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Reunir, coordenar, opinar, produzir, revisar, propor, discutir, planejar, e, é claro,
escrever... Descobrimos o fazer da revista ao fazê-la. Alguns de nós tínhamos, de fato,
mais experiência do que outros. No final, a experiência coletiva de participar do
processo de elaboração do segundo número de uma jovem revista – jovem, mas que
já havia nascido grande – foi um trabalho memorável, um prazer inesperado.
No fundo, trata-se de um trabalho, sobretudo, de equilíbrio. Buscávamos, desde o
início, harmonia entre seriedade e experimentação. Ser original sem a pretensão de
desprender-se das origens. E, como no próprio fazer diplomático, nosso equilíbrio
era móvel, demandava firme prudência. Trabalhamos no limiar entre o entusiasmo da
criação e a persistente sensação de que tudo era frágil.
Mas não nos faltou apoio. A muitos devemos o êxito desse projeto – não
poderíamos deixar de mencioná-los aqui. Ao Embaixador Celso Amorim, que, com
sua sensibilidade cultural e alentador envolvimento nas atividades do Instituto
Rio Branco, apoiou a Revista Juca desde o início. Ao Embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães, sempre presente no Instituto, sempre instigante, promovendo salutar
ênfase na diversidade e excelência acadêmica de nossa formação.
Gostaríamos de manifestar nosso especial agradecimento também aos que
estiveram diretamente envolvidos na produção da Juca 02, sobretudo no Instituto
Rio Branco e na Fundação Alexandre de Gusmão. Ao nosso Diretor Honorário,
Embaixador Fernando Guimarães Reis, que permaneceu interessado, participativo
e disponível, em todas as etapas, devemos a inspiração criativa e o crucial liame
institucional. Ao Embaixador Jeronimo Moscardo, igualmente, agradecemos
o apoio, não só para esta edição como para a anterior. Parabenizamos os
colaboradores, last but not least, por seus textos eruditos e engraçados, líricos e
engajados, belos e alarmantes.
Escrevemos essas palavras ao apagar das luzes. E agora, considerando em
retrospecto o ano que se passou, percebemos que a ansiedade se transformou na
compreensão de que a Revista, diferentemente de nós, deverá sempre permanecer
experimental, operando nos limiares entre a juventude e a grandeza, como o próprio
José Maria. Que venham os próximos Jucanos!
dos editores
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Livros Grátis
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APRESENTAÇÕES
03 Dos Editores
06 Expediente
07 Colaboradores
PERFIS
08 Ramiro, empregado do Brasil
João Francisco Pereira
14 Embaixador Ovídio de Andrade Melo,
o Juca
Filipe Nasser
ESPECIAL: COMUNIDADES
BRASILEIRAS NO EXTERIOR
28 Presos no exterior
Adriana Telles Ribeiro
36 Comunidades Brasileiras no espaço
MERCOSUL
Aloísio Barbosa de S. Neto
43 Desafios das migrações internacionais
ao Direito e ao Brasil
Leandro Vieira
49 Comportamento social e preconceito
Mariana Lobato
ARTIGOS E ENSAIOS
56 Espartanos, mutantes e excluídos:
um ensaio sobre cultura e relações
internacionais
Paulo André Moraes de Lima
63 Sob o olhar cético: diplomacia e
cultura na Antigüidade
Gabriella Guimarães Gazzinelli
sumário
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68 Dança das Cadeiras: a reforma do Conselho de
Segurança das Nações Unidas
Fábio Simão Alves
75 La cuestión del cambio en la Teoría de las
Relaciones Internacionales
Romina Paola Bocache
PELO MUNDO
84 Uma experiência brasileira no Sudão
Luiz Fernando Deo Evangelista
92 Heriberto, nosso homem em Havana: reflexões
literárias sobre a vida cultural em Cuba
Felipe Krause Dornelles
RESENHA
100 O Amor nos Tempos do Cólera: amor, cinema
e literatura no universo de Gabriel Garcia
Márquez
Maurício Alves da Costa
POESIA E PROSA
104 Orientações importantes à nova musa
Raphael Nascimento
108 Buenos Aires Romina Bocache
110 Nuvem César Nascimento
111 Arquitetura D.G. Ducci
112 Papo de língua Francisco Figueiredo de Souza
116 Buraco na parede André Cortez
DEPOIMENTO
120 Crónicas de un emotivo encuentro entre Río
Branco e Isen
Silvina Aguirre, Sebastián Coronel,
M. Florencia Segura (ISEN)
122 Notasobreacapa–Embaixador Ovídio de
Andrade Melo
Juca número 02
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Diretor Honorário
Embaixador Fernando Guimarães Reis
Felipe Krause Dornelles – Editor-Chefe
Raphael Nascimento – Diretor Executivo
Bruno Rodrigues – Editor de Resenhas
Daniel Guilarducci – Editor de Poesia e Prosa
Francisco Figueiredo de Souza – Editor do
Especial Comunidades Brasileiras no Exterior
João Francisco Pereira – Editor de Perfis
Pedro Brancante Machado – Editor de
Artigos e Ensaios
Leonardo Valverde – Relações Públicas
Mariana Lobato – Projeto Gráfico
Vanessa Bonifácio – Diretora Jurídica
Vicente Amaral Bezerra – Diretor Financeiro
Agradecimentos
Embaixador Ramiro Elysio Saraiva Guerreiro e Embaixatriz Maria da Glória Vallim Guerreiro;
Embaixador Ovídio de Andrade Melo; Embaixador Francisco Soares Alvim Neto; Embaixador
Jeronimo Moscardo ; Conselheiro Sérgio Barreiros de Santana Azevedo; Conselheiro
Sarquis José Buainain Sarquis; Conselheiro Geraldo Cordeiro Tupynambá; Secretário Pedro
Montenegro; Secretário Filipe Nasser, Secretário Eduardo Lessa e toda a Equipe JUCA 01;
Secretário Octavio Lopes; Clarissa Henriques e Silva; George Wanderley Costa Júnior e
Maria Nilva de Almeida.
expediente
Comissão Editorial
Bruno Santos de Oliveira
Candice Sakamoto Souza Vianna
Carlos Augusto Resende
Carlos Kessel
Catarina da Mota Brandão de Araújo
Christiana Lamazière
Ciro Marques Russo
Cristina Vieira Machado Alexandre
Daniel Afonso da Silva
Fábio Simão Alves
Felipe Santos Lemos
Filipe Thomaz Mallet
Gabriela Guimarães Gazzinelli
Gustavo da Cunha Westmann
Gustavo Ludwig Ribeiro Rosas
João Augusto Costa Vargas
Leandro Antunes Mariosi
Maurício Gomes Candeloro
Sydma Aguiar Damasceno
Direção de Arte e Diagramação
Fabiana Marafiotti
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colaboradores
colaboradores
Adriana Telles Ribeiro (turma 2006-2008 do
IRBr) é bacharel em Ciência Política pela New
School for Social Research.
Aloísio Barbosa de S. Neto (turma 2007-2009
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade de Brasília.
André Souza Machado Cortez (turma 2007-
2009 do IRBr) é bacharel em História pela
Universidade de São Paulo.
César Nascimento (turma 2006-2008 do IRBr)
é bacharel em Administração de Empresas pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Daniel Guilarducci Moreira Lopes, D.G.Ducci
(Turma 2007-2009 do IRBr) é bacharel em
História e bacharel em Biblioteconomia e Ciência
da Informação pela Universidade de Brasília.
Fábio Simão Alves (turma 2007-2009 do IRBr)
é bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade de São Paulo.
Felipe Krause Dornelles (turma 2007-2009
do IRBr) é mestre em Desenvolvimento
Internacional pela Universidade de Oxford.
Filipe Nasser (turma 2006-2008 do IRBr)
é bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade de Brasília. Foi Editor-Chefe da Juca 01.
Francisco Figueiredo de Souza (turma 2007-2009
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
e bacharel em Comunicação Social/Jornalismo
pela Universidade de São Paulo. Integrou o projeto
“Universidades em Timor Leste” durante o
segundo semestre de 2004.
Gabriella Guimarães Gazzinelli (turma 2007-
2009 do IRBr) é bacharel em Letras/Grego
Antigo e mestre em Filosofia pela Universidade
Federal de Minas Gerais.
João Francisco Pereira (turma 2007-2009 do IRBr)
é bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Leandro Vieira Silva (turma 2007-2009 do IRBr)
é mestre cum laude em Direito Internacional
Público pela Universidade de Leiden. Foi
Consultor Legislativo do Senado Federal, assessor
técnico da CPMI da Emigração e revisor final do
Relatório apresentado pela Comissão.
Luiz Fernando Deo Evangelista (turma
2007-2009 do IRBr) é bacharel em Medicina
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
pós-graduado em Relações Internacionais pela
Universidade Cândido Mendes.
M. Florencia Segura (turma 2007-2008 do
Instituto del Servicio Exterior de la Nación
– ISEN) é formada em Direito e mestre em
Filosofia e Ciência Política pela Universidad
Nacional de Mar del Plata.
Mariana Lobato Benvenuti (turma 2007-2009
do IRBr) é bacharel em Direito pela Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo.
Maurício Alves da Costa (turma 2007-2009 do
IRBr) é bacharel em Letras/Japonês e mestre em
Letras pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul.
Michel Laham Neto (turma 2007-2009 do
IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Paulo André Moraes de Lima (turma 2000-
2002 do IRBr) é bacharel em Comunicação
Social pela Universidade Federal Fluminense
e mestre em Comunicação e Cultura pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Raphael Nascimento (turma 2007-2009
do IRBr) é bacharel e mestre em Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília.
Romina Paola Bocache (turma 2005-2006 do
ISEN e turma 2007-2009 do IRBr) é formada
em Direito pela Universidad de Buenos Aires,
com Medalha de Ouro, e pós-graduada em
Diplomacia e Tecnologias da Informação e
da Comunicação pela University of Malta e
DiploFoundation.
Sebastián Leonardo Coronel (turma 2007-
2008 do ISEN) é formado em Direito pela
Universidad Nacional de Tucumán e pós-
graduado em Relações Internacionais pelo
Instituto para la Integración y el Desarrollo
Latinoamericano.
Silvina Aguirre (turma 2007-2008 do ISEN)
é formada em Direito e mestre em Relações
Internacionais pela Universidad de Buenos
Aires. Completou Curso de Aperfeiçoamento
em Direito Internacional e Europeu de Direitos
Humanos na Universidad de Alcalá.
PERFIL
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RAMIRO,
EMPREGADO
DO BRASIL
João Francisco Pereira
Corria o mês de janeiro de 1979, pouco antes da posse do novo
chefe do Executivo, quando o então Embaixador brasileiro em Paris foi
chamado com urgência a Brasília para uma audiência reservada com o
futuro Presidente. Diplomata experiente, exercera durante a gestão anterior
o cargo mais alto da carreira do Serviço Exterior brasileiro, a Secretaria-
Geral do Itamaraty. Presumia-se que o conteúdo da conversa embutiria um
convite oficial, ou pelo menos assim esperava, intimamente, o Embaixador.
Ao chegar à capital federal, não se decepcionara. Em pouco mais de meia-
hora, o General João Baptista Figueiredo convidava-o a assumir em seu
governo a pasta das Relações Exteriores, com o compromisso de manter
as bases da administração anterior, adaptando-as às transformações do
cenário externo. Ramiro Elysio Saraiva Guerreiro tornava-se, então, o 105°
chanceler da história do País.
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Quando Figueiredo teve a certeza de que
seu nome seria o escolhido pelo governo
para a sucessão de Ernesto Geisel à frente
da Presidência da República, uma mudança
substancial já tivera início nas diretrizes básicas
da política externa nacional. Azeredo da Silveira,
que assumira o comando do Ministério das
Relações Exteriores anos antes, impusera uma
nova linha à atuação internacional do Brasil,
resgatando alguns dos pressupostos da Política
Externa Independente levada a cabo nos anos
imediatamente precedentes ao golpe militar de
1964. O pragmatismo responsável universalista
que reposicionara o país internacionalmente
abrira, de fato, novos mercados aos produtos
nacionais e estreitara laços econômicos,
políticos e culturais com países antes
menosprezados pela diplomacia brasileira.
A conjuntura internacional ao final
da década de 70, entretanto, sofrera
grave mudança. O forte crescimento
econômico do decênio, embutido na lógica
desenvolvimentista de “Brasil potência”
e estimulado pelo pesado endividamento
externo a juros flexíveis, não tardaria a
cobrar seu preço. O segundo choque do
petróleo e o conseqüente aumento das taxas
de juros norte-americanas teriam severas
implicações ao país. A América Latina,
subitamente, fora à bancarrota. Por todo o
continente, os recursos em caixa não eram
mais suficientes para honrar compromissos
frente a credores internacionais. Para o novo
ministro, uma grande questão: como fazer
política externa em um contexto restritivo
de contenção de despesas?
Eram muitos, pois, os desafios a serem
enfrentados por Saraiva Guerreiro à época
de sua assunção à chefia do Itamaraty. Nada
que o jovem Ramiro pudesse imaginar em
princípios de 1945, quando então com pouco
mais de 25 anos ingressara definitivamente nas
arcadas neo-coloniais daquele vistoso palácio
na antiga rua Larga, hoje avenida Marechal
Floriano. Primeiro colocado em um concurso
que também trouxera à carreira diplomática
nomes como Antônio Houaiss e João Cabral
de Mello Neto, Saraiva Guerreiro muito se
esforçara para estar ali. Alguns anos antes,
ao deparar pela primeira vez com a idéia
de seguir a carrière, a falta de conhecimento
em línguas estrangeiras o desestimulara. Ao
notar a dificuldade dos pais para custear-lhe
os estudos, dirigiu-se ao balcão do DASP
(o finado Departamento Administrativo
do Serviço Público, de herança getulista) e
perguntou sobre concursos para profissões
que lhe pagassem ao menos um conto e
cem mil-réis mensais, o suficiente para arcar
com as despesas da preparação. Acabou por
virar comissário de polícia. A experiência em
delegacias, contudo, durou pouco. Não tardou
a lograr aquele que considerava ser o maior de
seus objetivos: tornar-se um empregado, um
empregado do Itamaraty.
A expressão, que por sinal serve de
título a um livro de sua autoria, reflete
perfeitamente o espírito com o qual Ramiro
Saraiva Guerreiro se entregava à profissão.
Entreouvida, no princípio da carreira, de um
de seus primeiros chefes, Cyro de Freitas-
Valle, a alcunha de “empregado do Itamaraty”
seria levada consigo pelo resto da vida. Um
raciocínio simples e de fácil justificativa:
“Achei que a expressão era
enaltecedora: em primeiro lugar
porque nosso emprego era de
Eram muitos, pois, os desafios a serem enfrentados por
Saraiva Guerreiro à época de sua assunção à chefia do
Itamaraty. Nada que o jovem Ramiro pudesse imaginar
em princípios de 1945, quando então com pouco mais
de 25 anos ingressara definitivamente nas arcadas neo-
coloniais daquele vistoso palácio na antiga rua Larga,
hoje avenida Marechal Floriano.
_perfil
_11
dedicação exclusiva e não podíamos
mesmo servir a outro patrão; em
segundo lugar porque a palavra
‘empregado’, geralmente usada para
denominar domésticos, em minha
opinião, mesmo nesse caso é honrosa
para esses trabalhadores de que tanto
dependemos; em terceiro lugar, porque
sublinha o aspecto de disciplina que é
essencial à nossa carreira, embora ela
seja civil. Não há capacidade de mando
se antes não se obedeceu”.
Prestes a completar 90 anos, o
Embaixador vive sua aposentadoria ao
lado de Dona Glória, sua companheira há
mais de seis décadas, em um confortável
apartamento no bairro carioca de Ipanema.
Mantém-se cercado por fotografias da família
e de seus tempos áureos, enquanto, todos
os fins de semana, a juventude a caminho
da praia insiste em invadir a tranqüilidade
de sua rua. O olhar é carregado, mirando
um horizonte imaginário e saboreando, aos
poucos, à medida que vêm aos olhos, todos
aqueles momentos vividos tempos atrás. O
vigor físico talvez não seja o mesmo de há 30
anos, mas a memória e a lucidez continuam
a mesma do homem que viu, como poucos
e de forma tão próxima, a história do século
XX ser construída.
Entrando para
o serviço exterior
no apagar das luzes
da Segunda Guerra
Mundial, Ramiro
Saraiva Guerreiro
testemunhou a
construção de uma
das instituições
mais sólidas e mais
importantes do
século XX. Quando
se mudou para Nova
Iorque em meados de 1946,
o imponente prédio-sede das
Nações Unidas às margens do
East River ainda nem saíra do
papel. As reuniões da recém-
criada ONU ocorriam no
longínquo subúrbio de Flushing
Meadows, para onde, durante
alguns anos, deslocou-se o jovem Terceiro
Secretário para integrar os trabalhos da
Comissão de Direito Internacional.
As lembranças da carreira parecem
tornar-se mais claras à medida que,
pausadamente, em tom baixo e professoral,
a vasta experiência vai sendo passada
adiante. A convicção é absoluta ao assumir
o papel protagônico na solução da
contenda, que já se arrastava há alguns anos,
com a Argentina no âmbito da construção
de Itaipu. Os fatos não o desmentem. Ao
assumir a chancelaria, o debate acerca
da inviabilidade de serem construídas
duas hidrelétricas no mesmo Rio Paraná,
ainda mais considerando-se o tamanho
descomunal do empreendimento paraguaio-
brasileiro, parecia longe de ser resolvida.
As opiniões públicas de ambos os países,
insufladas pelo tom belicoso tradicional
dos governos militares, exigiam, cada qual
para seu lado, uma saída que satisfizesse os
interesses estratégicos internos.
O problema, porém, ao menos aos
olhos do recém-empossado Chanceler,
não parecia se resumir a aspectos práticos
envolvendo a construção de Itaipu. Para
Saraiva Guerreiro, parecia claro que qualquer
tentativa de consenso entre as partes não
seria possível enquanto o tema não passasse
a ser tratado de modo unicamente racional.
O excesso de carga política e emotiva que
envolvia a questão acabava por dificultar
quaisquer possibilidades de acordo, o qual,
para o novo governo, poderia ser facilmente
alcançado se fossem ressaltados apenas os
elementos técnicos. A estratégia, singela, mas
profundamente estudada, começara já no dia
de sua posse. Dentre todas as autoridades
presentes à Brasília, a que recebera
maior atenção fora o brigadeiro-do-ar
reformado Carlos Pastor, o nome à frente
da chancelaria argentina. Caberia aos dois
resolver o impasse em que se encontravam.
Em realidade, a conclusão de um acordo
tripartite já quase obtivera êxito ainda
na gestão anterior. Mas a insistência do
governo brasileiro em acrescentar duas
outras turbinas às dezoito inicialmente
planejadas acabara por levar as conversas
de volta à estaca zero. Sendo assim, sob a
nova perspectiva, havia que se garantir que
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as negociações regressassem, ao menos,
ao ponto em que já haviam anteriormente
chegado. E, afinal, perguntava-se o alto
escalão do Itamaraty, o quão essenciais
eram de fato essas turbinas adicionais? O
gigantesco projeto inicial já não era, mesmo
em longo prazo, suficiente para satisfazer a
demanda energética nacional?
Uma comissão de especialistas, a pedido
do novo ministro, encarregou-se das duas
perguntas. As respostas, vindas ainda em
meados de agosto de 1979, pouco mais
de quatro meses depois da posse do novo
Executivo, eram categóricas: não; não havia a
necessidade imediata de que o planejamento
inicial fosse aumentado. O Brasil, numa
proveitosa exibição de boa-vontade política,
poderia fazer concessões, demonstrando ao
governo argentino que trocava a expansão
de um dos projetos mais importantes para
o seu progresso em troca de uma boa
convivência com o mais importante de
seus vizinhos. O Embaixador, muitos anos
depois, quando instigado a analisar o tema,
hesitaria, humildemente, a assumir esse
passo como fundamental ao surgimento do
Mercado Comum do Sul, eixo central da
política externa brasileira contemporânea.
A historiografia, contudo, pode
indubitavelmente afirmar que naquela tarde
de 17 de outubro de 1979, reunidos em
Ciudad Stroessner (atualmente, Ciudad del
Este), os chanceleres Ramiro Elysio Saraiva
Guerreiro, Carlos Pastor e Alberto Nogués
abriam espaço para um novo momento nas
relações internacionais do Cone Sul.
O retorno à normalidade no que tange
ao relacionamento com aqueles que tão
usualmente denominamos “hermanos” fora
conquistado. É com amplo e orgulhoso sorriso
nos lábios que o Embaixador rememora o
que, pessoalmente, crê ser o ponto alto de sua
gestão. Brasil e Argentina, que durante grande
parte do século XX tanto haviam insistido
em dar as costas um ao outro, voltavam a
encontrar-se próximos, unidos, buscando,
como as décadas seguintes terminariam por
corroborar, um futuro comum.
Um novo momento se iniciara, e o
convite para que o general Figueiredo
realizasse, em maio de 1980, visita a Buenos
Aires era a prova irrefutável do sucesso da
aproximação. Há 40 anos um presidente
brasileiro não visitava oficialmente a
capital argentina e apenas dois já o haviam
feito anteriormente: Campos Sales, nos
primórdios da
República Velha,
e Getúlio Vargas,
antes mesmo de
instaurar o Estado
Novo. Figueiredo,
ademais, tinha uma
relação especial
com a cidade, uma
vez que morara ali
em sua juventude
acompanhando o
pai, então exilado
por ter sido um dos
comandantes da Revolução
Constitucionalista de 1932.
Dessa viagem, Saraiva
Guerreiro levaria para
sempre a singular aura de
emoção que a cercou. Em
seu ápice, João Baptista
Figueiredo, general de quatro
estrelas e antigo chefe do
SNI, chorara copiosamente
ao ser recebido com honras
no Clube Atlético San Lorenzo de Almagro,
para o qual torcera durante a adolescência.
A lua-de-mel, que passara mesmo
pela assinatura de diversos acordos de
cooperação entre os dois países seria,
entretanto, duramente abalada por um
episódio inesperado aos olhos do governo
brasileiro, episódio este que, nas palavras do
Embaixador, “foi uma das maiores surpresas
da minha carreira”. Em 02 de abril de 1982, a
Argentina, tentando salvar um regime militar
que começava a tombar sob o peso de sua
própria ambição, invadia as Ilhas Malvinas.
A notícia alcançara o Ministro das Relações
Exteriores ainda de pijamas, supreendendo-
o enquanto descansava em uma rápida
escala em Nova Iorque após viagem à
China. Os jornalistas que acompanhavam
a comitiva amontoavam-se na ante-sala
da suíte onde se hospedara o Chanceler,
esperando o posicionamento oficial do
governo brasileiro. O Ministro fora pego de
surpresa; e duplamente. Além do choque da
_perfil
_13
notícia em si, Saraiva Guerreiro era capaz de
relembrar vivamente o encontro que tivera
em Brasília, apenas alguns meses antes, com
sua contraparte argentina, agora representada
pelo doutor Nicanor Costa Méndez. Este,
embora afirmasse que a questão envolvendo
as Malvinas era de fato prioritária aos
argentinos, dera claras indicações de que
qualquer solução para o litígio seria buscada
por intermédio da Assembléia-Geral das
Nações Unidas.
O Embaixador, então, em um momento
que imediatamente identificara como um
dos mais delicados que já havia enfrentado,
tentou se concentrar, procurando uma saída
que satisfizesse minimamente os anseios da
imprensa e que permitisse, ao menos, que
algumas horas fossem ganhas até o regresso
ao Brasil. Uma declaração urgia e não havia a
quem recorrer.
Vinte e seis anos mais tarde, ao relembrar
a insólita situação, Ramiro Saraiva Guerreiro
repetiria, sorrindo largamente, o que já
dissera em seu livro de memórias: naquela
longínqua manhã de 1982 fora salvo por
um anjo da guarda. O pronunciamento
viera certeiro e sem hesitações. O
Brasil, em 1833, ainda à época regencial,
quando da invasão britânica às Malvinas,
reconhecera as ilhas como território
argentino. Historicamente, contudo,
o governo brasileiro posicionava-
se favoravelmente à solução pacífica
de quaisquer conflitos, estimulando,
portanto, que também esta contenda
fosse resolvida por meios políticos.
Esse fora o modo encontrado para
que a neutralidade brasileira fosse
plenamente embasada. Uma justificativa
histórica pendia para o lado argentino, mas
havia que se ressaltar, como predicado
intrínseco à nação brasileira, a busca por
desenlaces conciliatórios. Fazendo uso dessa
argumentação, e apesar de alguns atritos
inerentes à gravidade do conflito, as relações
bilaterais com ambas as partes conseguiram
ser mantidas de forma harmônica. Ademais, por
ser respeitado por ambas as partes, o Brasil,
de junho de 1982 a fevereiro de 1990, seria
o responsável por representar os interesses
argentinos junto ao governo de Londres.
A vida de Ramiro Elysio Saraiva Guerreiro
há muito já não é envolvida por alvoroços
de tal monta. Os tempos de chancelaria,
os tempos de crise econômica, os tempos
de embaixada, os tempos de empregado
do Itamaraty já ficaram para trás. Este
senhor que parcimoniosamente chega a sua
nonagésima década já parece ter realizado
tudo o que esperara de sua vida, talvez até
mais do que sonhara quando resolveu, jovem,
optar pelo Serviço Exterior nacional. Agora,
sempre em companhia de Dona Glória,
descansa confortavelmente em Ipanema,
acompanhado de notícias de seus dois
filhos, dois netos e um bisneto. Este último
certamente ouvirá falar do bisavô como
pertencente a um tempo fundamental para a
política externa brasileira, tempo,
este, definidor dos parâmetros
nos quais o País passou a basear
sua atuação internacional. Em
realidade, sua vasta experiência
talvez possa ser resumida em um
sublime leitmotiv:
“Esforçemo-nos pela
melhora da condição humana
conforme nossas convicções
do que é direito e do que é
necessário para a felicidade do
homem, mas não pensemos que nossas
convicções sejam absolutas e possam ser
eficazmente impostas. Lembremo-nos
ainda do que dizem os italianos: ‘La vita é
bella perché é varia’ – variada e difícil”.
Este senhor que parcimoniosamente chega a sua nonagésima
década já parece ter realizado tudo o que esperara de sua
vida, talvez até mais do que sonhara quando resolveu, jovem,
optar pelo Serviço Exterior nacional.
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EMBAIXADOR OVÍDIO
DE ANDRADE MELO,
Filipe Nasser
A coincidência é mesmo fortuita, à diferença daquela entre o nome
desta publicação e o apelido de juventude do ex-Chanceler cujo título
nobiliárquico batiza a academia diplomática brasileira – esta evidentemente
proposital. O Juca cujas memórias
1
estas páginas percorrem é o nom de
peintre” de outro notável diplomata brasileiro, bastante menos celebrado
nos livros escolares do que o patrono da diplomacia brasileira. Que não se
pretenda com isso apequenar a figura do Barão do Rio Branco e seu legado
para o ethos, thelos e, ufa!, modus operandi da política externa brasileira sob
o manto republicano: faltam exatamente homenagens ao outro Juca, ao
Embaixador Ovídio de Andrade Melo, nosso homem em Luanda às vésperas
da independência angolana.
O JUCA
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Juca é a assinatura que consta do rodapé
dos quadros – inspirados nos métodos e
imagery da arte naïf – que Ovídio de Andrade
Melo pinta desde 1969, quando era o Cônsul-
Geral do Brasil em Londres. O apelido teria
sido dado pela esposa, Dona Ivony, em alusão
à sua teimosia em pintar até as wee hours of
the morning” da capital britânica
2
.
Em Londres, vale a curiosidade, havia sido
chefe do Chanceler Celso Amorim, então em
seu primeiro posto no
exterior. Antes, Ovídio
havia servido no Consulado
em Toronto, na Embaixada
em Lima, no Consulado
em Cobe, na Missão junto
à OEA e nas Embaixadas
em Buenos Aires e em
Argel. No Ministério das
Relações Exteriores, havia
sido chefe da prestigiosa Divisão das Nações
Unidas e Chefe de Gabinete do Embaixador
Sérgio Corrêa da Costa quando Secretário-
Geral. Depois de Angola, seria ainda nosso
Embaixador em Bancoc e Kingston
3
.
A passagem que, no entanto, singularizou
a carreira do Embaixador Ovídio de
Andrade Melo foi seu protagonismo em um
dos momentos mais ousados da história
diplomática brasileira recente. Nos meses
que separaram o Tratado de Alvor, em 10
de janeiro de 1975, da independência formal
de Angola, em 11 de novembro do mesmo
ano, o então Cônsul-Geral em Londres foi
convidado a servir provisoriamente em
Luanda, por recomendação de Ítalo Zappa –
seu amigo de juventude, conterrâneo de Barra
do Piraí e então Chefe do Departamento
de África, Ásia e Oceania do Itamaraty. O
convite era para ser Representante Especial
do Brasil junto ao Governo de Transição de
Angola, que reunia os três movimentos de
libertação nacional. Ovídio seria também
responsável pela instalação do Escritório
de Representação brasileiro e, após a
independência, da futura Embaixada em
Luanda. A intenção do Governo brasileiro
era ser o primeiro país a chancelar o novo
status da ex-colônia lusa em sua estréia na
comunidade das nações.
Em Luanda, Ovídio mantinha interlocução
com as três forças que disputavam
a hegemonia política na Angola pré-
independência e que na capital tinham, cada
uma, o seu Primeiro-Ministro no governo de
transição: o Movimento Popular de Libertação
de Angola (MPLA), de Agostinho Neto,
inicialmente baseado na Tanzânia; a Frente
Nacional de Libertação de Angola (FNLA), de
Holden Roberto, sediado no Zaire; e a União
Nacional para a Independência Total de Angola
(Unita), cuja base era Nova Lisboa, localizada
no planalto central angolano. A decisão do
governo brasileiro de manter diplomatas em
Luanda, é preciso dizer, se deu na contramão
das outras repartições estrangeiras, que
fecharam suas portas ao rufar dos tambores
para o reinício da guerra civil.
Depois de meses de observação da
evolução da política local e tendo em vista
que havia elementos suficientes para levar a
crer que o MPLA havia expulsado de Luanda
os dois outros movimentos, o representante
brasileiro sugeriu ao Chanceler Azeredo da
Em Londres, vale a curiosidade,
havia sido chefe do Chanceler Celso
Amorim, então em seu primeiro
posto no exterior.
_16
1
O autor agradece aos Embaixadores Arnaldo Carrilho, ao Embaixador Fernando Reis e à Embaixatriz Ivony de Andrade Melo
pelos gentis depoimentos e, muito especialmente, ao próprio Embaixador Ovídio de Andrade Melo pela entrevista generosamente
concedida com a finalidade de redigir este ensaio. Agradece também os amigos Gustavo Pacheco, Carlos da Fonseca e João Vargas
pela inspiração, leitura e sugestões.
2
Entrevista com o Embaixador Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.
3
Cf. MRE. Anuário do Pessoal. Brasília: sem editora, 1992, p. 560
_17
Silveira que o Brasil deveria estar preparado
para reconhecer a vitória militar e o governo
de facto do MPLA. Pareceu a Ovídio o
mesmo que já era aceito pelos observadores
internacionais em solo africano: as eleições
previstas em Alvor seriam de impossível
realização e a força comandada por Agostinho
Neto já governava Angola em meio à guerra
civil. No primeiro minuto de 11 de novembro
de 1975, quando os panos rubro-verdes
deram lugar à bandeira da mais nova nação
africana alforriada dos grilhões coloniais, a
Embaixada brasileira se tornaria a primeira
missão diplomática permanente aberta na
capital, e estava apta para funcionar.
Ovídio havia desembarcado em Luanda,
de Londres, em janeiro de 1975. Só em
agosto expediu o telegrama em que
aventava a necessidade de reconhecer o
MPLA, vitorioso pelas armas, quando a data
prevista para a independência chegasse. O
despacho do Itamaraty informando que o
reconhecimento da independência angolana
pelo governo brasileiro seria feito em 10
de novembro, às 8.00 da noite, horário de
Brasília, de modo que, dada a diferença de
fusos horários, tivesse efeito exatamente
à meia noite em Luanda. Tal comunicado,
que só chegou às mãos de Ovídio na
véspera, informava que na mesma data do
reconhecimento seria levado o decreto
que determinava a abertura da Embaixada
do Brasil em Luanda para assinatura do
Presidente Geisel.
A decisão de o Brasil ter sido o primeiro
país a reconhecer Angola como Estado
independente, em meio a uma disputa
política local gradualmente contaminada
pelos vícios da Guerra Fria, importou gesto
de outrora rara autonomia, coragem e
ativismo diplomáticos. A manobra brasileira
foi decorrente exclusivamente de uma leitura
do interesse nacional gestada entre as quatro
paredes do serviço diplomático brasileiro,
desvinculada dos movimentos de maré do
conflito bipolar. Não seria exagerado atestar
que também reinventou o compromisso da
política externa brasileira com o continente
africano, até então claudicante quanto ao
apoio ao direito de autodeterminação dos
povos sob a guarida de Lisboa. Além disso,
a África lusófona se afigurava como porta
de entrada natural para a aproximação
com o continente africano, que, por sua
vez, constituía prioridade na estratégia
universalista da política externa de Geisel e
Azeredo da Silveira, cujas sementes haviam
sido lançadas por Jânio Quadros e Afonso
Arinos e pelos demais progenitores da
Política Externa Independente.
Operador e um dos artífices de um desses
flashes de nossa história diplomática em
que o Brasil desiste de ser espectador do
concerto das nações para integrar a orquestra,
Ovídio, no entanto, não desembarcou da
África coberto das glórias dispensadas, por
exemplo, ao seu “xará” Juca Paranhos após
conquistar, em Washington, a vitória no litígio
fronteiriço com a Argentina. Pelo contrário,
o Juca de Barra do Piraí foi sistematicamente
preterido em sua promoção a full-Ambassador
pelo estamento militar que então controlava
o Estado brasileiro e acusado de ter rendido
seu compromisso patriótico de ofício às suas
simpatias ideológicas.
Descortinemos o pano de fundo: na esteira
da Revolução dos Cravos, também posta
na rua para dar cabo ao império colonial
lusitano, o jovem governo de Lisboa reuniu
MPLA, FNLA e Unita, em Alvor, no sul de
Portugal, num esforço de conciliação política
que culminou na montagem de um Governo
de Transição tripartite. Em Alvor, foi agendada
a retirada das tropas portuguesas de
território angolano para 30 de abril daquele
ano e, mais importante, estabelecida a data
“mágica” de 11 de novembro de 1975 para
casar o direito de autodeterminação angolano
com sua respectiva soberania.
O movimento angolano não estava
historicamente isolado, na medida em que
então sucumbia, de uma vez por todas, o
império colonial português. Em setembro
de 1973, a Guiné-Bissau já havia declarado
unilateralmente sua independência; Portugal
a reconheceria no ano seguinte. Moçambique
perfilaria sua bandeira no pavilhão das
_17
_18
_perfil
Nações Unidas ainda em 1975. O Timor-
Leste, embora fosse logo em seguida ocupado
pela Indonésia, se preparava, naquele mesmo
contexto, para berrar sua liberdade. Ressaca
dos ventos de abril...
Em Angola, a despeito da solução de
compromisso arrancada de Alvor, em janeiro,
em prol da divisão das pastas ministeriais
do governo de transição entre as forças de
Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas
Savimbi, o março de 1975 testemunhou
o ressurgimento de combates fratricidas
que ressuscitaram a guerra civil, que só
seria apagada um quarto de século depois.
Livres dos combates com as metrópoles, os
postuladores do timão angolano fatiaram o
país em busca do controle territorial de suas
porções, em particular da capital, e deram
sinal verde para intervenções estrangeiras
transformarem o fim de uma batalha pela
descolonização em uma arena para os
gladiadores sob procuração de Moscou e
de Washington.
Acusado de “satélite do Kremlin” e de
tentar instalar uma república comunista no
oeste da África, o MPLA, despertou, desde
o seu nascedouro, calafrios em Washington.
Para contrarrestar o apoio soviético às forças
de Agostinho Neto, a CIA passou a financiar
o FNLA e,
posteriormente,
a Unita, sem
muita parcimônia.
O governo da
África do Sul,
aventurando-se
em política de
intervencionismo
regional de
legalidade
questionável, uniu forças à Unita, em outubro
de 1975, para avançar em uma blitzkrieg de
duzentos tanques em direção a Luanda e lá
tentar tomar o poder antes da independência.
Como reação aos movimentos de Pretória,
Havana passou a enviar tropas, recursos e
conselheiros militares para fortalecer o MPLA
4
.
Em agosto, entretanto, o MPLA já tinha
conquistado Luanda, expulsando os outros dois
movimentos e estancando militarmente seu
regresso. Com a vitória nos campos de batalha,
passou a executar funções administrativas
e a tocar o governo de transição sem
concorrentes. Com a aproximação da data
marcada para a independência, a questão
do reconhecimento estrangeiro tornava-se
seminal para a conclusão do processo de
descolonização e para a fundação do Estado
angolano independente. Só que o calcanhar de
Aquiles do MPLA era menos sua plataforma
de governo do que sua origem ideológica, esta
“exótica” ante os olhos do Ocidente.
A rápida missão do Embaixador Ítalo
Zappa a Tanzânia, Zâmbia e Etiópia, em
novembro de 1974 (anterior, portanto, da
abertura da Representação Especial), tinha
É razoável supor que, ademais de
deixar um legado para a nova política
africana da diplomacia brasileira, a
missão ovidiana importou altas doses de
sacrifício pessoal para seu protagonista.
_18
4
A cronologia da chegada das tropas cubanas a Angola é importante para compreender a batalha de argumentos em que
Ovídio Melo seria posteriormente envolvido. Henry Kissinger afirmara que soldados cubanos estavam em Angola desde os
enfrentamentos de março. Ovídio afirma que eles só chegariam com o advento da independência, constatando que, antes disso,
só seria possível “no máximo, admitir a presença de poucos conselheiros militares esparsos incógnitos na capital, ou ocultos no
interior do país. Quanto a tropas cubanas e artilharia, só desembarcaram em Luanda na noite mesmo da independência, depois
que a última autoridade portuguesa saiu de Angola, quando Agostinho Neto discursava em praça pública e proclamava Angola
livre. Esse reforço cubano saiu do aeroporto vazio e escuro e foi imediatamente transportado para a frente de batalha, a fim de
enfrentar e derrotar os tanques sul-africanos.
_19
como objetivo expor às lideranças angolanas
e moçambicanas, ainda então exiladas, a
mudança de posição brasileira em relação
à descolonização das antigas possessões
portuguesas. A decisão de reconhecer Angola
e de manter um representante brasileiro no
país durante todo o governo de transição
foi tributária dessa mudança de ventos. De
acordo com Ovídio,
“Silveira pretend[ia] antecipar o
relacionamento político do Brasil
com as colônias portuguesas que se
encaminhavam para a independência. E,
para isso, ainda no período de transição,
pensava em abrir em Lourenço Marques
[futura Maputo] e Luanda uma espécie
de embrião de Embaixada, para tratar
com os movimentos negros que
Portugal qualificasse como candidatos
ao poder.
5
Zappa tinha ciência de que a oscilação
brasileira em governos anteriores,
excessivamente ciosos das relações com
Portugal, era recebida com ressentimento
pelos libertadores e libertados africanos.
A Frelimo, por exemplo, dera evidentes
demonstrações de desconfiança quando o
Brasil buscou reconhecer a independência
de Moçambique. Recusou a abertura da
representação especial em Lourenço Marques,
porque preferia ver como o Brasil se
comportaria em Angola com respeito à isenção
proclamada pelos representantes brasileiros.
O reconhecimento de Angola viria, depois
de novembro
6
, a manobrar a má-vontade
moçambicana em relação à política africana
do Brasil e facilitaria, posteriormente, a maior
penetração do Brasil na África lusófona.
Antes de fixar-se em Angola, Ovídio se
deslocou para o Zaire, para encontrar-se
com Holden Roberto, para Tanzânia, onde
pela primeira vez entrevistou-se com o ainda
exilado Agostinho Neto, e, finalmente, para
o sul do país, para conversar com Savimbi.
Seu objetivo era contar com anuência das
três forças para abertura do Escritório de
Representação brasileiro. Das conversas,
colheu a aprovação dos três chefes, que
demonstraram variados graus de entusiasmo
quanto à iniciativa da diplomacia brasileira.
Notou que Agostinho Neto era o mais
preparado dos líderes e o mais interessado
e na nova política angolana do Itamaraty.
Savimbi – cuja morte, em 2002, poria
finalmente termo à guerra civil angolana
– pareceu-lhe o mais alheio e indiferente às
posições políticas que o Brasil havia tido ou
demonstrava querer ter com Angola e com a
África em geral.
A esta altura, é importante ressaltar
que o Brasil tinha se comprometido com a
neutralidade entre as três forças angolanas.
Segundo o Representante Especial, foi
somente a realidade dos fatos o motivo do
reconhecimento do governo do MPLA.
“Fui então para Angola com
instruções para ficar neutro, sem
favorecer qualquer partido, em eleições
ou lutas que ocorressem, como
executor de uma política que era
bem nacional apenas porque parecia
inspirada em Machado de Assis: ‘Ao
vencedor, as batatas’
7
.
O representante brasileiro se situava em
um conflito antes sobre autodeterminação
do que sobre ideologia política em que, não
obstante, a Guerra Fria estendia suas garras:
“O Brasil teve que agir e ser visto
como agindo como um observador
estrangeiro imparcial em um contexto
extremamente complicado. Ao final de
1975, [Angola] tinha se tornado palco
para agentes da CIA, tropas cubanas e
_19
5
ANDRADE MELO. Ovídio de. “O reconhecimento de Angola pelo Brasil em 1975” In ALBUQUERQUE, José Augusto
Guilhon de (org). Sessenta Anos de Política Externa, Vol III. O desafio geoestratégico. São Paulo: Editora NUPRI/USP, 2000, p. 350.
6
O Brasil reconheceu a independência de Moçambique apenas 4 dias depois, em 15 de novembro.
7
ANDRADE MELO (2000), p. 365.
_20
_perfil
sul-africanas, fundos dos EUA, China
e da URSS, mercenários, conselheiros
e serviços secretos. Os diplomatas
brasileiros tiveram que estabelecer
contato com os três movimentos
concorrentes de forma que sua
‘representação especial’ trabalhasse
como se não tivesse favoritos na
contenda doméstica angolana.
8
Com a escalada da guerra civil e
exercício do Governo do MPLA, o corpo
consular em Luanda foi desidratando.
Zappa, em passagem de 24 horas pela
capital angolana nas alturas de agosto
(momento em que o MPLA já tinha
tomado o poder), sugeriu o fechamento
do escritório de representação, ao que
Ovídio manifestou-se contrariamente.
O argumento de Ovídio era o de que o
reconhecimento da independência – ou a
legitimação do governo do MPLA, segundo
os críticos – equivaleria exatamente à
manutenção da política de neutralidade,
uma vez que negligenciar a vitória já
concretizada seria negar ao partido
de Agostinho Neto o direito
de igualdade garantido
desde a decisão de
instalar um
escritório no país. Assim Ovídio
demonstrou a lógica de seu raciocínio
diplomático:
“Se havíamos chegado a Luanda com
promessa de isenção, equanimidade,
neutralidade entre os movimentos
angolanos que se disputavam o poder –
como poderíamos em agosto voltar atrás
e retirar a Representação Especial, agora
que MPLA saíra nitidamente vencedor
e se aprestava, com indiscutível e amplo
apoio popular, a assumir o poder?”
9
É razoável supor que, ademais
de deixar um legado para a
nova política africana da
diplomacia brasileira, a
missão ovidiana
importou
altas
_20
_21
doses de sacrifício pessoal para seu
protagonista. Amparado por somente mais um
diplomata no Posto na maior parte do tempo,
nos primeiros seis meses, pelo Conselheiro
Cyro Cardoso e nos meses restantes, pelo
Secretário Raul de Taunay, Ovídio viu-se mais
que privado dos confortos da Londres que o
abrigara meses. Entretanto, manteve-se tenaz
em seu propósito de transformar o Escritório
do antigo Consulado numa futura Embaixada
e, principalmente, relatar ao Itamaraty as
minúcias da incrementalmente complicada
política angolana.
Em depoimento de quando já estava
assentada a poeira dos tempos, nosso homem
em Luanda rememora:
“Estava numa cidade sitiada, onde
faltava comida, água e luz de vez em
quando e onde as dificuldades de vida
eram tremendas. Somente a organização
de minha mulher conseguiu fazer com
que aquelas dezesseis pessoas que
estavam comigo pudessem manter-se
durante um ano em Angola, porque ela
montou um verdadeiro armazém e um
verdadeiro hospital. Tivemos de blindar
as janelas mais expostas a tiroteios, e
mesmo assim a casa do consulado foi
metralhada de alto a baixo.
10
Mais do que desconforto físico ao
representante brasileiro, contudo, o
pioneirismo do reconhecimento da
independência angolana cobrou ao
desenho de política externa de Geisel e de
Silveira e, particularmente, ao Embaixador
Ovídio de Andrade Melo críticas das
metralhadoras mais conservadores da
sociedade brasileira. Neste episódio em
particular da “longa noite” da ditadura
militar brasileira, cuja afeição por qualquer
movimento de esquerda era insuspeita,
uma decisão de Estado lastreada por um
cálculo diplomático foi interpretada por
setores mais “realistas do que o rei” como
aproximação com os comunistas.
O Ministro do Exército Sylvio Frota,
na qualidade de porta-voz da linha-dura,
enxergou uma ameaça soviética embutida
na vitória de Agostinho Neto projetando-se
transatlanticamente contra o Brasil. Frota
abriu o manifesto que divulgou em 1978,
quando tentou depôr Geisel, com a seguinte
referência: “convenci-me de que Geisel
estava levando o Brasil para o comunismo
quando reconheceu Angola”. E, depois, em
livro publicado postumamente, desferiu:
“Não se compreende como o
governo brasileiro, representante de
uma revolução visceralmente contrária
ao marxismo, fosse o primeiro, no
concerto universal das nações, a
estender a mão ao governo de Luanda,
de legitimidade discutida, quando
Portugal, onde pululavam os comunistas,
só o faria depois de três meses.
11
O Estado de S. Paulo atribuiu a decisão à
suposta filiação esquerdista de Ovídio, Zappa
e Silveira, submetendo-lhes as lealdades antes
a Moscou do que a Brasília:
“O reconhecimento extemporâneo
[da independência de Angola] foi inspirado
pelos embaixadores Azeredo da Silveira,
Ítalo Zappa e Ovídio de Andrade Melo.
Os três eram esquerdistas notórios e
favoráveis a um alinhamento automático
com os interesses e projetos da União
Soviética.
12
_21
8
Tradução livre de SPEKTOR, Matias (2006), p.190.
9
ANDRADE MELO (2000), p. 373.
10
Fala de Ovídio de Andrade Melo em: Homenagem ao Embaixador Ovídio de Andrade Melo e, em caráter póstumo, ao
Embaixador Ítalo Zappa. In REBELO, Aldo, FERNANDES, Luis & CARDIM, Carlos Henrique. Seminário Política externa para o século
XXI. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004, p. 551.
11
FROTA, Sylvio. Ideais traídos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2006, p. 185.
12
Editorial de O Estado de S. Paulo, 1º/10/1987.
_22
_perfil
A propósito da opinião de Frota e da
disputa inter-burocrática em questão, Ovídio
ponderou, talvez com algum exagero:
“Havia uma grande discordância
entre o Ministério da Guerra e o
Itamaraty, felizmente sustentado este
pelo Presidente. Mas como o MPLA,
desde agosto de 1975 até hoje, se
encontra em poder em Angola, é de
se ver que, se tivesse prevalecido na
política externa a opinião de Sylvio
Frota, talvez até hoje não tivéssemos
reconhecido Angola.
13
Em face das pressões domésticas ante a
possibilidade de reconhecimento de Angola
com um governo comunista, suspeita-se que
a sugestão do Embaixador Zappa de fechar a
representação tenha sido causada menos por
solidariedade fraternal quanto às precárias
condições em que Ovídio trabalhava do que
por um passo atrás na decisão brasileira
– opinião esta repudiada contundentemente
pelo próprio Zappa
14
. Ovídio seria ainda
acusado de ter
negligenciado a
presença de tropas
cubanas em Angola,
após Kissinger
ter denunciado,
já no varrer de
praças das festas
de independência,
a presença de
volumosas levas
de emissários de
Castro ao país
15
.
No calor da hora,
o Representante
Especial foi também
envolvido numa
polêmica quanto a ter desacatado as
instruções do Itamaraty a propósito do
reconhecimento, embora a documentação
oficial adormecida nos porões do Ministério
das Relações Exteriores proteja sua
fidelidade ao Itamaraty. Despacho telegráfico
de 6 de novembro de 1975 do Itamaraty
para o Escritório de Representação
esclarece: “O Governo brasileiro, que já
mantém essa Representação Especial em
Luanda, pretende reconhecer no dia 11 o
Governo que vier a ser instalado em Luanda.
Vossa Excelência poderá antecipar esta
informação a esse Governo.
16
A publicação de In search of enemies”, em
1978, de John Stockwell, chefe da CIA em
Angola durante o episódio, adicionaria lenha
à fogueira: além de desnudar as artimanhas
da agência de inteligência norte-americana
para fortalecer o FNLA, reconheceu que a
posição brasileira estava coerente com a
realidade dos fatos e que, por confrontar
seus interesses no país, admite que a CIA
teria pressionado o Governo brasileiro
a sacar Ovídio de Luanda. O Itamaraty
_22
13
Entrevista com Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.
14
Cf. PINHEIRO, Letícia. Foreign policy decision-making under the Geisel government: the President, the military and the foreign
policy. London School of Economics and Political Science, Tese de Doutorado, 1994, p. 284-5.
15
Cf. ANDRADE MELO (2000), p. 379-80.
16
Despacho telegráfico n. 393, 6/11/1975. Reproduzido em GARCIA, Eugênio Vargas (org.). Diplomacia Brasileira e Política
Externa: Documentos Históricos (1493-2008). Brasília, 2008, no prelo.
A publicação de In search of enemies”,
em 1978, de John Stockwell, chefe da
CIA em Angola, adicionaria lenha
à fogueira: (...), reconheceu que a
posição brasileira estava coerente com
a realidade dos fatos e que, (...), admite
que a CIA teria pressionado o Governo
brasileiro a sacar Ovídio de Luanda.
_23
retrucou, por meio de seu porta-voz,
que jamais acataria pressões de governos
estrangeiros e que Ovídio agiu seguindo
ordens expressas do Governo brasileiro.
Ovídio, entretanto, havia de fato sido
substituído de Angola em um processo que
não foi bem esclarecido.
Pressionados pela miopia ideológica (ou
interessada) dos que queriam enxergar
um títere soviético sentado no Gabinete
do Chanceler brasileiro, Geisel e Azeredo
da Silveira mantiveram a decisão de
reconhecer o “Governo instalado”
17
em
Luanda, mas optaram por imprimir, em
um segundo momento, um low profile” às
relações bilaterais. Para isso, em telegrama
particular, Silveira recomendou que
Ovídio Melo evitasse manter contato com
autoridades do Governo angolano. Ovídio
respondeu que isso era impraticável, uma
vez que a Embaixada do Brasil era a única
que estava instalada e ainda “porque todas
as novas autoridades tendiam a procurar
insistentemente a colaboração do Brasil
com o novo Governo”
18
. A intenção de
Silveira era baixar a temperatura dos
críticos, sobretudo dos círculos militares,
sem, ao mesmo tempo, melindrar Luanda
e Maputo.
Silveira optou então, por retirar Ovídio
de Angola, inclusive porque, desde a
Independência, o Juca de Barra do Piraí
queria deixar o serviço provisório em
Luanda. Ovídio Melo nota, a propósito da
situação em que foi deixado em Angola que:
“O Itamaraty por esquecimento
ou prudência não levou o decreto
de abertura da Embaixada do
Brasil em Luanda para assinatura, e
esqueceu de comunicar este fato ao
representante em Luanda. Assim, na
data da independência a Embaixada
do Brasil em Luanda foi aberta e o
fato comunicado ao Itamaraty. Passei
a ser designado como Encarregado
de Negócios de uma Embaixada que
legalmente ainda não existia”.
19
O decreto seria finalmente assinado nas
derradeiras horas daquele 1975. E depois
de ser Representante Especial em Angola,
comissionado e apresentado como Embaixador;
depois também de ser nomeado como
Embaixador para as festas da Independência,
Ovídio Melo afirma que não poderia aceitar
ser rebaixado a Encarregado de Negócios na
Embaixada criada após a Independência.
20
Silveira designou, então, por telegrama ao
Ministro das Relações Exteriores de Angola,
José Eduardo dos Santos, o então Conselheiro
Affonso Celso de Ouro Preto como novo
Encarregado de Negócios. Ovídio esperou que
Ouro Preto chegasse à capital angolana e, então,
passou-lhe o serviço. No entanto, ao chegar
a Lisboa em seu regresso ao Brasil, Zappa
e Silveira pediram-lhe para voltar a Luanda
imediatamente, a fim de descobrir por que
Ouro Preto não fora devidamente credenciado
como novo representante do Brasil. Ovídio
voltou então para Luanda, teve um encontro
com o Ministro Santos, e logo ficou esclarecido
que Affonso Ouro Preto havia sido confundido
com Silvestre Ouro Preto – seu meio-irmão e
ex-Embaixador do Brasil em Lisboa, que havia
visitado Angola dez anos antes e, na ocasião,
fizera um discurso de teor colonialista do
qual os novos líderes angolanos não haviam
se esquecido. Entre idas e vindas, Ovídio pôde
finalmente partir de Luanda. O Itamaraty
informou que a partida era por “motivos de
saúde” do Representante – o que, segundo
Ovídio Melo, era de fato verdadeiro.
Assim Letícia Pinheiro interpreta a
simbologia política da maneira como foi
conduzida a saída de Ovídio de Angola:
_23
17
A Nota de 10/11/1975, cuidadosa com a linguagem empregada, adota o termo “Governo instalado”, omitindo a designação
específica do MPLA, o que não deixa de ser consoante à política inicialmente concebida.
18
Entrevista com Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.
19
Idem.
20
Ibidem.
_24
“Ao recusar fornecer explicações
adicionais [sobre sua saída de Luanda],
o Itamaraty fez de Ovídio de Melo um
bode expiatório. Deliberadamente ou não,
o Itamaraty possibilitou a interpretação
de que o reconhecimento do governo
do MPLA poderia ser enxergado como
resultado de um erro de interpretação
humano e, portanto, punível.
21
Com o beneficio do retrospecto, a
História e a historiografia redimiram o
gesto – executado por Ovídio em Luanda
e pilotado por Zappa e Silveira de Brasília
– quanto ao que foi percebido à época
como inconseqüência esquerdista da
diplomacia brasileira, despida de qualquer
sentido de pragmatismo. O fato de que o
MPLA permanece no poder até os nossos
dias é argumento eloqüente do acerto da
diplomacia brasileira.
Elio Gaspari, em sua obra de fôlego sobre
o regime militar brasileiro, compreendeu
a rationale de um gesto que, mais que
tributário de colorações ideológicas, se
pautou estritamente por uma leitura do
interesse nacional:
“A maior potência do mundo
e a mais poderosa nação africana
[África do Sul] haviam-se metido
numa encrenca porque acreditaram
que a disputa angolana deveria ser
estudada dentro de uma construção
geopolítica. As duas desprezaram a
opinião de seus diplomatas. O Brasil,
país governado por militares, evitara
o erro graças à audácia de dois
funcionários do Itamaraty (Ovídio
e Zappa), à tenacidade de Azeredo
da Silveira e à mistura de teimosia e
antiamericanismo de Geisel.
22
Paulo Fagundes Vizentini parece concordar
com a pertinência do cálculo brasileiro:
“Angola era um dos países
mais interessantes para o tipo de
relacionamento que o Brasil buscava.
Sua riqueza em petróleo, minério de
ferro e diamantes, e a língua comum,
permitiria e facilitaria o intercâmbio
comercial, técnico e de know how.
O Brasil, a partir dos estudos de
Zappa, concluíra que o governo do
MPLA tinha mais chance de vencer a
disputa. Ora, o cálculo brasileiro foi
no sentido de ganhar a confiança do
MPLA o mais cedo possível, até para
contrabalançar uma influência excessiva
dos soviéticos.
23
Kissinger reconheceu em seu livro de
memórias o equívoco da política externa
norte-americana para Angola e o mérito da
independência diplomática do Brasil na questão.
“Num ponto crucial da crise
angolana, quando reclamei por que o
Brasil reconhecera o MPLA (...), Silveira
lembrou-me que o interesse nacional
brasileiro estendia-se às possessões
portuguesas na África. Era uma
continuidade que nenhuma outra antiga
colônia reivindicara. O Brasil se sentia
livre para consultar seus interesses
e sua história, até porque nós não o
havíamos consultado nem informado a
respeito de nossas intenções.
24
A pergunta que não quer calar: teria
o Embaixador Ovídio de Andrade Melo
favorecido o MPLA por inspiração ideológica,
ferindo, dessa forma, o princípio de
neutralidade em assuntos domésticos de
outras nações e deliberadamente tomando
partido na política angolana? Há suficientes
_perfil
_24
21
PINHEIRO (1994), p.303.
22
GASPARI, Elio. O sacerdote e o feiticeiro: a ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 155.
23
VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998, p. 243.
24
Tradução livre de KISSINGER, Henry. Years of renewal. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1999, p. 801.
_25
_25
evidências na historiografia de que não.
Mesmo que tivesse tomado simpatia pessoal
pelos líderes daquele movimento, a vitória
militar e o governo de facto do grupo de
Agostinho Neto era incontestável. Ovídio
havia sido, de toda maneira, instruído explícita
e formalmente pelo Itamaraty a reconhecer o
governo instalado em Luanda como condutor
da independência angolana.
Avaliando o mérito do reconhecimento
da independência angolana, a ousadia da
manobra de Silveira, Zappa e Ovídio residiu
na precisão da análise política local em
detrimento da escravização à moldura de
pensamento da Guerra Fria e, mormente,
na disposição da diplomacia brasileira em
participar nas relações internacionais de
modo proativo. Consolidou a mudança
de leme a respeito da descolonização e
vislumbrou a ampliação das fronteiras
diplomáticas brasileiras. Representou uma
tentativa de franquear ao Brasil um acesso
inédito, de forma particular, à Angola
independente e, de modo geral, enviava
um sinal de aproximação diplomática
com as antigas possessões portuguesas.
Era mais um lance da opção pelas vias
atlântica, africana e, no limite, universalista
da política externa de Geisel, que seria
logo mais aprofundada por Figueiredo.
Tais vertentes seriam redesenhadas pela
política externa do Presidente Lula, cuja
ação diplomática também tem colhido os
frutos da semente plantada por Silveira,
Zappa e Ovídio – legado reconhecido pelo
atual Chanceler brasileiro:
“Nas conversas que mantive [em
Angola, em 2003], foi recordado
o significativo fato de ter sido o
Brasil o primeiro país a reconhecer
o governo angolano, bem como
o papel desempenhado pelo
embaixador Ovídio de Andrade
Melo nos primeiros momentos do
relacionamento bilateral.
25
Nas palavras do nosso homem em Luanda,
“ao abrirmos um embrião de Embaixada num
país que ainda não era independente”, com
quem o Brasil tinha uma “dívida histórica”,
de modo a garantir ingresso privilegiado à
diplomacia brasileira, “pudemos fazer uma
coisa diferente na política externa”.
26
O estilo naïf que inspira a obra artística
do Embaixador Ovídio serve também como
metáfora para sua trajetória profissional,
sobretudo no que se refere a sua “hora
de estrela” lispectoriana. Tal qual a pintura
naïf, caracterizada pela técnica algo
errante, cores vibrantes, simbologia de
subversão e temário da “cidade baixa”, o
gesto diplomático do reconhecimento da
independência de Angola e do Governo
do MPLA não careceu de simbolismo nem
de certa “ingenuidade subversiva” em seus
contornos – se não do ponto de vista
geopolítico, ao menos do ângulo de sua
aceitação nos corredores daquela hora da
política brasileira.
Como a Macabéia de Clarice Lispector,
seu ápice foi também o motivo de seu
ocaso: sacado de Luanda por força de
pressões de todos os lados, Ovídio
amargou o ostracismo em duas embaixadas
que considerou “de menor porte”. Sua
passagem por Angola não somente lhe
havia imposto privações pessoais, como
lhe rendeu indisposição com o estamento
mais conservador do Itamaraty e da
República sob o chicote militar. Apesar
de ter protagonizado momento da
maior importância diplomática para o
Brasil, foi preterido em mais de noventa
oportunidades de promoção, tendo podido
anexar plenamente o sufixo “Embaixador”
ao seu nome somente após a desmontagem
do regime militar.
Zappa foi promovido a Ministro
de Primeira Classe em dezembro de
25
AMORIM, Celso. O Brasil e o “renascimento africano”. In Folha de S. Paulo, 25/3/2003.
26
Entrevista com Ovídio de Andrade Melo, Rio de Janeiro, 17/5/2008.
_26
_perfil
_26
1975, pouco após o reconhecimento de
Angola, tendo sido, em seguida, nomeado
Embaixador do Brasil em Maputo. Faça-
se justiça: considerado dos diplomatas
brasileiros mais talentosos, seria o único
de sua estatura naquela geração a não
ser agraciado com as medalhas militares.
Tampouco foi despachado como o
representante brasileiro nos postos ditos de
“elite”. Depois de Moçambique, seguiu para
Pequim, Havana e Hanói
27
– o que, pode-se
presumir, estava, ao menos, à altura de seu
professado terceiro-mundismo.
“Já Ovídio, foi enviado a Bancoc como
embaixador, de acordo com seu próprio
desejo, depois de lhe terem oferecido
Paramaribo, ambos considerados
postos de menor importância. Por
razões que só a necessidade de
ostracizá-lo podem explicar, sua
promoção ao mais alto échelon na
hierarquia da carreira diplomática,
cuja promulgação era esperada, só foi
assinada dez anos depois.
28
Em outras palavras, a despeito de
ter protagonizado um lance ímpar na
história diplomática brasileira ao custo
de altíssimo grau de sacrifício pessoal,
mesmo autorizado por um Presidente-
General – ou melhor, cumprindo instruções
deste –, foi punido profissionalmente, ao
invés de ter sido brindado com as glórias
correspondentes. Ovídio deu testemunho
de punho próprio:
“Tive minha carreira truncada
pelos brasileiros. Eu, que até então
tinha [tido] postos importantes, passei
a ter postos bastante agradáveis, mas
sem grande peso no contexto da
27
Cf. MRE (1992), p. 332.
28
Tradução livre de PINHEIRO (1994), p. 305
29
Fala de Ovídio de Andrade Melo em: Homenagem ao Embaixador Ovídio de Andrade Melo e, em caráter póstumo, ao
Embaixador Ítalo Zappa. In REBELO, Aldo, FERNANDES, Luis & CARDIM, Carlos Henrique. Seminário Política externa para o século
XXI. Brasília: Câmara dos Deputados, 2004, p. 552.
30
GASPARI, Elio. “O teimoso continua na briga. É Juca” In Jornal do Commercio, 23/01/2000.
política brasileira. Fui Embaixador na
Tailândia [sem passar] pelo Senado.
O Itamaraty tirou-me do Senado,
alegando que eu era um mero
Cônsul sem importância, e que ia
para um país sem importância. Então,
dos países com os quais tínhamos
relações, a Tailândia passava a ser sem
importância. Depois fui para a Jamaica,
e o mesmo truque foi aplicado. Devo
dizer que vivi 76 anos até hoje,
dos quais 50 anos trabalhando no
Itamaraty. Mas se houve um ano
em que vivi intensamente, foi o de
1975, que passei em Angola. Aprendi
sobre a vida, sobre o Itamaraty, sobre
política, dez vezes mais do que tudo
o que fiz no Itamaraty nesses anos
todos de vida.
29
“Campeão sem faixa” da diplomacia
brasileira, é forçoso constatar que o
Embaixador Ovídio de Andrade Melo não
goza de reconhecimento proporcional ao
pioneirismo e heterodoxia da missão que,
a um só tempo, distinguiu e paralisou sua
carreira. E de cujos resultados nossa agenda
diplomática se beneficia até nossos dias.
Gaspari fechou questão:
“Por conta de seu rigor
profissional e de suas opiniões
políticas, Ovídio arrumou no
Itamaraty todas as encrencas a que
tinha direito. Tiraram-no de Angola
de forma punitiva, mandaram-no para
a Tailândia e de lá para a Jamaica.
Finalmente, quando o embaixador
aposentou-se, o andar de cima
parecia ter-se livrado de Ovídio de
Melo. Engano. Ele continua na briga,
como Juca, um teimoso.
30
_27
_28
_especial
PRESOS NO
EXTERIOR
Adriana Telles Ribeiro
Michel Lahan Neto
_29
O contínuo aumento do número de nacionais detidos no exterior
instiga reflexão sobre os desafios da política de assistência consular do
Ministério das Relações Exteriores (MRE). Dos detidos por imigração
irregular aguardando deportação nos Estados Unidos aos encarcerados em
diferentes países da Europa e da América do Sul por tráfico de drogas, o
objeto da análise é amplo e heterogêneo.
_30
_especial
Exatamente quantos brasileiros estão
detidos no exterior? Se por detidos
pensarmos primeiramente naqueles
indivíduos cumprindo pena por delitos
e crimes cometidos em outros países, as
estatísticas são imprecisas, dado que:
• nem todos os países cumprem a exigência
da Convenção de Viena de 1963, que obriga os
estados a informar ao detido sobre seu direito
a solicitar assistência consular de seu país, bem
como informar ao país de origem do cidadão
sobre sua prisão, caso este o solicite
1
;
• alguns brasileiros optam por não informar
às autoridades brasileiras sua detenção; e
• em alguns postos existem dificuldades
para a obtenção de dados e estatísticas sobre
presos brasileiros.
São apenas indicativos, portanto, os números
de nacionais presos relatados anualmente
nos Relatórios Consulares Anuais do MRE,
que constituem a principal fonte oficial
citada na imprensa. Estes números estimam
a população presidiária brasileira no exterior
em aproximadamente 2.200 pessoas, com as
maiores concentrações nos Estados Unidos, na
Espanha, no Japão e na Guiana Francesa
2
.
Presos por tráfico de drogas
De acordo com informações da Divisão de
Assistência Consular, aproximadamente 65% dos
nacionais cumprindo pena no exterior foram
detidos por tráfico de drogas, principal motivo
de condenação de brasileiros na Europa e na
América do Sul
3
. Na jurisdição do Consulado
em Madri, por exemplo, a maioria dos cerca de
300 presos brasileiros aguardando julgamento
ou cumprindo pena em estabelecimentos
penitenciários respondem por delitos correlatos
ao tráfico de entorpecentes.
A maior parte dos brasileiros condenados
por tráfico de drogas é do sexo masculino,
com idade entre 25 e 35 anos, baixa
escolaridade e sem antecedentes criminais. Na
maioria dos casos, atraídos pela recompensa
financeira oferecida por membros das
quadrilhas de redes ilícitas, aceitam o risco
de servirem como “mulas” no transporte da
droga e são presos nos aeroportos ao tentar
embarcar ou ao chegar ao país de destino.
Presos por imigração irregular
Nos Estados Unidos, a maioria dos
brasileiros presos estão detidos por imigração
irregular
4
. Por não existir sistema integrado
de informação sobre prisioneiros nas três
esferas governamentais (federal, estadual e
municipal), ou entre as diferentes agências
de repressão, são imprecisos os números
de brasileiros detidos nesses centros e,
muitas vezes, torna-se impossível localizar
ou identificar nacionais presos à espera de
deportação. Sabe-se, no entanto, que vem
crescendo o número de solicitações de
assistência consular para brasileiros atrás de
grades naquele país, aguardando deportação
em centros de detenção sob custódia das
autoridades imigratórias.
Geralmente o imigrante irregular detido não
conhece seus direitos, em muitos casos não
tem acesso à autoridade consular brasileira e é
65% dos nacionais cumprindo pena no
exterior foram detidos por tráfico de drogas
1
Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas e Consulares de 1963, artigo 36: “Há obrigação da autoridade local de
informar ao cônsul da prisão de seu nacional, subordinado ao pedido do interessado”.
2
Relatório Consular Anual do Ministério de Relações Exteriores, 2006, 2007.
3
Fonte: Arquivos do Núcleo de Assistência a Brasileiros (NAB) da Divisão de Assistência Consular, MRE.
4
Idem.
5
www.immigrationforum.org
_31
transferido súbita e arbitrariamente de prisão
em prisão por todo o enorme território dos
EUA em curto espaço de tempo, dificultando
ainda mais as visitas de advogados ou agentes
consulares. De acordo com a ONG norte-
americana “National Immigration Forum”
5
,
os presos por imigração irregular constituem
o grupo encarcerado mais vulnerável nos
Estados Unidos, pois, diferentemente daqueles
enquadrados na justiça criminal, são tratados
na esfera civil e, como tal, têm negados direitos
assegurados especificamente a presos. O uso
crescente de videoconferências reduz ainda
mais o acesso dos réus ao juiz.
Geralmente o imigrante irregular detido não
conhece seus direitos e em muitos casos não
tem acesso à autoridade consular brasileira.
Falsificação de documentos,
garimpo irregular e pequenos
delitos
Há, ainda, concentrações de brasileiros
detidos por outros motivos. Na Europa,
principalmente em Portugal e na França,
são muitos os brasileiros condenados pela
falsificação e o contrabando de documentos.
Já na Guiana Francesa, o principal motivo de
condenação de brasileiros é o garimpo ilegal,
reprimido severamente pela gendarmerie local
de acordo com a atual política francesa. No
Japão, a maioria dos brasileiros presos são
_32
jovens que praticaram pequenos delitos
6
.
Naquele país, a chamada delinqüência juvenil
é conseqüência direta de dificuldades de
adaptação e ausência de perspectivas para
muitos adolescentes decasséguis.
Outras prisões
Se por “detidos no exterior”
compreendemos, além daqueles que estão
cumprindo pena, todos os brasileiros que
estão sendo explorados e se encontram
em virtual situação de prisioneiros, nossos
números aumentam. Pois entre os brasileiros
que vão em busca de melhores condições
no exterior, em percentual crescente desde
os anos 80, destaca-se um grupo formado
em sua maioria por adolescentes e mulheres
que se descobrem vítimas do tráfico
internacional de pessoas
7
, aliciadas em sua
maioria para fins de exploração sexual.
Convidadas para trabalhar no exterior,
todo ano milhares de brasileiras são levadas
para casas de prostituição. Seus documentos
são confiscados pelos aliciadores – sob
o pretexto de pagamento da viagem, da
moradia, da alimentação – e elas ficam presas
em cárceres privados, já que a “dívida” será
sempre superior aos ganhos. Há centenas
de denúncias de brasileiras mantidas
prisioneiras em casas de entretenimento,
cárceres privados e áreas de garimpo -
principalmente em países como Espanha,
Holanda, Venezuela, Itália, Portugal, Paraguai,
Suíça, Estados Unidos, Alemanha, Guiana
Francesa e Suriname
8
.
_especial
_33
As brasileiras saem principalmente
das cidades litorâneas (Rio de Janeiro,
Vitória, Salvador, Recife e Fortaleza),
mas há também numerosos registros de
casos nos estados de Goiás, São Paulo,
Minas Gerais e Pará. Ramificação do
crime organizado, as quadrilhas do tráfico
de pessoas se aproveitam de condições
sociais desfavoráveis e de expectativas das
brasileiras em prosperar para jogá-las em
um regime servil e desprovido de qualquer
garantia de direitos. O crime organizado
muitas vezes se vale de expedientes
aparentemente lícitos, tais como proposta
de casamento repentina, moradia no
estrangeiro, convites para trabalhar no
exterior ou para viajar para fora do país,
para aliciar brasileiras, a maior parte com
idade entre 18 e 30 anos. Cabe lembrar,
com relação às redes ilícitas envolvidas no
tráfico de pessoas, que o consentimento do
indivíduo não descaracteriza o crime.
Assistência consular a presos no
exterior – o papel do Itamaraty
A política de assistência a brasileiros no
exterior está delineada no terceiro capítulo
do Manual de Serviço Consular e Jurídico
(MSCJ) do MRE (veja box) e é executada pela
equipe do Núcleo de Assistência a Brasileiros
(NAB) da Divisão de Assistência Consular
(DAC). Criado em 1995, o NAB é formado
por uma equipe de funcionários treinada
e dotada de meios para prestar assistência
consular a nacionais no exterior. Diariamente,
funcionários atendem a uma diversidade de
casos que dizem respeito, principalmente,
à localização de brasileiros desaparecidos,
denegação de entrada em outros países,
detenção em aeroportos, auxílio a enfermos e
desvalidos e assistência humanitária a presos.
Com relação aos brasileiros cumprindo
pena no exterior, funcionários da DAC
costumam solicitar aos Postos que designem,
De acordo com o Manual do Serviço Consular e Jurídico, cabe à autoridade consular:
1) prestar assistência aos brasileiros que se acharem envolvidos em processos criminais;
2) estabelecer contatos com diretores de penitenciárias situadas em sua jurisdição e manter relação
atualizada de presos brasileiros e andamento dos seus respectivos processos;
3) servir, caso solicitada, de ligação entre os prisioneiros e suas famílias, seja no Brasil ou no exterior;
4) nos postos onde é elevado o número de prisioneiros brasileiros, inteirar-se das condições de
saúde e das instalações onde estejam detidos e, ainda, instruir funcionário a visitar periodicamente os
prisioneiros, mantendo fichário atualizado e enviando relatórios periódicos; e
5) assegurar, na medida do possível, aos brasileiros detidos ou encarcerados, acesso aos serviços
consulares.
Fonte: Manual do Serviço Consular e Jurídico do MRE, Cap. 3 - Assistência e Proteção a Brasileiros - Seção 3.1.23.
6
A criminalidade juvenil dos brasileiros é a segunda maior entre os estrangeiros no Japão.
7
De acordo com o Decreto 5.017 de março de 2004, por “tráfico de pessoas” entende-se o recrutamento, transporte,
transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao
rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou
benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração – seja para fins
de prostituição, trabalho ou serviços forçados, escravatura, servidão ou a remoção de órgãos.
8
Leal, Maria Lúcia (org.) “Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual
Comercial” – PESTRAF: Relatório Final, 2002.
9
Tel 354 Brasemb Bangkok, 20/07/2007.
_34
na medida do possível e com a regularidade
necessária, funcionários consulares a fim
de realizar visitas periódicas aos cidadãos
detidos nas respectivas jurisdições. Indagados
sobre a eficácia deste atendimento,
servidores lotados na DAC afirmam que há
dois problemas graves para o cumprimento
de tal atribuição.
O primeiro diz respeito a limitações
de recursos humanos. O Consulado em
Boston, por exemplo, em cuja jurisdição
existem mais de 200 cidadãos brasileiros
presos por imigração irregular, conta com
apenas uma única funcionária responsável
por percorrer todos os presídios em locais
diferentes e distantes, o que se torna uma
missão humanamente impossível. A situação
também é especialmente grave na Guiana
Francesa, onde a pequena repartição
consular tem dificuldade em fornecer
atendimento aos 140 brasileiros lá detidos,
a maioria por garimpo irregular.
Já em outros casos, o problema diz
respeito à falta de priorização do assunto
na atividade consular dos postos. Análise
de um período de dez anos dos arquivos
de assistência consular confirma esse
quadro, pois a assistência prestada pode
oscilar em função do interesse maior
ou menor de funcionários servindo em
determinados postos.
Quanto a esse problema, faz-se
necessário, de acordo com a equipe da
DAC, um trabalho de conscientização dos
funcionários do Itamaraty para esclarecer
que não lhes cabe o julgamento dos
brasileiros presos. A assistência consular a
presos deverá ser concedida com base em
uma cadeia de perguntas bastante simples:
• é brasileiro?
• está preso no exterior?
• precisa de assistência consular?
Caso as respostas sejam afirmativas, a
assistência consular constitui um dever do
Estado e um direito do nacional.
Penas desproporcionais -
casos “humanitários”
Quando a pena aplicada a um brasileiro
no exterior é desproporcional ao crime
cometido de acordo com o regime
jurídico brasileiro, o caso é considerado
humanitário e é significativo o empenho do
Governo, incentivado pela imprensa e pela
sociedade civil, para sua defesa, via pedidos
de clemência ou acordos de transferência
de presos.
Condenado à morte em última instância
pela Justiça indonésia (pendente agora da
segunda e última decisão presidencial de
clemência), o brasileiro Marco Archer está
há cinco anos preso numa ilha remota por
tráfico de cocaína. Dado o esgotamento
dos recursos de sua família, o MRE
autorizou a contratação de advogado
para elaborar o pedido final de clemência.
Situação semelhante é vivida pelo
brasileiro Rodrigo Gularte, que recebeu
sentença de morte na Indonésia pelo
mesmo motivo em 2005.
Nas Filipinas, o brasileiro Marcio Jean Reis
Nagashima foi condenado à prisão perpétua
por posse de drogas. Portava 139 gramas
de maconha, o que torna a prisão perpétua
pena desproporcional à gravidade do crime
de um homem sem antecedentes criminais.
Atualmente a Embaixada do Brasil nas
Filipinas estuda possíveis mecanismos para
defender o brasileiro no quadro do regime
jurídico daquele país.
Os arquivos de casos encerrados
da DAC revelam que o empenho de
funcionários das áreas consular e política
140 brasileiros detidos na Guiana Francesa,
a maioria por garimpo irregular
_especial
_35
do MRE pode, em alguns casos, reverter o
destino de brasileiros que receberam penas
desproporcionais a seus crimes de acordo
com o regime jurídico brasileiro.
Conclusão
Dos que migram de forma irregular em
busca de condições sócio-econômicas melhores
aos que arriscam sua liberdade em troca
de compensação financeira ao transportar
ilícitos, o retrato dos nacionais presos ou
com liberdade tolhida no exterior revela, de
O retrato dos
nacionais presos
ou com liberdade
tolhida no exterior
revela, de um modo
geral, a triste situação
de um Brasil que,
apesar de avanços
consideráveis, ainda
não consegue oferecer
condições plenamente
favoráveis ao
desenvolvimento
de sua população e
cuja emigração de
nacionais reflete
aspectos políticos,
econômicos e sociais.
Michel Lahan Neto
um modo geral, a triste situação de um Brasil
que, apesar de avanços consideráveis, ainda
não consegue oferecer condições plenamente
favoráveis ao desenvolvimento de sua população
e cuja emigração de nacionais reflete aspectos
políticos, econômicos e sociais. Cabe assinalar
que análise do conjunto de casos de brasileiros
detidos no exterior assistidos pela DAC revela
que a grande maioria não possuía antecedentes
criminais. Entre os crimes pelos quais foram
condenados há pouquíssimos casos de
homicídios ou infrações graves.
Longe de seu país e de suas famílias ou
amigos, que raramente possuem recursos
para visitá-los, enfrentando barreiras como o
idioma e o isolamento cultural, muitos desses
brasileiros têm na assistência consular do MRE
seu único vínculo com o Brasil. Ao receber
a visita de uma oficial de chancelaria, um
brasileiro preso em Mianmar disse ter caído
em lágrimas, pois adquirira ali a certeza de que
não seria abandonado à própria sorte
9
.
No contexto da valorização da ação
consular do MRE, é necessário prosseguir na
direção de uma mudança de cultura quanto à
assistência a presos, acabando com a percepção
redutora que por vezes ainda a associa a uma
rotina secundária, substituindo-a por outra que
valorize sua importância como serviço público e
que garanta sua eficácia e continuidade.
_36
_especial
COMUNIDADES
BRASILEIRAS
NO ESPAÇO
MERCOSUL
Aloísio Barbosa de S. Neto
_36
_37
As comunidades de brasileiros
radicadas nos países do Cone Sul participaram
de importantes acontecimentos históricos
ocorridos entre o Brasil e seus vizinhos,
muito antes que a região se convertesse na
prioridade da política brasileira de integração.
Apenas para citar alguns exemplos, cabe
relembrar o protagonismo dos estancieiros
gaúchos radicados no Uruguai nos processos
que culminaram na Guerra do Paraguai, ou,
ainda, o movimento de intensa migração
de agricultores brasileiros ao Paraguai na
década de 1970, que alavancou o agronegócio
daquele país.
As origens do movimento migratório de
brasileiros em direção aos países limítrofes,
especialmente os do Cone Sul, remontam
ao século XIX. Esse fluxo teve seu ápice
nas décadas de 1960 e 1970, pelas razões
que discutiremos a seguir, e atraiu, à época,
grande visibilidade política, sobretudo em
função de tensões agrárias decorrentes do
estabelecimento de agricultores brasileiros e
de problemas de posse e titularidade das terras
adquiridas por brasileiros nos países vizinhos.
Atualmente, a comunidade de brasileiros no
Paraguai é bastante expressiva em termos
numéricos, enquanto as comunidades
brasileiras na Argentina e no Uruguai são
menos numerosas; deve-se ressaltar, entretanto,
que as três devem ser objeto de atenção do
governo e de pesquisadores, por se situarem
na região prioritária da política brasileira de
integração, o MERCOSUL.
Neste artigo, analisaremos a formação
das comunidades brasileiras nos países do
MERCOSUL. Buscaremos destacar, de início, as
condicionantes que levaram ao que chamamos
de fluxos migratórios tradicionais e, em
seguida, as condicionantes de um movimento
migratório mais recente, numericamente
menos expressivo, porém de grande relevância,
e que sugere alguma correlação com o
aprofundamento da integração no bloco.
As comunidades de brasileiros
nos países do MERCOSUL
De maneira geral, os fluxos migratórios
tradicionais de brasileiros em direção aos
países limítrofes estão relacionados com
desequilíbrios agrários do Brasil aprofundados
nas décadas de 1960 e 1970, os quais
provocaram deslocamentos populacionais
importantes. Marcelo Santa Bárbara aponta
os principais fatores de repulsão do
campo brasileiro: o processo de reforma
agrária, a forte concentração fundiária, a
fragmentação de propriedades por herança
– que dificultava a venda dos terrenos –, a
valorização do preço das terras e, finalmente,
a modernização tecnológica e especialização
da agricultura, que desestruturou as
relações de emprego no campo.
1
Esses
fatores repulsivos repercutiram tanto sobre
proprietários rurais (grandes proprietários
ou pequenos produtores familiares), que
deixaram suas áreas de cultivo originais
em busca de terras mais baratas, quanto
sobre trabalhadores rurais assalariados ou
mesmo subempregados do campo, tais como
coletores ou extrativistas. Esses últimos,
na maioria dos casos, permaneceram em
situação irregular nos países vizinhos ou iam
e voltavam para o Brasil como trabalhadores
sazonais, empregados por patrões brasileiros
nos países limítrofes.
Podemos considerar, portanto, as migrações
originais de brasileiros em direção aos países
limítrofes como desdobramentos dos grandes
fluxos de migrações internas, que expandiram
as fronteiras de produção agrícola para
1
SANTA BARBARA, Marcelo. “Brasiguaios: territórios e jogos de identidades”. A Defesa Nacional, N.o 795. Janeiro-Abril de 2003.
_37
_38
_especial
além das fronteiras geográficas do país. A
respeito dos migrantes brasileiros no Paraguai,
por exemplo, Sprandel não os considera
exatamente “migrantes” ou “emigrantes
internacionais”, mas “agentes de estratégias
familiares ou comunitárias de reprodução
econômica e social, que eventualmente
perpassam as fronteiras nacionais”.
2
Sem a pretensão de homogeneizar migrantes
brasileiros radicados nos países vizinhos sob
uma mesma categoria, o que nos levaria a
reforçar estereótipos, mas considerando que
há diferenças notáveis entre estes brasileiros
e aqueles que emigraram para países do
Hemisfério Norte, por exemplo, podemos
apontar algumas de suas peculiaridades. Em
primeiro lugar, a grande maioria dos brasileiros
que se fixaram no Paraguai, na Argentina ou no
Uruguai nas décadas de 1960 e 1970, sobretudo,
reside perto da fronteira com o Brasil. Isso
os leva a permanecer ligados ao País por
diversas redes sociais e comerciais, ao passo
que vivenciam uma duplicidade de vinculações
típica dos espaços de fronteira. Enquanto
muitos dos emigrantes de primeira geração
já têm filhos registrados nos países de
residência, por exemplo, não raro recorrem
aos serviços de saúde, educação e assistência
social brasileiros, acessíveis do outro lado da
fronteira. Isso leva a uma grande circulação
de pessoas nas zonas fronteiriças, engrossada,
ainda, pelos nacionais dos Estados vizinhos
que procuram determinados serviços no
Brasil. Essa realidade reforça a importância
de uma discussão sobre a harmonização de
políticas públicas nas faixas de fronteira.
Em segundo lugar, a proximidade com o
Brasil leva os emigrantes a dispor de um leque
maior de opções para mediar suas demandas,
que inclui não somente as autoridades
locais, mas também as instituições brasileiras,
sejam elas as repartições consulares ou as
próprias instâncias administrativas no Brasil.
Paralelamente, Sprandel chama a atenção para
o fato de que os brasileiros residentes nos
países fronteiriços, especialmente no Paraguai,
tiveram pequena participação nas iniciativas mais
recentes de mobilização política dos emigrados
brasileiros, como, por exemplo, o I Simpósio
Internacional sobre Emigração Brasileira (Lisboa,
1997) e o Encontro Ibérico da Comunidade
de Brasileiros no Exterior (Lisboa, 2002).
3
Isso
pode ser indicativo da menor mobilização
dessas comunidades como “brasileiros
residentes no exterior” talvez por estarem
muito próximos do Brasil e conectados a
uma forte rede que os mantém vinculados
ao país de origem.
Por último, a própria dinâmica dos
movimentos migratórios em direção aos
países fronteiriços, que constituem, em
última análise, uma expansão da fronteira
agrícola brasileira, levou muitos emigrantes
a continuar realizando as mesmas atividades
profissionais a que se dedicavam no Brasil,
ao contrário dos brasileiros no Hemisfério
Norte, que, em geral, exercem atividades
diferentes daquelas que exerciam no Brasil
4
.
Brasileiros no Paraguai
A comunidade brasileira residente no
Paraguai, composta por cerca de 450 mil
cidadãos, é a mais numerosa na América do
Sul, e corresponde a quase um quarto do
total de brasileiros que vivem no exterior. Por
isso, o Paraguai aparece como o segundo país
em quantidade de brasileiros residentes, atrás
apenas dos Estados Unidos.
A origem do movimento migratório em
direção ao Paraguai está relacionada aos
fatores da conjuntura fundiária do Brasil
comentados anteriormente, mas deriva,
em grande medida, de uma conjunção
desses fatores com uma política explícita
do governo Stroessner para promover o
2
SPRANDEL, Marcia Anita. “Aqui não é como na casa da gente... - comparando agricultores brasileiros na Argentina e no
Paraguai”. In: FRIGERIO, Alejandro e RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.). “Argentinos e brasileiros - Encontros, imagens e estereótipos”.
Petrópolis, Ed. Vozes, 2002.
3
SPRANDEL, Marcia Anita. “Brasileiros na fronteira com o Paraguai”. Estudos Avançados, N.o 20. São Paulo, 2006.
4
A idéia de continuidade dos espaços e das atividades econômicas entre o Brasil e o país fronteiriço é bem expressa por
Márcia Anita Sprandel no título de seu trabalho “A terra é estrangeira, mas a da minha roça é igual”, apresentado no XXII
Encontro Nacional da ANPOCS, em 1998.
_38
_39
desenvolvimento agrícola paraguaio. Essa
política, aliada ao baixo preço relativo
das terras e à flexibilidade da legislação
paraguaia, que permitia a aquisição de
terras por estrangeiros
5
, fez do Paraguai
uma grande zona de atração para grandes
contingentes de produtores brasileiros,
sobretudo na década de 1970.
Esses emigrantes, em sua maioria, fixaram-
se nos departamentos paraguaios de Alto
Paraná e de Canindeyú e dedicaram-se
principalmente ao cultivo da soja e do
algodão. É importante ressaltar que, no caso
dos brasileiros no Paraguai, as estratificações
sociais que experimentavam no Brasil foram
basicamente reproduzidas naquele país, pois
para lá confluíram tanto grandes empresários
rurais quanto trabalhadores humildes, muitas
vezes em situação clandestina. A estratificação
social “importada” do Brasil provocou o
deslocamento de muitas tensões agrárias
para o Paraguai. Esses problemas, agravados
pelo fim dos contratos de arrendamento
para milhares de famílias de agricultores
e por novos conflitos surgidos em torno
da titularidade das terras no Paraguai,
levou a uma inversão do fluxo migratório,
provocando um movimento de retorno ao
Brasil, por volta de 1985. Muitos “brasiguaios”,
que assim passaram a ser chamados
justamente por ocasião de seu retorno ao
Brasil, fixaram-se em acampamentos no Sul e
Centro-Oeste do País e engrossaram as filas
dos trabalhadores rurais que reivindicavam
terras ao recém-criado Ministério da Reforma
e do Desenvolvimento Agrário, que então
coordenava o processo da reforma agrária.
Os efeitos da migração brasileira em
direção ao Paraguai são notáveis, dadas as
proporções que a comunidade brasileira
atingiu no país e a sua considerável
participação no setor agropecuário da
economia local. Os autores paraguaios Palau
e Verón ressaltam que a zona de maior
confluência de brasileiros no Paraguai, entre
os rios Paraná e Caaguazú, sofreu uma
“brasilianização” econômica e cultural.
6
Outro estudioso do assunto, Sylvain
Souchaud, que publicou tese de doutorado
sobre o tema na Universidade de Poitiers,
na França, defende a existência de um novo
espaço na América do Sul, chamado de
“brasiguaio”, que não é totalmente paraguaio
e tampouco é uma extensão do oeste
do Brasil.
7
Para esse autor, a colonização
brasileira favoreceu a integração econômica
e política do Paraguai, mas, ao mesmo tempo,
aprofundou sua dependência externa.
Naturalmente, a ocupação de muitos dos
brasileiros residentes no Paraguai diversificou-
se com o tempo e, atualmente, o setor de
comércio e de serviços também conta com
expressiva participação de brasileiros. Ainda
assim, a grande maioria continua localizada
nos departamentos paraguaios fronteiriços
com o Brasil. Dos cerca de 450 mil brasileiros
lá residentes, aproximadamente 325 mil são
contabilizados na jurisdição consular de
Ciudad del Este (Alto Paraná), 70 mil na de
Pedro Juan Caballero (Amambay), e 40 mil na
de Salto del Guairá (Canindeyú).
Brasileiros na Argentina
e no Uruguai
O fluxo migratório de brasileiros em
direção à Argentina data de fins do século
XIX e, embora seja mais antigo do que
aquele dirigido ao Paraguai, seu volume foi
sempre mais reduzido. Em termos absolutos, a
comunidade brasileira na Argentina não sofreu
grandes variações, diferentemente do boom da
emigração de brasileiros para o Paraguai na
década de 1970. O censo argentino de 1895
registrava 24.725 brasileiros vivendo no país,
ao passo que o de 2001 computou 34.712
8
,
5
O Governo paraguaio revogou, em 1967, lei que impedia a compra de terras por estrangeiros em um raio de 150 km a
partir das fronteiras.
6
Apud SALES, Teresa. “Migrações de fronteira entre o Brasil e os países do Mercosul”. Revista Brasileira de Estudos Populacionais,
N.o 13(1). Campinas, 1996.
7
Apud SPRANDEL (2006). Op. Cit.
8
Instituto Nacional de Estadísticas y Censo de La República Argentina (INDEC). Censo Nacional de Población, Hogares y
Viviendas, 2001.
_39
_40
_especial
isto é, um incremento de apenas 10 mil
cidadãos ao longo de mais de 100 anos.
Em que pese seu volume reduzido, a
comunidade brasileira na Argentina apresenta
elementos importantes para análise. Um
primeiro aspecto que merece atenção é a
existência de dois subsistemas migratórios
aparentemente desvinculados entre si.
9
O primeiro deles corresponde ao fluxo
migratório de brasileiros para a província de
Misiones, na fronteira com o Brasil. Suas causas
assemelham-se às das migrações de brasileiros
para o Paraguai, e os migrantes radicados em
Misiones demonstram, em linhas gerais, as
peculiaridades dos migrantes em regiões de
fronteira discutidas anteriormente.
O outro fluxo migratório tem como
destino a Área Metropolitana de Buenos Aires,
e está relacionado a causas bem diferentes,
sobre as quais nos deteremos em seguida. É
interessante notar que, no início da migração,
nas últimas décadas do século XIX e nas
primeiras do XX, os brasileiros concentravam-
se majoritariamente na região de Buenos
Aires e nas províncias pampeanas, localização
similar à dos muitos imigrantes europeus que
se dirigiam à Argentina na época. Entretanto,
houve um desvio nesse fluxo, quando a
província de Misiones tornou-se a principal
área de atração de brasileiros, passando a
concentrar mais de 50% deles a partir de 1970.
Nota-se, aí, uma coincidência temporal com
a explosão da migração para o Paraguai. Os
emigrantes radicados na Província de Misiones
ainda perfazem mais da metade dos brasileiros
que vivem na Argentina, mas a participação
dos residentes na região de Buenos Aires é
ligeiramente crescente (representam 23,6% do
total de brasileiros residentes no país em 1980,
27,4% em 1991 e 30,8% em 2001)
10
.
Quanto à comunidade brasileira no
Uruguai, seu início também remonta ao
século XIX, e, em sua origem esteve vinculada
à presença econômica e à influência política
do Brasil no país vizinho. Mais recentemente,
as migrações para o Uruguai também foram
relacionadas a questões agrárias, sobretudo
à elevação do preço da terra no sul do
Brasil. Sales aponta que um dos fluxos mais
significativos em direção ao Uruguai é o dos
chamados granjeiros gaúchos, cultivadores de
arroz na região de fronteira que decidiram
expandir suas culturas adquirindo terras mais
baratas no Uruguai.
11
Reydon e Plata explicam
a significativa entrada de brasileiros no
Uruguai na década de 1980 em decorrência
da retração do mercado de terras no Brasil.
12
De fato, do total de brasileiros residentes
no Uruguai, 19,3% deles chegaram ao país
naquela década.
Os brasileiros representam, atualmente,
a terceira comunidade de estrangeiros no
Uruguai, com 10.962 cidadãos em 2006,
atrás apenas dos imigrantes argentinos
e espanhóis
13
. Entretanto, a comunidade
brasileira destaca-se das demais por seu
padrão de localização no país. Enquanto
todas as principais comunidades estrangeiras
concentram-se em Montevidéu, os brasileiros
estão majoritariamente no interior do país
(74,3%), sobretudo nos departamentos de
fronteira (principalmente Artigas, Rivera,
Cerro Largo e Rocha), ao passo que apenas
25,7% deles moram na capital.
Movimento de pessoas
no espaço do MERCOSUL
De modo geral, portanto, as migrações
de brasileiros em direção aos países
do MERCOSUL, que temos chamado
de tradicionais, decorreram de fatores
repulsivos do campo brasileiro e, por isto,
fazem parte do processo de expansão da
fronteira agrícola brasileira. Entretanto, na
esteira da integração econômico-comercial
e política com esses países, surgem outras
oportunidades e incentivos para migrações
9
HASENBALG, Carlos & FRIGERIO, Alejandro. Imigrantes Brasileiros na Argentina: Um Perfil Sociodemográfico. Série Estudos, n.
101. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), 1999.
10
INDEC (Censos de 1980 e 1991, e Encuesta Complementaria de Migraciones Internacionales)
11
SALES, Teresa. Op. Cit.
12
Apud Sales (1996). Op. Cit.
13
Instituto Nacional de Estadística - Uruguay.
_40
_41
de um perfil diferenciado, como, por
exemplo, a internacionalização de empresas
brasileiras nos sócios do MERCOSUL, a
formação de parcerias com empresas locais
ou ainda o aumento dos convênios de
intercâmbio acadêmico.
Em estudo sobre o perfil sociodemográfico
dos imigrantes brasileiros na Argentina,
Hasenbalg e Frigerio identificaram uma
progressiva reorientação do fluxo de
migrantes brasileiros da Província de Misiones
para a Área Metropolitana de Buenos Aires.
Ainda segundo esses autores, o fato de que
o período analisado no estudo, entre 1990
e 1997, corresponda a uma fase de altos
índices de desemprego na região de Buenos
Aires minimiza a possibilidade de migração
laboral pura e simples. Além disso, a hipótese
da migração seletiva, impulsionada pela
integração regional, é corroborada por dados
de radicações e permissões temporárias
(vistos) concedidas a brasileiros, as quais
cresceram significativamente no período
1994-1997, se comparadas com aquelas
concedidas entre 1990 e 1994, período em
que o MERCOSUL, embora já em vigor, ainda
estava em estágio inicial. A título de exemplo,
podemos citar o número de permissões
temporárias concedidas pelo Consulado
Geral da Argentina no Rio de Janeiro para
a categoria “técnicos”, que aumenta de
apenas um no período 1990-91 para 92 no
período 1994-97, ou a categoria “executivos,
profissionais e gerentes”, que aumenta de 2,
no primeiro período, para 53, no segundo.
Infelizmente não houve estudos posteriores
que demonstrassem a continuidade da
tendência apontada pelos autores além de
1997, mas é bastante provável que este tipo
de migração “seletiva”, que, em alguma medida,
está relacionada à integração econômica, tenha
permanecido crescente. Naturalmente, não se
trata um movimento migratório de grandes
proporções, mas de uma diferenciação no perfil
dos migrantes e nas motivações que levam ao
estabelecimento de brasileiros em outros países
do MERCOSUL, sobretudo na Argentina.
De fato, o estabelecimento de cidadãos
do MERCOSUL nos outros países sócios
é uma das conseqüências esperadas de
um mecanismo de integração econômica
e política. Nesse sentido, estão em curso
alguns avanços no plano normativo, com
vistas a regular um fluxo de pessoas que
tende a ser crescente à medida em que
avance o MERCOSUL. Cabe citar, a este
respeito, o Acordo sobre Residência
para Nacionais dos Estados Partes do
MERCOSUL, assinado em 2002.
Embora o Acordo não esteja ainda em
vigor como normativa do bloco, pois não
cumpriu os procedimentos de internalização
em todos os países membros, o Brasil já
o aplica bilateralmente, desde 2006, com a
Argentina
14
e com o Uruguai
15
. O Acordo
de Residência estabelece condições
simplificadas para que nacionais de um Estado
Parte se estabeleçam em outro membro
do MERCOSUL e gozem dos mesmos
direitos e liberdades civis, sociais, culturais e
econômicas concedidos aos nacionais daquele
Estado, inclusive o direito ao trabalho e à
livre iniciativa. Nesse sentido, o instrumento
serve a um duplo propósito: por um lado, cria
condições para a regularização dos migrantes
indocumentados, que são uma realidade em
todos os países do MERCOSUL. Por outro,
quando em vigor, será a base normativa para
regular o livre trânsito e o estabelecimento
de pessoas no espaço do bloco.
Seria precipitado afirmar que está em curso
uma integração dos mercados de trabalho
nacionais, ou mesmo que há plenas condições
para o livre trânsito de pessoas no MERCOSUL.
Mas tanto a persistência dos movimentos
migratórios “tradicionais” quanto o incremento
das comunidades estrangeiras que decorre da
integração regional justificam a necessidade de
discussões sobre políticas sociais e trabalhistas
harmonizadas no bloco. Cada vez mais, o
atendimento às demandas dos brasileiros
residentes nos países sócios do MERCOSUL, e
o próprio aprofundamento deste, dependerá de
avanços dessa natureza.
14
O acordo que determina a aplicação bilateral foi assinado pelos Presidentes Lula e Nestor Kirchner na celebração dos 20
anos das Atas de Iguaçu, em 2005, e publicado no Diário Oficial da União em 29/08/2006.
15
A aplicação foi acordada pelos países por troca de notas em outubro de 2006.
_41
_42
DESAFIOS DAS
MIGRAÇÕES
INTERNACIONAIS
AO DIREITO E AO BRASIL
Leandro Vieira
_42
_especial
_43
Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.
Que carregamos as coisas,
(...)e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
em nossas fundas paredes.
Carlos Drummond de Andrade,
A Ilusão do Migrante
A dimensão demográfica das migrações internacionais atingiu
proporções sem precedentes. A Organização das Nações Unidas estima em
200 milhões o número de pessoas que vivem fora de seus países de origem,
entre trabalhadores migrantes documentados e indocumentados, refugiados,
asilados políticos e fugitivos de guerra e de situações de conflito armado.
O Brasil é parte desse processo. Em audiência pública no Congresso
Nacional em 2006, o Embaixador Manoel Gomes Pereira, então diretor do
Departamento das Comunidades Brasileiras no Exterior, estimou em mais de
3 milhões o número total de brasileiros residentes no estrangeiro. O Brasil,
por outro lado, é destinatário de cerca de um milhão, 185 mil estrangeiros
legais, e de centenas de milhares de estrangeiros em situação irregular.
_43
Michel Lahan Neto
_44
Parte do contingente de brasileiros que
se dirige ao exterior se vale de redes sociais
já constituídas para se dirigir aos Estados
Unidos, ao Japão e ao Paraguai, países que,
considerados conjuntamente, concentram em
torno de 70% dos emigrados brasileiros. O
restante da população brasileira no exterior
se espalha por países e continentes em que os
laços com o país de origem são mais tênues.
A existência de comunidades brasileiras
concentradas em determinadas regiões e países
cumpre importante papel na manutenção
de vínculos entre os próprios emigrados e
entre estes e o Brasil. A “cultura brasileira”,
reinventada, por exemplo, na celebração
de festas, na publicação de periódicos em
língua portuguesa, na remessa de divisas e
no comércio de produtos brasileiros, ganha
visibilidade econômica e social e faz de seus
porta-vozes, os brasileiros emigrados, agentes
reivindicadores de direitos, tanto em relação à
comunidade na qual se inserem quanto no que
tange à sociedade e ao governo brasileiros.
Esse quadro, em que o Brasil é, a um só
tempo, país de origem de milhões de emigrados
e destinatário de expressivo número de
imigrantes, suscita uma miríade de questões
jurídicas. A título meramente exemplificativo,
dada a abrangência do temário passível de ser
abordado e a escassez de espaço para análises
mais aprofundadas neste espaço, este texto fará
breve menção à proteção legal do trabalhador
migrante e às evoluções mais relevantes relativas
à jurisprudência internacional sobre assistência
consular, e deter-se-á, com um pouco mais de
vagar, sobre a questão atinente à participação
política do migrante no país de origem – e
também no de destino.
Espera-se, com tais exemplos, indicar a
importância da evolução doutrinária e normativa
do direito internacional – particularmente na
vertente de proteção dos direitos humanos
– para a proteção dos migrantes e, também,
situar o Brasil, país em desenvolvimento, diante
do fenômeno das migrações internacionais.
Ao se optar por esses três eixos de análise,
atente-se para o fato de que, mesmo em áreas
temáticas mais antigas no que tange à proteção
jurídica internacional – caso dos direitos sociais,
em que os direitos trabalhistas se inserem –, a
salvaguarda dos direitos humanos dos migrantes
está longe de estar consolidada.
Os direitos sociais dos migrantes
e o impacto da jurisprudência
da Corte Interamericana sobre
a
proteção dos direitos dos
migrantes
No nível multilateral, destaquem-se quatro
instrumentos normativos entre os vários que
há relativos aos direitos dos trabalhadores
migrantes, que vinculam os países que deles
fazem parte: a Convenção nº. 97/1949, da
Organização Internacional do Trabalho (OIT);
a Convenção nº. 143/1975, da OIT, relativa
às Migrações em Condições Abusivas e à
Promoção da Igualdade de Oportunidades e
de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes;
o Protocolo Adicional à Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico
de Migrantes por via Terrestre, Marítima e Aérea,
do ano de 2000; e a Convenção Internacional
para a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua
Família, adotada pela Resolução nº. 45/158 da
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1990.
Entre esses instrumentos, o Brasil ratificou
somente a Convenção da OIT nº. 97/1949
e o Protocolo contra o Crime Organizado
Transnacional, concluído em 2000. A Convenção
nº. 143/1975 da OIT conta com meras 23
ratificações, enquanto a mencionada Convenção
de 1990, que entrou em vigor em 2003, contava
com 33 ratificações em 1º de outubro de 2005.
O baixo número de países que aderiram a
esses instrumentos internacionais é indicativo
das dificuldades de se universalizar o tratamento
uniforme e livre de preconceitos em relação ao
trabalhador migrante. Para que o Brasil tenha
reforçada a defesa do tratamento multilateral
dos aspectos referentes aos direitos trabalhistas
dos migrantes, a adesão aos principais
_44
_especial
_45
instrumentos multilaterais com ânimo definitivo,
mediante assinatura e subseqüente ratificação,
constitui etapa indispensável.
Em relação ao direito à assistência
consular, o entendimento acerca de
sua importância para a proteção dos
direitos dos migrantes tem passado por
grandes transformações – ênfase seja
posta na decisiva contribuição da Corte
Interamericana de Direitos Humanos para o
desenvolvimento desse direito.
Por meio da jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em que
se destaca a Opinião Consultiva nº. 16/1999,
sobre a Assistência Consular no Âmbito das
Garantias do Devido Processo Legal, a Corte
não deixa dúvida acerca do vínculo do direito
à assistência consular com as garantias do
devido processo legal e com o direito à vida.
Em uma época em que o preconceito e a
suspeição contra o estrangeiro se agravam,
por questões de “segurança nacional” ou
no contexto da “luta contra o terror”,
a interpretação de que dispositivos da
Convenção de Viena sobre Relações
Consulares, de 1963, – notadamente
o direito à informação sobre
assistência consular – encontram-
se integrados, nos dias de hoje,
à normativa internacional de
proteção dos direitos humanos
constitui alento significativo
para a salvaguarda da
inviolabilidade do direito à
vida, princípio norteador do
Estado brasileiro.
Essa visão humanística
do direito internacional,
que concebe o indivíduo
como sujeito ativo e
passivo de deveres e
de direitos na ordem
jurídica internacional,
é corroborada
pela Opinião
Consultiva
nº. 18/2003,
também da Corte Interamericana. Segundo o
parecer da Corte, exarado em setembro de
2003, os princípios da igualdade e da não-
discriminação são essenciais para a proteção
dos direitos humanos, seja no plano interno,
seja no âmbito internacional. De impacto
profundo para a proteção dos migrantes,
principalmente aqueles em situação de
fragilidade diante do Estado estrangeiro,
a manifestação da Corte Interamericana
aponta a direção axiológica que a evolução do
direito deve seguir e institui responsabilidade
internacional para os Estados que
descumprirem os supracitados princípios.
Os migrantes e o direito à
participação política
Transformações jurídicas importantes,
derivadas do fenômeno das migrações, têm
desafiado concepções tradicionais de cidadania
e de participação política. No Brasil e nas
demais democracias, o vínculo de nacionalidade
tem sido considerado como condição para
o exercício do direito de voto. O Capítulo
destinado aos direitos políticos na Constituição
Federal estabelece a nacionalidade brasileira
como pré-requisito para a fruição dos direitos
eleitorais. A única exceção a essa regra é a dos
portugueses equiparados, nos termos definidos
pelo Tratado de Porto Seguro de 22 de abril
de 2000, celebrado entre Portugal e Brasil
(promulgado pelo Decreto nº. 3.927, de 19 de
setembro de 2001).
Ressalte-se, no entanto, que a correlação
entre o vínculo da nacionalidade e o de
cidadania para o exercício de direitos
políticos vem sendo matizada em todo o
mundo. Ainda que a implementação dessas
importantes transformações conceituais
ainda se verifique, na maior parte, no âmbito
do direito interno dos Estados nacionais,
formulações doutrinárias e instrumentos
de direito internacional que nos permitem
analisar a matéria do ponto de vista do
direito internacional dos direitos humanos.
_45
_46
À luz das recentes evoluções no
tratamento dessa matéria, alimentadas pelo
caráter expansivo da proteção internacional
dos direitos humanos, é pertinente sustentar
a interpretação de que o artigo 19
1
da
Declaração Universal dos Direitos Humanos
(Resolução 217 A (III), da Assembléia-Geral
das Nações Unidas, em 10 de dezembro de
1948) contempla, “na liberdade de opinião
e de expressão” a que toda pessoa faz jus, a
manifestação política dessa liberdade.
Essa visão, ainda prospectiva, se deve,
entre outros fatores, ao fato de o conceito
de cidadania não ser estanque, mas histórico
2
,
com o progressivo aumento do escopo e da
proteção jurídica desses direitos, no plano
internacional e interno. A associação entre
vínculo de nacionalidade e participação
política, vista como necessária por vários
ordenamentos jurídicos nacionais, vai cedendo
lugar a um entendimento de que o direito à
participação nos rumos políticos da civitas, da
cidade ou da comunidade em que se vive, é
uma prerrogativa do membro da cidade ou da
comunidade, independentemente do vínculo de
nacionalidade. Vale frisar que tal evolução está
longe de ser linear, e simultaneamente a avanços
existem retrocessos, motivados, nos dias de
hoje, à xenofobia associada – não raro, de forma
espúria – à ameaça que o migrante traria à
segurança dos Estados nacionais.
Matizado o otimismo por meio dessa
ressalva, a lição de Roberto Carneiro é
impecável acerca da revolução doutrinária
que as migrações contemporâneas impõem
ao direito, ao afirmar que “a dicotomia binária
do passado,
assente na
distinção simplista
cidadão-estrangeiro,
é insuficiente para
acolher o ‘cromatismo’
cívico que resulta do
simples fato de que
vai sendo cada vez mais
rara a situação de pessoas
que nascem, crescem,
aprendem, trabalham, casam,
procriam, e morrem na mesma
localidade”
3
.
No plano da proteção jurídica
internacional, se se evolui rumo a
uma consciência jurídica universal,
se o direito empreende um percurso
a partir de um jus inter gentes
(direito entre as gentes) em direção
ao jus gentium (lei comum a todos os
homens, sem levar em consideração
a nacionalidade), a voz política do
migrante terá de ser ouvida como
pressuposto da observância dos direitos
humanos. Nesse sentido, a ascendência
e/ou o território de origem, critérios
comumente empregados para a definição
de nacionalidade, passam a ser de pouca
valia para delimitar a medida ou o conteúdo
dos direitos fundamentais dos indivíduos.
Ressalte-se que o estatuto dos estrangeiros
“sempre foi uma matéria importante no
seio do direito internacional, discutindo-se
se estes deviam estar sujeitos ao ‘princípio
do tratamento nacional’ ou a um ‘critério
_46
_especial
1
Artigo XIX: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência,
ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
2
Jaime Pinsky adverte que “mesmo dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática da cidadania vêm se alterando ao
longo dos últimos duzentos ou trezentos anos. Isso ocorre tanto em relação a uma abertura maior ou menor do estatuto de
cidadão para sua população (por exemplo, pela maior ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania), ao grau de participação
política de diferentes grupos (o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos
Estados aos que dela necessitam. In: PINSKY, Jaime, e PINSKY, Carla (orgs.), História da cidadania, Ed. Contexto, p. 5.
3
CARNEIRO, Roberto (Coordenador do Observatório da Imigração do Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas).
Nota introdutória ao trabalho de SILVA, Jorge Pereira da. Direitos de cidadania e direito à cidadania. Lisboa, ACIME, maio de 2004.
_47
mínimo internacional’. O desenvolvimento dos
mecanismos de proteção internacional dos
direitos do homem acabou por fazer prevalecer
este último critério sobre aquele princípio”
4
.
Nesse contexto, é oportuno frisar
que a própria Convenção Internacional
sobre os Trabalhadores Migrantes de 1990
já contempla, no artigo 13.2, o direito à
liberdade de expressão, de forma análoga
ao previsto no artigo 19 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Uma novidade importante de se destacar
em um instrumento de Direito Internacional
dos Direitos Humanos é o previsto no
artigo 42.2, que se lê, em tradução livre do
inglês: “O Estado de emprego deve facilitar,
em consonância com a legislação nacional, a
consulta ou a participação de trabalhadores
migrantes e membros de suas famílias
em decisões que concernem à vida e à
administração de comunidades locais.
Segundo David Earnest
5
, desde a década
de 1960 há pelo menos 23 democracias
em que o direito de voto ao estrangeiro
domiciliado passou a ser reconhecido,
ainda que a abrangência desse direito varie
consideravelmente. No Brasil, proposições
legislativas
6
tramitam (ou já tramitaram) no
Congresso Nacional para estender o direito
de voto ao estrangeiro domiciliado. Esse fato,
somado às proposições que sustentam a
ampliação do direito de voto de brasileiros
residentes no exterior e a criação de
circunscrições eleitorais específicas para
as comunidades brasileiras no exterior,
indica a importância crescente do tema no
Congresso Nacional.
Heterogêneas, complexas, com graus
diferentes de carência e de necessidade de
assistência por parte do Estado brasileiro,
as comunidades brasileiras no exterior,
estimadas em mais de três milhões de pessoas,
correspondem a contingente populacional igual
ou superior a 11 unidades federativas, além do
Distrito Federal. Pode-se antever o impacto
no sistema político brasileiro que adviria da
representação política específica para brasileiros
no exterior, fenômeno inédito no Brasil, mas
que já ocorre, com conformações variadas, na
Itália, França, Portugal, Croácia e Colômbia.
O Itamaraty e o Congresso
Nacional diante das comunidades
brasileiras no exterior
O Estado brasileiro tem procurado
acompanhar cada vez mais de perto as demandas
das comunidades brasileiras no exterior.
No âmbito do Itamaraty, o tratamento do
tema na Secretaria de Estado detém status
de Subsecretaria-Geral desde 2006, pelo
Decreto nº. 5.979, que aprovou a estrutura
regimental do Ministério das Relações
Exteriores e criou a Subsecretaria-Geral das
Comunidades Brasileiras no Exterior (SGEB),
cuja responsabilidade inclui “cuidar dos temas
relativos aos brasileiros no exterior e aos
estrangeiros que desejam ingressar no Brasil”.
A criação da SGEB e o aumento recente
do quantitativo de diplomatas – necessário
em função do adensamento da participação
do Brasil nos foros internacionais, com a
decorrente ampliação do número de postos
no exterior, inclusive os de natureza consular
– podem ser compreendidos como a tentativa
do Estado brasileiro de fazer face aos desafios
que vão surgindo à medida que as comunidades
brasileiras no exterior vão crescendo e
transformando-se.
_47
4
SILVA, Jorge Pereira da. Op. cit., p. 33 (nota 19).
5
EARNEST, David. Noncitizen Voting Rights: A Survey of an Emerging Democratic Norm. Trabalho apresentado perante a
convenção anual da Associação de Ciência Política Americana (American Political Science Association) em Filadélfia, Pensilvânia, de
28 a 31 de agosto de 2003.
6
São exemplo as Propostas de Emenda à Constituição nº 07/2002, nº 33/2002 e 401/2005.
_48
Ao lado da expansão do número de
consulados brasileiros no exterior está o
propósito de aprimoramento da qualidade
dos serviços prestados, mediante processo
de informatização. É esse o intuito do
programa de modernização do serviço
consular, que abrange o “Portal Consular”
e, posteriormente, o “Sistema Consular”
e o “Sistema de Emissão e Controle de
Documentos de Viagem”
7
.
O Congresso Nacional também tem
procurado contemplar questões de interesse
direto dos brasileiros residentes no exterior.
A par de manifestações individuais de
parlamentares no Plenário de ambas as Casas,
ou por meio de proposições legislativas, iniciativa
de relevo uniu a Câmara dos Deputados e
o Senado Federal por ocasião da Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da
Emigração, cujos trabalhos se estenderam entre
maio de 2005 e julho de 2006.
Criada pelo Requerimento nº. 2, de 2005,
do Congresso Nacional, “para apurar os crimes
e outros delitos penais e civis praticados
com a emigração ilegal de brasileiros para os
Estados Unidos e outros países, e assegurar
os direitos de cidadania aos brasileiros que
vivem no exterior”, a CPMI, que contou com a
prestimosa colaboração do Itamaraty, efetuou
verdadeiro inventário sobre os caminhos e
descaminhos da emigração brasileira em alguns
dos principais destinos, como os Estados
Unidos, o Japão e o Paraguai. Além de analisar
questões de relevância social tais como alguns
aspectos dos direitos trabalhistas e o direito
à participação política do migrante, temas
mencionados neste texto, a CPMI efetuou
investigações sobre o tráfico de migrantes e o
tráfico internacional de pessoas.
A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
da Emigração também desempenhou
papel propositivo: apresentou quatro
projetos de lei, uma proposta
de emenda à Constituição
(substitutivo) e emendas orçamentárias
referentes à melhoria do atendimento consular.
Entre essas medidas, é válido mencionar, com
o fito de uma exemplificação, o projeto de lei
que propõe a alteração do Código Penal para
criminalizar o tráfico internacional de pessoas
para fins de emigração, e, também, o projeto de
lei que dispõe sobre o ingresso do emigrante
brasileiro no Regime de Previdência Social.
A Comissão conferiu apoio político
decisivo à tramitação da PEC nº. 272/2000
(nº. 24/1999, na origem – Senado Federal), que
propunha dar nova redação à alínea “c” do
inciso I do art. 12 da Constituição Federal, ao
recomendar expressamente sua aprovação no
Relatório Final aprovado pelos Membros da
CPMI. Conhecida como “PEC dos apátridas”
por parte da mídia, sua aprovação deu ensejo
à Emenda Constitucional nº. 54, de 2007.
Considerações finais
Este texto buscou trazer elementos
que ajudam a sustentar a tese de que as
normatizações nacionais e internacionais sobre
o complexo fenômeno migratório estão em
permanente processo de formulação, e que
o Brasil é parte importante na dinâmica de
escolhas político-jurídicas relativas ao tema.
Com a evolução do tratamento do indivíduo
como sujeito de direitos e obrigações no
direito internacional, e com a percepção dos
direitos humanos como tema global, os Estados
têm de observar padrão mínimo universal
de respeito aos direitos humanos, o que
independe da condição jurídica do estrangeiro.
Nesse contexto, a salvaguarda dos direitos
fundamentais do indivíduo transcende a óptica
da legislação nacional, do domestic affair, para
transfigurar-se em international concern
8
.
Se este texto logrou reforçar a importância
do empenho do diplomata e do cidadão
brasileiro acerca do tema, pode-se considerar
que o esforço chegou a bom termo.
_48
_especial
7
Informações obtidas na página da SGEB na Internet, no endereço
8
ANDRADE, Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976,
2ª ed., Coimbra, 2001, apud SILVA, Jorge Pereira da. Op. cit., p. 35.
_49
_49
COMPORTAMENTO
SOCIAL
e PRECONCEITO
“Otratamento preconceituoso
dado a grupos de imigrantes é tema
de grande relevância para o Brasil, que
nas últimas décadas deixou de ser um
receptor expressivo e passou a enviar
muitos brasileiros para o exterior. Assim
como ocorre com pessoas de diversas
nacionalidades, brasileiros residentes no
exterior são, com freqüência, vítimas de
preconceito e discriminação. Para combater
Mariana Lobato
_50
esse fenômeno generalizado, algumas
formas de intervenção foram desenvolvidas.
No entanto, o problema persiste. Grande
parte das intervenções contra preconceito
baseia-se, atualmente, no esclarecimento
de mal-entendidos entre os grupos
envolvidos e na pregação da idéia de que
a discriminação em si é um problema.
Infelizmente, esse método, empregado
isoladamente, não parece funcionar de
forma adequada. Em alguns casos, as
pessoas até lembram as informações dadas,
mas não mudam suas falas preconceituosas
1
.
Há entendimentos de que intervenções
baseadas em alterações legislativas e
intervenções de ativistas têm conseguido
reduzir em certa medida práticas
discriminatórias, no entanto, práticas
modernas e sutis de discriminação, como
as falas preconceituosas, não são facilmente
solucionadas por esse tipo de intervenção
2
.
Uma nova proposta seria agir no contexto
em que esse tipo de prática ocorre.
Discursos contra o preconceito podem
ser bastante úteis na arena política e não
devem ser eliminados, mas a ação direta no
contexto em que ocorre o comportamento
promete outros resultados.
O comportamento não ocorre no vazio.
Eventos precedem e seguem tudo o que
fazemos, e as ações dependem fortemente de
suas conseqüências no mundo.
“Os homens agem sobre o
mundo, modificam-no e, por
sua vez, são modificados pelas
conseqüências de sua ação”.
3
Essa idéia, retirada do trabalho
polêmico de B.F. Skinner sobre
linguagem, pode ser hoje
retomada para trazer luz aos
estudos sobre conhecimento
socialmente construído, formação
de conceitos e, em especial, de
preconceitos. O papel das conseqüências
como determinante do comportamento
humano é um dos pressupostos teóricos dos
analistas do comportamento, pressupostos
que ganham cada vez mais espaço na
psicologia, substituindo as concepções
estruturalistas das vertentes psicanalíticas,
tão divulgadas no século passado. A análise
do comportamento, ao contrário do que
se costuma imaginar, vai muito além das
concepções pavlovianas de estímulo-resposta.
Apesar de não negarem as descobertas de
Pavlov, os analistas do comportamento focam
não no que precede o comportamento, mas
no que ocorre após nos comportarmos.
Para eles, aquilo que segue o que fazemos
acaba por determinar quão provável será
repetirmos a mesma ação, ou modificá-la
4
.
Não reagimos ao mundo, agimos sobre o
mundo e as conseqüências de nosso
próprio comportamento definem o
comportamento futuro.
_especial
1
GUERIN, B. “Lessons Learned from Participatory Discrimination Research: Long-term Observation and Local Interventions”.
University of South Australia, 2007.
2
GUERIN, B. “Combating Prejudice and Racism: New Interventions from a Functional Analysis of Racist Language”, 2003.
3
SKINNER, B.F. Verbal Behavior, 1957.
4
SIDMAN, M. Coercion and its Fallout. Boston: Authors Cooperative, 1989.
_51
“Muitas vezes, porém,
um homem age apenas
indiretamente sobre o meio do
qual emergem as conseqüências
últimas de seu comportamento.
O primeiro efeito é sobre os
outros homens”
5
. Esse é o caso de
comportamentos verbais. Comportamento
verbal não se limita, como se poderia
imaginar, a expressões escritas ou
faladas. O conceito, dentro da análise do
comportamento, é mais amplo: envolve
todo e qualquer comportamento cuja
conseqüência relevante depende da ação
de outra pessoa. Pode ser piscar, fazer
um gesto, desenhar, e mesmo silenciar
diante de algo. O importante é que a
conseqüência para aquele que se comporta
não seja imediata e sim mediada por outra
pessoa. O exemplo mais óbvio talvez seja
fazer um pedido. Se estamos com fome,
pedimos algo para comer. A conseqüência
relevante será comer, mas não pegamos
diretamente a comida: pedimos ao garçom
e ele a traz até nós. Ao piscar para
alguém, podemos receber sua atenção.
Se contarmos uma piada em um grupo,
podemos conseguir riso, prestígio, amizade,
que geram muitas outras conseqüências
mediadas por aquele grupo.
A construção social de conhecimentos
decorrentes da interação de pessoas nas
comunidades é um fenômeno de grande
interesse da psicologia contemporânea
e está diretamente relacionada à
idéia de comportamento verbal, do
comportamento que não se dá apenas por
meio da interação com o ambiente não-
social. É com base na comunidade verbal
que uma pessoa aprende a descrever
situações não-verbais. Da mesma forma, a
pessoa aprende a fazer afirmações sobre
o mundo com base em comportamentos
verbais de outros, como quando
estudamos história, ou lemos notícias no
jornal. Ambos representam instâncias do
conhecimento socialmente construído.
6
Conceitos são socialmente
construídos. Assim, são mantidos
com base em conseqüências
mediadas pela comunidade verbal.
Como todo comportamento, no
entanto, não são desinteressados:
dependem de suas conseqüências.
Ao descrever o mundo, geramos
conseqüências específicas
mediadas pela comunidade verbal.
Como as conseqüências relevantes não
são as imediatas, os comportamentos verbais
podem ser totalmente “desconectados”
do ambiente não-verbal. Essa desconexão
da realidade pode se dar por diferentes
motivos. Pode ocorrer se um grupo não
5
SKINNER, B.F. Verbal Behavior, 1957.
6
GERIN, B. “Behavior Analysis and the Social Construction of Knowledge”. Hamilton: University of Waikato, 1995.
_52
dá a necessária atenção à correspondência
entre descrição e ambiente não-verbal. É
nesse sentido que podemos compreender
a construção social do que seria “correto”
ou “verdadeiro”. Será “verdade” aquilo que
for aceito pelo grupo como tal, nem sempre
aquilo que mantém correspondência com o
ambiente não-verbal.
7
O mesmo problema surge quando
comportamentos verbais são baseados em
outros comportamentos verbais. Como, por
exemplo, quando alguém conta algo que lhe
foi relatado por outrem e isso é entendido
por um grupo como se fosse uma lembrança
de experiência realmente vivenciada
previamente, uma experiência lembrada.
Isso pode fortalecer, por exemplo, nosso
comportamento de afirmar que reatores
nucleares são extremamente perigosos
ou que a cultura de certo país desvaloriza
o trabalho. Nos dois casos, a maioria das
pessoas que faz esse tipo de afirmação
nunca vivenciou diretamente experiências
com esses eventos, apesar disso, eles são
apresentados como se fossem descrições
de experiências vividas, como relatos de
contato direto com o ambiente. Lemos
ou ouvimos falar a respeito e recebemos
conseqüências por repetir essas idéias em
determinada comunidade verbal.
Outra situação que leva à desconexão
entre os comportamentos verbais e o
ambiente não-verbal é o fato de, muitas
vezes, a conseqüência social que mantém
o comportamento ser muito distante da
conseqüência que seria produzida pelo
ambiente não-verbal, sendo baseada,
por exemplo, simplesmente em elogios,
risos, ou consentimento desatento. A
comunidade verbal pode dar atenção
simplesmente ao comportamento de se
comunicar, não importa o que seja dito.
Podemos passar horas em um jantar
falando para uma audiência desinteressada
e intermitentemente atenta sobre como
câncer é causado pelo consumo excessivo
de ovos ou como as pessoas que vivem em
lugares quentes são mais preguiçosas que
as que vivem em lugares frios. Nesse caso,
a audiência pode manter o comportamento
verbal simplesmente por meio de controle
social fraco.
8
Falas preconceituosas são
formas de comportamento
humano e, como tal, surgem e
são mantidas pelas conseqüências
que geram no mundo a sua
volta. Fazem parte da classe de
comportamento denominada
verbal, ou seja, dependem da
intermediação de outra pessoa
para serem mantidas. Podemos
dizer que os preconceitos são
“conceitos” desconectados
do ambiente não-verbal, que
_especial
7
Visão semelhante a respeito da construção social da verdade pode ser encontrada em “A Ordem do Discurso”, de Michel
Foucault.
8
GERIN, B. “Behavior Analysis and the Social Construction of Knowledge”. Hamilton: University of Waikato, 1995.
_53
são, no entanto, divulgados e
exaustivamente repetidos e
mantidos por uma comunidade
verbal. Dessa forma, a
compreensão da dinâmica dos
“comportamentos verbais” parece
essencial para a discussão sobre a
manutenção dos preconceitos nas
diversas sociedades.
Os preconceitos podem surgir porque
trazem benefícios para um determinado
grupo. No entanto, podem passar a
ser mantidos não mais porque trazem
esse benefício específico, mas porque
são considerados como afirmativas
“corretas”, em razão das práticas que
levam à desconexão com o mundo não-
verbal. A partir daí, são mantidos de
forma generalizada pela comunidade
verbal, que, historicamente, mantém
aquilo que é considerado correto. Como
afirmado, no entanto, a definição do que é
“correto” é controlada pelo próprio grupo
social e independe, muitas vezes, de sua
correspondência com o ambiente não-verbal.
O desligamento dos
preconceitos do mundo não-
verbal pode ser tão radical que,
muitas vezes, nem mesmo o
emissor do comportamento
preconceituoso crê naquilo
que expressa ou mesmo deseja
que os outros creiam no que
é dito. Falas preconceituosas
apresentam-se das mais variadas
formas. Sem diminuir a importância das
demais formas de discriminação, Bernard
Guerin, em estudo de 2003, intitulado
“Combating Prejudice and Racism: New
Interventions from Functional Analysis of
Racist Language”, propõe apresentar um tipo
particular de discriminação: a discriminação
“sutil”, realizada cotidianamente por meio
da linguagem em conversas informais com
conteúdo preconceituoso.
Segundo o autor, muitos posicionamentos,
crenças, atitudes, ou representações sociais
de tópicos abstratos podem ter a função de
manter relacionamentos ou, simplesmente,
manter o seguimento de conversas. Podem ser,
portanto, desvinculados de uma intenção de
convencer o ouvinte da verdade ou veracidade
das colocações. Há muitas formas para manter
a atenção dos ouvintes, uma delas, infelizmente,
são as falas preconceituosas. O argumento do
autor baseia-se na idéia de que comentários
preconceituosos, muitas vezes, não pretendem
fazer com que as outras pessoas ajam de forma
nefasta e discriminatória. Seriam realizadas
em contextos de diversão, como piadas. São
formas utilizadas por oradores para ganhar
atenção, “status”, em um relacionamento.
9
Isso
não significa que este comportamento não
seja extremamente prejudicial para aqueles
grupos que são alvo dos comentários. Apesar
9
GUERIN, B. “Combating Prejudice and Racism: New Interventions from a Functional Analysis of Racist Language”, 2003.
_54_54
de muitas vezes não ser o principal objetivo do
falante, esse tipo de comportamento contribui
para práticas discriminatórias dentro das
diversas comunidades, além de gerar carga de
tensão acumulada na população atingida.
Essa forma de discriminação, bastante
sutil, é difícil de ser combatida. De acordo
com Guerin, em uma conversa na qual
alguém faz um comentário discriminatório
para gerar “distração”, rebater o
posicionamento com dados da realidade que
se oponham ao que foi dito pode não ser a
melhor estratégia. Primeiramente, porque o
que mantém esse tipo de comportamento
não é o ambiente não-verbal, mas sim o
comportamento das outras pessoas, que,
em geral, respondem positivamente a essas
atitudes. Além disso, aqueles que expressam
pensamentos preconceituosos utilizam
estratégias, bastante conhecidas, para evitar
constrangimentos: utilização de formas
abstratas e gerais, distanciamento, discurso
indireto, desculpas, educação, ambigüidade.
Em terceiro lugar, um confronto direto, cria,
em geral, um mal-estar para quem se coloca
contrário à fala racista que, muitas vezes, é
tida como uma “piada inofensiva”.
A existência de preconceito e
discriminação de pessoas é um
problema contemporâneo de
extrema gravidade. A sociedade
internacional admite a existência
de tal mazela e busca combatê-
la de formas diversas. Exemplo
dessa postura é a “Convenção
sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial”,
na qual se afirma que os países
signatários se obrigam a adotar
todas as medidas necessárias para
eliminar rapidamente a discriminação
racial em todas as suas formas
e manifestações, e a prevenir e
combater doutrinas e práticas
racistas com o objetivo de promover o
entendimento entre raças e construir
uma comunidade internacional livre
de todas as formas de segregação
racial e discriminação racial”. A Busca
pela eliminação do preconceito e
da discriminação é um dever dos
Estados Modernos, que assumiram
a igualdade entre as pessoas como
princípio fundamental de suas
constituições.
10
_especial
10
GOMES, J. B. B. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro, 2001.
_55
Para combater as falas preconceituosas,
Guerin propõe novas formas de intervenção:
correções educadas, contra-piadas, fortes
“put-downs” para calar aquele que fez o
comentário indesejado, entre outras, a
depender do contexto. Acredita-se que a
utilização social das falas preconceituosas
poderia ser substituída por outras formas de
se conseguir atenção nas conversas, já que,
com certa freqüência, o conteúdo exposto
não é o que realmente está em jogo, e sim a
conquista de apreciação social.
Ao analisar a característica funcional
das conseqüências do comportamento, em
especial das conseqüências mediadas pela
comunidade verbal, podemos entender como
os preconceitos, apesar de desconectados da
realidade não-verbal, são mantidos por muito
tempo nas diferentes sociedades. Assim, é
possível pensar em métodos mais eficientes
para combater essa forma tão perversa de
comportamento discriminatório.
_55
ARTIGOS E ENSAIOS
_56_56
ESPARTANOS,
MUTANTES E
EXCLUÍDOS
Paulo André Moraes de Lima
“Enquanto os homens exercem seus
podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e
mulheres
E adolescentes
Fazem o carnaval”
Caetano Veloso
“Somos o que somos, somos o que somos
Inclassificáveis, inclassificáveis”
Arnaldo Antunes
Um ensaio sobre
cultura e relações
internacionais
_57
Leônidas e Xerxes encontram-se no
campo de batalha. De um lado, Esparta: o
corpo musculoso e viril do bravo soldado,
disposto a lutar até a morte por sua
liberdade. Do outro lado, a Pérsia: o corpo
andrógino e excessivo que parece encarnar o
pesadelo da alteridade, assustadora, opressiva
e monstruosa. Uma espécie de Madame Satã
do Oriente. Ao redor deles, jazem os corpos
dos mortos no que nos é apresentado como
o choque inevitável entre a
civilização e a barbárie
1
.
O outro, que surge como o
grande vilão em 300, torna-se
herói na saga cinematográfica
dos X-Men
2
. Aqui, a verdadeira
ameaça não nasce da diferença
entre “nós” e “eles”, mas da
intolerância que ronda todos,
mutantes e humanos, e põe em
risco a sobrevivência tanto de
uns quanto de outros.
Antônio Biá, o “intelectuário”
do Vale de Javé, tem a missão
de registrar “cientificamente”
a história de sua comunidade
num caderno, para demonstrar
a presença de um “patrimônio”
a ser preservado e, assim, evitar
que o local seja submerso pelas
águas de uma barragem em
construção. Para isso, começa a
ouvir dos moradores de Javé os
contraditórios e desorganizados
relatos sobre suas origens. Mas
Javé é um lugar como outro
qualquer, habitado por gente
comum. Seu povo não é nem
espartano, nem mutante. São
apenas excluídos, cujo maior
feito, no fundo, consiste na vã
tentativa de buscar afirmar sua
identidade nas páginas de um
caderno que só consegue abrigar rabiscos e
desenhos sem aparente valor “cultural”
3
.
Três filmes, três narrativas que podem
oferecer, para aqueles que se interessam pela
reflexão sobre as questões da cultura, três
leituras distintas sobre o lugar da diferença e
da diversidade na vida social das comunidades.
Tradicionalmente, a vinculação entre
cultura e relações internacionais encontra-
se associada à idéia de “diplomacia cultural”.
Nesse contexto, a cultura é entendida como
uma ferramenta a ser utilizada pelos Estados
em sua política externa. Em uma vertente
teórica mais elaborada, a diplomacia cultural
aparece como uma das modalidades do poder
que os Estados procuram projetar na arena
internacional: o soft power, que busca influenciar
o comportamento dos atores externos e a
conformação da agenda internacional pela
atração dos valores e das idéias transmitidos,
entre outros, pelas expressões culturais
4
De uma perspectiva menos “realista” e
unilateral, a diplomacia cultural é vista como
um instrumento capaz de fomentar a paz e as
relações harmoniosas entre os Estados, por
meio da promoção do conhecimento mútuo
e do intercâmbio de manifestações e agentes
culturais, seja na esfera bilateral, seja no nível
mais abrangente dos organismos multilaterais.
Para a diplomacia cultural, a articulação
entre cultura e relações internacionais aparece
como exterior tanto à cultura quanto às
relações internacionais. O entendimento do
que pode ser abarcado pela idéia de cultura
permanence relativamente limitado a uma
combinação, em proporções variadas, de bens
e expressões da criatividade humana, oriundos
do campo das artes, das formas industriais de
produção de entretenimento e das tradições
populares. Ao mesmo tempo, a cultura assim
compreendida encontra-se, no que se refere à
sua vinculação com as relações internacionais,
subordinada a algo estranho à sua dinâmica
própria: a política externa dos Estados que, por
sua vez, se limitam a fazer uso dos recursos e
1
300, filme de Zack Snyder (2006).
2
Trilogia formada por X-Men: O Filme (2000), X-Men 2 (2003) e X-Men - O Confronto Final (2006). Os dois primeiros filmes
foram dirigidos por Bryan Singer; o terceiro, por Brett Ratner.
3
Narradores de Javé, filme de Elaine Caffé (2003).
4
NYE JR., Joseph S. Soft Power: The means to success in world politics. New York: Public Affairs, 2004.
_58
possibilidades que a cultura lhes oferece para
a realização de seus interesses, definidos numa
esfera na qual os “agentes culturais” estão, de
um modo geral, ausentes.
Sem eliminar ou substituir a noção de
diplomacia cultural, o surgimento, nas últimas
décadas, e a proliferação, mais recente,
de diversas questões relacionadas com a
cultura na agenda internacional refletem e
apontam para a constituição de um campo
no qual a vinculação entre cultura e relações
internacionais ganha novas dimensões e torna-
se, ela mesma, “problemática” e objeto de uma
discursividade própria e de um conjunto de
práticas, mecanismos e instituições.
A partir de uma perspectiva inspirada
pelo pensamento de Michel Foucault ou,
mais precisamente, pela atitude crítica e
metodológica em relação à atualidade,
desenvolvida por Foucault em sua
obra
5
, procurarei identificar, a seguir,
alguns dos elementos que me parecem
especialmente relevantes para determinar
as possibilidades, tensões e limites desse
modo específico de articulação entre
cultura e relações internacionais.
A Declaração do México sobre Políticas
Culturais, adotada pela Conferência Mundial
sobre Políticas Culturais, a MONDIACULT,
celebrada na Cidade do México, em 1982,
oferece um mapa abrangente e ainda atual
do espaço no qual cultura e relações
internacionais têm-se relacionado. A
MONDIACULT coroou um extenso processo
de reuniões internacionais sobre o tema
das políticas culturais, com especial ênfase
na relação entre cultura e desenvolvimento,
realizadas desde o final da década de 1960.
A Declaração do México apresenta uma
definição de cultura que será retomada por
todos os documentos oficiais adotados no
âmbito da UNESCO a partir de então:
“em seu sentido mais
amplo, a cultura pode ser agora
entendida como o complexo
integral de distintos traços
espirituais, materiais, intelectuais
e emocionais que caracterizam
uma sociedade ou grupo social.
Ela inclui não apenas as artes e
as letras, mas também modos de
vida, os direitos fundamentais do
ser humano, sistemas de valores,
tradições e crenças.
Embora, por ocasião da conferência,
um tal entendimento da cultura não fosse
novo nas ciências sociais, sua adoção formal
em um documento internacional refletia a
emergência (tanto no sentido de emergir
quanto no sentido de “momento crítico ou
fortuito”) de um espaço dentro do qual a
cultura afirmava-se como um tema autônomo
das relações internacionais, e não mais apenas
uma ferramenta de política externa.
No contexto da Declaração do México,
a concepção mais restrita da cultura como
conjunto de manifestações vinculadas às
artes e à expressão da criatividade humana
é redimensionada em um contexto mais
abrangente que, ao reconhecer a necessidade
5
Atitude elaborada teoricamente por Foucault em diversos textos e intervenções, entre os quais: FOUCAULT, M. Qu’est-ce
que les Lumières? IN: Dits et Ecrits IV. Paris: Gallimard, 1994, p 562-578.
_artigos e ensaios
_59
e a legitimidade de políticas públicas que
tenham essas manifestações como objeto,
introduz a dimensão da cultura nos debates e
práticas internacionais da “governabilidade”. As
manifestações culturais, em seu sentido estrito,
condensam e cristalizam a essência dos valores,
tradições e crenças de cada cultura, tomada
em sua acepção “antropológica” ampliada.
Tornam-se, assim, os veículos privilegiados das
diferentes “identidades” culturais que formam
o todo da raça humana. Não são mais a
“cereja do bolo” ou um mero instrumento de
atração ou sedução, mas traduzem a própria
essência da cultura e, como tal, necessitam ser
preservadas e promovidas.
Nesse sentido, nos termos adotados
pela MONDIACULT, fazem-se necessárias
políticas culturais que “protejam, estimulem
e enriqueçam a identidade cultural e
o patrimônio natural de cada povo, e
estabeleçam o respeito absoluto e a apreciação
das minorias culturais e as outras culturas do
mundo”. Além disso, “qualquer política cultural
deveria restaurar o significado profundo e
humano do desenvolvimento”. Uma política
cultural “democrática” deverá ainda “prover
o gozo da excelência artística por todas as
comunidades e pela população inteira”.
Dessa forma, a ampliação do conceito
de cultura, tal como refletida na Declaração
do México, inscreve-se no contexto de
uma reconfiguração das discussões e
das práticas culturais, que expande o
campo de possibilidades, competências e
responsabilidades de atuação dos Estados no
que se refere às suas políticas públicas para
a cultura, tanto na esfera interna quanto na
externa. Os debates em torno da negociação
e da implementação da Convenção sobre
a Proteção e Promoção da Diversidade
Cultural
6
, que afirma o “direito soberano”
dos Estados de “formular e implementar
suas políticas culturais”, constituem o
desdobramento mais recente dessa dinâmica.
A trajetória que vai da MONDIACULT à
Convenção da Diversidade Cultural traduz,
no campo da cultura, um fenômeno que
acompanha o crescimento das organizações
internacionais nas últimas décadas: a
identificação de diretrizes, padrões e limites a
serem levados em conta e respeitados pelos
Estados quando, no plano interno, elaboram e
implementam suas políticas públicas. Trata-se de
um fenômeno que se manifesta, naturalmente,
por meio de instrumentos normativos e de
declarações políticas negociados pelos Estados
e que traduzem, nesse sentido, consensos e
denominadores comuns obtidos ao longo
dos processos negociadores. Entretanto,
paralelamente à dinâmica inter-estatal,
6
Adotada pela 33ª Conferência Geral da UNESCO em outubro de 2005 e em vigor desde março de 2007.
_60
desenvolver-se-á, em torno dos organismos
internacionais, todo um corpo de saberes
e práticas
7
que manterá, com o exercício
político da diplomacia, relações de diálogo,
complementaridade e tensão.
Ao mesmo tempo, a complexidade
dos temas abarcados pela Convenção da
Diversidade Cultural aponta para a crescente
transversalidade do campo da cultura, como
já o reconhecia a Declaração do México.
Não somente em relação a campos que lhe
são “naturalmente” afins, como a educação,
a ciência e a comunicação; mas também em
relação a outras áreas, por meio da afirmação
da dimensão cultural do desenvolvimento e
da vinculação entre cultura e democracia.
A transversalização da cultura implica, em
primeiro lugar, a incorporação de temas e
preocupações culturais pelas demais áreas de
atuação do Estado. Como afirmam as diretrizes
gerais do Plano Nacional de Cultura brasileiro,
“as relações entre políticas
de cultura e as demais
políticas setoriais de Estado
são fundamentais para
assegurar os níveis desejados de
transversalidade e integração
de programas e ações.
Conjugar políticas públicas de
cultura com as demais áreas
de atuação governamental é
fator imprescindível para a
viabilização de um novo projeto de
desenvolvimento para o país.
8
A discussão sobre a dimensão cultural do
desenvolvimento adquire, ou busca adquirir,
7
No campo especifico da cultura, por exemplo, esse corpo se reflete, entre outros, em publicações como os “Relatórios
Mundiais sobre a Cultura” (UNESCO, 1998 e 2000), na coleção de estudos sobre cultura e desenvolvimento publicados pela
UNESCO na década de 1990 e ainda no Relatório sobre Desenvolvimento do PNUD de 2004, que teve como tema “A
Liberdade Cultural num Mundo Diversificado”.
8
Ministério da Cultura, Plano Nacional de Cultura – Diretrizes Gerais. Brasília, 2007.
p. 29. A Constituição Federal brasileira de 1988 inclui, em sua seção relativa à ordem social, dois artigos sobre a cultura, que
atribuem ao Estado a responsabilidade de garantir o “pleno exercício dos diretos culturais e acesso às fontes da cultura nacional” e
define como patrimônio cultural brasileiro, entre outros, os “modos do criar, fazer e viver”. A aprovação da Emenda Constitucional
Nº 48, em agosto de 2005, cria o Plano Nacional de Cultura (PNC), que tem como base conceitual uma compreensão da
cultura em suas dimensões simbólica, cidadã e econômica, e define o papel do Estado como indutor, fomentador e regulador das
atividades, serviços e bens culturais. Constata-se assim, no caso brasileiro, o progressivo aprofundamento da aplicação, às políticas
públicas, do conceito ampliado de cultura.
centralidade na formulação das políticas
públicas. Entretanto, a transversalização da
cultura não ocorre sem tensões. Para o
povo de Javé, por exemplo, a força da cultura
demonstra não ser suficiente para salvar
a comunidade da expulsão e da exclusão.
Talvez porque Javé não consiga associar
sua cultura e seu “patrimônio histórico” à
noção de identidade cultural, o que lhe daria
legitimidade e força para lutar contra os
interesses da “maioria”: “A maioria eu não sei
quem são… Mas nós é que somos os tantos
do sacrifício”, diz um dos moradores de Ja
_artigos e ensaios
_61
ao tentar explicar à comunidade as razões da
construção da barragem e do conseqüente
alagamento da vila.
Além disso, a agenda internacional será, ela
também, “contaminada” por preocupações de
ordem cultural. O desenvolvimento da noção
da natureza “específica” dos bens e serviços
culturais, que asseguraria à cultura um local
diferenciado nas relações comerciais; a discussão
sobre a relação entre os conhecimentos
tradicionais e os regimes de propriedade
intelectual; a idéia de um necessário equilíbrio
entre a promoção do direito de acesso à cultura
e a proteção dos direitos de autor; o espaço
concedido, dentro das políticas e programas
de desenvolvimento, às “indústrias criativas”;
a construção de democracias “multiculturais”,
com base na compatibilização entre “liberdade
cultural”, entendida como ampliação das
possibilidades de escolha de modos de vida
pelos indivíduos; e a preservação das tradições
religiosas e culturais: proliferam os pontos nos
quais a transversalidade da cultura, inerente à
sua afirmação como campo autonômo dentro
da agenda internacional, encontra limites que
procura ultrapassar.
Assim, se no plano da diplomacia cultural,
a utilização da cultura como ferramenta de
política externa mantinha os dois campos
externos um ao outro, a transversalização
das questões culturais implica, de modo
crescente, a reivindicação de que a própria
formulação da política externa dos Estados
internalize e incorpore a cultura como um de
seus elementos constituintes.
Foi possível sugerir, até agora, que a
disseminação de uma noção ampliada da
cultura favoreceu o desenvolvimento de um
conjunto de discussões e práticas interiores à
própria cultura, associado à idéia de políticas
culturais, que, pela própria natureza transversal
da cultura assim concebida, aponta para pontos
onde a cultura, de certo modo, “transborda” e
“invade” áreas que lhe são externas. Ao longo
desse processo, no qual o papel desempenhado
pela atuação e pelos debates promovidos
no âmbito das organizações internacionais
não deve ser subestimado, redimensionam-
se os vínculos entre a cultura e as relações
internacionais, para além da noção tradicional
de diplomacia cultural.
Restaria refletir, ainda, em que medida
uma noção ampliada da cultura abre também
caminho para a formação de uma dimensão
conceitual (mas com implicações concretas
em termos de formulação de políticas) que
identifica a cultura como uma categoria
essencial para a compreensão da dinâmica
das relações internacionais, segundo a qual as
diferenças culturais teriam um papel fundador
nas interações entre os povos e os Estados.
De um certo modo, volta-se aos princípios
que orientam a prática da diplomacia cultural.
Entretanto, há aqui uma clara mudança de
ênfase. Onde uma concepção baseada numa
visão da cultura restrita a um conjunto limitado
de bens e manifestações culturais colocava
a diplomacia cultural a serviço de interesses
políticos que lhe eram externos (seja no sentido
do exercício do poder ou da “influência”, seja no
sentido do fomento da paz e do entendimento),
uma visão “culturalista” das relações
internacionais, levada ao extremo, subordina o
exercício do político ao reconhecimento das
diferenças culturais e de sua irredutibilidade.
É nesse contexto que voltamos a
encontrar espartanos e mutantes. Para os
primeiros, o outro aparece como a ameaça
absoluta, que necessita ser combatida a
todo custo. A visão da diferença apresentada
em 300 traduz uma perspectiva neo-
conservadora do mundo e pode ser
entendida como uma ilustração, dentro da
estética de Hollywood, da polêmica tese
de Samuel Huntington sobre o “choque
das civilizações”
9
. Quem não é como nós é
contra nós.
No caso dos mutantes, em que pese
o incômodo permanente causado pela
presença da diferença, que se tenta eliminar
pelo extermínio ou pela assimilação (a
“cura” dos mutantes), prevalece a visão
“multiculturalista” liberal encarnada pelo
Professor Xavier, não por acaso, ele próprio
um mutante. Trata-se de visão análoga à
que inspira, direta ou indiretamente, ações
9
HUNTINGTON, Samuel P. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. New York: Touchstone, 1997 (1ª Ed. 1996).
10
Resolução 90 da 62ª Assembléia Geral da ONU, adotada por consenso em 14 de dezembro de 2007 (A/RES/62/90).
_62
e iniciativas como a Agenda Global para
o Diálogo entre as Civilizações, adotada
pela ONU em 2001, a mais recente Aliança
das Civilizações, de 2006, e a decisão de
proclamar 2010 como o Ano Internacional
para a Aproximação das Culturas
10
.
Seja quando afirmam a inevitabilidade de
um confronto entre as culturas, seja quando,
ao contrário, apostam na possibilidade e
na necessidade do fomento do “diálogo
intercultural”, as leituras “culturalistas” do
mundo não questionam a premissa básica que
postula a existência de diferenças essenciais
entre os povos, associadas a identidades
culturais definidas e definíveis. É em nome
da preservação e da promoção dessas
identidades que a cultura afirma seus direitos
e o espaço que lhe é próprio.
Ao mesmo tempo, entretanto, a vinculação
estreita entre cultura e identidade ameaça,
nesses discursos, enredar a cultura na teia
de sua própria diversidade. Pois, quer se
pretenda negá-lo, quer se deseje afirmá-lo
e promovê-lo, o direito à diferença assim
concebida constitui-se a partir de uma lógica
identitária que, ao buscar a coesão pela
uniformidade ou pela regulação das diferenças,
tende a fechar as culturas em seus próprios
sistemas e critérios de pertencimento e
exclusão. Mais do que isso, aprisiona a própria
noção de cultura, privilegiando a definição
do que pode ou merece ser considerado
“cultura” em relação à pluralidade e à
heterogeneidade das práticas culturais.
O que fazer, então, com os narradores
de Javé e seus fragmentos incoerentes de
memórias, insuficientes para a constituição
“científica” de um patrimônio ou de uma
identidade próprios? Estarão condenados a
vagar pelo mundo, como eternos excluídos da
sociedade e da cultura?
Não tenho a pretensão de responder
aqui a essas perguntas. Não consigo, no
entanto, deixar de evocar a possibilidade de
outras formas de problematização da cultura,
que conduzam a discursos e práticas não
obrigatoriamente associados à identidade.
Formas de problematização que, sem ignorar
os processos assimétricos de interação
cultural, sejam capazes de propor modelos
alternativos de convívio entre as culturas.
E substituam a lógica de uma identidade
excludente, que separa claramente quem
e o que somos do que e de quem não
somos, espartanos ou persas, mutantes ou
humanos, pela afirmação de uma ética da
singularidade inclusiva, na tradição de uma
antropofagia tropicalista que nos é familiar:
ao incorporar, aos nossos modos de ser e de
nos expressar, formas, sons, gestos, sabores,
práticas e sentidos que vêm do outro mas,
no fundo, não pertencem a ninguém; ao
atualizar, como o povo excluído de Javé, uma
cultura que não pode ser registrada no “livro
do patrimônio”, mas que se manifesta no
cotidiano: alegre, incoerente, idiossincrática;
e ao celebrar a diferença em nós mesmos e
nos outros, como aquilo que nos une e nos
torna polifonicamente singulares, porque
irredutivelmente plurais.
_artigos e ensaios
_63
SOB O OLHAR CÉTICO:
Gabriela Guimarães Gazzinelli
DIPLOMACIA
E CULTURA NA
ANTIGÜIDADE
Zeus, ante dois homens
suplicando coisas contrárias,
prometendo iguais sacrifícios,
não sabia a qual deles assentir,
de modo que se encontrava
naquele estado acadêmico [i.e.
cético] e não poderia recusar
algo a nenhum deles, mas, qual
Pirro, suspendia então o juízo e
continuava a investigar.
Luciano de Samósata,
Icaromenipo
_63
_64
Segundo Lactâncio
1
, Carnéades (século
II a.C.), o cético acadêmico, foi escolhido
pelos atenienses para negociar, como
embaixador, os termos de um tratado de paz
em Roma. Por essa ocasião, teria discursado
longamente a favor da justiça na presença
dos maiores oradores de seu tempo. Para
surpresa de todos, porém, no dia seguinte,
refutou o próprio discurso com outro, em
que atacava a justiça que elogiara na véspera.
O parecer severo do autor cristão afirma que
tal discurso foi feito “não com a seriedade do
filósofo, cuja opinão deve ser firme e estável,
mas à maneira de um exercício de retórica,
com argumentos pro e contra”. Um exame
mais cuidadoso, todavia, leva a crer que
Carnéades não desejava, com isso, subverter
a justiça, mas, sim, evidenciar a volubilidade da
argumentação.
O ceticismo antigo data do final do século
IV a.C., tendo se prolongado até meados
do século III d.C. Caracterizava-se pela
contraposição de discursos em defesa de
teses contrárias (diaphonía) visando alcançar
um estádio de equipolência entre diferentes
lados de um debate (isosthenía), ao qual
se acreditava seguir a suspensão de juízo
sobre a real natureza das coisas. Além de
defenderem uma posição teórica contrária
ao dogmatismo no conhecimento, os céticos
preocupavam-se com questões de natureza
prática, procurando, por sua filosofia, meios
de se atingir um estado de tranqüilidade na
vida comum. O ceticismo antigo compreendia
duas vertentes: os acadêmicos e os pirrônicos.
Os acadêmicos, como Arcesilau, Carnéades
e Cícero, dominaram, nos séculos III-I a.C., a
Academia fundada por Platão. Propunham um
entendimento cético dos diálogos platônicos
e desenvolveram uma argumentação
dialética que se valia do razoável (eúlogon) e
do persuasivo (píthanon) como critério de
pensamento e de ação. Os céticos pirrônicos
– tendo Pirro como seu fundador e Timão,
Enesidemo e Sexto Empírico como principais
sucessores – diferenciaram-se dos acadêmicos
por sua maior ênfase nos benefícios de
uma disposição cética para a vida comum,
sobretudo em vista da tranqüilidade (ataraxía)
que dela resultaria, bem como por seu exame
mais acurado dos fenômenos, que adotaram
como critério da ação.
A curiosa relação entre o ceticismo e a
diplomacia, sugerida pelo episódio da vida de
Carnéades, talvez seja menos improvável do
que se poderia imaginar. A natureza dialética
da filosofia cética assemelha-se, em certo
sentido, ao exercício da diplomacia, em que
também se opõem discursos rivais, em defesa
de interesses nem sempre coincidentes. Com
efeito, qual os diplomatas da Antigüidade,
muitos dos quais eram retores, os céticos
eram tidos por excelentes argumentadores e
empreendiam verdadeiras logomaquias contra
seus adversários filosóficos. O repúdio cético ao
discurso monológico, caro à filosofia dogmática,
evitava reduzir as diferenças aos termos da
posição que, porventura, fosse dominante no
debate em questão. Muito embora a suspensão
cética do juízo, que resultaria do embate das
opiniões, não possa ser facilmente transposta
à diplomacia, a maneira como sua filosofia
Além de defenderem uma posição teórica contrária ao
dogmatismo no conhecimento, os céticos preocupavam-se com
questões de natureza prática, procurando, por sua filosofia,
meios de se atingir um estado de tranqüilidade na vida comum.
_artigos e ensaios
_64
1
Cf. Lactâncio, Divinarum Institutionum, 5.14.3-5. Lactâncio (séc. IV d.C.), retor do norte da África, escreveu obras apologéticas
do cristianismo.
2
Cf. Diógenes Laércio, A vida dos filósofos ilustres, 9.61.
_65
lidava com o conflito de opiniões – voltando
cuidadosa atenção à “diafonia” discursiva
e desfazendo-se de dogmatismos – pode
aproximá-la da diplomacia.
Mais significativa para essa aproximação,
porém, parece-me ser a maneira como
os filósofos céticos assimilavam o
contato que tiveram com outros povos.
O ceticismo antigo floresceu justamente
no período helenístico, marcado pela
difusão da cultura grega pelo Mediterrâneo
e pela intensificação desse contato. O
conhecimento de novas culturas, adeptas
de seus próprios costumes e cosmovisões,
punha em xeque as certezas da filosofia e
da moral gregas. A expansão do império de
Alexandre Magno (séc. IV a.C.) – a partir da
Macedônia até a Índia – e a passagem por
regiões incógnitas para os gregos operavam,
portanto, mudanças efetivas na maneira
helenística de conceber o mundo.
Pirro de Élida, fundador da escola cética
pirrônica, teria participado da expedição
de Alexandre ao Oriente, vivenciando
esse momento de transformação na
Antigüidade. Foi nessas viagens que Pirro
teria conhecido os “magos persas” e os
“sábios nus” indianos (os gimnosofistas)
2
.
Tal convívio parece ter exercido expressiva
influência na formulação de sua filosofia:
muitos de seus fundamentos, como a
indiferença, a ausência de afecções, a afasia
e a tranqüilidade, descrevem estados
reminiscentes do pensamento oriental.
Afora isso, na própria corte de Alexandre,
observavam-se oposições teóricas, já que
se cercara de filósofos representantes de
diversas correntes: o cínico Onesicrito,
o atomista Anaxarco, o cético Pirro, o
peripatético Calístenes e o hindu Calano.
O pirronismo teria assimilado essa
experiência em suas práticas filosóficas. Um
trópos consagrado da argumentação cética
apóia-se justamente na variedade de estilos
de vida, leis e crenças míticas que prevalece
entre diferentes povos. Como ponderam os
pirrônicos, o que é justo para alguns, para
outros é injusto; e o que, para uns, é bom, é mau
para outros. Diógenes Laércio, ao descrever a
variedade dos costumes, ilustra-a por meio de
exemplos que, por mais duvidosos que sejam,
guardam interesse anedótico:
“Os persas não consideram
inapropriado ter relações incestuosas,
mas os gregos o repudiam. E os
massagetos, como conta Eudoxo
no primeiro livro do Périplo, têm as
mulheres em comum e os gregos, não.
Os cilícios deleitam-se na pirataria, mas
os gregos não.
Cada qual tem em consideração os
próprios deuses e uns acreditam na
antevisão e outros não. Os egípcios
_65
_66
enterram os mortos embalsamados;
os romanos os cremam; os peônios os
lançam nos pântanos. Assim, sobre a
verdade, [segue] a suspensão de juízo.
3
Desse modo, a dialética, já consagrada
pela filosofia clássica, passa a ter, entre os
céticos, um lastro na intensificação do convívio
cultural experimentada no Período Helenístico.
Diferentemente de outras correntes, nas quais
transparece um zelo excessivo pelas próprias
posições, o ceticismo favorece os valores
da tolerância, por conviver melhor com a
diversidade de opiniões, à qual dispensa toda
atenção e interesse. Seus hábitos dialéticos
preservam-nos, ainda, do apego a eventuais
opiniões perniciosas, apego esse por vezes
motivado por compromissos dogmáticos.
No Período Imperial, o ceticismo pirrônico
foi reelaborado por Enesidemo e Sexto
Empírico, ganhando em sutileza e sofisticação.
Desdobrou-se na rica tradição filosófica e
doxográfica, que, em parte, nos foi legada. O
ceticismo acadêmico, por seu turno, passou
a gravitar em torno do estoicismo, contra
o qual tanto rivalizara. Segundo Enesidemo,
em sua época, os acadêmicos mais pareciam
“estóicos combatendo estóicos”
4
. Com
efeito, à Academia cética, sucederia a
Academia estóica de Fílon de Larissa e
Antíoco de Ascalônia. A rivalidade entre
estoicismo e ceticismo (e, por extensão, entre
acadêmicos e pirrônicos) tornava-se, pois,
definidora do novo pirronismo.
A tensão entre as duas escolas
transparece nas posições distintas adotadas
no debate voltado para os contrastes
culturais, que foram incorporados ao
imaginário do Império na medida em que
os romanos alargaram suas conquistas e
habitantes de toda parte dirigiram-se a
Roma. Os estóicos, por um lado, verificavam
uma ordem natural no mundo, manifesta
na idéia de uma razão universal, que os
levava a recusar fidelidade às identidades
locais, privilegiando o compromisso com
a comunidade moral integrada por toda a
humanidade, que se confundia facilmente
com os limites do Império. Para a filosofia de
orientação cosmopolita, Roma epitomizava
todo o mundo conhecido, rompendo-se,
por assim dizer, os limites entre urbs e orbis.
Ovídio afirma mesmo que “o espaço da
cidade romana e do mundo é o mesmo”
5
.
_artigos e ensaios
_66
_67
Os céticos, por outro lado, jamais
pretenderam reduzir a “diafonia cultural”
a um discurso universalista. Evitavam
fazer juízos de valor sobre as diferenças
culturais, uma vez que nada lhes parecia
ser “nem belo nem feio, nem justo nem
injusto por natureza, mas segundo a
convenção e o costume”
6
. Ao partirem da
própria diversidade de valores e costumes
inerente a qualquer sociedade ou grupo
de sociedades, os céticos introduziram
uma maneira sensata e coerente de se
lidar com impasses morais, estendendo
o alcance do ceticismo às considerações
éticas e políticas. Nessa época, as idéias
céticas foram se tornando tópos consagrado
também da literatura. O autor satírico
Luciano de Samósata (séc. II d.C.) – que
nasceu na Síria, educou-se em Roma e
Atenas e viajou por todo o Mediterrâneo
– apropriou-se delas de maneira exemplar
em suas muitas narrativas.
Em um episódio alusivo das Histórias
verdadeiras
7
, Luciano conta que, na Lua,
conheceu seres estranhos que tinham olhos
enroscáveis, que podiam tirar e colocar a seu
talante. Naturalmente, aqueles selenitas mais
distraídos acabavam por perder os próprios
olhos e precisavam tomar emprestados
os alheios. O humor na caracterização é
esclarecedor: provoca um riso irônico. Nas
palavras do Machado “esse movimento ao
canto da boca, cheio de mistérios, inventado
por algum grego da decadência, contraído
por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire,
feição própria dos céticos e desabusados”
8
.
Os autores satíricos descreveram-no como
um “riso sério” (spoudogelóion) que, nesse
caso, tematiza literariamente a percepção
das diferenças. A ironia é acentuada pela
possibilidade que a “estadia” na Lua propicia
a Luciano de “contemplar de longe”
(kataskopeîn) a terra. A distância permite que
volte ao mundo humano um olhar crítico
cheio de referências filosóficas. A idéia de ver
com os olhos alheios torna-se, pois, tanto
mais reveladora. Quem tiver demasiado apego
às próprias opiniões dificilmente aceitará ver
por olhos que não os seus.
Talvez nisso esteja a principal lição do
ceticismo antigo para a diplomacia em sua
dimensão cultural. Como observa Jacyntho
Lins Brandão, helenista luciânico, “a cultura
não pode ser o espaço da indiferença – ou do
indiferenciado – mas deve introjetar a visão
do outro que balança nossas certezas”
9
.
Os céticos evitavam fazer juízos de valor sobre as diferenças
culturais, uma vez que nada lhes parecia ser “nem belo nem
feio, nem justo nem injusto por natureza, mas segundo a
convenção e o costume”
_67
3
Diógenes Laércio, As vidas dos filósofos ilustres, 9.83-84.
4
Fócio, Biblioteca, 170 a 14-17.
5
Ovídio. Fasti, 2.684.
6
Diógenes Laércio, As vidas dos filósofos ilustres IX, 61. Vale lembrar que, no grego, os termos “belo” (kallós) e “feio” (aisxrós)
têm nuances morais complementares à significação estética.
7
Luciano, Verae historae, 1.25-26. Embora Luciano não seja cético, os céticos, em especial Pirro, são personagens freqüentes em
seus escritos literários. Nas Histórias verdadeiras, aparecem brevemente em um episódio na Ilha dos Bem-Aventurados, em que
não conseguem decidir-se por ir ou não à ilha, já que duvidam de sua existência e temem o juiz Radamanto depois de tanto terem
“suspendido o juízo”. Em todo caso, como, no prefácio, Luciano alerta os leitores contra a veracidade de suas histórias e insite que
não acreditem em uma palavra, acredito haver motivos céticos em outras passagens.
8
MACHADO DE ASSIS, “A teoria do medalhão”, Obras Completas, vol. 2, Editora Aguilar, 1962, p. 294.
9
LINS BRANDÃO, Jacyntho. A tradição da diversidade cultural: ensaio de tipologia. p. 11. Disponível em <http://www.letras.ufmg.
br/jlinsbrandao>, acessado em 16 de março de 2008.
_68
_artigos e ensaios
DANÇA DAS
CADEIRAS
A reforma do
Conselho de
Segurança
das Nações
Unidas
Fábio Simão Alves
Na prática da diplomacia multilateral
global, poucos postos são tão cobiçados
quanto um dos quinze assentos do Conselho
de Segurança das Nações Unidas. Responsável
principal pela manutenção da segurança
coletiva internacional, o Conselho é um
dos principais mecanismos de governança
global. Desde sua primeira reunião, em 17
de janeiro de 1946, no entanto, o Conselho
esteve incapacitado de exercer plenamente as
funções que lhe confere a Carta das Nações
Unidas. Incorporando a lógica da Guerra Fria
e transformando-se num instrumento dos
Estados Unidos e da União Soviética em sua
contenda global, o Conselho se viu relegado
a um segundo plano no campo da segurança
internacional. A quase paralisia durante a
Guerra Fria cederia lugar, no início dos anos
90, a um otimismo sem precedentes; efêmero,
no entanto, não resistiu à emergência de
novos conflitos e guerras por todo o mundo,
começando com os Bálcãs em 1991 e se
estendendo a Darfur, na atualidade.
O que explica o prestígio de se tomar
assento no Conselho de Segurança, se este
é um órgão que não funciona plenamente
de acordo com o que prevê a Carta? Qual
a vantagem política e diplomática de se
participar de um mecanismo de segurança
coletiva que, ao longo de seis décadas,
sucumbiu a inúmeras crises, conflitos e
guerras? Que capacidades de poder a
participação no Conselho assegura a um
Estado? Por que tantos Estados ambicionam
um assento ao redor da famosa horseshoe
table do Conselho?
Para se responder a essas questões, é preciso,
primeiramente, definir o conceito de poder
em política internacional. A definição de poder
como o conjunto de capacidades materiais que
um Estado detém e que lhe facultam o exercício
da coerção contra terceiros Estados tem cedido
espaço, na atualidade, a uma nova definição
no âmbito da Ciência Política, ainda que não
consensual, segundo a qual poder é a capacidade
exercida numa relação entre dois ou mais
agentes pela qual o agente ou grupo de agentes
A impõe a sua contraparte B comportamentos
que, de outra forma, B não adotaria, por meio da
coação (ameaça) ou da coerção (uso da força)
1
.
Poder é, num sentido amplo, a capacidade de
impor vontades numa relação entre dois ou
Introdução: uma posição de poder
Michel Lahan Neto
_69
mais atores, que se externa seja pelo controle
do processo decisório, seja pela tomada de
decisões tout court
2
.
Em segundo lugar, deve-se ver com
reserva a suposta ineficiência do Conselho
de Segurança. Se é fato que o Conselho não
pôde impedir a eclosão de inúmeros conflitos
ao longo de sua existência, também é fato
que em muitas oportunidades foi ele, sim,
capaz de compor as vontades e os interesses
de seus membros e impor suas decisões,
especialmente ao longo da primeira metade
dos anos 90, período marcado por intensa
atuação do Conselho, alavancado pelo clima
de otimismo do pós-Guerra Fria.
Outra questão que precisa ser abordada,
finalmente, é a capacidade de influência dos
membros não-permanentes no Conselho.
Embora os P-5 – especialmente o P-3 (Estados
Unidos, França e Reino Unido) – atuem em
caucus no processo decisório do Conselho,
a influência dos membros não-permanentes
é decisiva, seja porque têm capacidade de
influenciar a agenda
3
, seja porque podem
enfraquecer ou dificultar a tomada de decisões,
seja porque, ainda, o Conselho tem como regra
não-escrita a busca pelo consenso. Ademais, o
voto negativo de sete dos dez membros eleitos é
capaz de barrar qualquer decisão do Conselho
4
.
O Estado membro do Conselho de
Segurança, permanente ou não-permanente,
assegura para si uma dupla posição de poder:
é, simultaneamente, co-formador da vontade
de um grupo que decide sobre as questões
fundamentais de paz e segurança internacionais
e co-autor da agenda global de segurança. O
_70
_artigos e ensaios
Estado cujo representante toma assento no
Conselho de Segurança detém, pois, ainda
que provisoriamente, uma posição de poder e
influência privilegiada no cenário internacional.
A disputa por essa posição de poder é o
ponto central do processo de reforma do
Conselho de Segurança
5
. As atuais discussões
sobre sua reformulação se iniciaram em 1992,
quando a Assembléia Geral adotou a resolução
47/62, solicitando a todos os Estados membros
a apresentação de sugestões para uma eventual
revisão da composição do Conselho. Naquele
momento, crescia a percepção de que o
Conselho cristalizara uma realidade geopolítica
anacrônica, radicalmente distinta daquela em
que se vivia com o fim da Guerra Fria, ao
mesmo tempo em que sub-representava os
membros da Organização. Dos 51 Estados
fundadores das Nações Unidas em 1945, o
número de membros elevou-se a 179 em
1992. Em quatro décadas e meia, o número de
membros da Organização crescera 211%, ao
passo que o número de membros do Conselho,
apenas 67%, com a micro-reforma de 1963. Seu
déficit de representatividade – especialmente
em relação aos países em desenvolvimento
– tornara-se evidente.
Países como África do Sul, Alemanha, Brasil,
Índia, Japão e Nigéria foram extremamente
atuantes desde o início das discussões sobre
uma possível reforma. Mesmo os Estados
Unidos se mostravam a favor, ao apoiar
explicitamente o ingresso de Alemanha e Japão
no Conselho como membros permanentes. Um
passo adiante nas discussões sobre a reforma
se deu com a aprovação da resolução A/48/26
(1993), que criou o Open-Ended Working Group
(OEWG), encarregado de “considerar todos
os aspectos relacionados ao aumento da
composição do Conselho de Segurança”.
Em 1998, o OEWG, presidido pelo
Embaixador Ismail Razali, produziu um plano
que propunha uma reforma do Conselho em
três etapas, que contemplaria a adição de cinco
novos assentos permanentes, sem direito a
veto, e quatro assentos rotatórios, até o final
de 1998. O chamado Plano Razali, no entanto,
jamais chegou a ser colocado em votação. O
mais curioso em seu insucesso é o fato de que
contava com o apoio de todos os P-5, que, por
motivos diferentes, apoiavam a admissão de Japão
e Alemanha e – embora com menos entusiasmo
– de três países em desenvolvimento como
membros permanentes. O fator decisivo para
bloquear a reforma proposta por Razali foi a
aliança entre um grupo de dez países contrários à
expansão da categoria de membros permanentes
(Canadá, Egito, Guatemala, Itália, Líbano, México,
O Plano Razali: a primeira rodada
1
Para uma conceituação da teoria relacional (poder como relação) e da teoria substancialista (poder como material), v.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
2
V. BACHRACH, P. & BARATZ, S. “Two Faces of Power”. American Political Science Review, vol. 56, nº 4, Washington, 1962, pp. 947-52.
3
Os assuntos com os quais lida o Conselho em cada sessão compõem, em cada sessão, sua agenda, elaborada em draft pelo
Secretário-Geral, após comunicação aos quinze membros do Conselho, e aprovada pelo Presidente do órgão. No início de cada
sessão se adota a agenda definitiva por votação procedimental, não sujeita a veto. UNITED NATIONS. Security Council Rules of
Procedure, Document S/96/Rev.7, New York, 1983.
4
Para uma avaliação da importância dos membros não-permanentes, v. Teixeira, P. Le Conseil de Sécurité à l’Aube du XXème
Siècle. Génève: UNIDIR, IFRI, 2002.
5
Entende-se por reforma qualquer tentativa, bem-sucedida ou não, de alterar a composição e/ou os procedimentos de votação
e/ou os métodos de trabalho do Conselho de Segurança. A reforma do Conselho tem sido discutida desde 1979, colocada na
agenda da Assembléia Geral sob o item intitulado Question of Equitable Representation on and Increase in the Membership of the
Security Council”.
_71
Paquistão, Qatar, Síria e Turquia); a Organização da
Unidade Africana, que reclamava não menos que
dois assentos permanentes para o continente,
com direito a veto; e, finalmente, o Movimento
dos Não-Alinhados, que julgava inaceitável
qualquer reforma que se fizesse com a adição
de menos de 11 assentos e que respeitasse um
cronograma preciso
6
. Como naquela brincadeira
infantil, a dança das cadeiras começara, a música
parou, mas ninguém se sentou. Faltaram cadeiras.
Uma nova oportunidade
Em 2003, o insucesso do Conselho
de Segurança na condução dos assuntos
envolvendo o Iraque e sua incapacidade de
impedir a invasão do país despertaram na
comunidade internacional a convicção de
que era imperativa uma reforma abrangente
da ONU, com o intuito de adequá-la a uma
realidade internacional para a qual não parecia
preparada. A euforia do início dos anos 90 dera
lugar, afinal, à sensação de impotência diante de
desafios e crises com as quais a Organização
não soube – e ainda não sabe – lidar.
Com vistas a reformular a ONU para o
século XXI, o Secretário-Geral Kofi Annan
convocou, em setembro de 2003, o Painel de
Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças.
Reunindo 16 personalidades internacionais
7
,
o Painel incumbir-se-ia de “avaliar as atuais
ameaças à paz e à segurança internacionais” e
“fazer recomendações para o fortalecimento
das Nações Unidas”
8
. Em 2004, o Painel produziu
um extenso relatório, em que recomendava
uma reforma completa da Organização: A More
Secure World: our shared responsibility” afirmava, em
relação ao Conselho de Segurança, que
“o desafio de qualquer
reforma é aumentar
tanto a eficiência
quanto a credibilidade
do Conselho e, mais
importante, aprimorar
sua capacidade e
disposição de agir frente
a ameaças. Isso requer
um maior envolvimento
no processo decisório
do Conselho daqueles
[Estados] que mais
contribuem com
as Nações Unidas,
financeira, militar e
diplomaticamente”
9
.
Com base na representação regional
eqüitativa, o relatório propunha dois modelos
de reforma: o Modelo A previa a inclusão de seis
novos assentos permanentes (dois para a África,
dois para Ásia e Pacífico, um para as Américas
e um para a Europa) e três novos assentos
não-permanentes, de modo que cada região
– África, Ásia, Europa e Américas – contasse
com um total de seis assentos no Conselho
10
.
O Modelo B contemplava a inclusão apenas de
6
Para um relato do insucesso do Plano Razali e da atuação do “G-10”, da OUA e
do MNA, v. LAU, O. United Nations Security Council Expansion: the efficacy of small States
under multipolarity and uni-multipolarity. Cambridge: Harvard University Press: 2003;
e BLAVOUKOS, S. & BOURANTONIS, D. The Chair in the UN Context: assessing
functions and performance. The Hague: Cligendael, 2005.
7
Um dos membros do Painel foi o Embaixador João Clemente Baena Soares.
Para a lista completa, v. http://www.un.org/secureworld/panelmembers.html.
Acesso em 07/02/2008.
8
UN Document A/59/565, Note by the Secretary General, New York, 2004, par 3.
9
Idem, A More Secure World: our shared responsibility, New York, 2004, par. 248.
_72
_artigos e ensaios
assentos não-permanentes: a criação de uma
nova categoria de membros, com a inclusão
de oito assentos para um período de quatro
anos renováveis, e a adição de um assento
para um período de dois anos não-renováveis,
mantendo a distribuição geográfica 6 x 6 x
6 x 6
11
. Vale notar que a proposição de dois
modelos evidenciava a dificuldade de se alcançar
consenso entre 16 pessoas, o que prenunciava
dificuldades ainda maiores para que um deles
angariasse apoio de 120 países. O segundo
momento do processo de reforma do Conselho
de Segurança iniciava-se já sob dúvidas.
Em 2005, Kofi Annan endossou as
propostas do Painel de Alto Nível em seu
relatório “In Larger Freedom: towards security,
development and human rights for all”. O
ano de 2005 era o grande momento para
a reforma, com a realização, em setembro
daquele ano, da Cúpula Mundial e da
celebração do 60º aniversário da Organização.
Com fôlego renovado, a reforma adentrava
uma nova fase. Começava uma nova dança das
cadeiras – haveria desta vez algum assento a
ser ocupado?
Natural que o novo impulso dado às
discussões sobre a reforma do Conselho
mobilizasse as diplomacias de todo o mundo.
Grupos políticos se organizaram para
apresentar alternativas de reforma, movidos
não apenas por interesses estatais individuais,
mas também pela percepção de que chegara o
momento de tornar o Conselho de Segurança
mais representativo, legítimo e eficiente, para
o bem da comunidade internacional. Realismo
político e uma dose necessária de idealismo se
uniram para impulsionar as aspirações e ações
de Estados e grupos com vistas à promoção
da tão aguardada reforma do Conselho de
Segurança e da necessária democratização das
instâncias decisórias internacionais.
Já em 21 de setembro de 2004, o Ministro
das Relações Exteriores da Alemanha, Joschka
Fischer, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
o Premiê da Índia, Manmohan Singh, e o
Premiê do Japão, Junichiro Koizumi, reunidos
em Nova York para os preparativos da 59ª
Assembléia Geral, decidiram reunir esforços
e criar o G-4, grupo no qual os quatro países
passaram a defender de forma coesa uma
reforma do Conselho de Segurança que
“[inclua], de forma
permanente, países que
tenham a vontade e a
capacidade de assumir
responsabilidades
mais significativas em
relação à manutenção
da paz e da segurança
internacionais”.
Cristalizaram a aliança do G-4 ao afirmar que,
“baseados no firme
reconhecimento
mútuo de que são
candidatos legítimos a
membros permanentes
num Conselho
ampliado, apóiam suas
candidaturas de forma
recíproca”
12
.
Ao vencedor, as cadeiras: G-4, União
Africana e Unidos pelo Consenso
10
Curiosamente, a representação regional proposta contrariava a distribuição tradicional dos grupos regionais na Assembléia
Geral, nomeadamente os grupos da África, da América Latina e Caribe, da Europa Ocidental e outros países, da Europa Oriental e
da Ásia-Pacífico.
11
Ibidem, par. 250-3.
_73
Com base no Modelo A, o G-4 inicialmente
propunha a criação de seis novos assentos
permanentes (um para cada um de seus
membros, mais dois para a África) com
prerrogativa de veto e de quatro não-
permanentes (um para a África, um para a Ásia,
um para a América Latina e Caribe e um para a
Europa Oriental). Circulou entre os membros
da ONU, em maio de 2005, uma proposta de
resolução que contemplava suas aspirações de
reforma, que, diante da fria acolhida por parte
dos demais Estados, levou o Grupo a mudar de
estratégia, abandonando a pretensão ao poder de
veto e propondo um mecanismo de revisão, a ser
acionado quinze anos após aprovada a reforma.
Em 11 de julho de 2005, o G-4, co-patrocinado
por outros 23 Estados, apresentou formalmente
um draft de resolução à consideração da
Assembléia Geral
13
. Foi o ensejo para que outros
Estados entrassem em cena
14
.
A União Africana (UA, ex-OUA) mantém
uma posição comum sobre a reforma do
Conselho desde 1997, quando seus Estados
membros aprovaram a Declaração de Harare,
defendendo a concessão, para a África, de dois
assentos não-permanentes e dois assentos
permanentes com direito a veto. Respaldadas
pela confirmação dos termos de Harare no
chamado Consenso de Ezulwini, de 2005, as
nações africanas se mobilizaram para rejeitar
a “falta de ambição da proposta do G-4”. Nas
palavras do Representante da Argélia, falando
em nome da UA na sessão em que se discutiu
o projeto do G-4, “as propostas que hoje estão
na mesa de negociações [são] insatisfatórias
vis-à-vis as aspirações legítimas da África”
15
. A
mais forte oposição à proposta do G-4 não
veio, no entanto, da UA, mas do grupo Unidos
pelo Consenso (Uniting for Consensus – UfC).
A origem do UfC está diretamente ligada
à atuação do G-4. Conhecido como Coffee
Club”, referência à informalidade de sua
formação, o Grupo reúne 12 países que se
opõem à expansão da categoria de membros
permanentes no Conselho: Argentina, Canadá,
Colômbia, Coréia do Sul, Costa Rica, Espanha,
Itália, Malta, México, Paquistão, San Marino e
Turquia. A rivalidade regional com os países do
G-4 é a força motriz por trás da oposição do
UfC à proposta daquele grupo, como se pode
observar por sua composição. O Representante
Permanente do Paquistão, falando em nome
do UfC, referiu-se aos membros do G-4
como “aqueles que buscam privilégios e
poderes especiais, [e que] se mascaram de
defensores dos fracos e desprivilegiados
16
”.
Argumentando que qualquer reforma que inclua
membros permanentes “dividiria a Assembléia-
Geral” e “criaria um Conselho ineficiente e
antidemocrático”, o UfC defende a criação de
mais dez novos assentos não-permanentes e a
abolição da não-reeleição imediata.
O projeto do G-4 não foi colocado em
votação, alvo de ataques que foi da UA e do
UfC, além de ter sofrido oposição aberta por
parte dos Estados Unidos e da China. Em
18 de julho, a UA apresentaria seu próprio
projeto de resolução
17
, a que se seguiria, em
26 de julho, o draft do UfC
18
, que não seriam
tampouco colocados em votação. Em setembro,
a Assembléia Geral encerraria seus trabalhos.
Viriam a Cúpula Mundial e as 60ª e 61ª
Assembléias Gerais, sem quaisquer resultados
concretos. A tentativa mais consistente de
reforma do Conselho de Segurança parecia
haver falhado.
A reforma do Conselho de Segurança
continua no topo da agenda das Nações Unidas.
O G-4, a UA e o UfC continuam tentando forjar
alianças e angariar apoio para seus projetos.
A novidade está, no entanto, no fato de que
parecem dispostos a rever algumas de suas
reivindicações. Recentemente, foi constituído no
12
Comunicado Conjunto do G-4, Nova York, 21 de setembro de 2004. In: MINISTÉRIO das Relações Exteriores. O G-4 e as
Nações Unidas: textos, comunicados e documentos. Brasília: FUNAG, 2007, pp. 21-2.
13
Projeto de Resolução do G-4 sobre a Reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, Documento A/59/L.64.
MINISTÉRIO das Relações Exteriores, op. cit. pp. 59-66.
14
Para os registros da sessão, v. Verbatim record, 111ª sessão, 59ª Assembléia Geral. UN Document A/59/PV.111, Agenda item
53, New York, 2005.
15
Ibid., p. 6.
Conclusão: rumo a um compromisso?
_74
_artigos e ensaios
âmbito do OEWG, por iniciativa da Alemanha,
um grupo informal de consultas (o informal
overarching group”), com vistas a chegar a uma
solução de compromisso entre as diversas
alternativas de reforma apresentadas. Fala-se,
inclusive, numa solução transitória, que seria
obrigatoriamente revista após determinado
período de tempo. Entre os P-5, os Estados
Unidos e a China continuam reticentes, embora
aqueles apóiem explicitamente o Japão
19
e esta dê
mostras de estar disposta a apoiar a Alemanha,
o Brasil e, mesmo, a Índia, além de apoiar
explicitamente a inclusão de países africanos
como membros permanentes; a França e o Reino
Unido apóiam o G-4; a Rússia ostenta uma defesa
retórica de qualquer reforma “feita por amplo
consenso”, mas apóia o ingresso de países em
desenvolvimento como membros permanentes.
Ao contrário do que se costuma imaginar,
o grande empecilho para uma reforma do
Conselho de Segurança não tem sido, até o
momento, a posição dos P-5, mas, sim, a atuação
da UA. Ao insistir na ampliação da prerrogativa
do poder de veto a eventuais novos membros
permanentes, o grupo africano colide exatamente
com aquele ponto que se tem mostrado o
mais sensível nas discussões sobre a reforma.
Se os P-5 apóiam, ao menos de forma retórica,
a ampliação do Conselho, inclusive com o
aumento de número de membros permanentes,
nenhum deles, por outro lado, aceita a extensão
do veto a novos membros. A posição comum
da UA, aliás, tem pouco de comum: o fato é que
determinados países dentro da UA insistem
na ampliação do veto como tática para que a
reforma seja bloqueada: são países que, aspirando
a ocupar um eventual assento permanente, se
sabem pouco qualificados para tal. Pouco se
dúvida de que África do Sul, Egito e Nigéria
são os três países que mais chances têm, por
seu perfil político e econômico no continente
africano e por sua atuação diplomática na
Assembléia Geral, de ocupar posto de membro
permanente do Conselho de Segurança. Alguns
países africanos, desejosos de barrar o acesso
desses três países ao Conselho de Segurança,
defenderiam a extensão do veto como estratégia
para uma não-reforma, preferindo esta última
a uma reforma que não os contemplasse com
assentos permanentes no Conselho.
Outro empecilho são as rivalidades regionais,
que se manifestam de forma inequívoca na
atuação do UfC. É evidente que a intensidade e
o nível de tais rivalidades variam; não se pode
perder de vista a diferença que existe, por
exemplo, entre a rivalidade Japão v. Coréia do
Sul e Paquistão v. Índia. Ainda assim, parece claro
que a atuação do pequeno grupo se baliza pela
oposição de seus membros a que os países
do G-4 ingressem no Conselho de Segurança
como membros permanentes. No caso de Brasil
e Alemanha, vencer essa resistência regional a
seu pleito por um assento permanente é tarefa
consideravelmente mais fácil do que no caso de
Índia e Japão.
As discussões sobre a reforma do Conselho
são delicadas na medida em que qualquer
reforma comportará alterações na distribuição
de poder internacional, como se tentou mostrar
no início deste artigo. Talvez por essa razão
a ausência de mudanças concretas no curto
prazo não deva ser vista como sinal de fracasso
das negociações. É sempre um processo
complexo acomodar interesses fundamentais
que concernem à segurança internacional. O
Conselho, cedo ou tarde, terá de ser reformado,
sob pena de ver erodidas sua legitimidade e sua
capacidade de atuação. Alguns países poderão
ganhar mais do que outros numa eventual
reforma. Fato é, no entanto, que é a comunidade
internacional como um todo que ganhará com
a transformação do Conselho num instrumento
mais adequado para confrontar a realidade
internacional contemporânea.
16
Ibid., p. 8.
17
UN Document A/59/L.67, Draft resolution, New York, 2005.
18
UN Document A/59/L.68, Draft resolution, New York, 2005
19
Os EUA apóiam a admissão de “dois ou três” membros permanentes (“two or so”, segundo o ex-Subsecretário Nicholas
Burns), inclusive o Japão. Para o ex-Representante Permanente junto à ONU, John Bolton, we believe that the [Security] Council
would be more effective if Japan were a permanent member”. UNITED STATES Department of State. Statement by Jonh R. Bolton,
US Permanent Representative to the United Nations, on Security Council reform and expansion, at the General Assembly, July 21, 2006.
Acesso em 06/02/2008, em http://www.reformtheun.org/index.php/government_statements/c466/?startnum=101&theme=alt2.
_75
LA CUESTIÓN
DEL CAMBIO EN
LA TEORÍA DE
LAS RELACIONES
INTERNACIONALES
Romina Paola Bocache
Because we have an inadequate basis for comparison, we are tempted to
exaggerate either continuity with the past that we know badly, or the radical
originality of the present, depending on whether we are more struck by the
features we deem permanent, or with those we do not believe existed before.
Hoffmann. An American Social Science: International Relations
_76
EL CAMBIO:
UN PROBLEMA FILOSÓFICO
La cuestión del cambio es uno de los
problemas filosóficos más antiguos y
controvertidos, problema al cual la Teoría
de las Relaciones Internacionales no podía
permanecer ajena y que ha llegado a
constituir uno de los aspectos cruciales a la
hora de diferenciar las distintas escuelas de
pensamiento dentro la disciplina.
Desde este enfoque filosófico, hay tres
variables fundamentales a la hora de definir una
postura en cuanto al cambio: 1) concepción
de la realidad materialista o idealista. Por
“materialista” me refiero a una visión de
la realidad configurada por la distribución
de los atributos de poder (principalmente
factores económicos y militares): uno es
lo que tiene y actúa según el lugar que
ocupe en el ranking del poder. Cuando digo
“idealista”, hago alusión a una realidad en
la que, además de los atributos de poder,
cuentan elementos superestructurales como
las ideas y las instituciones. En su versión pura
(constructivismo) esto implica que el actor es
lo que piensa, y como el pensamiento dirige
la acción, en última instancia uno es lo que
hace; 2) unidad de análisis: hombre (primera
imagen), estado (segunda imagen) o el sistema
internacional (tercera imagen); 3) concepción
del cambio en sí mismo. La relación de lo
nuevo y lo viejo puede concebirse de diversas
formas: lo nuevo se yuxtapone a lo viejo
(acumulación), lo viejo y lo nuevo se funden
en una síntesis (cambio dialéctico), lo viejo
se transforma internamente y da lugar a algo
nuevo (evolución), lo nuevo es la negación de
lo viejo (ruptura).
Concepción Concepción
Materialista
Idealista
Hombre
Realismo clásico (Morgenthau):
no hay cambio
Estado -Liberalismo político (Kant, Fukuyama),
liberalismo económico (Keohane, Nye),
liberalismo institucionalista (Keohane,
Ikenberry): hay cambio.
- Constructivimo: hay cambio
Sistema Realismo Estructural (Waltz, -Constructivismo Estructural (Wendt):
internacional Gilpin): no hay cambio hay cambio.
-Cox: hay cambio
_artigos e ensaios
_76
_77
A partir de esta primera aproximación
esquemática, surge que aquellos
autores que sustentan una concepción
“materialista” de la realidad son escépticos
en cuanto a la posibilidad de cambios.
Por el contrario, aquellos que introducen
elementos “idealistas”, creen en la
existencia del mismo, aunque con diversos
matices, como veremos.
En la sección II analizaré a los
“materialistas sistémicos” que niegan la
existencia de cambios sustanciales en el
sistema internacional; en la sección III
abordaré la perspectiva de los que creen
en el cambio; en la sección IV aplicaré esas
“lentes conceptuales” a la época actual; y en
la sección V concluiré con una reflexión sobre
el cambio y sus múltiples aristas.
DOS MATERIALISTAS
SISTÉMICOS: WALTZ y GILPIN
El sistema internacional para Waltz
está constituido por la estructura y por
las unidades interactuantes (estados). La
estructura está definida por tres aspectos:
1) principio ordenador: anarquía; 2)
funciones no diferenciadas entre las
unidades; 3) distribución de los atributos
de poder, que determina la posición de las
unidades en la estructura.
Para Waltz sólo el cambio del principio
ordenador significaría un cambio
cualitativo o cambio de sistema. Mientras
ello no ocurra, sólo se verifican cambios
cuantitativos dentro del sistema referidos
al tercer elemento de la estructura, es
decir, cambios en la distribución de los
atributos de poder, y por ende, cambio en
las posiciones relativas de las unidades. Esto
implica un cambio en la polaridad
del sistema.
Desde este enfoque, la semejanza en
la conducta de los actores a pesar de sus
disparidades internas se explica a partir de
la inmutabilidad del principio ordenador
del sistema. Más allá de las diferencias
internas, Atenas, Roma o Estados Unidos
se han comportado en forma similar pues
han ocupado posiciones similares en la
estructura de poder.
La persistencia del principio ordenador
de la estructura, es decir, la anarquía,
es la que explica la continuidad a nivel
sistémico, aunque el cambio exista a nivel
de la unidad. Para Waltz hay cambio a nivel
de la segunda imagen, pero hay continuidad
en la tercera imagen. Son iluminadoras sus
siguientes expresiones:
“A veces, la política internacional
es descripta como el dominio de los
accidentes y las perturbaciones, de los
cambios rápidos e impredecibles. Aunque
abundan los cambios, las continuidades
son igualmente impresionantes... La
textura de la política internacional sigue
siendo muy constante, los esquemas
se repiten, y los acontecimientos
recurren infinitamente. Las relaciones
que prevalecen internacionalmente
rara vez cambian en tipo o cualidad.
Están marcadas por una desoladora
persistencia que debe esperarse mientras
ninguna de las unidades involucradas sea
capaz de convertir el anárquico reino
internacional en un reino jerárquico.
(Theory of International Politics, cap 4).
Gilpin comparte un enfoque similar. En
efecto, como Waltz, sostiene que a nivel
sistémico hay cambios en la distribución
de poder entre las unidades. Para explicar
esta redistribución de poder recurre a
la “tasa diferencial de crecimiento”. El
crecimiento económico, tecnológico y
militar de los estados a tasas diferentes
hace que la brecha entre las unidades
más poderosas y los competidores que
_77
_78
le siguen se acorte. De esta manera, para
estos últimos los costos de cambiar el
sistema disminuyen y los incentivos para
hacerlo crecen, lo que conduce a una
contradicción entre el orden existente
(funcional a los intereses del hegemón en
decadencia) y la distribución de poder, que
está virando a favor de los competidores
en ascenso. Esta disyunción entre el
sistema y la distribución de poder ha sido
resuelto a lo largo de la historia a través
de guerras hegemónicas, que conducen
a un nuevo equilibrio del sistema, con
la emergencia de un nuevo hegemón
(individual o colectivo) que impondrá un
orden nuevo, favorable a sus intereses
(teoría de la estabilidad hegemónica).
Además del cambio en la polaridad del
sistema, ligado a un cambio en la distribución
de poder, Gilpin distingue otros dos tipos de
cambio a nivel internacional:
- cambio de sistema: cambio en la naturaleza
de los actores (por ejemplo, pasaje de imperio
a estado nación). No son frecuentes.
- cambio de interacción: cambio en las
relaciones o procesos interestatales. Son los
más frecuentes.
Para Waltz, sólo el reemplazo de
un principio ordenador por otro
podría generar un cambio de sistema.
Manteniéndose la anarquía, sólo son
posibles cambios en la polaridad (o
“cambios sistémicos” en el lenguaje de
Gilpin) que generan cambios en la conducta
de las unidades (“cambios de interacción”
según Gilpin). Waltz no considera el cambio
en la naturaleza de los actores como un
cambio de sistema ya que ello entraría
dentro de un análisis de segunda imagen
(al igual que los cambios de interacción) y
por ello no lo toma en cuenta al reflexionar
sobre el sistema internacional.
En el universo neorrealista sólo aparece una
estructura en esencia inmutable impactando
sobre la conducta de los actores, pero tanto
la estructura misma como la identidad y los
intereses de dichos actores están dados y son
exógenos a todo el proceso.
DESDE OTRAS PERSPECTIVAS,
EL CAMBIO DEL SISTEMA
INTERNACIONAL ES POSIBLE
La teoría liberal de la paz interdemocrática
plantea que la instauración de democracias
liberales (cambios internos en los estados)
genera cambios en el sistema internacional
(Kant, Doyle, Fukuyama).
Para otros autores liberales, la fuente
del cambio reside en la economía o en la
estructura interna de los estados, y por
tanto señalan la debilidad del neorrealismo
para explicar el cambio al obviar este
nivel de análisis. En este sentido, Keohane
señala que Gilpin pretende realizar un
análisis sistémico del cambio, para luego
contradecirse al basar en parte la decadencia
del hegemón en factores internos.
“This Thucydides- Gilpin theory
is a systemic theory of change only
in a limited sense. …Yet at a more
fundamental level, it does not account
fully for the sources of change….
Although it is insightful about systemic
factors leading to hegemonic decline, it
also has to rely on internal processes to
explain the observed effects.
(“Theory of World Politics: Structural
Realism and Beyond” in Neorealism and
its critics, ed. Keohane, pag. 159, 179).
Para el liberalismo institucionalista, las
instituciones juegan un rol importante al
mitigar el impacto de la anarquía sobre
los estados, facilitando de ese modo la
cooperación entre ellos al reducir el
_artigos e ensaios
_78
_79
temor al engaño. En esta perspectiva, las
instituciones, si bien dependen para su
creación de la voluntad de los estados,
luego adquieren cierta autonomía frente a
éstos, influyendo en su conducta al reducir
la incertidumbre, aumentar la confiabilidad
y facilitar el flujo de la información.
En este sentido es interesante la
postura de Ikenberry, para quien la
creciente institucionalización del sistema
internacional está generando un cambio
sustancial en la política internacional al
ir incorporando elementos de un orden
constitucional al sistema hegemónico
benevolente actual. Este autor admite
la posibilidad de cambio en el sistema
internacional a partir de una noción de
cambio diferente a la de autores como
Waltz o Gilpin para quienes el cambio
implica discontinuidad, ruptura y quiebre.
Por el contrario, para Ikenberry el cambio
implica evolución, ya que el nuevo orden
(orden constitucional) surge del viejo
(orden hegemónico) a partir de un cambio
incremental (creciente institucionalización).
En esta misma línea, podemos situar a
Wendt, quien introduce elementos idealistas
a su análisis y adopta una noción de cambio
como evolución. Para Wendt, el cambio
estructural no consiste en una redistribución
de poder, sino que es un cambio en la
cultura, en las ideas compartidas. Es que
la estructura no es material sino social y
está formada por ideas y conocimientos
compartidos. De esta forma, en anarquía,
los estados pueden actuar de acuerdo con
distintas lógicas (hobbesiana –de enemistad-
, lockeana- de rivalidad- o kantiana – de
amistad) ya que la anarquía es lo que los
estados hagan de ella.
Partiendo entonces de un enfoque
sistémico e idealista, Wendt concibe el
cambio como evolución y transformación
de la estructura social. En este proceso no
sólo cambia el sistema, sino también cambian
los actores, sus identidades e intereses. La
estructura social no sólo modela la conducta
de los actores, sino que su impacto es más
profundo ya que alcanza su identidad y sus
intereses. A su vez, los actores influyen en la
estructura social, no siendo ninguno de los
dos ontológicamente primitivo o exógeno
al proceso de interacción. Los actores y
la estructura se co-construyen y son el
producto de la interacción (“somos lo
que hacemos”).
En comparación con el neorrealismo,
este enfoque resulta interesante pues
supera la dicotomía anarquía/ gobierno
mundial. Después de la anarquía, hay un
Partiendo de un enfoque sistémico e
idealista, Wendt concibe el cambio como
evolución y transformación de la estructura
social. En este proceso no sólo cambia el
sistema, sino también cambian los actores,
sus identidades e intereses.
_79
_80
continuum en que existen diversas formas
de “gobernabilidad sin gobierno”, en el que
las instituciones juegan un rol central.
ANTE UNA NUEVA
ERA
EN LAS RELACIONES
INTERNACIONALES?
El tema del cambio es tópico de
profundo debate a nivel académico y
mediático. La mayoría de los pensadores
concuerdan en que ha habido cambios en el
mundo (revolución en las tecnologías de los
transportes, de las comunicaciones y de la
información; aparición de armas nucleares
y de destrucción masiva; creciente
interdependencia económica; problemas
globales; creciente número de instituciones
multilaterales; creciente participación de
ONGs y otros actores no estatales en el
escenario internacional; surgimiento de una
sociedad civil global con una conciencia
global; expansión de la democracia y de la
economía de mercado; fin de la guerra fría
y de la bipolaridad). Sin embargo discrepan
en cuanto al significado y a los alcances a
asignarle a los mismos.
Como hemos visto, Waltz y Gilpin
sostienen que no estamos ante un cambio
de sistema, ya que seguimos en un mundo
de anarquía y auto ayuda. Para estos
autores, los cambios antes mencionados
podrían agruparse en dos categorías. En
primer lugar, el fin de la guerra fría y de
la bipolaridad implica un cambio dentro
del sistema o “cambio sistémico” –según
Gilpin- ligado a una redistribución de poder
entre los actores. A su vez, este cambio en
el sistema producirá cambios en la conducta
Los liberales en sus diversas corrientes
recalcan la presencia de un cambio
profundo en el sistema a partir de diversas
variables: la extensión de la democracia
liberal y la “zona de paz separada” (Doyle);
la creciente participación en las relaciones
internacionales de actores no estatales,
estableciéndose múltiples canales de
comunicación y de acción (interestatales,
transgubernamentales y transnacionales) con
agendas desjerarquizadas (Keohane y Nye).
_artigos e ensaios
_80
_81
de los otros estados. Así, para Waltz, dada
la preponderancia de los Estados Unidos,
los otros estados (principalmente la Unión
Europea, China, Japón, Rusia) tenderán a
contrabalancear su poder, hasta que se
llegue a un nuevo equilibrio. En segundo
lugar, las otras tendencias de carácter
económico-tecnológico y sociológico
anteriormente señaladas – como la
interdependencia, la democratización y la
creciente institucionalización- son vistas
por estos autores como cambios a nivel
de las unidades (sea en sus atributos
internos o en sus interacciones) que no
impactan significativamente en el sistema
internacional. Así, el temor al engaño y a
depender del otro, junto con la barrera
de las ganancias relativas hacen que los
grandes poderes no cooperen entre
sí. En cuanto a las instituciones, para
los neorrealistas éstas responden a los
intereses de los poderosos, no teniendo
autonomía ni impacto alguno en la
conducta de éstos.
Contrariamente a esta lectura de la
realidad, otros analistas proclaman el
advenimiento de una “nueva era” en la
política internacional. Así, por ejemplo,
Fukuyama proclama el “fin de la historia”
frente al colapso del comunismo y la
victoria del modelo representado por la
democracia liberal.
Los liberales en sus diversas corrientes
recalcan la presencia de un cambio
profundo en el sistema a partir de diversas
variables: la extensión de la democracia
liberal y la “zona de paz separada” (Doyle);
la creciente participación en las relaciones
internacionales de actores no estatales
(ONGs, empresas multinacionales, etc...),
estableciéndose múltiples canales de
comunicación y de acción (interestatales,
transgubernamentales y transnacionales)
con agendas desjerarquizadas (Keohane
y Nye).
Otro aspecto resaltado es la creciente
institucionalización del sistema. En este
sentido, Ikenberry señala en “After
Victory” que luego del fin de la Guerra
Fría por el colapso de la Unión Soviética,
Estados Unidos ha promovido la extensión
de la OTAN y la creación de nuevas
instituciones (NAFTA, APEC, OMC)
siguiendo con el modelo institucional de
construcción de orden. Esta estrategia
habría dado más legitimidad al orden
instaurado y reducido el temor de los más
débiles al abandono o a la dominación,
disminuyendo el incentivo a hacer
balancing contra los Estados Unidos. Este
sistema altamente institucionalizado y
legítimo contendría elementos del orden
constitucional que, al tornar al poder
americano aceptable para los demás
estados, reduciría el incentivo de éstos a
deslizarse hacia los órdenes tradicionales
de equilibrio de poder o de hegemonía.
LAS AMBIGÜEDADES DEL
CAMBIO
Cuáles son las causas de que exista tanto
debate en torno a la cuestión del cambio en
las relaciones internacionales?
Como hemos visto, los que pregonan
el inicio de una “nueva era” en las
relaciones internacionales subrayan la
trascendencia de procesos tales como la
creciente interdependencia, la revolución
tecnológica en los medios de transporte
y de comunicación, la expansión de la
democracia, el rol de las instituciones
internacionales, etc... Para otros, estos
cambios no han alterado la lógica de
la política internacional y subrayan las
continuidades con el pasado.
Analizando las dos posturas extremas
del “todo ha cambiado” y del “todo sigue
igual”, pareciera que uno de los motivos de
discrepancia radica en que no existe consenso
_81
_82
acerca de qué debe entenderse por cambio ni
cuales son sus marcadores.
Sucede que el cambio no es un dato objetivo
de la realidad sino que está en la mirada del
sujeto. De las discusiones sobre el cambio, surge
claro que no todos vivimos en el mismo mundo
pues vemos realidades distintas, y a ello se suma
que luego asignamos significados diversos a
aquello que vemos. En las discusiones sobre
el cambio haría falta explicitar tres premisas
básicas: la perspectiva, la concepción del cambio
y la concepción de la realidad.
En primer lugar, la perspectiva desde la
cual miremos el mundo determinará nuestra
percepción del cambio. Tal como lo sostiene
Rosenau en Turbulence in World Politics”:
“The interpretation of continuity and
change depends on the systemic and
time perspectives from which they are
assessed. Change and continuity, in other
words, are not objective phenomena.
Their observation acquires form through
conceptual formulation, not from
empirical ‘reality’.
Es necesario, pues, delinear con claridad
el horizonte temporal y espacial. Cuanto
más micro sea la mirada (como la de
los medios), más cambios percibiremos.
Cuando mayor sea el nivel de abstracción
y generalidad, la sensación de continuidad
predominará sobre la de cambio.
En segundo lugar, la noción misma de
cambio debe explicitarse ya que puede
ser pensado de distintas formas: como
ruptura y reemplazo de lo viejo (Fukuyama
afirma su existencia, Waltz y Gilpin lo
niegan), como cambio dialéctico (Cox),
como evolución (Ikenberry, Wendt) o como
acumulación con el consiguiente aumento
de la complejidad del sistema (Bull y su
idea de que los elementos de una sociedad
anárquica de estados –intereses comunes,
reglas e instituciones- coexisten en el
sistema internacional con los elementos
hobbsianos y kantianos).
La primera noción de cambio (ruptura)
implica que lo nuevo no tiene nada
en común con lo que lo ha precedido.
Particularmente no adhiero a esta visión
ya que considero que lo nuevo no
necesariamente desplaza a lo viejo, sino
que puede convivir con él de diversas
maneras. El concepto dialéctico del cambio
implica trascender la contradicción de lo
nuevo y lo viejo en una síntesis en la que
coexisten novedad y continuidad. El cambio
como evolución implica que lo nuevo surge
de lo viejo a través de la acumulación
en el tiempo de cambios marginales e
incrementales.
En general, cuando oímos hablar de
cambio, tiende a pensárselo como ruptura,
especialmente después de grandes eventos
como el fin de la guerra fría. Sin embargo,
El concepto dialéctico del cambio
implica trascender la contradicción de lo
nuevo y lo viejo en una síntesis en la que
coexisten novedad y continuidad.
_artigos e ensaios
_82
_83
desconfío de la idea de un “nuevo orden
mundial” ya que los cambios suelen
presentarse como síntesis dialécticas o
evolución en que conviven la novedad y la
continuidad. Es más, en muchos casos el
cambio se presenta como una yuxtaposición
de lo viejo y lo nuevo, aumentando la
complejidad del sistema. Esto puede
significar que mientras la lógica realista
persiste en muchas áreas del mundo, nuevas
formas de cooperación y gobernabilidad
estén apareciendo (Unión Europea,
procesos de integración regionales,
regímenes internacionales, etc...).
Por último, un tercer componente
para definir la visión del cambio reside
en la concepción del mundo. La visión de
un realista, de un liberal, de un marxista
o de un constructivista son, como diría
Waever, inconmensurables pues ven mundos
distintos, y por tanto, no habrá consenso
entre ellos acerca de qué ha cambiado y
que continúa. Sin embargo, más allá de dicha
“inconmensurabilidad”, deberían intentar
establecerse marcadores o puntos de
referencia, a fin de poder notar desviaciones
o apartamientos e identificar cambios.
Ikenberry destaca una tendencia
hacia una creciente institucionalización
del sistema internacional. Partiendo de
la noción de institución de Bull –como
combinación de ideas, prácticas y normas-
, una forma posible de analizar el cambio
sería la propuesta por Holsti (“Change in
the International System”), consistente en
ver qué ha sucedido con las principales
instituciones del sistema internacional
moderno (el estado nación, la soberanía,
la guerra, la diplomacia, el derecho
internacional). El cambio podría asumir
distintos matices: creación de instituciones
nuevas que aumentan la complejidad
del sistema (cambio acumulativo);
transformación de las existentes (evolución);
síntesis de nuevas y viejas (cambio
dialéctico), o desaparición. Si las principales
instituciones del sistema se hubieran
transformado radicalmente o hubieran
desaparecido, entonces se podría hablar de
un nuevo orden. Como, por el contrario, las
instituciones mantienen sus características
principales, aunque con cierto grado de
evolución o mayor complejidad, entonces
no puede invocarse un cambio de sistema
a pesar de cambios en la distribución de
poder o de fenómenos sociológicos tales
como una creciente interdependencia o
intensificación de las comunicaciones.
En síntesis, propongo una actitud
prudente tanto frente a los que pregonan
el advenimiento de una “nueva era” en la
que todo sería novedoso, como a los que
sostienen que las “verdades eternas” de
Tucídides son suficientes para comprender
todos los rasgos de las relaciones
internacionales contemporáneas.
Además, sostengo una visión moderada
en la que cambio y continuidad no se
excluyen mutuamente dada la complejidad
del sistema internacional. Es justamente en
el marco de esta complejidad que surge
la necesidad de disponer de distintos
instrumentos teóricos para comprender
un mundo multidimensional, en el que el
realismo da cuenta sólo de ciertas facetas (
dilemas de seguridad, auto-ayuda, guerra y
paz), siendo necesario complementarlo con
otros enfoques que iluminen otras parcelas
de la realidad, como la cooperación, el
manejo de problemas globales, la creciente
institucionalización, etc....
Por lo tanto, una teoría del cambio debe
ser multicausal – ya que deben englobarse
tanto factores materiales (procesos de
producción, tecnología) como “idealistas”
(ideas e instituciones)– , multidimensional
(diversos niveles de análisis) y polimorfa
(admitir diversos conceptos de cambio) a
fin de captar la complejidad del poliédrico
sistema internacional.
_83
PELO MUNDO
_84
UMA EXPERIÊNCIA
BRASILEIRA NO SUDÃO
Luiz Fernando Deo Evangelista
_85
Assistir às cenas que ilustram os noticiários televisivos acerca dos
conflitos africanos tornou-se rotina na vida dos cidadãos. Para diplomatas,
tornam-se angustiantes, na medida em que aquelas imagens revelam a
dificuldade e, freqüentemente, a insuficiência das ações preventivas. Esse
texto é um breve relato da minha experiência vivida durante seis meses
- entre dezembro de 1999 e maio de 2000 - no país africano de maior
extensão territorial e com uma história de guerra civil prolongada, cujo
início remonta à independência em 1956.
A presença de inúmeras organizações
não-governamentais de ajuda humanitária em
determinadas áreas do território sudanês
revela a insuficiência de recursos próprios e
a deficiência das políticas públicas voltadas
para a garantia de padrões básicos de higiene,
de saúde e de educação. Aparentemente, os
sudaneses sabem qual é o principal motivo
que os afasta das metas ótimas de crescimento
econômico e de desenvolvimento humano.
Em conversa informal com um funcionário da
administração pública da cidade de Malakal, no
sul do Sudão, não só a percepção do problema
mas também a esperança estão presentes em
seu discurso: “Quando a guerra acabar, o Sudão
será um grande país”.
O conflito armado no sul do país é
um dos mais duradouros no continente
africano. É impossível compreender os atuais
conflitos sem se referir à história recente
da antiga Núbia. Desde 1899 dominado por
um condomínio anglo-egípcio, o território
sudanês é ocupado por muçulmanos na ampla
extensão desértica do norte e por tribos
animistas e cristãs nas savanas e nas florestas
tropicais do sul. As diferenças culturais não
_85
_86
tardaram a provocar guerra civil pouco
tempo depois que a independência deu
autonomia de administração aos governantes
islâmicos do norte.
Restringir a explicação dos conflitos
a aspectos culturais passa pelo risco de
defender uma hipótese reducionista da
situação. O território sudanês é rico em
petróleo, gás natural, ouro, prata e em
uma variedade enorme de metais para
aproveitamento diverso nas indústrias de
transformação. Muitas dessas riquezas ainda
não exploradas aguardam investimentos,
impossíveis de serem realizados na conjuntura
de guerra. Essas riquezas determinam também
competição envolvendo as grandes potências,
cujo resultado é um interessado concerto
político nos organismos internacionais.
Malakal é uma cidade com
aproximadamente 80 mil habitantes. Suas
únicas construções de alvenaria são a
mesquita, a prefeitura, as residências oficiais
e o hospital. A reforma do hospital foi feita
com recursos provenientes da organização
não- governamental (ONG) francesa Hôpital
sans frontière (HSF). Essa ONG tem como
leitmotiv a recuperação de plantas hospitalares
em locais carentes e, quando possível, o
suporte à administração local para fazer o
hospital funcionar. O trabalho como cirurgião
dessa unidade hospitalar insere-se nesse
último objetivo.
Para os diretores e gerentes locais da ONG,
tornar-se-ia frustrante a recuperação física de
um centro cirúrgico e o abandono sem função
devido à falta de profissionais especializados. O
convite para assumir a responsabilidade dessa
tarefa foi feito em novembro de 1999 e aceito
para um período de seis meses. Algum tempo
depois, foi possível perceber a dificuldade de
manter profissionais sudaneses na cidade.
Alguns médicos, presentes na cidade por
obrigações de serviço militar, ansiavam pelo
fim do serviço obrigatório e pela emigração
para outros países mais desenvolvidos no
Oriente Médio. Uma breve conversa revela
a utopia de manter cirurgiões na cidade de
forma espontânea.
As dificuldades locais vão desde a obtenção
de um padrão mínimo de conforto para um
profissional com formação universitária até a
instabilidade política da região. Não existiam
habitações confortáveis; a rede de esgoto era
inexistente (um dos projetos de outra ONG
holandesa no local era a construção de latrinas);
a água era farta, proveniente do rio Nilo, mas
o tratamento inexistia para a maior parte
da população; o comércio local limitava-se a
pequenas vendas e feiras; televisão e telefonia
por satélite eram restritas aos locais de extrema
necessidade e só podiam ser utilizadas no
pequeno intervalo de tempo em que a energia
elétrica era fornecida durante duas horas pela
manhã e quatro horas após o pôr-do-sol.
_pelo mundo
_86
_87_87
Durante os meses vividos na cidade,
não houve registro de conflitos armados.
A percepção da guerra era apenas a ronda
constante de tanques pelas ruas de terra da
cidade, o toque de recolher após as 22 horas
e a angústia de um povo que, veladamente,
deixava transparecer a insatisfação com os
governantes na capital.
O contato dos habitantes com os
expatriados era, sistematicamente, de respeito,
de carinho e de reconhecimento pelo esforço
que não os deixava em abandono. Em um
ambiente de imensa carência, a notícia de um
cirurgião na cidade se alastrou com rapidez e
não tardaram as filas para atendimento.
Longas três semanas foram necessárias
para que alguma cirurgia pudesse ser realizada
desde o pouso da aeronave em Cartum até
a utilização do centro cirúrgico. As iniciativas
tomadas na capital do país centravam-se
na obtenção de vistos de deslocamento,
de permissão de trabalho e de visitas ao
consulado brasileiro. Naquele momento, foi
estranho encontrar o cônsul do Brasil no
Sudão e ter de conversar em inglês. Tratava-se
de um consulado honorário, cujas ações eram
reportadas ao Cairo. A sensação de isolamento
tornou-se maior quando recebi a notícia de
que não havia outro brasileiro no território
sudanês naquele momento.
Enquanto as exigências legais eram
providenciadas para que a viagem a Malakal
pudesse ser marcada, uma série de contatos
com outras ONGs permitiu perceber a
importância do trabalho humanitário no
país. Instaladas no setor de embaixadas da
cidade, as sedes das ONGs administravam
uma enorme rede de assistência em todo
o território. Próximo à sede da Hôpital sans
frontière, centenas de sudaneses aglomeravam-
se diariamente nos portões da embaixada
da Arábia Saudita em busca do sonho da
emigração. A sensação de estranheza por se
encontrar no sentido inverso, mesmo que
temporariamente, aumentava a percepção
das dificuldades que ainda estavam por vir,
mas eram mitigadas pela certeza de estar
contribuindo para que futuros sudaneses não
precisem sonhar com a partida do solo pátrio.
A documentação necessária para a viagem a
Malakal só ficaria pronta em janeiro e, naquele
momento, os preparativos para o reveillon
sinalizavam as previsões milenaristas típicas
e a apreensão em relação ao bug do milênio
(Y2K). A idéia de comemorar a passagem para
o século XXI nas belas pirâmides sudanesas,
em uma localidade chamada Meroe, acabou
demonstrando a força do trabalho realizado
em equipe. Os expatriados, funcionários
de ONGs sediadas em Cartum, tiveram a
interessante idéia de iluminar a principal
pirâmide de Meroe, plágio do que Jean Michel
Jarre faria no mesmo momento em Gizé, no
Cairo. As dificuldades burocráticas e logísticas
_87
Malakal é uma cidade com aproximadamente
80 mil habitantes. Suas únicas construções de
alvenaria são a mesquita,
a prefeitura, as residências
oficiais e o hospital
_88
foram superadas com empenho individual, e
cerca de cinqüenta estrangeiros, de origens
diversas, celebraram o novo milênio com uma
ceia no deserto ao norte de Cartum.
Não havia ligação rodoviária ou ferroviária
entre Cartum e Malakal. O acesso à cidade
só poderia ser feito por uma viagem de
barco subindo o rio Nilo ou por avião. A
necessidade de poupar tempo tornou a
opção aérea mais adequada e os oitocentos
quilômetros entre as duas cidades foram
transpostos em duas horas. As precariedades
da cidade são rapidamente percebidas, mas
logo são minimizadas pela simpatia das
pessoas que nos recebiam. Além do mais, a
habitação da ONG se localizava dentro do
hospital, construída em alvenaria com dois
quartos, sala de estar, cozinha, copa e uma
varanda voltada para o rio Nilo, cuja visão ao
entardecer amenizava as agruras da distância.
As filas de pedidos se avolumaram
rapidamente. Fazia seis meses que o último
cirurgião expatriado havia partido e muitos
dos casos cirúrgicos aguardavam a chegada
do próximo médico. Antes de atendê-los, foi
necessário tomar ciência das possibilidades
locais e adequar o que poderia ser feito ali
e o que deveria ser removido para Cartum.
As diversas instalações do hospital não eram
contíguas, e o trajeto entre uma e outra deveria
ser feito por caminhos de pedra sobre o
terreno de terra. Essa característica dificultaria
o transporte dos pacientes operados, sobretudo
em dias chuvosos. Beneficiado pela estação
seca, outras dificuldades se imporiam: ausência
de anestesistas; centro cirúrgico pequeno;
inexistência de unidades de cuidados intensivos;
serviço de enfermagem muito mal capacitado
e uma enorme expectativa em torno de um
cirurgião, como se apenas minha presença
pudesse solucionar qualquer dificuldade.
A boa vontade dos funcionários acabou
facilitando a transposição de obstáculos.
Uma equipe de colaboradores diretos
se formou rapidamente e planos foram
traçados para que fossem selecionados os
casos após consultas regulares no período
da tarde. O horário da manhã foi reservado
para as eventuais cirurgias, tão logo as reais
possibilidades do hospital fossem identificadas
e planos fossem feitos para que situações
de emergência pudessem ser previstas e
solucionadas. A principal angústia era a
ausência de anestesistas e de respiradores
no centro cirúrgico. Alguns técnicos de
enfermagem diziam-se preparados para
administrar anestesia venosa e para monitorar
os sinais vitais durante os procedimentos
cirúrgicos, desde que não necessitassem de
acesso artificial às vias respiratórias.
As incertezas quanto à possibilidade de
realizar cirurgias só começaram a desaparecer
quando os primeiros casos foram submetidos
à cirurgia e os pacientes puderam, após os dias
As dificuldades burocráticas e logísticas
foram superadas com empenho individual, e
cerca de cinqüenta estrangeiros, de origens
diversas, celebraram o novo milênio com uma
ceia no deserto ao norte de Cartum
_pelo mundo
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_89
necessários de recuperação, ter alta com seus
problemas resolvidos e sem complicações.
Precauções foram tomadas para que o tempo
operatório não excedesse uma hora, quando
os efeitos colaterais do método anestésico
empregado poderiam ser mais deletérios
do que a solução cirúrgica ser benéfica. As
cirurgias foram limitadas aos casos mais
simples de pequenas hérnias da parede
abdominal, cirurgias proctológicas rápidas,
procedimentos obstétricos de partos normais
ou cesarianos. Médicos prestando o serviço
militar obrigatório auxiliavam nas cirurgias e
alguns deles, com interesse na especialização
cirúrgica, tornavam-se colaboradores
atenciosos e dedicados, fazendo da troca de
experiências um aprendizado para todos.
Algumas cirurgias maiores tiveram de ser
realizadas devido a situações de emergência. Na
ausência de traumatismos graves provocados
por guerra, duas laparotomias exploradoras
foram realizadas devido a traumas provocados
por agressões interpessoais. A solução rápida
das lesões encontradas acrescentava tensão
devido ao tempo operatório limitado pelas
possibilidades anestésicas. Cirurgias no andar
superior do abdome, normalmente remetidas
a Cartum devido a possíveis complicações
respiratórias, tiveram de ser realizadas em
situações de emergência, quando o tempo de
remoção previsto não seria compatível com a
rapidez necessária à solução.
Algumas idiossincrasias da medicina local
acrescentavam tensão nas relações médicas.
Muitas vezes dificultada por dupla tradução-
do idioma tribal para o árabe e desse para
o inglês- certas explicações não convenciam
alguns pacientes. Tornou-se hábito, na região,
a apendicectomia preventiva, realizada por
médicos locais em períodos anteriores. A
verdadeira indicação cirúrgica só se verifica na
presença de sinais e de sintomas de apendicite
aguda, o que torna a extirpação do apêndice
vermiforme normal uma prática condenada.
Certa vez, um homem não aceitou a recusa
e simulava os sintomas para conseguir o que
queria. Acabou internado por dez dias até
se convencer de que o que sentia não seria
corrigido por cirurgia.
A prática diária da cirurgia nessas
condições tornava o trabalho também
inusitado e preenchia o tempo com
particularidades às quais não estava
acostumado. Os horários tinham de ser
adaptados aos costumes locais, como o
respeito às horas destinadas à oração voltada
para Meca e à folga semanal nas sextas-feiras
no lugar do domingo. Os hábitos islâmicos se
impunham pela burocracia oficial, mesmo que
a maior parte da população preservasse suas
crenças católicas ou animistas. A presença de
missionárias católicas ajudava na catequese
e no conforto religioso àqueles de confissão
cristã. Apesar da pluralidade de crenças,
_89
_90
não presenciei cenas de desrespeito ou de
preconceito de nenhuma das partes.
A rotina de cirurgias matutinas e de
consultas vespertinas e a estranha baixa
ocorrência de emergências permitiram maior
convívio social com os médicos sudaneses,
com os outros expatriados do HSF e de outras
ONGs com projetos na cidade e com os
habitantes locais de tribos diferentes. Nessas
ocasiões, tornava-se interessante perceber a
diversidade de estilos de vida, de crenças, de
hábitos e de expectativas em relação ao futuro.
Com um colega médico do HSF, francês,
cuja missão naquele momento era apenas de
coordenador das obras em outros setores
do hospital, dividiam-se as angústias em
relação à eficácia das ações humanitárias. Nos
momentos em que as obras não seguiam os
prazos previstos, o colega ponderava acerca
de ações que pudessem ser mais eficazes
e afirmava que melhor seria construir uma
fábrica de sapatos na cidade. A necessidade de
calçados era evidente e a oferta de empregos
geraria trabalho e renda, com os quais as
pessoas poderiam pagar por suas necessidades,
inclusive as de saúde. Esse tipo de exercício
intelectual de políticas públicas era constante.
Entre os funcionários do hospital,
provenientes de tribos Shilouck, Nuer e
Dinka, a conversa girava em torno de seus
hábitos, de suas crenças e de suas aspirações.
O direito primitivo das tribos consistia no
arbítrio de seus respectivos reis em caso de
querelas entre os litigantes. As aspirações
de consumo são bastante aquém do que
qualquer cidadão do mundo ocidental pode
imaginar. Os mitos de origem são intrigantes:
os Schilouck ter-se-iam originados da
fertilização divina de um jacaré e de seu ovo
teria nascido o Adão da tribo, para fazer uma
analogia ao mito judaico-cristão.
Com os colegas das outras ONGs,
compartilhavam-se as experiências e as
dificuldades, além de manter-se um círculo
de amizades que minimizava a saudade.
Assistíamos a filmes, promovíamos festas e
praticávamos esportes, contando sempre
com a ajuda de suprimentos enviados
regularmente de Cartum com privilégios
diplomáticos. As notícias tinham hora marcada
à noite, quando a energia elétrica permitia
sintonizar a rede americana CNN. Hoje,
ao assistir ao filme Turtles can fly, é possível
lembrar a sensação e o efeito de uma antena
parabólica em locais isolados.
A missão terminou em maio e no
relatório final constavam oitenta cirurgias
e centenas de consultas. Reduzir todo o
esforço a números, a estatísticas e a papel
não corresponde às expectativas daquele que
está em contato direto com o destinatário
final das verbas doadas. Embora aqueles dados
sejam necessários à manutenção do trabalho
humanitário e ao fluxo de verbas, a verdadeira
recompensa está no rosto daqueles que
foram beneficiados com as ações médicas
_pelo mundo
_90
_91
realizadas. A angústia está na percepção de
que um pequeno pote de água foi jogado
contra o grande incêndio em que consiste a
situação político-social do Sudão. O retorno foi
preenchido por pensamentos que nos levam à
certeza de que inúmeros problemas de saúde
poderiam ser resolvidos por ações políticas
adequadas e por um pouco mais de altruísmo.
As notícias relacionadas ao Sudão
passaram a ser acompanhadas com mais
atenção desde então. As referências a
cidades e a pessoas passaram a ter maior
consistência na medida em que a memória
trazia de volta a experiência vivida. Em 2003,
o foco internacional voltou-se para outra
região do país, Darfur, onde novamente
forças do exército nacional, apoiadas por
milícias islâmicas, estariam tentando dominar
populações de outras etnias centro-africanas.
Os motivos são semelhantes ao conflito
sulista, e os efeitos são milhões de refugiados
em países vizinhos, denúncias de genocídio,
insuficiência das ações de paz empreendidas
pela ONU e pela União Africana, além
da consternação passiva de inúmeros
telespectadores e da tristeza daqueles
que um dia tentaram contribuir para a
reconstrução do país.
Em 2005, o governo de Cartum celebrou
um armistício com o Exército Popular para
Libertação do Sudão (SPLA, sigla em inglês),
acenando para um longo período de paz a
se iniciar no sul do país. Inúmeras cláusulas
apontavam nessa direção, inclusive uma
que prevê um plebiscito em 2011, quando
a população sulista decidirá entre manter-
se sob a jurisdição de Cartum ou ganhar
autonomia política. No sentido contrário,
em 2006, a cidade de Malakal ocupou a
mídia internacional como palco de novo
enfrentamento entre as tropas do governo e
o SPLA, causando a morte de cem pessoas e
ferimentos em mais de trezentas. É impossível
não se remeter em pensamento e não
imaginar o caos enfrentado pelo hospital
da cidade, que, com dificuldades imensas,
permanece a única fonte de assistência de
saúde na região. Torna-se angustiante pensar
que pessoas com as quais um fraterno
convívio foi estabelecido estiveram presentes,
foram feridas ou mortas durante esse novo
episódio da guerra civil sudanesa.
Entre dezenas de teorias e explicações
para o fenômeno da guerra e da paz, fica a
sensação de que entre a frieza do realismo
e a utopia do idealismo, os homens se
embrutecem na primeira e sonham na última.
Ambas são aspectos da existência humana.
Apenas a morte pode trazer a possibilidade
de um sonho interminável, mas antes que
o niilismo tome conta dos pensamentos
humanos, é útil concluir com a singeleza
teórica ouvida, repetidamente, de meu pai:
“Se os homens percebessem que toda guerra
termina em um acordo de paz, iniciariam a
guerra pelo fim”.
_91
A angústia está na percepção de que um
pequeno pote de água foi jogado contra o
grande incêndio em que consiste a situação
político-social do Sudão
_92
HERIBERTO
,
NOSSO HOMEM EM HAVANA:
REFLEXÕES
LITERÁRIAS
SOBRE
A VIDA
CULTURAL
EM CUBA
Felipe Krause Dornelles
_pelo mundo
_92
_93
para nós, no pacato e arborizado bairro de
Vedado, a poucas quadras da nossa pousada.
Apesar de severamente deterioradas, as casas
aqui ainda detinham certo charme, e algumas
eram verdadeiramente belas e impressionantes.
Ecoavam, longínquas e fantasmagóricas, as
descrições de Graham Greene em Our Man in
Havana (1958):Wormold drove back to Vedado,
to the little white houses and the bougainvilleas
of the rich...What quarrels were still in progress
behind those doll’s house walls?”. Meio século
e uma revolução depois da publicação do
clássico romance, os interiores de Vedado,
alegremente humildes, destoavam das ruinosas
fachadas burguesas e, às vezes, imponentes.
Heriberto e seu companheiro dividiam com
outras famílias – não perguntamos quantas
– uma dessas residências.
Naquela noite, C. comprou vários livros.
Eu comprei um só (o excelente Aire de luz:
Cuentos cubanos del siglo XX, organizado por
Alberto Garrandés e publicado em 1999):
estava mais interessado em ouvir o próprio
Heriberto, que discorria sobre literatura
cubana contemporânea com o entusiasmo
e a propriedade de um professor. Descobri,
mais tarde, que se tratava, na realidade, do
entusiasmo e da propriedade de um escritor.
Conquanto não tivesse a postura e o vigor de
um Ondjaki, discerni em Heriberto algumas
das qualidades do jovem e brilhante escritor
Alcancei a Plaza de Armas pela Calle
O’Reilly, o suave sol de janeiro derramando-
se entre as folhas, a iluminar as fachadas
centenárias. Do outro lado da Plaza, avistei
Heriberto, alojado em seu agradável cantinho
à sombra da folhagem densa que também
protege a estátua do líder revolucionário
novecentista Carlos Manuel de Céspedes.
Era final de tarde, e Heriberto, gordinho e
sorridente, estava sentado em uma cadeira
de praia, ao lado de seus companheiros,
provavelmente discutindo as vendas do dia,
o último jogo de pelota. Tragava seu cigarro,
olhava para os lados, dava uma gargalhada. O
que estava pensando, no fundo? Aproximei-me
lentamente. Será que me reconheceria?
Foi C. quem conheceu Heriberto
primeiro, uma semana antes das eleições
nacionais. Havíamos recém chegado a
Havana, era voraz nosso apetite por
experimentar de tudo, conversar com todos.
C. queria comprar livros para sua irmã, uma
apreciadora da literatura latino-americana,
e havíamos ouvido falar da feira de livros
usados. Heriberto, logo percebemos, era
talvez o único feirante que legitimamente
amava e conhecia seus livros. De hecho, soy
un pésimo negociante”, disse-nos mais tarde.
Marcamos com Heriberto um encontro, à
noite, para ver os livros que guardava em sua
casa. Era localizada, muito convenientemente
_94
angolano, que esteve no Brasil durante a 4ª
FLIP
1
, em 2006: clareza e firmeza conceitual,
espírito crítico desprendido de academicismo.
Ao final de nosso encontro, não hesitei em
indagar se Heriberto estaria interessado em
conceder entrevista à Juca, a revista dos alunos
da academia diplomática brasileira. Ele aceitou,
e combinamos que eu o procuraria, ao final do
mês, em seu habitual ponto na Plaza de Armas,
La Habana Vieja. Eu imaginava que, especialmente
após os resultados das históricas eleições, que
se dariam em 20 de janeiro, haveria muito o que
discutir, sobre política e cultura, sobre o passado
e o futuro da vida literária em Cuba.
Quando finalmente procurei Heriberto,
as eleições haviam chegado e passado
tão serenamente quanto as caravelas de
Cristóvão Colombo, que aportaram na
Baía de Bariay, atual província de Holguín,
em 1492. Em ambos os casos, as reais
transformações na maior ilha do Caribe,
descrita por Colombo como “a mais bela
paragem da Terra”, viriam mais tarde.
existia, no entanto, alguma inquietação no ar,
algo dificilmente tangível, mas que certamente
palpitava, lá por debaixo daquela atmosfera
quase bucólica dos tranqüilos feirantes
trocando histórias ao abrigo das palmeiras.
Nada no ar indicava, com precisão, que
estávamos em uma Havana prestes a
despedir-se do Comandante-em-Chefe Fidel
Castro Ruz. O que se pressentia, sim, era um
momento de ebulição equilibrada, produto
de alguns anos de cocção.
Era minha intenção extrair de Heriberto,
interlocutor eloqüente e educado, mas
também próximo do cotidiano trabalhador,
esse cerne palpitante.
Assim, naquela tarde do dia 30 de janeiro
de 2008, o escritor e comerciante Heriberto
Verdecia, reconhecendo-me imediatamente,
aceitou caminhar comigo em direção ao
Parque Central, no centro histórico de
Havana, onde nos beneficiaríamos de um
pouco de anonimato. Até então, lembrava-me
do Parque Central pelos excelentes mojitos
– com duas gotas de Angostura – preparados
pelo barman do hotel que tem vista para a
agitada praça. O alvoroço, logo explicou-me
meu informante cubano, ocorria diariamente:
grupos de homens, jovens e velhos, juntavam-
se para debater, com o fervor de um batalhão
_pelo mundo
1
Festa Literária Internacional de Parati
_95
de tropas rebeldes, qual era o melhor time
de baseball, ou qual era o melhor jogador da
atualidade... Sentamo-nos em um banco de
pedra, sem encosto, e abri meu caderninho
de anotações marrom. Nada no ar indicava,
com precisão, que estávamos em uma Havana
prestes a despedir-se do Comandante-em-
Chefe Fidel Castro Ruz. O que se pressentia,
sim, era um momento de ebulição equilibrada,
produto de alguns anos de cocção.
Borrachera infernal
Heriberto nasceu em Havana, em 1962.
Seu pai trabalhava no palácio presidencial,
antes da revolução, e sua mãe, uma senhora
casi analfabeta”, era doméstica. Heriberto
sente a necessidade de ressaltar que nasceu
depois da revolução, e que por isso teve
acesso total à educação. Depois da escola
primária, estudou em uma escola vocacional,
la máxima aspiración de cualquier estudiante
daquela faixa etária. Conta, contudo, que
sentia, entre os colegas, certo preconceito
gerado pelo fato de que seu pai havia sido
funcionário de Fulgêncio Batista.
Mas, por um tempo, tudo deu certo, avalia
Heriberto. Terminou o colégio e ganhou
uma bolsa para estudar na União Soviética.
Heriberto, afinal, era um cidadão exemplar:
aluno aplicado, foi também militante e depois
dirigente da Unión de los Jovenes Comunistas.
Heriberto não explica, talvez por reserva,
exatamente o que aconteceu em Moscou. Não
o pressionei sobre esse assunto, mas tive a
sensação de que Heriberto houvesse sofrido
uma crise de identidade. Pela primeira vez
longe da família, de seu país, inserido em uma
cultura em muitos aspectos diametralmente
oposta à cubana, o jovem militante não
se adaptou à versão russa da sociedade
socialista. Ressalvadas as diferenças de época
e proporção, recordo-me, ao ouvir a narrativa,
de um relato de Truman Capote (“The Muses
Are Heard”), que descreve a turnê de Porgy
and Bess na União Soviética, em pleno inverno
de 1955. Acompanhados da Sra. Ira Gershwin
– esposa de um dos célebres compositores
– e do próprio Capote, os membros do elenco
– todos negros – provocam, ao desembarcar
em Leningrado, an almost catatonic demeanor”,
algo entre espanto e genuína incompreensão,
entre os atores soviéticos que haviam sido
convocados para receber os americanos.
Entretanto, se a turnê da sensual opera que
conquistou o mundo com melodias como
“Summertime” foi, afinal, warmly received
pelos soviéticos, Heriberto sentiu-se
irreparavelmente gélido: terminou uma noite
soterrado na neve em uma rua de Moscou,
vítima de um tremendo conflito interno e de
uma “borrachera infernal”.
Heriberto não completou os estudos na
URSS. Retornando a Cuba, dedica-se ao serviço
militar e reingressa na universidade, formando-
se em engenharia elétrica. O ano era 1990 e
Cuba estava às vésperas da grande ruptura,
do início dos longos anos de crise econômica.
Hoje, permanece peculiar símbolo do fim dos
anos dourados da Revolução: partindo de
Havana pela Autopista Nacional – projeto que,
financiado pelos soviéticos, deveria vincular
a capital, no ocidente, a Santiago de Cuba,
no extremo oriente – chega-se a um ponto,
logo antes da província central de Ciego de
Ávila, em que a extraordinária estrada de seis
faixas submerge em meio ao mato tropical,
oferecendo-se como continuação modesta pista
de mão única. A abrupta interrupção rodoviária
assemelha-se ao malogro da fulminante
trajetória do jovem militante: inicialmente
sem emprego, depois recebendo 198 pesos
mensais (uma pizza valia 20 pesos) na Unión
Elétrica – onde, segundo ele, no había nada que
hacer, no había trabajo” – Heriberto opta pelo
improvisado caminho do comércio de livros.
Se na Cuba de Fidel sempre houve mercado
subterrâneo de comida e roupa, a partir dos
anos 1990 o comércio paralelo de livros usados
(assim como o de muitos outros itens do
cotidiano) robusteceu-se. Em 1994, Heriberto
obtém licença que regulariza o estande de
livros na Plaza de Armas. Desde então, vive do
comércio de livros usados e escreve no tempo
livre que lhe resta.
O Estado da arte
Em seguimento a essa aclaração
biográfica, instiguei o engenheiro letrado –
_96
ou seria letrado engenheiro? – a expor seus
pensamentos a respeito da evolução dos
processos culturais cubanos. Para Heriberto,
durante a “etapa republicana”, ou seja, a
partir de 1902, Cuba compôs, inegavelmente,
o circuito internacional, com música, shows,
cabarés, etc. Heriberto considera, no
entanto, que o escritor era marginalizado,
seja pelo desamparo, seja pela própria
repreensão do Estado. De fato, muitos dos
grandes pensadores, poetas e escritores
cubanos, desde José Martí, foram em algum
momento presos ou exilados: Nicolás
Guillén (1902-1989), o poeta da mestiçagem,
Dulce María Loynaz (1902-1997), ganhadora
do Prêmio Cervantes, Alejo Carpentier
(1904-1980), ganhador do mesmo prêmio e
autor do clássico O século das luzes...
A vitória dos rebeldes em 1959 foi
celebrada por intelectuais cubanos – e do
mundo inteiro – como um momento de
libertação da tirania. Carpentier retornou à
ilha no mesmo ano e tornou-se diretor da
Imprensa Nacional. Guillén, por sua vez, foi
convidado por Castro para chefiar a nova
e influente Unión Nacional de Escritores
y Artistas de Cuba (UNEAC). Desde os
primeiros momentos, no entanto, haveria
ambigüidades. Com efeito, os investimentos
em cultura, assim como em educação e saúde,
seriam impressionantes; entretanto, pairava no
ar inquietação quanto à sempre problemática
liberdade de expressão. Se existiria novo
espaço para arte engajada, esclarecida, para
literatura crítica (leia-se “anti-imperialista”),
em defesa dos oprimidos, haveria espaço para
dissidência, questionamento, divergência dos
ideais da Revolução?
Nesse ponto, Heriberto lembra um
acontecimento-chave, revelador de como
constituir-se-ia a nova política estatal para
as artes em Cuba durante as próximas
décadas. Trata-se do discurso Palabras a los
intelectuales”, proferido por Fidel Castro em
junho de 1961, após um ciclo de reuniões
com intelectuais, artistas e escritores. A
mensagem era clara: por um lado,
“...al igual que nosotros hemos querido
para el pueblo una vida mejor en el orden
material, queremos para el pueblo una
vida mejor también en todos los órdenes
espirituales; queremos para el pueblo una
vida mejor en el orden cultural.
Por outro lado, no entanto,
“La Revolución...debe actuar de manera
que todo ese sector de artistas y de
intelectuales que no sean genuinamente
revolucionarios, encuentre dentro de la
Revolución un campo donde trabajar y
crear y que su espíritu creador, aun cuando
no sean escritores o artistas revolucionarios,
tenga oportunidad y libertad para
expresarse, dentro de la Revolución. Esto
significa que dentro de la Revolución,
todo; contra la Revolución, nada.”
O restante da década de 1960 foi
tumultuada, e somente à medida que se foram
consolidando certas normas e instituições
que se percebeu o enrijecimento das
balizas culturais oficiais. 1968 foi um ano
particularmente convulso. Enquanto emergia
em vários cantos do mundo uma Nova
Esquerda, crítica da ortodoxia marxista-
leninista, debatendo temas como meio
ambiente, gênero e sexualidade, a Revolução
Cubana passou a reprimir os movimentos
da contra-cultura. Em janeiro daquele ano,
realizou-se o Congreso Cultural de La Habana,
que reiterou os principais pontos do discurso
de 1961. Ainda em 1968, o poeta Heberto
Padilla publica o livro Fuera de Juego, com o
qual vence o prêmio máximo da UNEAC.
No entanto, a obra, qualificada de anti-
revolucionária pelo regime castrista, valeu-lhe
também uma sentença de prisão
2
O “Caso
Padilla”, como ficou conhecido, foi um divisor
_pelo mundo
2
Importante ressaltar que Nicolás Guillén recusou-se a tomar parte nos episódios.
3
Mariana Martins Villaça, A política cultural cubana e o movimento Nova Trova (http://www.hist.puc.cl/iaspm/mexico/articulos/
Villaca.pdf)
_97
de águas, na medida em que intelectuais do
mundo inteiro sentiram-se na obrigação de
tomar uma posição contra (Jean-Paul Sartre,
Octavio Paz, Federico Fellini...) ou a favor
(notavelmente, Julio Cortázar) de certas
decisões do governo de Fidel Castro.
A crise político-intelectual ainda rendeu
mais um dramático capítulo quando, em 1971,
o diplomata e escritor Jorge Edwards, enviado
pelo recém-formado governo socialista de
Salvador Allende para reabrir a Embaixada do
Chile em Cuba, foi declarado persona non grata
em decorrência de suas críticas ao governo de
Fidel Castro e convidado a retirar-se da ilha.
Edwards, outro célebre vencedor do Prêmio
Cervantes, publicou polêmico livro relatando
o acontecimento (Persona non grata, de 1973),
o qual também contribuiu para intensificar os
debates a respeito da liberdade de expressão
no regime revolucionário.
Os anos 1970 e 1980: da
parametraje ao Mariel
A arte da censura atinge o auge em
abril de 1971, com o I Congreso Nacional de
Educación y Cultura. Desse encontro, surge
legislação detalhada para orientar a produção
artística, grupo de normas conhecidas como
parametraje”. Além do mote revolucionário
de 1961, estabelece-se o critério de que a arte
deve ser “facilmente assimilada pelas massas”.
Nas palavras de Heriberto, considerando-
os retrospectivamente, os anos 1970 – seus
anos de juventude – foram um período vacío y
Nas palavras de Heriberto, considerando-os
retrospectivamente, os anos 1970 – seus anos
de juventude – foram um período vacío y
tristíssimo para as artes.
_98
tristíssimo” para as artes. Embora não se deva
ignorar o “interessante jogo de tolerância, adesão
e resistência entre artistas e dirigentes”
3
que
certamente ocorreu em várias espaços culturais,
é fácil entender o ponto de vista de Heriberto,
analisando-se, por exemplo, as obras datadas da
década de 1970 expostas no (esplêndido, em
geral) Museu Nacional de Belas Artes, em Havana.
São, em sua maioria, empreitadas pavorosamente
kitsch, permeadas por constrangedoras e infantis
alegorias que não fazem jus à seriedade da
própria Revolução nem tampouco respeitam
a capacidade de discernimento estético das
“massas”. Uma passagem por essa ala do
Museu pode remeter o bravo andarilho ao
romance Schastlivaia Moskva (“Moscou Feliz”,
ainda sem tradução para o português), do
dissidente soviético Andrei Platonov, em que
transparece, na arte stalinista dos anos 1930,
mais do que simples mau gosto, um projeto
panfletário dedicado a obscurecer, em vez de
elucidar. (Ao mesmo tempo, meu espírito de
antropólogo também questiona se algumas
daquelas obras não seriam, na realidade,
irônicas e veladas críticas da parametraje).
Ainda com relação à parametraje, Heriberto
considera que a rigidez dos anos 1970 e
início dos anos 1980 se deveu ao alinhamento
automático de Cuba com a União Soviética,
estabelecido sobretudo após Fidel Castro
anunciar sua defesa incondicional da invasão da
Tchecoslováquia, em 1968. O alinhamento surge
em momento de tensão no mundo socialista,
Tabu absoluto é tratar
os dirigentes políticos
de maneira crítica, ou
até mesmo humorística
(sátiras, charges).
_pelo mundo
_99
tendo os líderes de escolher entre o modelo
russo e o chinês (Che Guevara, nos últimos
anos de sua vida, já havia aderido ao maoísmo).
Para Cuba, a adesão às orientações soviéticas
significou o recebimento imediato e maciço de
recursos e divisas tão escassos na ilha.
Nas palavras de Heriberto, os anos 1980
gradualmente insuflaram aires de renovación
nas artes cubanas. É possível que as mudanças
tenham tido motivações econômicas, em parte.
Os problemas já haviam começado ao final dos
anos 1970, quando a crise econômica mundial
atingiu Cuba e a insatisfação com o regime
castrista produziu uma série de protestos.
Milhares de dissidentes invadiram as sedes das
embaixadas em Havana, sobretudo a do Peru,
para pedir asilo. Heriberto lembra então o
famoso “êxodo de Mariel”, uma janela entre
os meses de abril e setembro de 1980 em que
o Governo cubano permitiu o abandono em
massa de aproximadamente 125.000 pessoas, que
embarcaram no Porto de Mariel para ir à Florida.
Ao falar de Mariel, Heriberto menciona o
nome de Reinaldo Arenas, autor de Antes que
anochezca, a emocionante e poética autobiografia
que inspirou o igualmente brilhante filme,
homônimo, do artista plástico Julian Schnabel.
Arenas, aliás, figura no meu Aire de Luz, com o
libertino e refrescante El cometa Halley (1986),
continuação paródica do clássico La casa de
Bernarda Alba, de Garcia Lorca. Fiquei alegremente
surpreso com a inclusão desse conto no Aire de
Luz, coletânea declaradamente representativa do
conto cubano contemporâneo e publicada em
Havana pelo Instituto Cubano del Libro.
Temas tabu e mudanças políticas
– dos anos 1990 em diante
Essa inclusão, no entanto, não vai de encontro
à análise de Heriberto acerca da problemática
da liberdade de expressão em Cuba a partir
dos anos 1990. Para Heriberto, hoje o escritor
pode, sim, descrever com liberdade razoável as
realidades do país: os problemas econômicos,
a libertinagem sexual (inclusive a onipresente
prostituição), as falhas gritantes no sistema de
transporte público, os mercados subterrâneos, os
diferentes modos de corrupção cotidiana. O que
não se pode fazer é analisar, profundamente, as
causas desses fenômenos. Tabu absoluto é tratar
os dirigentes políticos de maneira crítica, ou até
mesmo humorística (sátiras, charges). Permeia,
no mundo cultural cubano, o que Heriberto
qualifica de “autocensura”, ou seja, por medo
das conseqüências, as pessoas são, em geral,
cautelosas com o que dizem e, sobretudo, com o
que publicam.
Estamos chegando ao final de nossa entrevista.
Um policial passeia com seu pastor alemão, mas
não nos dá bola. Pergunto a Heriberto se ele se
preocupa que estejamos sentados em um parque
no centro de Havana conversando abertamente
sobre temas politicamente sensíveis, eu com o
caderninho marrom na mão. Gostaria que eu
publicasse a matéria sem revelar seu verdadeiro
nome? Ele diz que em outra época, sim. Hoje, não
é necessário. Está contente com os atuais aires
de renovación”. Para ele,
“Hay muchos temas en Cuba que hay
que ponerselos sobre la mesa. Raul [Castro]
ha hablado de errores, de cosas que tienen
que cambiar. Pero lo más importante para
Cuba es su soberania, despues arreglar la
economia, los asuntos sociales. En Cuba, la
gente quiere debate, quiere discutir, necesita
tomar conciencia. La Asamblea Nacional es
un simulacro. El país tiene que cambiar, es
una exigencia de los tiempos.
Em última análise, Heriberto está longe de
ser um típico miamero”. De fato, se o fosse,
teria fugido há muito tempo, junto com os
mais de 50% (de acordo com seus próprios
cálculos) dos colegas com quem se formou na
faculdade de engenharia. Heriberto considera-
se um “iconoclasta”: como o britanicamente
cético Wormold, nosso homem em Havana
desconfia de toda fonte de autoridade,
inclusive a norte-americana. De certa forma,
não difere da maioria dos cubanos que ele
mesmo descreve – para Heriberto, o cubano,
em geral, não se preocupa com o futuro, está
intimamente ligado ao cotidiano. A visão de
mundo do cubano contemporâneo, segundo
Heriberto, resume-se no popular mote,
oferecido normalmente como resposta à
pergunta de como andam as coisas: estou bem,
obrigado, estou luchando el presente”.
RESENHA
_100
Amor,
cinema e
literatura
no universo
de Gabriel
Garcia
Márquez
Maurício Alves da Costa
_101
A tentativa de uma análise
comparativa entre uma obra literária e
uma adaptação cinematográfica pode
malograr graças às tentadoras “armadilhas”
interpretativas inerentes a duas linguagens
tão diversas entre si quanto a literatura e
o cinema, ainda que mantenham constante
relação de intertextualidade. Ao escolhermos
como objeto de cotejo um obra escrita
pelo mestre Gabriel García Márquez, essas
“armadilhas” tornam-se ainda mais atraentes
para o analista.
A leitura de O Amor nos Tempos do
Cólera é um exercício de elaboração e de
assimilação de sentimentos. É incomparável
a forma pela qual Gabriel García Márquez
retrata o cenário da Cartagena das Índias
do século XIX e de suas transformações
sociais e culturais, ao longo dos 55
anos da narrativa, como pano de fundo
de uma história de amor considerada
impossível pelos céticos de nosso mundo
crescentemente utilitarista. O leitor é
envolvido por uma teia de sensações, de
cheiros e de emoções que o fazem se
materializar como personagem naquele
universo fantástico. A subjetividade do
leitor protagoniza a narrativa junto a
Florentino Ariza - o anti-herói romântico.
A “tradução” dessas riquezas narrativa
e descritiva, na qual a subjetividade do
leitor tem participação fundamental, para
a linguagem cinematográfica, na qual os
cenários são apresentados ao leitor, constitui
desafio de alto risco. Se cada leitor de Gabriel
García Márquez tem o cenário mentalmente
formado, não seria diferente para o diretor
da obra cinematográfica. A “armadilha” da
decepção, baseada no argumento de que
“eu imaginava tudo diferente”, é, ao mesmo
tempo, natural e injusta: deve-se respeitar as
opções do diretor.
As dificuldades inerentes à transposição
de linguagens são fatores de dificuldade na
adaptação, como na cena em que Fermina
Daza, após retornar do isolamento imposto
por seu pai, rejeita Florentino Ariza, na
feira de Cartagena, após ouvir a frase
“este não é um lugar adequado para uma
deusa coroada”. Na narrativa de Gabriel
García Márquez, o leitor acompanha
cada gesto de Florentino Ariza à espreita
de sua amada, quase sente o cheiro das
verduras e das frutas que acompanham
o protagonista em sua ansiedade, que se
torna tristeza e decepção profundas. Na
obra cinematográfica, a feira de Cartagena
é apenas uma imagem, ainda que belíssima e
muito bem retratada, o que impossibilita ao
leitor se envolver da mesma maneira que a
narrativa literária o permitiria fazer.
Escapar do julgamento fácil, no entanto,
não significa que “não existe pecado
abaixo do Equador”. A má caracterização
de Giovanna Mezzogiorno como Fermina
Daza, a qual parece envelhecer dez anos
em cinqüenta, e o estereótipo usado para
caraterizar Lorenzo Daza são exemplos
de aspectos negativos relativos a questões
básicas da produção.
Entre os diversos pecados da versão
cinematográfica de O Amor nos Tempos
do Cólera, os quais não é possível listar
nesta breve resenha e nem mesmo é seu
_101
_102
objetivo, pode-se destacar o “corte” da
narrativa escolhido pelos autores. Ainda
que não seja possível reproduzir a narrativa
em todos os seus detalhes e em todos os
seus personagens, não se pode prescindir
de elementos essenciais à preservação do
sentido interpretativo da obra. Uma das
passagens mais interessantes da narrativa,
que é a comunicação telegráfica mantida
pelos dois jovens apaixonados durante o
isolamento de Fermina, reduziu-se a uma
mera menção numa cena colateral do filme.
A edição do filme abdica de quaisquer
recursos de transição entre as fases da
narrativa e faz “cortes” bruscos, que são
linguagens exige do executor a capacidade
de “transluciferar”, nas palavras de Haroldo
de Campos, para conseguir recriar o
universo desejado em uma nova plataforma
de produção textual.
A mais significativa e revoltante
“violência” contra a obra de Gabriel García
Márquez foi a mudança de natureza da
relação entre Florentino Ariza e América
Vicuña. Certamente resultado da prudência
comercial da indústria de Hollywood,
América Vicuña, de estudante de treze anos
da sétima série, transformou-se em recém
universitária e professora da escola normal,
com mais de dezoito anos de idade. Os
autores, além disso, excluíram da versão
cinematográfica uma das passagens mais
trágicas, emocionantes e estarrecedoras de
toda a narrativa de García Márquez.
Não se trata de apologia à pedofilia,
mas da consciência de que a retirada
dessa passagem compromete o sentido
interpretativo geral de O Amor nos Tempos
do Cólera no conjunto da obra de Gabriel
Garcia Márquez. O tema da pedofilia é
recorrente na obra do prêmio Nobel de
literatura e pode ser exemplificado tanto
em Cem Anos de Solidão, pela paixão do Cel.
Uma das passagens mais
interessantes do romance,
que é a comunicação
telegráfica mantida pelos
dois jovens apaixonados
durante o isolamento de
Fermina, reduziu-se a uma
mera menção de uma cena
colateral no filme
preenchidos pelos conhecedores da obra
literária, mas são incompreendidos pelo
espectador comum.
A presença de todos os personagens
mais importantes não é capaz de preencher
as lacunas deixadas pela edição do filme.
As principais amantes de Florentino
Ariza estão na versão cinematográfica,
seus principais companheiros em todas
as fases são apresentados e todos os
principais acontecimentos estão contados.
O resultado, entretanto, foi muito aquém
do possível. A “tradução” entre essas duas
_102
_103
Aureliano Buendía por Remédios, de nove
anos de idade, que se tornaria sua esposa,
quanto em Do Amor e Outros Demônios, pela
paixão entre Sierva Maria de Todos Los
Angeles, de catorze anos de idade, e um
padre. A retirada dessa temática do filme por
motivos comerciais e morais impede que o
espectador depare com algo perturbador
que o faria refletir sobre as contradições da
natureza humana.
Para que este resenhista não se transforme
numa “raposa velha”, que se deixa cair
em “armadilhas” fáceis, discutirei alguns
dos méritos da versão cinematográfica. A
cenografia está perfeita. É quase impossível
imaginar uma Cartagena das Índias diferente
daquela trazida pelo diretor às telas de
cinema. Pelo menos três atuações estão
próximas da perfeição: Javier Bardem vaga
pela telas como a verdadeira “sombra”
retratada por Gabriel Garcia Márquez, o
mesmo “gerente do amor”, cujo coração
é um “prostíbulo”; Fernanda Montenegro,
no papel de Trânsito Ariza, personifica a
mãe do protagonista de forma magistral
e o Dr. Juvenal Urbino desfila pelas ruas
de Cartagena com toda a elegância e toda
a frieza descritas por García Márquez,
personificado por Benjamin Bratt. A fotografia,
a cenografia e essas três atuações são os
grandes pontos altos do filme.
Mais uma vez, seria fácil rejeitar a versão
cinematográfica de O Amor nos Tempos do
Cólera como mais um “blockbuster” sem
importância ou como um mero “enlatado”
para entretenimento. Nesse caso, o
caminho correto é o mais difícil: reconhecer
a importância da difusão da obra para o
grande público, que provavelmente teve seu
primeiro e, esperançosamente da minha
parte, não último contato com a obra
daquele que considero o maior escritor
da era moderna. Os defeitos da produção
tornam-se pequenos diante da dimensão
dada àquela que é a maior obra desse
prêmio Nobel de literatura, ao lado de Cem
Anos de Solidão. O objetivo era o lucro? Que
pena, mas ainda é melhor lucrar mediante a
divulgação de grandes obras do que repetir
apenas “mais uma comédia romântica”.
Diante de todos os obstáculos, dos
equívocos e dos acertos da equipe de
produção da versão cinematográfica de
O Amor nos Tempos do Cólera, é possível
afirmar que prevalece a força do
universo literário de Gabriel García
Márquez e a “razão de amor”
magistralmente sintetizada e interpretada
por esse homem capaz de transformar
a palavra em emoção pura. O desafio dos
produtores foi gigantesco: nas palavras
de Drummond “havia uma pedra
no meio do caminho”, e essa
pedra era a dificuldade de
transpor a insuperável capacidade
narrativa de García Márquez. O
desafio do leitor e do espectador
é ainda maior: deixar-se envolver
pela narrativa e acreditar que o
verdadeiro amor existe e supera
quaisquer ceticismo e
racionalidade.
_103
POESIA E PROSA
_104
Orientações
importantes
à nova musa
Raphael Nascimento
_105
Pois que se recebeste
este texto significa que assumiste por
aclamação inconteste e consensual o
posto de Musa Inspiradora. Como toda
posição de destaque, o cargo tem as suas
liturgias, que devem ser observadas para o
bom andamento da tua gestão. Procurarei
descrevê-las aqui, sem muita pompa
ou circunstância, com o intuito puro e
simples de facilitar-te a vida e precaver-te
contra eventuais mal-entendidos. Antes de
encerrar este breve intróito, adianto-te
que a partir de hoje tens a honra de fazer
companhia a marias, fernandas, marianas,
carlas, carolinas e melissas, que outrora,
com maior ou menor destaque, com mais
ou menos elegância, foram donas do cetro
que ora carregas nas mãos.
Cabe primeiro explicar o porquê deste
manual de instruções – que isto não é
outra coisa senão um manual de instruções!
– seguir escrito na segunda pessoa do
singular. Quando aceitaste a coroa que te
ofereci, automaticamente te converteste
em um estado diferenciado da matéria, algo
entre o líquido e o gasoso, que vez por
outra aparecerá de modo inesperado diante
de meus olhos incrédulos, em qualidade
adimensional, unindo de maneira misteriosa
as paralelas do tempo e do espaço. A um
ser nessa condição, tu hás de concordar, não
se pode dirigir pelo corriqueiro tratamento
de “você”. O “tu”, embora bastante íntimo,
à medida que se descarrilou da locomotiva
velha que conduz o uso cotidiano da
língua, dá ao texto ares de eternidade e o
devido tom de respeito para um diálogo
entre o mortal, que sou eu, e a tua figura
de semideusa. A segunda pessoa do plural
também foi cogitada, mas como ela é
normalmente utilizada para falar aos céus
com Aquele que nunca me escutou, para ti
sobrou “tu” mesmo. Prossigamos.
Peço-te imediatamente que não te assustes
com os possíveis excessos que por certo
irei cometer. Tranqüiliza-te, que os escritores
somos inofensivos: vivemos nos tempos
em que ainda havia admiradores secretos e
amores-à-primeira-vista e estes não eram
confundidos, um e outro, com serial killers
e instintos selvagens. Vivemos na época
dos bichos falantes, que na segunda pessoa
espalhavam a sua crua ingenuidade animal
sobre a superfície da Terra. Nosso tempo
é de solidão gigantesca e incomensurável,
que se resolve com um simples e-mail de
agradecimento. Não te preocupes, pois, com os
excessos que mencionei, que eles serão apenas
textuais e se materializarão em crônicas,
contos ou poesias. Embora odeie mesóclises,
enviá-los-ei todos a ti, com maior ou menor
freqüência, conforme o grau de sofrimento
pelo qual estiver passando. Grau este que
_106
jamais deverá baixar do nível laranja utilizado
pelo Homeland Security Department para
medir a possibilidade de um ataque terrorista.
Como podes ver, falarei sempre num
tom exagerado e pouco lógico, tentando
transmitir a angústia mentirosa de uma vida
que não pode mais viver sem a tua. Não me
leves tão a sério, portanto. Este sofrimento
é necessário para o processo de escrever
e sem ele eu seguiria uma rotina muito da
sem graça a trabalhar nestas coisas que
agora abandono para preparar-te este guia.
Algumas vezes, destarte, direi que sofro
muitíssimo além do que realmente dói.
Farei isso apenas para chamar um pouco
mais a tua atenção. Outras vezes, contudo,
padecerei de uma dor tão intensa que até
a morte terá de mim pena e me deixará
quieto no Martinica a embebedar-me com
várias Heinekens geladas e a enegrecer
meus pulmões com os malditos alcatrão
e nicotina. Ficarei lá, mudo, fitando o
horizonte com a mão no queixo, o olhar
perdido e o pé num balançar involuntário.
A morte é paciente e ri-se do fato de que
eu mesmo esteja a trabalhar por ela. Nessas
horas, provavelmente mandarei a teu celular
algumas peças demasiado piegas e de baixa
qualidade literária, além de diversas pistas
de meu mais profundo desengano. Peço-
te que as ignore por completo, que minha
vergonha será menor no dia seguinte.
Neste cargo,
cumpre esclarecer, teus
direitos são vários.
Tens, sobretudo,
o direito de sorrir.
Sorria sempre que
puderes que é para
que eu eventualmente
veja o teu sorriso e
me sinta um pouco
mais feliz na miséria
que será minha vida
a observar-te tão
distante.
Tens o direito de ler
os meus textos que mais gostares em voz
alta a tuas amigas. Faça de forma que elas
saibam que dividem o ambiente com um ser
importado diretamente do firmamento e que
a tua presença exala uma fragrância inebriante
que deve ser aproveitada ao máximo. Dize-
lhes que tens asas e que a qualquer momento
_poesia e prosa
_107
podes desaparecer dali, migrar para o sul
como fazem as garças em busca de um clima
mais ameno e de melhores oportunidades de
trabalho. Tens também o direito de comprar
uma placa de mármore e nela gravar em
letras grandes o título: “Musa Inspiradora”.
Coloque-a na mesa de teu escritório, na porta
do teu quarto, na carteira da faculdade ou
em qualquer outro lugar que entendas como
o principal locus dessa tua nova ocupação.
Faça também cartões de visita, que poderás
precisar quando interpelada em uma dessas
reuniões de afrodites das quais participarás de
hoje em diante.
Não te esqueças, além disso, que és fada
e, como fada, tens o dom da magia. Tens
o direito, por conseguinte, de ser sempre
mais leve que as meninas comuns e de
dizer-lhes, sem um pingo de arrogância
(por favor!), que a elas também está
reservado um dos meus irmãos de letras.
Eu, contudo, serei só teu, e tu tens nesse
sentido o direito de usar-me para os teus
fins incompreensíveis, que minha rasteira
percepção da realidade jamais conseguirá
vislumbrar. Neste momento, posso apenas
adorar-te com estes rituais metalingüísticos,
e tu tens o direito de exigir que eu assim
proceda, prometendo-me a eterna danação
caso deixe de cumprir algum dos teus
mandamentos. Tens, finalmente, o direito
de ser impossível e inalcançável, sem, no
entanto, ignorar-me. Não poderás nunca
demorar mais de 37 horas para responder a
um de meus e-mails.
Por fim, devo advertir-te sobre um fato
grave: teu reinado não será longo. Não te
assustes. Minha obrigação é avisar-te para
não criar em ti ilusões descabidas sobre a
tua instável condição. Teu domínio sobre
minha mente e minha alma é efêmero.
Cedo ou tarde aparecerá outra moça
que confundirá meus pensamentos e
irresistivelmente dominará minha atenção,
exigindo, como o fazem todas – tolas! –, total
exclusividade. Eu, novamente fraco, cego,
perdido, apaixonado, lhe concederei juras
de amor eterno sem nenhum grande peso
na consciência. Nesse momento, teu nome
será flexionado ao plural e mecanicamente
posicionado ao lado daqueles que foram
citados no último período do primeiro
parágrafo. Serás mais uma. Este texto será
então encaminhado à nova musa e tu, assim,
sem mais nem menos, virarás apenas mais
um fantasma em minha memória.
_108
BUENOS AIRES
La ciudad inquieta el círculo perfecto del horizonte marrón azulado.
Sofocantes,
edificios desgarrando un tiempo pastoso
La luz afarolada de la noche
empapa el empedrado antiguo
y el cielo se estrella
en los charcos hondos de oscuridad.
Retazos deshilachados de sueños y palabras,
Buenos Aires es puro cuento.
El Ciego la garabateó
en su íntima penumbra:
hazañas hurañas de héroes,
el grito ensangrentado del cuchillo en los arrabales del último coraje,
la frescura verde de un patio.
Desde entonces,
inconstante, huidiza,
intangible, lunar,
la ciudad titila y se apaga en la claridad del sol.
Romina Bocache
_poesia e prosa
_109
Sólo reverbera en la suave aspereza de la juventud perdida,
en la ironía de una mueca macabra,
en el laberinto de las encrucijadas titubeantes,
en los vagabundeos de las calles perdidas que nos pierden,
en cada esquina mareada de la vida
en el vértigo de los vacíos abismales
con que todas las otras ciudades la citan
obsesivamente...
Buenos Aires sólo existe
como esas estrellas cadavéricas
que nos parpadean desde un pasado que eternamente ya no será
Desde antes del comienzo, Buenos Aires talló el universo
ysedesangrael.
Flota un instante y al siguiente naufraga
en las turbias turbulencias de un río mentiroso.
Buenos Aires es mi universo,
mi recóndito e insospechado espejo:
una maraña de memorias esquivas, de fugaces olvidos,
implacable desierto de tiempo,
tiempo rugoso y callado,
perfumadamente desolado y
hermosamente atroz como la difícil sencillez del arte.
_110
NUVEM
César Nascimento
O corpo poroso
Incorpora ao vácuo
O vapor que calcina.
Do poro o suor
Ao céu se insinua,
Ínfima neblina
Que a pele nua
Expele, expia.
_poesia e prosa
Michel Lahan Neto
_111
ARQUITETURA
D.G. Ducci
A flor que observa o jarro é minha musa,
que observa a flor do jarro neste intuito
estranho e encantador de revelá-la
ao mundo pelos olhos de arquiteta.
A flor que observo é a musa minha, e o jarro
encontra-se perdido na prancheta.
Ao mundo eu a revelo pelos olhos
de estranho e encantador olhar poeta.
Pudera ser a flor que tanto observa
a musa que se esforça em refazê-la !
Quisera ser o intuito dessa flor,
que mais que a flor, bem mais, é obra bela.
O jarro, a flor, os olhos na prancheta;
o intuito, o mundo, o esforço, a arquiteta;
a flor quem vê é a flor, e só se perde
o estranho e encantador olhar por ela
_111
_112
Há um intervalo constrangedor entre
o primeiro olhar e a primeira palavra, algo
comum em conversas entre dois estrangeiros
que não se conhecem. Antes que o idioma do
diálogo possa ser definido, estudam-se, como
lutadores em primeiro round. O taxista, mais
à vontade, arrisca o primeiro golpe.
– Tropa?
– Não, professor. Me leva até o Liceu?
Entram no táxi, um modelo japonês
importado ao país com mais de uma década
de estrada. Partem.
Francisco Figueiredo de Souza
_poesia e prosa
_113
Naquele ano de 2004, em Timor-Leste,
estrangeiro que respondesse assim, de
pronto e em português, só podia ser luso ou
brasileiro. O motorista arrisca novo palpite.
– Então, você, brasileiro?
– Eu sou.
Fazia sentido. Brasileiro, se não era tropa,
só podia ser evangélico ou professor. Os lusos
distribuíam-se por atividades mais diversas.
Havia quem arriscasse classificá-los como
“Rambos” ou “Madres Teresas”, a depender
da motivação para estadia tão longe de casa.
Brasileiros pareciam ter um pouco dos dois.
Dobrada a esquina da nacionalidade, dois
caminhos são oferecidos para o papo, quase
por dedução matemática: futebol e música.
Ronaldinho era mesmo o melhor jogador
do mundo. Uma fita de Leandro e Leonardo
estava no porta-luvas. Talvez devessem ouvi-la.
Com breve gesto, o professor recusa.
Sugere percurso mais sinuoso. Pretende falar
de língua: metalinguar.
– Quero muito aprender tétum – diz.
– Por quê?
Acho importante, se vou morar aqui.
O professor recorda os poucos termos
que conhece na língua, tão oficial quanto
o português. Fuan, por exemplo, que quer
dizer “coração”. E ai-fuan, que ao pé da letra
é “coração de árvore”, mas que quer dizer
“fruto”. E ainda li-fuan, forma tão fantástica e
verdadeira de dizer simplesmente “palavra”.
A palavra é o coração da língua. A palavra é o
fruto do tronco da história.
O taxista ri do outro, surpreso. O
professor sabe que seu esforço para aprender
a língua local não tem apenas motivos nobres.
Além do sorriso, espera ganhar um desconto
no final da corrida. Aprendera na Nicarágua
existir uma tabela subjetiva entre taxistas
de todo o mundo. Por ela, estrangeiros sem
domínio da língua franca do lugar merecem
pagar o dobro. Norte-americanos, ou
forasteiros com bronzeador na cara, o triplo.
Corretos ou não os critérios, parecia-lhe
tentativa válida de precificar o respeito.
– Quanto vai custar?
Satu dólar.
Satu é o número um em indonésio. O
preço era bom, mas o professor ainda não
se acostumara com o hábito timorense de
contar dinheiro apenas na língua da escola.
– Então você também fala bahasa?
– pergunta ao taxista. Em indonésio, bahasa
quer dizer idioma. É a forma como todos se
referem à língua.
Bahasa e um pouco de fataluco, da
minha avó.
– E sua avó era de onde?
– De Lautém, o distrito mais para lá de
Timor – responde o condutor, apontando
para o leste. Em Lautém quase só se fala
fataluco.
O professor se surpreende com a
capacidade lingüística dos timorenses. Era
comum encontrar quem falasse quatro,
cinco, seis línguas. Em todo o território, com
cerca um milhão de pessoas, pesquisadores
contabilizaram a existência de trinta e duas.
Línguas ou dialetos, não saberia discriminar.
Dizem que a diferença entre língua e dialeto é
que dialetos não têm exércitos.
– E bahasa falam no país inteiro, não é?
_114
– Na ilha inteira – corrige
o taxista. Também falam bahasa em Timor
Oriental.
Um país, meia ilha, Timor-Leste ainda
precisava a prender a conviver com sua outra
metade. A província ao lado seguirá vinculada
ao governo de Jacarta.
Por 25 anos, o indonésio fora a língua
de sua educação, de todos. Por ela o
motorista nutria sentimento dúbio, entre
o conveniente e o desconfortável. Por um
lado, lembrava os dias difíceis da ocupação.
Por outro, permitia o contato com
duzentos milhões de vizinhos: irmãos.
– Me disseram que o bahasa não existia
antes do General,
verdade?
– pergunta o professor. Ele recorda história
que ouvira sobre uma visita a Jacarta de uma
alta autoridade do Suriname. Orgulhoso dos
laços que uniam as antigas Índias Holandesas,
o enviado oferecera belo discurso em javanês,
língua que aprendera com seu pai, nascido
em Java. Para sua surpresa e frustração, os
anfitriões só lhe responderam em inglês.
Talvez porque viessem de ilhas em que o
javanês não fosse língua original. Talvez por
vergonha de expressar-se oficialmente em
língua que não fosse o indonésio, tão forte era
a luta pela unidade nacional.
O taxista perseguia as
palavras
que o tétum havia empresado
do português para entender a história do
professor, esforçando-se para não se perder.
Achava o português bonito. Era capaz de
trocar um diálogo curto e padronizado, mas
bem assim não o conhecia. No máximo,
reconhecia. Lembrava de, pequeno, ouvir o pai
falando português em casa, com colegas da
Fretilin. Não tinha culpa por ter freqüentado a
escola apenas no tempo do General, quando a
língua esteve banida.
Silenciam, reflexivos.
O taxista relembra o pai, morto pouco
antes da última chuva. Pouco vivera sob o
governo que tanto lutou para existir. Fora
o suficiente para que passasse seus últimos
meses desconfiado da Austrália, antiga vizinha
dos fundos, agora sócia majoritária do
condomínio da frente. Sempre lhe dizia que o
português era importante para manter o país
independente de verdade.
O condutor recorda que na escola lhe
ensinaram que só existia uma língua, assim
como só existe um Deus. O Deus podia
ser muçulmano, cristão ou judeu, desde que
fosse um. A língua tinha que ser o bahasa. Já
não mais.
_poesia e prosa
_115
Com o olhar no horizonte sobre o mar,
onde brilhava a ilha de Ataúro, o professor
relembra visita que fizera ao Cabo da
Boa Esperança. Fora triste ver a cruz
de Bartolomeu Dias, o Capitão do Fim,
solitária e calada em seu outeiro, cercada
de
anglofonia por todos os lados.
Triste também era a situação da língua
em Macau. Estivesse ele no território da
recém-China, provável que o motorista
local sequer compreendesse o nome do
destino. Ainda que se tratasse do “Largo do
Pagode da Barra”, assim escrito nas placas,
em bom português. Lugar estranho, Macau,
onde o idioma sobrevive nos letreiros sem
sobreviver nas pessoas.
Uma ave quebra o silêncio perturbado do
motor do carro.
As línguas, no fim
das contas, são como
pássaros. Algumas fogem de casa e
caminham pelos postes antes de voar para
longe. Outras sofrem nas ruas e vêm procurar
ninho nas beiras das casas, discretas.
Francisco Figueiredo de Souza
_116
BURACO
NA PAREDE
André Cortez
_poesia e prosa
_116
_117
Havia exatamente dois dedos de
água dentro do copo abandonado sobre a
pia de mármore. O homem mediu com a
mão direita. Um gole. O resto da cozinha
estava absolutamente em ordem. Branco
milimétrico. Cada coisa em seu devido lugar.
Facas inoxidáveis, panelas, utensílios para abrir,
espremer, triturar, decantar, e alimentos tão
bem organizados que pareciam nunca terem
sido tocados.
Não era a primeira vez que chegava do
escritório e encontrava o copo ali. Outras
vezes, sobre a mesma pia de mármore,
encontrara-o vazio. Outras ainda, fora
surpreendido pelo objeto nos demais
cômodos do apartamento. Já o havia notado
sobre o criado-mudo do quarto. Não sabia
explicar como nem por quê.
A única pessoa que possuía as chaves
da casa era ele. Morava só. Passava o
dia todo fora, trabalhando dois turnos
condensados em um. Demorava-se ainda
por causa da academia. Aos finais de semana,
as indispensáveis viagens ao litoral. O
apartamento ficava vazio. Ou assim presumia.
Até que começou a reparar na freqüência
com que o fenômeno do copo se repetia.
De início, julgou que andava distraído.
Atordoado pela correria do escritório,
dormindo três horas por noite em média,
a cabeça lhe doía muito. O copo itinerante,
inferiu, era conseqüência da pressa e das
aspirinas, consumidas às dúzias, uma atrás da
outra. Parecia-lhe natural que alguns detalhes
da vida cotidiana passassem despercebidos.
Ele mesmo consumia o copo d’água antes
de sair e não lembrava disso ao voltar. O
raciocínio faria sentido não fosse a certeza de,
aquela manhã, perturbado pela dúvida, o haver
propositadamente colocado de ponta cabeça.
O homem fitava imóvel o objeto de vidro
sobre a pia da cozinha. Meditava enquanto o
silêncio asséptico do apartamento ameaçava
engoli-lo. Um pequeno rosto deformado
mas idêntico ao seu o contemplava do fundo
do copo, desconfiado. Sentia-se cada vez
menor, cada vez menos o morador daquele
duplex. As suas costas, o motor da geladeira
zunia incessantemente como o ronco de um
demônio adormecido.
Sentiu seu corpo esquentar. Desfez o nó da
gravata e arregaçou as mangas da camisa listrada.
Um filete de suor escorreu da axila pelo flanco
do tórax. Perturbou-se e decidiu investigar.
Sobre a mesa de centro da sala ampla, o
jornal, cuidadosamente dobrado, repousava
ao lado dos livros de arquitetura e do vaso
de cristal. O homem recordou que não estava
lá quando saiu de manhã. O havia deixado
no banheiro. Também abrira a cortina antes
de partir. Agora, no entanto, constatou que
estava completamente fechada, e a luz da rua
transparecia pálida através do tecido.
Caminhou até o quarto vagarosamente.
O corredor parecia ainda mais estreito na
penumbra. Acendeu a luz. Os quadros nas
paredes iluminaram-se, subitamente revelando
coloridas figuras de desenho animado. Ao
abrir a porta, surpreendeu-se por definitivo:
a cama havia sido feita e roupas limpas jaziam
dobradas e empilhadas sobre a poltrona
de canto. Coisas que ele sem dúvida não
tivera tempo de fazer ao levantar, pensava
redobrado, testando a veracidade dos fatos.
Esquadrinhou seus objetos pessoais
revirados, e o medo que experimentava de
repente se liqüefez em uma espécie de raiva.
Ocorreu-lhe esta idéia: a ex-mulher teria
passado no apartamento para resgatar vestidos
ou vasos ou qualquer coisa do gênero.
quanto tempo vinha fazendo isso? Não havia
devolvido a chave ainda? Resolveu ligar.
O telefone tocou várias vezes antes de
cair na caixa postal. Sobreveio uma voz
delicada, anunciando uma longa viagem
ao exterior. Voltaria dali a dez dias, dizia
em seguida. A melodia macia da gravação
impeliu o homem à irritação profunda.
_117
_118
Devolveu o auscultador sem fio à base
com um estouro. Lembranças ruins
ameaçaram voltar. O enigma do copo
permanecia sem solução.
Voltando para a sala pelo corredor,
arrastava-se encurvado sobre si mesmo. O
relógio prateado no seu pulso marcava nove
e meia. Queria assistir ao jornal das dez.
Ouvir a opinião dos analistas econômicos
a respeito da crise imobiliária. A televisão
ficava no escritório, se é que também não
havia sido trocada de lugar.
Achou graça na situação. Daria uma boa
história, calculou. O dia em que alucinou e
encontrou a própria casa de pernas para
o ar. Obra das medicações que o analista
recentemente lhe receitara, diria: um
comprimido de fluoxetina com três doses do
uísque de tarja vermelha. Sorriu. Vieram-lhe a
expressão “efeito colateral” e as gargalhadas
dos colegas de trabalho. Ao erguer a cabeça,
sentiu sua espinha como um cabo de alta
tensão. Seus olhos flagraram nitidamente um
vulto acelerando em direção à cozinha.
Paralisado, concentrou-se em um ponto
imaginário localizado na parede cândida
a sua frente, dentro da copa. Ficou ali
estático alguns minutos, antes de ter certeza
que, de fato, vira alguém ou alguma coisa
se movimentando e que a sombra tinha
desaparecido dentro da cozinha.
Sob as palmas crispadas, estalou os dedos
das mãos. Respirou fundo. Deu um passo a
frente, depois outro. Repetia para si mesmo
que tudo estava em seu devido lugar. Pé ante
pé, sussurrava a frase em círculos concêntricos.
O som da geladeira voltou a perturbar o
homem. Teve a impressão de que aumentara
de volume. Tudo permanecia intocado na
cozinha. Atentou para área de serviço ao fundo,
escondida na escuridão. O vulto só poderia ter
migrado para lá. Caminhou até o interruptor
ao lado do fogão elétrico e acionou o botão.
As lâmpadas frias piscaram indecisas antes
de acender completamente. Duas máquinas
grandes em forma de cubo, com as quais
tinha pouca familiaridade, emergiram do breu.
Examinando-as, lembrou-se que serviam para
lavar e secar roupa e que já lhe haviam sido
úteis há muito tempo, na época nebulosa que
sucedeu a partida da ex-mulher. Um passado
remoto do qual se sentia mais ou menos
emancipado. Certificou-se de que não havia
nada dentro ou atrás dos aparelhos.
Quase imperceptivelmente, uma corrente
de vento deslizou pela fresta de uma
das janelas e agitou os imensos lençóis
pendurados no varal a sua direita. Não havia
reparado neles ainda. Estavam tão limpos que
pareciam a continuação da parede. Achou
curiosa a maneira como o pano oscilava
em ondas, reproduzindo o ruído suave do
algodão. Era como se derretesse, revelando
outra dimensão.
O homem, então, conscientizou-se de que
nunca antes havia reparado que ali havia um
varal. Assumira sempre que a área de serviço
acabava naquela falsa parede branca, construída
sobre pano e indiferença. A assombração,
concluiu, só poderia ter se escondido ali atrás.
Estendeu o braço como se o mergulhasse em
outra Via Láctea e abriu passagem.
O que viu em seguida o deixou perplexo.
A área de serviço continuava ainda alguns
metros e terminava de repente em outra
parede, essa sim real, em cujo centro havia
um imenso buraco retangular, pouco mais alto
que uma pessoa.
Estendeu o braço como se o mergulhasse em
outra Via Láctea e abriu passagem.
_poesia e prosa
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Aproximou-se. Suas retinas demoraram
para se acostumar à luz cada vez mais escassa.
Apoiando-se nas laterais, esgueirou-se e
viu que o buraco abria-se para um cubículo
mínimo. Era escuro no interior da gruta, e o ar
não circulava direito, impregnado de mofo. As
paredes estavam manchadas como hematomas,
provavelmente devido a infiltrações de água.
No canto, ao lado de um colchão de espuma,
havia um caixote de madeira sobre o qual
estavam esparramados alguns objetos: pente,
espelho, rádio de pilha, gilete descartável e uma
imagem de Nossa Senhora.
Voltou-se para o lado oposto. Lá estava a
sombra, rente à parede, como se fosse mais
uma das nódoas de umidade, seu contorno
lembrando vagamente a figura de um ser
humano. O homem tentou divisar o espectro.
Era difícil. Não enxergava direito. Tentou se
comunicar. Perguntou de onde vinha e o que
fazia ali, mas a sombra se recusou a reagir.
O homem aumentou o tom de voz, testou
palavras em inglês, gritou. Nada.
Distanciando-se do buraco, esticou o
lençol e devolveu à área de serviço sua
antiga proporção. Ligaria para o arquiteto
responsável pelo projeto do apartamento
assim que acordasse, pensou, e mandaria que
vedasse o buraco, erguendo nova parede
onde havia o varal. Ao passar pela cozinha,
enxaguou o copo sobre a pia de mármore e,
por precaução, trancou a porta atrás de si.
Tudo em seu devido lugar. Foi o que
pensou no dia seguinte, ao entrar em casa.
Estava farto de dor de cabeça. Deixou a
pasta de couro preto sobre o sofá da sala
e correu para a área de serviço. O trabalho
havia sido executado com o mesmo rigor da
encomenda. O cheiro de concreto emanava
do imenso muro de tijolo, fresco como uma
primavera em construção. O homem o sorvia
a plenos pulmões, deliciando-se. Amanhã
mandaria que pintassem. Era como se tivesse
acabado de se mudar – a mesma euforia que
sentiu quando resolveu morar sozinho pela
primeira vez.
Passeou pelo apartamento. Sentiu-se em
paz. Em lugar nenhum por onde passou viu
o copo. Tudo em seu devido lugar. Decidiu se
escaldar em um banho fervente.
Ao entrar no quarto, olhou desconcertado
para a cama. Estava desfeita e, sobre o
edredon revirado, havia um pijama. Nunca
acontecera antes. Irritou-se. Dessa vez, ele
próprio resolveria o problema.
Arremessou o conjunto de calça e camisa
xadrez sobre a poltrona, amarrotou a coberta
e começou a esticar os lençóis. O colchão
parecia ter a extensão de uma planície. Puxava
o lençol de uma lado e logo ele desalinhava na
outra extremidade. Por mais que se esforçasse,
era incapaz de arrumar a cama e deixá-la tão
alinhada como sempre costumava encontrá-la.
Exausto, desistiu de qualquer perfeccionismo.
A camisa, empapada de suor, colava-se às suas
costas como uma película de gelatina.
Fechou a porta de vidro temperado do
box e girou a torneira da esquerda apenas.
Um jato de água jorrou do chuveiro. Aos
poucos recobrava a calma. Outra preocupação
maior exigia sua total atenção. Às favas com
os problemas domésticos, pensou enquanto
enxaguava a cabeça. O homem precisava mesmo
era retomar a série de exercícios aeróbicos.
O cheiro de concreto emanava do imenso muro de tijolo,
fresco como uma primavera em construção. O homem o
sorvia a plenos pulmões, deliciando-se.
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DEPOIMENTO
_120_120
CRÓNICAS DE UN EMOTIVO
ENCUENTRO ENTRE
RÍO BRANCO
E ISEN
Por Silvina Aguirre,
Sebastián Coronel e
M. Florencia Segura (ISEN)
_121
Así como en 1985, cuando nuestros
presidentes Sarney y Alfonsín se reunieron
en Foz de Iguazú un 30 de Noviembre,
simbolizando en aquel encuentro histórico,
los sentimientos mutuos de amistad, lealtad,
visión estratégica y cooperación a largo
plazo entre ambos países, nosotros tuvimos
la oportunidad de concretar lo que nuestros
presidentes soñaron.
Esta vez, en el 2007 los protagonistas de la
historia fuimos los 101 integrantes de 1° año
de la Academia Diplomática de Río Branco
y los 35 becarios de 1° Año del Instituto del
Servicio Exterior Argentino.
Sentimos la generosidad brasilera, desde la
puesta a disposición de su avión de la Fuerza
Aérea en Ezeiza, durante todo el viaje por su
tripulación y hasta el momento de nuestra
cálida despedida.
Una vez que aterrizamos en Foz, sentimos
la calidez humana, en persona del Embajador
Fernando Reis quien nos dio una afectuosa
bienvenida.
Nuestra primera sorpresa, ya en las
Cataratas, fue quizás la gran cantidad de
ómnibus con colegas que no paraban de bajar
de ellos, y que venían muy sonrientes hacia
nosotros.
Tuvimos allí la impresión de que la
heterogeneidad en la composición de su
grupo tenía su correlato en la nuestra. Todas
las regiones de ambos países tenían su
representación en Foz de Iguazú.
De forma espontánea, y en pequeños
“grupos binacionales” emprendimos la
visita a ese maravilloso Patrimonio de la
Humanidad que también nos hermana: Las
Cataratas del Iguazú. Fue el momento ideal
para intercambiar opiniones, impresiones, y
darnos cuenta que en nuestra vida diaria, hay
más cosas que nos unen que aquellas que
nos separan: el fútbol, las clases, las pasantías
y los exámenes de idiomas. Era por ello, que
los argentinos nos esforzábamos por tratar
de comunicarnos en portugués, mientras
que los brasileros lo hacían en español. Fue
entonces, que mitad en español y mitad en
portugués, comenzamos a tomar conciencia
que compartíamos las mismas pasiones,
ambiciones, miedos e incertidumbres.
Luego de las Cataratas, y con pocos
minutos libres antes de proseguir con la
intensa agenda programada, algunos de
“nosotros” (léase grupo binacional), pudimos
compartir un momento de diversión en
la pileta del hotel. Hubo un denominador
común... el de disfrutar aquello que se había
obtenido luego de tanto esfuerzo por los
exámenes de ingreso!
En nuestra visita a Itaipú, pudimos
comprobar el fruto de la grandeza de la
cooperación y el buen trabajo conjunto de
dos países.
Sin duda, el momento más emotivo, fue
para muchos, el de los discursos pronunciados
por los distinguidos funcionarios a cargo
de sendas academias. En particular, nuestro
Director, Embajador Horacio Basabe nos
hizo dimensionar la importancia histórica del
encuentro que estábamos viviendo.
Coronamos un día inolvidable con una
noche en la que la música fue una excusa
más para conocernos. Además de haber
sido agasajados en una fiesta caracterizada
por la buena organización y la típica buena
onda brasilera, también hubo lugar para la
improvisación de una “guitarreada” en la que
se hizo presente el federalismo a través de las
diferentes melodías regionales, símbolo de la
integración de culturas.
Al día siguiente, con pocas horas de sueño,
y sin querer partir, pero con la satisfacción
de haber sembrado la semilla de una amistad
duradera y sincera, comenzó nuestra
despedida. En ese momento, se produjo un
intercambio incesante de tarjetas personales
e e-mails para continuar con los vínculos
logrados.
Como corolario de estos recuerdos
imborrables, queremos agradecer
sinceramente a todas las autoridades que
lo hicieron posible, y no podemos más que
retribuir tanta amabilidad abriendo las puertas
de nuestra casa a la espera del reencuentro
con nuestros colegas de Itamaraty.
Como servidores públicos, sentimos el
deber de profundizar y afianzar esta relación
para el bienestar de nuestros pueblos,
materializando así aquella visión iniciada 22
años atrás...
_121
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O quadro é da minha primeira fase de
diletantismo pictórico em Londres, em
1968, e dele não tinha lembrança alguma.
Essa fixação minha em ambientes zonais
começou na minha infância, quando
conheci o Mangue, levado por um digno
educador que era irmão Marista.
Foi em 1938, quando eu tinha 12
anos e, recém chegado de Barra do
Piraí, estava cursando o primeiro ano
do ginásio, interno no São José da Tijuca.
Getúlio, no Estado Novo, havia criado um feriado nacional de inspiração
fascista, o Dia da Raça, comemorado com uma parada da juventude de
todos os colégios secundários do Rio. O irmãos Maristas, que desejavam
estar bem com o governo, caprichavam no desfile de seus alunos.
Militarmente treinados, com um uniforme de luxo, desfilávamos com
muito garbo e o educandário costumava obter o primeiro lugar entre
todos os participantes da parada. Naquele ano, havia
duas novidades. O desfile já não seria na Avenida Rio
Branco, mas na nova Presidente Vargas. E o uniforme
luxuoso do colégio passava a incluir um penacho,
também azul, no quepe.
O São José assim desfilou gloriosamente, passou pelo
palanque presidencial perto do Ministério da Guerra, e
a dispersão foi feita mais adiante. Os dias seguintes eram
feriados. Os alunos que moravam no Rio, dispersados,
tomaram o caminho de casa. Cerca de vinte alunos da
turma dos Menores moravam fora do Rio e, por este
motivo, tinham de seguir o Irmão Francisco, regente da
turma, de volta ao Colégio na Tijuca.
Aconteceu então uma inesquecível continuação do
desfile. O Irmão Francisco, guia de uns vinte pirralhos,
não encontrou condução para embarcar. Como era
mineiro e desconhecia o Rio, saiu com o seu séquito
por uma rua lateral da nova Avenida. Foi então que eu e mais dezenove
pirralhos conhecemos a zona do meretrício do Rio, o famoso Mangue,
que ficou em minha memória até hoje aos oitenta e três anos.
A invasão da área por um irmão Marista de batina seguido de um
pelotão de pirralhos causou entre as profissionais do meretrício uma
imensa curiosidade. Piadas, gritinhos, convites choveram das janelas e
das portas abertas. O digno irmão Marista caminhou várias quadras
sem pestanejar mas depois explodiu quando uma mulher mais atrevida
tentou agarrá-lo. O diálogo então travado ainda hoje é impróprio para
menores e por conseqüência também não seria apropriado para uma
revista de diplomatas...
Ovídio de Andrade Melo
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