas nossas próximas férias.
Pela finura de sua educação e trato, pelo nível social de
suas amizades, pela sua moradia na Inglaterra, pelo seu próprio
título nobiliárquico, imaginávamos a sua riqueza e o lugar que
deviam ocupar na sociedade indiana. Mas nada, absolutamente nada,
podia nos preparar para o choque que tivemos ao chegar a Jaipur.
Jai e Ayesha nos esperavam e, no seu Bentley conversível, rodamos
devagar atravessando a cidade em direção ao Palácio de Rambagh,
transformado em luxuoso hotel e onde eles nos instalaram como
seus hóspedes.
A cidade de Jaipur situa-se numa planície circundada de
escuras montanhas desertas, pontilhadas de fortificações, e cujos
contornos são delineados por uma sinuosa muralha. Todo o
conjunto arquitetônico, onde cúpulas e torres, rendas de mármore
e varandas se entrelaçam, é de um rosa vivo e inesperado. Pelas
ruas, as mulheres de saias rodadas, corpetes e xales, em vez do
costumeiro sari; e os homens, de turbantes de um colorido intenso:
vermelho, amarelo, azul ou roxo. Um efeito indescritível o desse
rosa, contra o azul do céu e o fundo desértico do cenário.
Rambagh ficava a uns cinco minutos do centro, além das
velhas muralhas. Contrastando com o rosa da cidade, era todo
Hugo Gouthier
294
branco. Atravessamos quase com devoção seus arcos de mármore
recortados, suas varandas que se abriam sobre pátios de uma
vegetação luxuriante.
Naquela época, Jai não era mais o príncipe reinante. Por
ocasião da Independência da Índia, em 1947, os Estados principescos
fundiram-se para formar um país íntegro e viável e ele fora um dos
primeiros príncipes a assinar o acordo com o governo central:
Jaipur passava a ser parte integrante do Estado de Rajastão. Mas,
como o seu novo Rajpramukh deteve ainda as rédeas do poder até
1956.
Nunca, até a sua morte, Kumar Man Singh de Jaipur
perdeu o amor do seu povo – veneração que eu presenciei in loco
e o poder real que emana desse amor. E acho que aceitou e viveu
sem amarguras as transformações que os novos tempos trouxeram
a ele e a seu país.
Ayesha não aceitou nem se conformou nunca. Nascida
princesa, filha do Marajá de Cooch Behar e neta do legendário
Marajá de Baroda, criada em meio ao fausto de um sistema feudal
– quando se casou com Jai, um dos seus palácios tinha 500 criados
– reagiu com violenta tristeza, beirando as raias da revolta.
Não nos levou a visitar a cidade dos antepassados do seu
marido, refez conosco uma peregrinação ao tempo perdido da sua
mocidade e poder. Ao nos instalar no palácio da sua lua-de-mel,
transformado em hotel, falava-nos da etiqueta que era obrigada a
seguir, dos trajes para cada ocasião, dos braceletes rituais de marfim
e pedrarias a lhe cobrirem os braços do ombro ao punho...
Atravessando os salões e jardins do City Palace, transformado em
museu e onde se exibiam as preciosas coleções de Jaipur, descrevia-
295
Presença
nos as festas oficiais, as procissões de elefantes, o seu primeiro tigre
abatido aos 12 anos...
Curiosa a história dessa mulher, a evolução vertiginosa
da sua vida, hábitos e costumes. Como estranhas e valentes, aliás,
são todas as mulheres hindus, que tinham tudo para serem apenas
escravas fanáticas da dominação machista e, no entanto, formam
um dos maiores contingentes feministas do mundo. Filha de uma
mulher belíssima e inteligente, educada na Inglaterra, Ayesha
casou-se aos 20 anos, por amor, com o Marajá de Jaipur... que já
tinha duas outras mulheres e quatro filhos. Obviamente a favorita,
nunca foi obrigada a se conformar às estritas regras do purdah, às
quais suas predecessoras viveram sujeitas a vida inteira e que
reduziam as mulheres a um confinamento total: viviam na zenana,
parte a elas dedicada dos palácios; não mostravam o rosto em
público e jamais mantinham qualquer tipo de conversa com
representantes do sexo masculino, a não ser seus parentes mais
chegados.
Nos meios internacionais, Ayesha foi sempre a única
mulher apresentada por Jai. Mas, se nunca foi totalmente submetida
ao purdah, em sua juventude teve que fazer muitas concessões,
restritivas da sua liberdade, para não chocar as tradições sociais de
Jaipur.
Pois bem, essa maharani vigiada e contida, de passos
contados e palavras medidas, cujo maior desafogo era o apoio e a
compreensão de um marido liberal, um belo dia, aos 41 anos de
idade deu o seu brado de libertação: inscreveu-se no partido político
de oposição ao governo, candidatou-se e foi eleita deputada, por
uma corte de seguidores fanáticos.
Hugo Gouthier
296
E fez uma vibrante carreira política. Antagonista ferrenha
de Indira Gandhi, certa feita foi presa e encarcerada por ordem da
Primeira-Ministra. E continuou a sua luta mesmo quando Jai foi
nomeado Embaixador na Espanha numa tentativa do governo
indiano de afastá-la do Parlamento. Nem mesmo a morte de Jai,
em 1969, de enfarte, na Inglaterra, no meio de uma partida de
pólo no campo de Cirencester, conseguiu arrancá-la da vida pública.
Ayesha continuou lutando, defendendo os poucos
privilégios que ainda restavam aos príncipes hindus. Só se retirou
em agosto de 1971, depois que Indira Gandhi conseguiu introduzir
um adendo à Constituição retirando dos nobres as poucas
mordomias que lhes sobravam e privando-os até do uso dos seus
títulos.
Estava justamente elaborando esta passagem das minhas
recordações quando o meu amigo, Embaixador Roberto
Assumpção, mandou-me de presente o livro de Gayatri Devi de
Jaipur A Princess Remembers. Um livro fascinante para todos os
que se interessam pela Índia, pela história contemporânea, pelos
meandros da psicologia feminina. Um livro triste para mim, pois
revela claramente a amargura e o saudosismo nos quais mergulhou
a minha querida Ayesha, a minha bela amiga tão cheia de alegria e
entusiasmo mas que não soube aceitar com resignação e graça as
restrições do seu destino.
Morte do Presidente Kennedy
Estávamos na Embaixada em Roma, com hóspedes,
quando fui chamado ao telefone e recebi a notícia que enlutou o
297
Presença
mundo: meu amigo John Kennedy fora assassinado. Cumpria-se
mais uma etapa do destino trágico daquela família heróica que
sobrevive a tudo com estoicismo e valor.
O mundo inteiro chorou com a jovem viúva Jacqueline
Kennedy e impressionou-se com a sua extraordinária dignidade.
Mas foi simplesmente estarrecidos que constatamos a força e
resignação da mãe mais uma vez ferida, a matriarca da família,
Rose Kennedy, essa mulher admirável. Exemplo de fé e de
autodomínio mesmo quando a desgraça novamente abateu-se sobre
ela e a mão assassina, em Los Angeles, feriu de morte o segundo
dos Kennedys e o terceiro na linha de sucessão à Presidência da
República. Meu inesquecível e brilhante amigo Robert Kennedy.
Tempos depois, fomos visitar Ted Kennedy em
Washington. Ele foi nos buscar no aeroporto e nos hospedou em
sua casa. Mas antes, passou no cemitério de Arlington, onde se
achava enterrado John Kennedy. Sabedor da amizade que nos unia
ao seu irmão, imaginou que sentiríamos consolo orando por ele
em sua sepultura. Já se passava mais de um ano da morte do
Presidente mas, diante do seu túmulo, ainda formavam-se longas
filas de visitantes consternados. Dali Teddy nos levou para conhecer
a Gouthier Road, em Falls Church, próxima à sua casa. A rua foi
assim denominada, em minha homenagem.
Cassado pela Revolução
301
Não há nada mesmo de novo, no front da vida. Depois
de 30 anos de bons serviços e dedicação total ao meu país, sendo
que 25 na carreira diplomática, fui cassado sem aviso prévio e sem
explicação.
Sempre dialoguei com os Presidentes da República aos
quais servi, como diplomata. Minhas relações com Jango Goulart
eram as mais cordiais possíveis e estou certo de que ele me estimava
muito. Eu também gostava daquele homem amável e atencioso,
embora julgasse que ele se interessava mais em fazer política do
que na administração do país.
Estancieiro rico, não podia acreditar que João Goulart
fosse comunista. Eu me admirava, portanto, da onda de pavor que
se apossara no Brasil, do medo que incentivava senhoras a
marcharem de rosário na mão, orando para que Deus o impedisse
de instalar o comunismo. No meu entender, Jango não era
comunista, era apenas politicamente ingênuo e inábil. Percebi que
ele estava brincando com fogo, avançando o sinal e se expondo.
Cercado de esquerdistas, deixava-se dominar, agindo sem a
prudência de um estadista. Percebi isso, com pungente clareza,
pressenti o perigo que ele corria, por exemplo, na ocasião em que,
“Se servistes à pátria que vos foi ingrata, vós fizestes
o que devíeis, e ela, o que costuma.”
(Padre Antônio Vieira, “Sermão dos Pretendentes”,
pregado na Capela Real, em 1669.)
Cassado pela Revolução
Hugo Gouthier
302
no famoso almoço do Automóvel Clube, discursou aos sargentos
ousando suberter a hierarquia militar. Audácia que sempre custa
um preço muito alto.
Juscelino era o primeiro a lhe dar conselhos para que se
libertasse de algumas influências nocivas; para que pensasse duas
vezes antes de tomar atitudes. Conversei muito sobre isso com
Juscelino e, os dois, tentamos abrir os olhos de João Goulart. Mas
ele não nos dava ouvidos, alegando que o povo estava com ele, e
ele agia em nome do povo.
Se tivesse sido um pouco menos gaúcho e um pouco
mais mineiro, teria evitado muito sofrimento, muita dor e muitas
trevas.
Diplomata de carreira, servindo no exterior, fiz o que
pude para ajudar o Presidente da República, eleito pelo povo, mas
não cabia a mim mudar a sua cabeça. Nem a distância, nem o tipo
do nosso relacionamento o permitiriam.
Em resumo, eu sabia que Jango estava fazendo
malabarismos na corda bamba, desafiando forças poderosas sem o
devido respaldo, e sem o tato e a argúcia política indispensáveis.
Mas, fervoroso defensor da ordem legal, não pensei que se chegasse
a uma revolução para depô-lo, pois há meios e recursos legais para
corrigir a conduta e os atos de um Presidente.
No dia 31 de março de 1964, voltava eu de uma recepção
quando recebi a notícia brusca da vitória da Revolução e da queda
de Jango. Senti, então, que acontecera o irremediável, a ruptura de
nossas frágeis instituições democráticas. E repito: Jango foi deposto
por sua falta de tato e incompreensão do papel das Forças Armadas
em toda a História do Brasil.
303
Presença
Tive pena dele e tive pena do Brasil mas nem sequer passou
pela minha cabeça a idéia de que eu seria arrastado na mesma rede.
E acho que nem passou na de ninguém. Talvez, unicamente, na de
Carlos Lacerda que, mal triunfou a Revolução, foi à Europa tentar
explicá-la. Pois, assim que chegou a Roma, acompanhado por Abreu
Sodré e eu fui visitá-lo, declarou-me:
– Os militares estão muito irritados com você por causa
da festa que ofereceu às filhas de Juscelino – e acrescentou: – Como
sou seu amigo, quero lhe dizer que você não precisa estar presente
à entrevista que vou conceder aos jornalistas, porque eu vou abrir
as baterias contra Juscelino.
Não tentei demovê-lo dessa agressão, pois quem conheceu
Carlos Lacerda sabe muito bem que nada o demovia quando
despertava nele o seu espírito demolidor. Dei as costas e fui-me
embora. Saí até de Roma para passar o fim de semana na casa de
uns amigos, nos arredores. Admirei-me quando no dia seguinte li
os jornais: Lacerda não dizia uma única palavra contra Juscelino.
“Os militares estão muito irritados com você por causa
da festa que ofereceu às filhas de Juscelino.” Foi o único aviso que
recebi. E nem dei atenção. Os militares estavam irritados por causa
de uma festa que eu dera à minha custa? Que importância podia
ter isso?
Continuou tudo no melhor dos mundos. Ninguém do
Brasil me mandou uma linha, me deu um telefonema para me
prevenir de nada.
Pode-se imaginar a minha surpresa quando, estupefacto,
recebi um telegrama da Secretaria de Estado comunicando que meus
direitos políticos haviam sido suspensos por dez anos, por decreto
Hugo Gouthier
304
assinado pelo Presidente Castello Branco, de acordo com o Ato
Institucional nº 1.
E não tive sozinho a minha cabeça cortada: comigo foram
sacrificados Juscelino, João Goulart, Jânio Quadros e mais 4 mil
cidadãos. Para compor o cenário de radicalismo eclético e arbitrário,
só faltaram mesmo as carretas, a guilhotina e as tricoteuses...
Normalmente, eu teria alguns dias para deixar a
Embaixada. Normalmente é uma força de expressão, pois não havia
normas ou regras a esse respeito: eu fui o primeiro Embaixador a
ter os direitos políticos cassados no posto em que servia. No mesmo
dia, na mesma hora, mudei-me com a minha família, e até alguns
hóspedes que lá recebíamos, para uma casa do Marquês de Salviatti,
colocada à nossa disposição. E, em menos de 48 horas, tiramos
tudo o que era nosso e desocupamos a Embaixada.
Foi um embalar e encaixotar tão febril que o nosso
copeiro, o fiel Giovanni, perdeu a sua aliança de casamento e veio
se queixar à Laís, chorando com medo das iras da sua mulher. Foi
preciso que a minha mulher, na mesma hora, mandasse comprar
outra para ele.
Deixamos o nosso lift-van num guarda-móveis e fomos
passar uns dias em Forte dei Marmi, na propriedade de Suzanne
Agnelli, irmã de Giovanni Agnelli, meu amigo e o grande patrão
da Fiat. De lá, fomos para Portugal, aceitando o convite de Antenor
Patiño.
Fiquei obviamente abalado e desgostoso de ver cortada assim,
estupidamente, a carreira à qual devotara toda a minha vida. Mas não
senti ódio dos que me cassaram nem dos que colaboraram para a
minha cassação. Se algum sentimento houve, foi o de pena deles...
305
Presença
Nessa hora, contei com o imenso apoio na serena firmeza
da minha mulher, que aceitou os dias de provação com a mesma
dignidade que aceitava os de glória. E nas manifestações de apreço
e solidariedade que começaram a chover dos quatro cantos do
mundo. Cartas, telegramas, telefonemas... Não me esquecerei nunca
da mensagem de Gaston Palewski, então Ministro de De Gaulle:
“Je vous présente mes sympathies indignées.” Do Brasil, onde reinava
o pânico, e se caçavam bruxas, chegaram-me inúmeras cartas,
cautelosamente enviadas por portador.
Da minha Casa, do Itamaraty, recebi um apoio e uma
solidariedade irrestritos. Meus colegas, esses, me mandavam
telegramas abertos, desassombrados. Eles me conheciam e conheciam
o meu trabalho, respeitavam-me e eram meus amigos. Ficaram
incondicionalmente do meu lado.
O governo criou uma Comissão de Inquérito para
investigar a minha vida profissional e determinar se eu deveria
responder a processo. Nada, três vezes nada, foi apurado
contra mim e eu fui aposentado com todos os meus
vencimentos.
Eu estava decidido a não voltar tão cedo para o Brasil e, a
pedido de Laís, resolvi morar em Paris. Enquanto planejávamos a
nossa vida, aceitei o convite de Antenor Patiño, que colocara à
nossa disposição uma bela casa em Alcoitão, perto do Estoril, e
fomos para Portugal.
Foi então que eu vendi uma boa parte da minha coleção
de quadros. Com o dinheiro, comprei o belo apartamento de
Patiño no Boulevard Suchet nº 10, onde instalei minha família
com o conforto e a dignidade aos quais estava habituada.
Hugo Gouthier
306
E fui tratar de ganhar a vida. Abri um escritório de
representações e consultoria de assuntos internacionais, Soetec
– Société d’Études et Expansion Commerciale, primorosamente
montado na Avenue des Champs Elysées, 124. E, ironia da
vida, os que tentaram me prejudicar, no fundo me prestaram
um bom serviço. Pois, só quando eu parei de trabalhar para o
governo brasileiro e passei a trabalhar para mim mesmo, ganhei
muito dinheiro. O que não é de se admirar, uma vez que eu
conhecia todas as pessoas certas no mundo dos negócios, e
tinha a confiança dessas pessoas, graças à lucidez e honradez
que sempre demonstrara e à visão clara e experiente dos
problemas econômicos mundiais que adquirira na vida
diplomática.
Durante todo o tempo do obscurantismo e do terror
no Brasil, mantive as portas da minha casa em Paris abertas
aos exilados brasileiros que passavam dificuldades. Éramos
todos brasileiros e, na hora da fome, não existiam divisões
ideológicas.
Passei quatro anos sem voltar ao Brasil. Nada me
impedia de fazê-lo, a não ser a minha vontade. Até que, em
fins de 1968, tive necessidade de vir ao Rio ultimar um negócio:
a venda de uma grande partida de cimento europeu a uma firma
brasileira.
Por coincidência, cheguei no momento exato em que
se dava mais uma crise política, provocada pelo discurso do
Deputado Márcio Moreira Alves. O governo aproveitou para
fechar o Congresso, fazer o Ato Institucional nº 5 e... nos
prender.
307
Presença
Na Praça da Harmonia
Cheguei ao Rio e fui me hospedar num apartamento
colocado à minha disposição pela minha grande amiga Josefina
Jordan, muito bem instalado e, até, com empregada às minhas
ordens. Depois de quatro anos de ausência, como é natural, os
meus amigos começaram a se movimentar para me receber.
Na noite de 13 de dezembro – dia da inauguração do AI-
5 – eu estava jantando na casa de Lourdes e Alberto Proença de
Faria, um jantar maravilhoso, diga-se de passagem, quando fui
chamado ao telefone. Era a empregada, aflita, falando com
dificuldade, avisando que dois policiais do DOPS estavam lá, à
minha espera.
Tranqüilizei-a e voltei à mesa para terminar calmamente
o meu jantar. Afinal, seria uma desconsideração com a minha
anfitriã desperdiçar um menu tão caprichado. Quando nos
levantamos da mesa, contei o que se estava passando.
Meus amigos – José Manoel Fragoso, Embaixador de
Portugal, o casal Marcelo Machado, Antônio João Dutra, filho
do Marechal Eurico Gaspar Dutra, e muitos outros – custaram a
acreditar em tamanho disparate. Alguns opinaram que eu não
deveria voltar lá e José Manoel Fragoso chegou a me oferecer asilo
na Embaixada. Mas, quem não deve não teme, e decidi ver, em
pessoa, o que se passava.
Acompanhado de João Dutra, dirigi-me imediatamente
para o apartamento, onde soube pela empregada que os policiais
tinham ido tomar café num bar próximo, na Rua Fernando
Mendes. Fui até lá e eles me prenderam. Não traziam nenhum
Hugo Gouthier
308
mandado de prisão e nem ofereceram a menor explicação a João
Dutra – que era major do Exército, reformado – disseram apenas
que eram “ordens da Revolução”. A única concessão que fizeram
foi permitir que João me acompanhasse.
E lá fui eu, preso, para o quartel da Polícia Militar, na
Praça da Harmonia, no bairro da Saúde.
Confesso que achei graça. Era realmente engraçado um
endereço digno de integrar o texto do verdadeiro “teatro do
absurdo” que se encenava naquela época no Brasil.
Praça da Harmonia, no bairro da Saúde: local para se
recolherem pessoas, sem motivo aparente, em nome da segurança
do regime...
No quartel, por insistência de João Dutra, queriam me
levar para uma sala especial. Mas eu fiz ver ao comandante da PM,
Coronel Assunção, que recusava regalias e exigia ser colocado na
sala dos outros presos. A custo, consegui convencer meu amigo a
voltar para a sua casa.
Na sala dos presos, vi muita gente e soube muita coisa.
Entre os numerosos detidos havia, por exemplo, o padre René
Mendonça, Vice-Reitor da PUC, vários professores e estudantes
universitários, artistas, e o Deputado José Gomes Talarico que,
desde 1964, volta e meia ia preso, por sua declarada fidelidade a
João Goulart. E soube que andavam prendendo gregos e troianos,
numa “operação arrastão” indiscriminada.
Naquele mesmo dia, naquela mesma sala, estivera detido
o Embaixador Sette Câmara. Provavelmente, por crime igual ao
meu: ser amigo de Juscelino. Mas, assim que ele foi preso, os amigos
se movimentaram, alertando do fato o seu amigo General Ramiro
309
Presença
Gonçalves, Comandante da Divisão Blindada do Exército. Parece
que o General não conversou. Telefonou para o quartel e avisou:
se não soltassem Sette Câmara imediatamente ele iria tirá-lo de lá
com uma patrulha do Exército.
Ouvi dizer, ainda, que havia centenas de outros presos
em diversos locais, entre os quais, Carlos Lacerda, o Deputado
Renato Archer, ex-parlamentares e militares.
As janelas da sala estavam fechadas e o calor era
insuportável – todo mundo sabe que a zona do Cais do Porto é
uma das mais quentes da cidade. Soldados armados de fuzis e
baionetas tentavam nos intimidar. Mas o ambiente apesar de tudo
era tranqüilo, principalmente graças a Talarico que, com grande
prática do assunto, não se deixava abater e procurava animar todo
mundo. Recebeu-me com a maior simpatia, apresentando-me aos
colegas.
Desagradável mesmo era a demora dos depoimentos
intermináveis. Fui levado, junto com Talarico, ao prédio da Polícia
Central, na Rua da Relação. E lá esperei, sentado num banco duro,
de uma sala escaldante, enquanto ele era interpelado – por quatro
horas seguidas – sobre Jango, Brizola, o PTB, e uma possível
conspiração contra o sistema. Talarico respondendo, à exaustão,
que era amigo de Jango, que não conspirava mas lutava pela
restauração constitucional.
Quando chegou a minha vez, fizeram-me perguntas sem
nexo, que mais pareciam curiosidades de comadres: queriam saber
o que eu fazia na Europa, quais eram os meus amigos, quem eu
recebia na minha casa em Paris. Voltando sempre a Juscelino,
visando sempre Juscelino. Não me fizeram nenhuma pergunta
Hugo Gouthier
310
coerente e direta, mas pude perceber que, dada a coincidência da
minha chegada ao Brasil, eles pensavam que eu tinha vindo conspirar
contra a Revolução, e talvez procurar obter um financiamento
para um contragolpe por intermédio de amigos.
Ao saberem da minha prisão, vários amigos se
movimentaram. Cito, entre outros, Vera e Wallim Vasconcellos,
Ibrahim Sued, Nenette Weinschenk, João Neder e Ruy Mendes
Pimentel. Mas, foram Maria do Carmo e José Nabuco os que mais
procuraram me ajudar. Essa mineira, culta e decidida, que tem no
sangue como a maioria dos mineiros a marca inapagável da
liberdade, mexeu-se em todos os sentidos, apelando às autoridades,
inclusive junto ao meu amigo de muitos anos: Francisco Negrão
de Lima, na época Governador do Estado da Guanabara que,
infelizmente, envolvido pelos ditames da Revolução, nada pôde
fazer.
O período era de caos, de jogo de empurra. A polícia
prendia indiscriminadamente, as Forças Armadas prendiam
indiscriminadamente, tudo “por ordem da Revolução”. Enquanto
esperava o advento de um pouco de bom senso, eu recebia muitas
visitas no quartel onde me encontrava encarcerado.
Maria do Carmo foi falar com o General Sizeno Sarmento,
Comandante do I Exército, que lhe afirmou não ter nada a ver
com a minha prisão. Caso contrário, se por sua determinação
agissem, o meu destino teria sido uma unidade do Exército e não
da Polícia Militar. Aborrecido com o fato, pois não via justificativas
para a minha detenção, Sizeno Sarmento ordenou que me soltassem
imediatamente. De posse dessa autorização, Maria do Carmo e
José Nabuco foram ao quartel para me buscar.
311
Presença
Era dia 24 de dezembro e eu estava com os outros presos e
um dos capelões militares no refeitório do quartel, dividindo a modesta
ceia de Natal que o Coronel Assunção permitira que organizássemos.
Movido por um impulso legítimo de solidariedade de humana, recusei
a minha libertação, decidido a partilhar com os meus companheiros –
que continuariam presos – o pão amargo daquele dia.
Eles compreenderam o meu gesto mas não aceitaram o
sacrifício e eu acabei indo com Maria do Carmo e José para a casa
deles, onde outros amigos esperavam para me abraçar, entre os quais
o Embaixador Vasco Leitão da Cunha, ex-Ministro das Relações
Exteriores ao tempo da suspensão dos meus direitos políticos.
Enquanto isso, em Paris, aflita, Laís não saía do telefone
tentando saber notícias minhas, já que os amigos do Rio não tinham
coragem de contar a ela toda a verdade da minha situação. Mesmo
porque, ninguém sabia bem toda a verdade, nem como acabaria
uma prisão irracional daquelas. Afinal, foi através do nosso amigo
Embaixador Sargent Shriver, cunhado de Kennedy, que ela soube
da minha libertação.
Como se pode imaginar, eu só tinha uma idéia na cabeça:
voltar para Paris o mais depressa possível. Mas antes de partir fui
visitar Juscelino, sob prisão domiciliar. Meu grande amigo
espantou-se com a minha visita e nos despedimos emocionados.
Em Paris, passei as festas de fim de ano em casa de Edmond
Bory. Com a minha família, os Duques de Windsor, o casal
Antenor Patiño, Perla e Graham Matison. Brilhava como sempre
na França a chama da liberdade e o Brasil, com a sua Revolução,
seus atos institucionais e suas prisões abarrotadas, parecia um
longínquo pesadelo.
O Museu de Arte Moderna
(MAM)
315
De volta ao Rio, já instalado neste meu apartamento,
sou acordado uma madrugada, pelo telefonema de uma grande
amiga minha, Heloisa Aleixo Lustosa, Diretora-Executiva do
MAM (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) e hoje
membro do Conselho Federal de Cultura, transmitindo-me a
dramática notícia: o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
estava em chamas. Senti um desgosto profundo, pois fui um dos
seus sócios fundadores e era membro do Conselho Deliberativo,
tendo-lhe feito, inclusive, a doação de um de meus quadros, o
incomparável Les oeufs sur le plat (sans le plat), de Salvador Dali.
Tela que, de acordo com o crítico Jayme Maurício, valeria hoje
cerca de um milhão de dólares.
Quando eu cheguei lá, a tragédia já se havia consumado.
Devorado pelas chamas, o Museu estava em ruínas, grande parte
do seu acervo perdida para sempre.
Dois dias depois, recebi um apelo de Ivo Pitanguy, Nelson
Baptista, Aloysio Salles, Leônidas Bório e outros amigos do Museu
– certamente lembrados do meu trabalho na restauração do Doria
Pamphili – no sentido de que assumisse o cargo de coordenador
da sua reconstrução. Eu não queria aceitar. Por várias razões, não
O Museu de Arte Moderna (MAM)
Hugo Gouthier
316
queria aceitar de forma alguma. Mas acabei cedendo, deixando-me
convencer. E, quando aceitei, sabia que me dedicaria integralmente.
Saí dali e fui conversar com Maurício Nabuco, meu grande
mestre na carreira diplomática e na vida, que tinha sido Diretor-
Presidente do Museu. Imediatamente ele se dispôs a me ajudar. E
começou conseguindo a primeira doação.
Como não sei trabalhar sem um mínimo de conforto
operacional, tomei logo a providência de mandar limpar e ajeitar
uma das salas menos devastadas pelo fogo, pelo calor ou pela água,
para lá instalar a minha equipe. E passei a trabalhar no “meu ritmo
especial de obras”, isso é, 12 horas por dia.
O Governador Floriano Faria Lima foi a primeira pessoa
a ajudar fundamentalmente a reconstrução. Entrou com dinheiro e
entrou com pessoal. Designou-nos imediatamente uma verba de 30
milhões de cruzeiros e colocou engenheiros do Estado à nossa
disposição. Homens excepcionais que trabalharam com afinco e
entusiasmo, sob a orientação segura e eficiente de Hugo de Matos,
Secretário de Obras do Estado.
Demonstrando o seu sincero interesse pela pronta
restauração do Museu, o Governador Floriano Faria Lima
passava, semanalmente, pelo MAM para verificar como iam os
trabalhos.
O MAM deixou consignado o seu agradecimento ao
Governador Faria Lima numa placa que colocou no saguão do
prédio.
Enquanto durou o meu mandato como coordenador da
reconstrução, fiz o que pude. Só não dormia lá, mas passava o dia
inteiro, almoçava, ou comia um sanduíche... E posso dizer que,
317
Presença
quando me afastei, deixei uns noventa por cento da reconstrução
prontos.
Usei de todos os recursos ao meu alcance, pedindo aos
amigos favores, doações... Arranjando móveis emprestados de um
lado, máquinas de escrever, de outro; Kombis com a Volkswagen;
maçanetas, ferragens e ferraduras, na firma de um amigo; cópias
xerox, dinheiro vivo... Tudo rigorosamente escriturado.
Cidadão Honorário do Rio de Janeiro
Homenagem que muito me sensibilizou foi a que me
prestou a Câmara Municipal, conferindo-me o título de Cidadão
Honorário do Rio de Janeiro.
A solenidade, realizada no dia 22 de setembro de 1981,
lotou todo o plenário e galerias da Câmara com os meus amigos
do Rio, conterrâneos de Minas, autoridades, entre os quais duas
das presenças que mais me comoveram foram: a do ilustre Ministro
Gustavo Capanema, a quem servi na minha mocidade como Oficial
de Gabinete, e a de Dona Sarah Kubitschek.
Fui saudado pelos vereadores Hélio Fernandes Filho,
autor da moção que indicou o meu nome para tão elevada honra,
e Paulo César de Almeida, e pelo Vice-Presidente da Câmara,
Moacir Bastos.
Rememorando a minha vida pública e as minhas
atividades, os oradores salientaram os trabalhos que fiz, em favor
do Brasil, em todos os países em que servi como diplomata, e
ressaltaram também a minha participação na reconstrução do Museu
de Arte Moderna.
Hugo Gouthier
318
Juscelino Kubitschek de Oliveira
Gostaria de me lembrar da primeira vez que vi Juscelino
Kubitschek. Esforço-me e infelizmente não consigo. Na vida é
sempre assim. Por vezes nunca estamos conscientes para a
importância do momento que vivemos. Belo Horizonte era uma
cidade pequena onde – vindos de todas as partes do Estado –
praticamente crescíamos juntos ou nos conhecíamos todos. Como
poderia eu, ainda jovem, saber que aquele dia – em que cruzei pela
primeira vez com Juscelino – teria tamanha influência em nossos
destinos.
Desgraçadamente, lembro-me da última. Era em
princípios de agosto e fomos almoçar, os dois, na Manchete com
Adolpho Bloch. Alegre, descontraído, Juscelino atravessava uma
fase muito boa, de total serenidade. Nem de longe parecia ter 74
anos, tão cheio de vigor e de projetos. No momento, terminava de
escrever as suas memórias e, falando sobre elas, relembramos os
muitos episódios da sua vida, revivemos certos lances, conferimos
recordações.
Tudo isso com alegria e sem a menor amargura. Coerente
com a sua índole e feitio, Juscelino não guardava ressentimentos,
não tinha ódios.
Naquele dia, elogiou muito o Ministro Mário Andreazza
– homem empreendedor e dinâmico muito ao gosto de Juscelino –
e discorreu com entusiasmo sobre Itaipu – obra desenvolvimentista
que se encaixava perfeitamente dentro da sua filosofia.
Depois de um delicioso almoço, alegres e despreocupados,
despedimo-nos de Adolpho Bloch que nos acompanhou até a porta.
319
Presença
Eu estava sem carro e Juscelino me ofereceu uma carona no seu
para Copacabana, e viemos conversando banalidades. Era uma tarde
linda de um dia glorioso. Quando o carro entrou na Avenida
Atlântica, Juscelino ficou um instante em silêncio e depois
desabafou: “Que beleza de cidade, não é, Hugo! Somos uns
privilegiados da terra.”
Desci em frente a minha casa e voltei-me para dizer adeus.
Juscelino acenou-me sorrindo. Geraldo Ribeiro, seu chofer há 30
anos, ligou o motor, acelerou. E desapareceram para sempre da
minha vida. Partiram dali para a eternidade.
Eu estava no Rio quando Juscelino foi eleito deputado,
em 1934; servia em Washington quando assumiu a Prefeitura de
Belo Horizonte, em 1940. Mas em 1950, como já tive ocasião de
mencionar, participei da articulação para a sua candidatura a
Governador de Minas Gerais e celebrei a sua vitória. Um ano antes,
quando ainda nem se pensava na sua candidatura, ele se preocupava
com o meu futuro. Numa carta sua, que recebi em Washington,
datada de 14 de abril de 1949, conjecturava sobre a próxima eleição
presidencial e acrescentava:
“Penso, aqui, muito em você, porque desejo,
sinceramente, que o nome indicado esteja ligado a nós por laços de
amizade e de solidariedade política, de modo a facilitar o que todos
pretendemos para você: alta posição na política interna ou um lugar
de Embaixador no exterior.”
Muita gente me pergunta o que uniu dois homens tão
diferentes: um, vivendo nas altas esferas internacionais, outro,
violentamente centrado no Brasil. A resposta é uma só: nunca fomos
diferentes. Nem Juscelino era provinciano, nem eu deixei de ser
Hugo Gouthier
320
mineiro. E sempre ouvimos o mesmo tambor: a viga mestra da
personalidade de ambos era a capacidade de ação e realização. Não
tínhamos medo de grito e, uma vez decididos a alguma coisa –
fosse o que fosse – íamos até o fim. Daí a espontaneidade e
permanência das nossas relações. Sem falar que Juscelino era um
excelente companheiro para todas as ocasiões. Como eu, ele também
era um homem da noite, só que bem mais dotado: seresteiro,
gostando de dançar e cantador. Um Presidente da República que
tinha por prefixo musical o Peixe Vivo.
E, se eu passei a vida a fazer amigos, Juscelino passou-a a
desfazer inimizades. Um homem desarmado que até esquecia das
ofensas que lhe tinham dirigido na véspera, porque não tinha tempo
a perder com elas.
Durante o seu governo prestei-lhe a minha colaboração
extracarreira diplomática em várias oportunidades. Cito: en
passant, a fundação da Sudene. Sempre que eu vinha ao Brasil,
aproveitava para conhecer o território nacional mais e mais.
Em 1959, voltei do Nordeste impressionado com o desnível
social e a pobreza que lá encontrei. Naquela época, o governo
canalizava os seus investimentos sobretudo para as indústrias
paulistas. São Paulo, dizia-se, era uma locomotiva arrastando
vinte vagões.
Conversando com Juscelino, sugeri-lhe que criasse uma
espécie de Plano Marshall para a região, a fim de tentar remediar a
desgraçada situação em que ela se encontrava. Aventei até a hipótese
do Presidente transferir, periodicamente, a sede do governo para
pontos do Nordeste, onde poderia acompanhar melhor a
concretização do plano.
321
Presença
Juscelino interessou-se pela primeira parte da minha
sugestão e pediu-me que pensasse mais sobre o assunto. Chamei o
meu amigo, Antônio Mesquita Lara – trabalhando na época no
Banco de Desenvolvimento Econômico e, mais tarde, no Banco
Mundial – e juntos redigimos um memorandum ao Presidente da
República.
Juscelino leu, chamou o Embaixador Sette Câmara e
pediu-lhe que desenvolvesse o nosso plano. Coordenador do
projeto e responsável por sua sustentação junto ao Presidente, Sette
Câmara criou um Grupo de Trabalho, convocando homens de
alta capacidade, tais como: Luís Carlos Mancini, Israel Klabin e
Celso Furtado.
A princípio, Celso Furtado não era a favor da criação
de um novo órgão. Achava que a Spevea – Superintendência do
Plano de Valorização Econômica da Amazônia, já existente, era
capaz de suportar o encargo. Já o deputado baiano Hermógenes
Príncipe fez inúmeros discursos na Câmara defendendo o nosso
ponto de vista. A respeito do assunto, manifestou-se também
Aluísio Alves. Defendia o ex-Governador a tese de que os
governadores do Nordeste deveriam ter assento no novo órgão a
ser criado, o que lhes facilitaria a vida no plano administrativo e
no plano político.
A sugestão de Aluísio Alves gerou o Conselho de
Desenvolvimento do Nordeste – Codeno, onde todos os
governadores da área tinham participação e possibilidade de
discutirem suas idéias e exporem seus problemas. Daí, naturalmente,
surgiu a Sudene – Superintendência do Desenvolvimento do
Nordeste.
Hugo Gouthier
322
Ao decidir a nomeação de Celso Furtado para
Superintendente da Sudene, afrontando a oposição de muitos
deputados e senadores nordestinos que preferiam um político,
Juscelino mais uma vez demonstrou o acerto na escolha.
No campo da política externa, Juscelino já demostrara a
sua visão desejando maior participação da América Latina no
concerto internacional. Em 1956, foi a Caracas encontrar-se com o
Vice-Presidente Richard Nixon que viajava pela América do Sul
tentando captar simpatias para o governo de Eisenhower. Nessa
época Nixon recebeu estrondosa vaia e foi até mesmo atingido por
alguns tomates.
Juscelino percebeu que era hora de fazer alguma coisa
para remediar a situação e melhorar o entendimento entre os países
vizinhos da América. Chamou Augusto Frederico Schmidt e juntos
escreveram uma longa carta a Eisenhower, explicando-lhe a
necessidade imperiosa de um apoio mais energético dos Estados
Unidos à economia latino-americana que só estava recebendo
migalhas homeopáticas dos seus ricos irmãos do norte.
Alguns órgãos da imprensa brasileira atacaram muito
Juscelino, acusando-o de tentar chantagear os americanos.
Opinião totalmente divergente da do Presidente Eisenhower, que
enviou uma carta incentivadora, em vista da qual Juscelino mandou
Sette Câmara à Colômbia, conferenciar com o estadista Alberto
Lleras Camargo. Lançavam-se, então, as bases da Operação Pan-
Americana.
Mais tarde, ao perceber o valor político da proposta
brasileira, nos moldes da Operação Pan-Americana, Kennedy criou
a Aliança para o Progresso, que investiu vários milhões de dólares
323
Presença
em projetos brasileiros, inclusive no Rio, no governo de Carlos
Lacerda.
Pouco antes de morrer, Kennedy havia pedido a Juscelino
e a Lleras Camargo que lhe enviassem relatórios sobre os resultados
da Aliança, no Brasil e na Colômbia. Creio que Juscelino chegou a
redigir um trabalho, não sei se chegou a entregá-lo, pois, meses depois,
Kennedy era assassinado e, um pouco mais tarde, ele era cassado...
A 12 de setembro de 1981, aniversário de seu nascimento,
foi inaugurado em Brasília o Memorial JK.
Deve-se a Sarah Kubitschek, à sua tenacidade em cultivar
a memória e difundir a obra política e administrativa de seu marido,
a realização, em prazo marcado, a partir da primeira audiência
com o Presidente João Figueiredo, dessa obra importante. Sarah
Kubitschek merece o respeito e a gratidão do Brasil pelo
empreendimento que promoveu, ao lado de Adolpho Bloch, amigo
de JK nas horas incertas e de amarguras.
Constitui, esse Memorial, um gesto de verdadeira concórdia
nacional, Juscelino retornou à cidade que fundou, junto de seus
candangos, de seus livros, do seu arquivo, das fotografias de Brasília
desde o início de sua fundação. Planejado pelo gênio de Oscar
Niemeyer e construído por Sérgio Vasconcelos, representa o Memorial
JK um marco da cidade e um exemplo para as gerações do Brasil.
Em Roma, 17 anos depois
Dezessete anos depois de haver deixado a Embaixada em
Roma, lá estivemos, Laís e eu, novamente, no mês de fevereiro de
1982, por cerca de dez dias, hóspedes do Embaixador Mário Gibson
Hugo Gouthier
324
Barboza. Constituiu para mim momento de grande emoção minha
estada na Embaixada, onde revi vários auxiliares que comigo
serviram. O meu contentamento foi ainda maior por verificar que
o Embaixador Gibson Barboza deu um impulso extraordinário
aos serviços da Embaixada, modernizando-os e aperfeiçoando a
obra que fizeram seus antecessores. Os locais da Embaixada estão
totalmente ocupados com serviços do interesse do Brasil em Roma.
Isto veio provar que o Palácio Pamphili não era amplo demais
para abrigar os serviços da Casa do Brasil, que tinham de
necessariamente crescer com o correr dos tempos.
Iconografia
327
Bruxelas, 1956
Da esquerda para a
direita Paulo Carneiro,
Márcia Kubitschek,
Sarah Kubitschek, Maria
Estela Kubitschek, Laïs
Gouthier.
Hugo Gouthier e
Juscelino Kubitschek
Hugo Gouthier
328
Rio, 1971
Hugo Gouthier e amigos.
Rio, 1972
Adolfo Block e Beatriz Patiño.
329
Presença
Lúcia Pedroso, Hugo Gouthier, Ivo Pitanguy, Marilú Pitanguy.
Rio, 1968.
Nova York
Hugo Gouthier
com Nelson
Rockefeller
Hugo Gouthier
330
Nova York
Juscelino Kubitschek, Dora Vasconcellos, Hugo Gouthier e
Oswaldo Penido.
331
Presença
Nova York
Jantar de homens “stag” organizado por Hugo Gouthier para Juscelino
Kubitschek que era Presidente eleito do Brasil (não havia tomado posse
ainda.)
Da esquerda para a direita. Embaixador Muniz (do Brasil em Washington),
Harriman, Juscelino Kubitschek, Henry Cabot Lodge (Embaixador norte-
americano na ONU), Thomas Dewey, Hugo Gouthier (Cônsul Geral do
Brasil em Nova York.
Hugo Gouthier
332
Hugo Gouthier e Afonso Arinos de Mello Franco.
1950
333
Presença
João Neves da Fontoura e ao centro Hugo Gouthier. 1946.
Fotografia Oficial Britânica n.D. 28838 (Escritório Central de Informação
de Coroa – Direitos Autorais Reservados).
O Primeiro Ministro da Grã-Betanha recepciona o Ministro das Relações
Exteriores do Brasil.
Em 18 de setembro, quinta-feira, 1946, foi oferecida uma recepção no
Hotel Claridge ao Ministro das Relações Exteriores do Brasil, João Neves
da Fontoura, então em visita aos USA.
Hugo Gouthier
334
Nova York
Fim de semana com os Vanderbilt – 1953.
Grace Kelly, Hugo Gouthier, Laïs Gouthier e Oleg Cassini.
Xá do Irã.
Hugo Gouthier na intimidade com Reza Pahlavi.
335
Presença
Laïs Gouthier mostrando a Rua Gouthier RD “road”.
Em St. Moritz, da esquerda para a direita: Eugenie Niarchos, Hugo
Gouthier, Elisinha M. Salles, Luciana Pignatelli.
Hugo Gouthier
336
Hugo Gouthier com Eunice Kennedy, uma outra amiga americana e
John Kennedy (antes de ser Senador em Washington. 1940.)
Em Georgetown na casa de Hugo Gouthier.
Hugo Gouthier com Dorothy Lamour (atriz de Hollywood )
Washington, W.C.
337
Presença
Hugo Gouthier
com Agnelli,
Presidente da
Empresa Fiat.
O Xainxã e a Imperatriz da Pérsia.
Vekérau – agosto de 1952.
Hugo Gouthier
338
Juscelino Kubitschek, Hugo Gouthier e Jango Goulart.
Roma, 1963, Embaixada do Brasil.
339
Presença
Hugo Gouthier com o Presidente do Brasil Jango Goulart, Senador
Benedito Valladares, Embaixador Henrique Souza Gomes (à época
Embaixador junto ao Vaticano e Eugenio Caillard).
Roma - Palazzo Doria Pamphili
Embaixada do Brasil
14, Piazza Navona
Hugo Gouthier
340
Roma - Inauguração
Hugo Gouthier com o Ministro das Relações Exteriores do Brasil,
Horácio Lafer e Esposa.
Embaixador Hugo Gouthier e Esposa.
Itália, 1960.
341
Presença
Hugo Gouthier com a Duquesa de Windsor
Paris, 1958.
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