Download PDF
ads:
ÁLVARO ALENCAR
UM
DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O
SUBDESENVOLVIMENTO
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim
Secretário-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
FUNDAÇÃO A LEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo
Instituto de Pesquisa de
Relações Internacionais
Diretor Embaixador Carlos Henrique Cardim
A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao
Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações
sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é
promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais
e para a política externa brasileira.
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo, Sala 1
70170-900 Brasília, DF
Telefones: (61) 3411-6033/6034/6847
Fax: (61) 3411-9125
Site: www.funag.gov.br
ads:
Brasília, 2009
Álvaro Alencar
um diplomata na luta contra o
subdesenvolvimento
MARIA CLARA A LENCAR GONÇALVES
CARLOS HENRIQUE CARDIM
ORGANIZADORES
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo
70170-900 Brasília – DF
Telefones: (61) 3411 6033/6034/6847/6028
Fax: (61) 3411 9125
Site: www.funag.gov.br
Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme
Lei n° 10.994, de 14/12/2004.
Equipe Técnica:
Eliane Miranda Paiva
Maria Marta Cezar Lopes
Cíntia Rejane Sousa Araújo Gonçalves
Erika Silva Nascimento
Juliana Corrêa de Freitas
Júlia Lima Thomaz de Godoy
Talita Castanheira Tatico
Programação Visual e Diagramação:
Juliana Orem e Maria Loureiro
Impresso no Brasil 2009
Fundação Alexandre de Gusmão.
Álvaro Alencar : um diplomata na luta contra o
subdesenvolvimento / Fundação Alexandre de
Gusmão.— Brasília : FUNAG, 2009.
92p.
ISBN: 978.85.7631.172-0
1.Política externa - Brasil. 2. Alencar, Álvaro -
Biografia.
CDU 929(81)
Sumário
1. Prefácio
Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, 7
2. Nota biográfica, 11
3. Depoimentos:
Entrevista com o Embaixador Jório Dauster, 15
Artigo do Embaixador Adhemar G. Bahadian “Álvaro: pequenas
lembranças de um longo convívio”, 23
Artigo do Embaixador Salvador Arriola “Homenagem ao negociador
exemplar”, 33
Caderno de fotos, 39
Discurso do Senador Eduardo Suplicy e o voto de pesar do Senado, 59
Entrevista com o Senador Francisco Dornelles, 63
Entrevista com o Professor Paulo Nogueira Batista, 69
4. Textos de Álvaro Alencar
Artigo “A crise da dívida: até quando?”, 71
Artigo “Transferência de tecnologia”, 83
7
Prefácio para o livro em homenagem ao
Embaixador Álvaro Gurgel de Alencar Netto
Celso Amorim
Ministro das Relações Exteriores
Permanecem insuficientes as homenagens prestadas ao Embaixador
Álvaro Gurgel de Alencar Netto. A obra que a Fundação Alexandre
de Gusmão e o Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais agora
publicam tenta dirimir esta falha.
De um lado, os depoimentos de seus amigos dão testemunho dos
muitos predicados que ele fez por merecer: profissional sério,
dedicado, honesto, competente, um dos grandes diplomatas de sua
geração, um verdadeiro servidor da pátria, um amigo leal, caloroso e
humano. De outro, a obra oferece ângulo privilegiado de uma
passagem da nossa história diplomática pouco conhecida fora do
círculo íntimo do homenageado.
Álvaro de Alencar foi Representante brasileiro junto à ONU em
Nova York e junto à FAO em Roma, Cônsul-Geral em Berlim e
Embaixador em Havana. Ao longo de sua carreira, dedicou-se a
importantes negociações comerciais. Era conhecida nos corredores
do GATT, da UNCTAD e do G-77 sua preocupação com a redução
das assimetrias entre países ricos e países pobres.
Como assessor internacional dos Ministros Francisco Dornelles e
Dilson Funaro em momento crítico para a economia brasileira, tornou-
se um dos principais negociadores da reestruturação de nossa dívida
externa junto ao Clube de Paris. Agora que o Brasil assume um papel
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
8
de maior destaque no mundo não podemos ignorar a dimensão da
tarefa que era, logo após a declaração de moratória, tentar fazer nosso
País ser levado a sério pela banca internacional.
Quando ingressei na carreira diplomática, logo fiquei sabendo de
sua reputação como importante assessor do Embaixador Jaime de
Azevedo Rodrigues nas negociações da UNCTAD. Nosso primeiro
contato pessoal foi à margem de uma reunião da CEPAL em Quito,
em 1973, em que cabia a Álvaro a articulação diplomática com os
outros países. Chefiava a delegação brasileira um diplomata e “dublê
de economista” de grande e merecido prestígio: o Embaixador Miguel
Ozório de Almeida.
Recordo-me que, naqueles anos de chumbo, Álvaro não se furtava
em dialogar com outros países em desenvolvimento, inclusive com
Cuba. Creio que terá sido por indicação dele que fui chamado pouco
depois para participar de um “Ecosoc de primavera” em Nova York.
Acompanhei, como Representante do Brasil junto à ONU em Nova
York, para onde Álvaro sempre viajava para participar de um
importante comitê da ONU do qual era membro, de seus esforços
para relançar nossas relações comerciais com Cuba. Mantive com
Álvaro os melhores contatos, que se estreitaram naquele momento
vibrante da política brasileira, na sequência do processo de
redemocratização. Muito me beneficiei das longas conversas sobre
negociações comerciais que tivemos quando fui Embaixador em
Genebra pela primeira vez. Já à frente da Pasta de Relações Exteriores
no Governo do Presidente Itamar Franco, tive a oportunidade de
indicá-lo para chefiar nossa delegação junto à FAO, recriada naquele
momento. Álvaro foi um verdadeiro amigo, com quem tive o privilégio
de trabalhar e de conviver.
Quando assumi o Itamaraty novamente, desta vez a convite do
Presidente Lula, pedi ao Embaixador Álvaro Alencar que emprestasse
sua colaboração em tema central para a atual agenda externa brasileira,
com o qual ele tinha grande intimidade: as negociações comerciais
multilaterais. Seu falecimento, infelizmente, deixou a tarefa inconclusa
e os amigos carentes da sua presença.
O Embaixador Álvaro Gurgel de Alencar Netto foi um diplomata
de convicções fortes, pessoalmente empenhado na promoção do
desenvolvimento nacional. Fez da diplomacia sua trincheira em defesa
PREFÁCIO
9
do Brasil e da construção de uma ordem internacional menos injusta.
Que a publicação desta obra sirva para que seu exemplo seja
conhecido e perpetuado.
11
Nota Biográfica
Nascido em 09/7/1936, no Leblon, Rio de Janeiro.
Descendente em linha direta do escritor José de Alencar, sempre
demonstrou muito gosto pela literatura, tendo, inclusive, traduzido ainda jovem,
em parceria com o hoje embaixador Jorio Dauster, o famoso livro do escritor
americano Salinger, “O apanhador no campo de centeio”, um marco da
literatura contemporânea, uma acurada e sensível crônica da juventude da
década de 50, séc. XX.
Foram seus avós o desembargador cearense Alvaro Gurgel de Alencar,
orador brilhante e defensor das classes menos favorecidas e Henrique
Maggioli, pelo lado materno, presidente, por vários anos, do Conselho
Municipal do antigo Distrito Federal, no Rio de Janeiro, na primeira metade
do séc. XX.
Aos quatro anos, já alfabetizado pela avó materna, frequentou inicialmente
o Colégio Fontainha, em Ipanema.
Sempre muito querido e bem orientado por seus pais, Alvaro Gurgel de
Alencar Filho e Zuleika Maggioli Gurgel de Alencar, obteve autorização
especial, por insuficiência de idade, para prestar concurso para o Colégio
Militar do Rio de Janeiro, sendo aprovado e admitido com 10 anos, aí
cursando os sete anos de estudo.
Desde bem jovem liderava um grupo de amigos que se reunia
frequentemente na Rua Lúcio de Mendonça, Tijuca, nos jardins da casa de
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
12
seu avô Henrique Maggioli, que os acolhia com grande amizade e alegria. Ali
criou o “Esperança Futebol Clube”, onde atuava como goleiro do time, do
qual fazia parte também, dentre outros grandes amigos , o ministro Francisco
Dornelles e Sergio Camargo.
Representou as cores do Tijuca Tênis Clube, quando jogou na equipe
de water-pólo.
Continuou seus estudos na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de
Janeiro, formando-se e, logo após, prestando concurso para o Instituto Rio
Branco (Itamaraty), ingressando, assim, na carreira diplomática.
Casou-se em 1967 com Hannelore Dorothea Martha Müller, nascida na
Alemanha, naturalizada brasileira, sua muito amada e companheira; desta
união nasceram Alvaro Alberto, em Hong Kong e Maria Clara, em Brasília.
13
CRONOLOGIA FUNCIONAL
1936 Filho de Alvaro Gurgel de Alencar Filho e Zuleika Maggioli Gurgel
de Alencar, nasce em 09 de julho, no Rio de Janeiro/RJ
1955 Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro
1956 Curso de Pós-graduação pela Faculdade de Economia da
Universidade de Ottawa, Canadá
1956 CPCD, IRBr
1962 Terceiro Secretário em 07 de novembro
1964 Divisão de Política Comercial, auxiliar
1965 Embaixada em Ottawa, Terceiro-Secretário
1965 Consulado em Montreal, Cônsul-Adjunto
1966 Segundo Secretário em 22 de novembro
1967 Consulado em Hong-Kong, Cônsul-Adjunto
1970 Divisão de Política Comercial, Chefe, interino
1973 Primeiro Secretário em 1º de janeiro
1973 Delegação Permanente em Genebra, Primeiro-Secretário e
Conselheiro
1975 Conselheiro em 17 de março
1976 Divisão de Política Comercial, Chefe
1978 Ministro de Segunda Classe em 12 de junho
1979 Delegação Permanente em Genebra, Ministro-Conselheiro
1986 Ministro de Primeira Classe em 15 de dezembro
1987 Missão junto à ONU, Nova York, Representante Permanente Adjunto
1990 Consulado-Geral em Berlim, Cônsul-Geral
1993 Embaixada em Roma/FAO, Representante Permanente junto à FAO
1997 Embaixada em Havana, Embaixador
1999 Ministério do Trabalho e Emprego, Gabinete do Ministro, Assessor
Especial
2002 Comitê de Acompanhamento da Implementação do Plano de Ação
da Cúpula Mundial da Alimentação da Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), Genebra, Presidente
2003 Secretaria de Estado das Relações Exteriores, à disposição
15
Entrevista com o Embaixador Jorio Dauster
Entrevistador
Gravando depoimento sobre o livro “Álvaro Alencar”. Embaixador Jorio
Dauster com a palavra.
Embaixador Jorio Dauster
O Álvaro foi um companheiro de toda a vida. Passamos a infância na
Tijuca, morando a alguns quarteirões de distância e mais tarde cursamos o
Colégio Militar do Rio de Janeiro, embora, então, nos víssemos pouco porque
estávamos em classes diferentes. Voltamos a nos encontrar depois que ele
voltou dos Estados Unidos, onde o Álvaro tinha ido fazer um curso de inglês.
Ele falava e escrevia inglês muito bem, tendo chegado a ser professor do
idioma (e dado aulas particulares para minha mãe).
A essa altura já estava cursando no Instituto Rio Branco e ele se preparava
para fazer o exame de admissão. A primeira conversa que tivemos acabou
derivando para traduções. Eu lhe disse que tinha um único livro que fazia
questão de traduzir e ele disse que também só tinha um livro que queria
traduzir e obviamente se tratava da mesma obra “Catcher in the Rye”,
de J. D. Salinger. O livro foi publicado no Brasil com o título de “O apanhador
no campo de centeio” e contou também com o Antonio Rocha como co-
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
16
tradutor. Anos depois, eu e o Álvaro traduzimos a quatro mãos a coletânea
de contos do Salinger intitulada “Nove estórias”. Mas ele nunca me mostrou
nem ao menos um capítulo do romance de espionagem que, aparentemente,
passou décadas escrevendo e deixou inacabado.
Como o Álvaro foi o primeiro colocado em Economia no Curso do
Instituto Rio Branco, os preclaros Chefes da Casa entenderam que ele era
bom de números e o lotaram na Divisão de Orçamento. Pouco depois, quando
foi criada a Secretaria-Geral para Assuntos Econômicos, eu fui chamado
pelo Embaixador Jayme Azevedo Rodrigues para ser seu Chefe de Gabinete.
O Jayme tinha sido meu Professor no Instituto Rio Branco, havendo se
afastado na época da crise Jânio/Jango a fim de ir para o Rio Grande do Sul
lutar, se necessário, pela constitucionalidade do país, porém terminou sendo
marginalizado durante algum tempo. Mas a economia nunca tinha sido seu
forte e ele sabia que eu tinha um interesse especial pelo assunto. Naturalmente,
tratei logo de levar comigo o Álvaro, fazendo com que vivêssemos juntos
uma imensa aventura política e econômica que marcou muito nossas vidas
profissionais. Por isso, acho que vale a pena nos determos um pouquinho
aqui. Quando o Jayme Azevedo Rodrigues recebeu em caráter póstumo a
Grã-Cruz Ordem do Rio Branco, em 1993, escrevi uma Carta aos Jovens
Colegas, publicada no boletim da ADB (Ano I, nº 2), em que abordei os
elementos centrais do complexo processo diplomático que desaguou na
realização da primeira UNCTAD.
Vale lembrar que, no início da década de 60, a América Latina vivia uma
profunda crise econômica, agudizada pela tomada de poder de Fidel Castro
em Cuba que trouxe a Guerra Fria para dentro do Hemisfério. Não foi à toa
que estivemos bem perto do fim do mundo durante a crise dos mísseis de 62.
Nos anos 50, criara-se na ONU um movimento de conscientização do
subdesenvolvimento como um fenômeno histórico específico que atingia um
grande número de países, muitos dos quais recém-saídos do estado colonial.
Nesse tempo, serviam em nossa missão junto à ONU, além de Antonio
Houaiss (que se dedicava de corpo e alma ao processo de descolonização),
o Miguel Osório de Almeida e o Sérgio Rouanet, que, trabalhando na área
econômica, deram força à ideia de convocação de uma conferência onde
seriam debatidos todos os problemas comerciais dos países chamados à
época de “atrasados”. Mas, obviamente, naquela fase de esquentamento da
Guerra Fria, as potências ocidentais viram o esforço de reformar a ordem
econômica pós-Segunda Guerra como algo bastante ameaçador, pois não
ENTREVISTA COM O EMBAIXADOR JORIO DAUSTER
17
estávamos questionando apenas os desequilíbrios nos mercados de produtos
de base, mas também nos de bens manufaturados e dos chamados invisíveis
(fretes, seguros etc.). Sustentávamos ademais a necessidade de se criar a
Organização Internacional do Comércio, abortada em 1948 graças à oposição
dos Estados Unidos, em substituição ao GATT, que não passava de um clube
de ricos.
Tudo isso foi muito importante porque, até aquele momento, o mundo
era cindido no sentido Leste/Oeste e a expressão hoje corriqueira da
divisão Norte/Sul nasceu então. Ao Brasil, e especificamente a nós na
Secretaria-Geral de Assuntos Econômicos, coube organizar o grupo latino-
americano, que se articulou com os grupos asiático e africano para formar o
Grupo dos 77 sob o lema “subdesenvolvidos, uni-vos”. Como parte dessa
vasta operação diplomática, o Jayme chefiou duas grandes missões para visitar
países da América Latina, tendo eu o acompanhado na parte norte do circuito
e o Álvaro, na parte sul.
Nós compartilhávamos inteiramente não só as pesadas tarefas cotidianas,
mas sobretudo os ideais que presidiam aquele profundo realinhamento das
forças internacionais. Dividimos também o ônus que resultou de nossa atuação,
pois o golpe militar de 31 de março nos alcançou em Genebra, em plena I
UNCTAD, e Jayme Azevedo Rodrigues, Sérgio Rouanet, eu e Álvaro fomos
afastados da delegação e chamados de volta ao Brasil como subversivos. É
interessante ver como o Rouanet firmou-se como grande filósofo e hoje
pertence à Academia Brasileira de Letras, enquanto eu e o Álvaro recuperamos
nossas carreiras. Infelizmente, contudo, o Jayme Azevedo Rodrigues não
pôde fazê-lo, tendo sido vitimado física e psicologicamente pela perda de
seus direitos políticos.
Depois disso, o Álvaro foi removido para a Embaixada em Ottawa,
decidido a estudar Economia, e por coincidência eu terminei indo para o
Consulado Geral em Montreal, também empenhado em retomar os estudos
econômicos, porém movido em especial pela possibilidade de trabalhar com
o Miguel Osório de Almeida, também marginalizado pela Revolução. Além
do convívio intelectual extraordinariamente estimulante com Miguel Osório,
um dos maiores talentos do Itamaraty, aproveitei para aprender a lutar boxe
com quem anos antes disputara as luvas de prata em Miami. E o Álvaro vinha
frequentemente de Ottawa para estar conosco, pois também tinha enorme
admiração pelo Miguel Osório. Na própria Embaixada, ele teve a sorte de
trabalhar com o Paulo Nogueira Baptista, outra figura excepcional da carreira
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
18
diplomática, que, quando foi chefiar a missão do Brasil junto à ONU, levou o
Álvaro como seu número dois.
A experiência do Álvaro em Ottawa ainda foi mais rica porque lá ele
encontrou sua esposa Hannelore, uma jovem enfermeira alemã que iluminou
os últimos meses de vida do filho da Embaixadora Vasconcellos. Não
surpreende que o Álvaro houvesse apaixonado-se por aquela figura tão boa
e dinâmica, no que contou com o apoio total de seus amigos de Montreal.
Daí nasceu uma forte amizade entre os dois casais, depois estendida a nossos
filhos, a qual sobreviveu incólume aos longos períodos de afastamento que a
carreira impõe a seus integrantes.
Entrevistador
Uma pergunta: Nessa época, quais eram os autores ou livros prediletos
do Álvaro e que mais influenciaram o pensamento dele?
Embaixador Jorio Dauster
Ele conseguiu completar o mestrado, mas não me recordo qual foi o
tema de sua tese. Nosso interesse, permanente era, porém, o comércio
internacional e as formas pelas quais se processava a espoliação dos países
periféricos. Tanto o Álvaro quanto eu sempre tivemos um forte sentimento
nacionalista, o que, naqueles anos de chumbo, fazia com que nos
caracterizassem como homens de esquerda. Rótulo até meritório diante da
sujeição aos desígnios dos Estados Unidos que marcava os da direita, mas o
fato é que nenhum de nós jamais frequentou agremiações de cunho político
ou mesmo entregou-se a elucubrações ideológicas. Uma das coisas que nos
uniu por tantas décadas foi justamente o fato de sermos pessoas com fortes
convicções, mas de temperamento pragmático. As infindáveis negociações
comerciais de que participamos, apesar de frustrantes em termos históricos,
eram o instrumento de que dispúnhamos para fazer alguma coisa pelo Brasil
e pelos países em desenvolvimento.
Ao sair de Montreal, Álvaro foi para o Consulado-Geral em Hong Kong
acompanhando o Miguel, que, quarenta anos atrás, já achava importante
conhecer melhor a China – ele que já tinha passado pela Rússia e estudado
profundamente o país utilizando instrumentos econométricos pouco comuns
no Itamaraty. Foi uma fase muito profícua para o Álvaro sob todos os aspectos,
ENTREVISTA COM O EMBAIXADOR JORIO DAUSTER
19
mas dela guardo um episódio engraçado do ponto de vista humano. Eu havia
chegado na então Tchecoslováquia em 1968, em plena “primavera de Praga”,
sabendo que o Álvaro, então em Hong Kong, planejava fazer então a primeira
visita à família de Hannelore, na Alemanha Oriental. Naquela época, isso era
uma coisa bem complicada porque o Brasil não mantinha relações com aquele
país. Nas cartas que havíamos trocado ficara acertado que ele daria uma
esticada em Praga, coisa confirmada num telefonema que me deu já da
Alemanha Oriental. E lá estavam ele e Hannelore (grávida do primeiro filho,
Álvaro Alberto) na pequena aldeia quando, certa noite, começam a ouvir um
ruído estranhíssimo. Junto com os agitados familiares de Hannelore, correm
para a beira da estrada e ali ficam, embasbacados, vendo as longas colunas
de tanques que seguiam rumo à Tchecoslováquia naquele fatídico 20 de
agosto.
O Álvaro estava assim assistindo os primeiros movimentos da invasão
da Tchecoslováquia enquanto eu, em Praga, não sabia ainda que os tanques
estariam chegando pela manhã. Com as fronteiras fechadas, obviamente a
visita deles não pôde se realizar. Mas, um dia depois, ainda no torrão natal de
Hannelore, ele foi buscado por um enorme carro preto para conversar com o
sujeito que presumiu ser agente da Stasi, interessadíssimo em saber exatamente
o que estava fazendo ali naquela hora um diplomata de um país hostil ao seu
e que comunicações eram aquelas que mantinha com um colega sediado
justamente em Praga. As conversas, sempre muito cordiais, se repetiram nos
dias seguintes, até que o Álvaro, compreensivelmente assustado, se mandou
de volta para o Ocidente. Mas sempre trocávamos boas risadas ao
recordarmos esse curioso momento em que uma oportunidade de reencontro
nos foi negada por poderosas forças históricas.
Depois disso, ficamos afastados anos a fio, ele na SUBIN, órgão do
Ministério do Planejamento, eu em Londres e depois na presidência do IBC.
Ocupando uma função para a qual estava inteiramente capacitado, seja por
envolver contatos com vários organismos internacionais, seja por servir de
“liaison” entre o Itamaraty e as autoridades econômicas do país, Álvaro era
parte integrante da equipe do ministro Funaro quando foi declarada a moratória
da dívida externa, gesto que recebeu com entusiasmo ao ver nele uma
manifestação de independência política (conquanto, na verdade, fosse fruto
da exaustão total das reservas brasileiras). Seja como for, quis a vida que ele
estivesse presente na suspensão dos pagamentos aos credores e a mim
coubesse, em 1990, a tarefa de negociar o fim da moratória. Foi a primeira
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
20
vez que se designou um Embaixador Extraordinário para a Negociação da
Dívida e sei que o Álvaro apoiou meu nome junto a pessoas que tiveram
influência na escolha.
Conquanto nos víssemos pouco nos anos seguintes, chegamos a fazer
férias conjuntas que ajudaram a selar a amizade entre os filhos, que dura até
hoje. Além disso, sempre que possível nos enfrentávamos numa quadra de
tênis, onde o poderoso desejo de vencer de ambos só era superado por
nossa incompetência no manejo da raquete. Pelejamos até bem pouco tempo
atrás, quando o enfisema adquirido por conta de décadas de tabagismo impediu
o Álvaro de entregar-se àquelas árduas disputas.
Não obstante, conversávamos longamente em torno de um chope ou um
uísque, sempre analisando a economia brasileira e sofrendo a infelicidade de
lutarmos, até recentemente, com aqueles enormes “déficits” em conta corrente
que sufocavam nosso crescimento. O Álvaro permaneceu mais convicto do
que eu quanto aos métodos de ação que advogáramos no passado, pois
devo confessar que, tendo ido para o “outro lado do balcão”, na esfera privada,
fui obrigado a rever alguns conceitos sobre a efetividade das tratativas
internacionais e os benefícios da intervenção estatal na economia. Cumpre
assinalar, porém, até mais do que a coerência de seu pensamento, a constante
dedicação do Álvaro aos interesses brasileiros.
Entrevistador
Com relação aos ideais do passado que mencionou, com forte carga de
nacionalismo econômico, como explicitaria, talvez com alguns exemplos?
Embaixador Jorio Dauster
O Álvaro tinha, como eu, uma visão aguda da injustiça social no Brasil.
Entendíamos que a situação de abandono de milhões de brasileiros era
inaceitável e, embora se devesse em grande parte à falta de visão de nossas
elites, também decorria dos desequilíbrios nas relações econômicas
internacionais, que, entre outras coisas, impediam que produtos em que somos
competitivos tivessem maior acesso aos mercados dos países ricos. Não
era, portanto, uma visão meramente interna porque, como diplomatas,
tínhamos acumulado uma larga experiência com respeito aos caminhos e
descaminhos do mundo. No caso do Álvaro, ao servir na FAO ele havia
ENTREVISTA COM O EMBAIXADOR JORIO DAUSTER
21
lidado diretamente com a fome, com a pobreza extrema. Essas coisas estavam
fortemente enraizadas no pensamento dele. O Álvaro sabia bem que a primeira
UNCTAD representara a luta por uma reforma profunda do sistema
internacional, mas aquele impulso só havia tido algo de revolucionário no seu
primeiro momento, porque depois os “donos do mundo” a cooptaram,
transformando-a em mais uma entidade, numa organização sem poder
decisório. Só bem mais tarde surge OMC, resgatando uma ideia que fora
abortada meio século antes pelo Congresso americano. Mas continuavam os
impasses de sempre, as velhas barreiras protecionistas permaneciam travando
o comércio de produtos agrícolas, os países desenvolvidos não deixavam de
buscar vantagens inaceitáveis no campo da propriedade intelectual, e por aí
vamos. O Álvaro não esquecia isso um só instante e estava sempre pronto a
encarar mais uma batalha.
Entrevistador
Quer dizer que talvez naquela época houvesse uma consciência mais
sensível para esses problemas, talvez a linguagem tenha sido abrandada através
de eufemismos?
Embaixador Jorio Dauster
Nossa linguagem diplomática nessa área terá sido mais contundente no
passado, porém a postura de luta por um mundo mais justo não foi
abandonada. Na área comercial, por exemplo, isso se expressa na liderança
que o Brasil hoje exerce no Grupo dos 20, à qual se chegou por conta de
uma construção feita laboriosamente ao longo de décadas. Lembro-me de
que eu e o Álvaro estávamos escrevendo à noite as instruções para a I
UNCTAD, naquele edifício que chamávamos de “Niterói do Itamaraty”,
enquanto realizava-se o famoso Comício da Central, última tentativa do Jango
para mostrar que contava com o apoio das forças militares. Imagine escrever
instruções para uma conferência de tamanha relevância ouvindo toda aquela
algazarra diante do vizinho Ministério da Guerra. Isso serve para mostrar
como mudou o Brasil e o mundo, inclusive porque desde então ocorreu uma
significativa diferenciação entre os países em desenvolvimento. Naquela época,
era mais fácil articular posições coletivas, como no Grupo dos 77, porém
hoje são cento e tantas nações em estágios muito diferentes de renda,
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
22
educação, industrialização. Quando eu e o Álvaro iniciamos nossas carreiras,
o Brasil tinha uma exportação total pouco superior a um bilhão de dólares
anuais, praticamente tudo representado por receitas de produtos primários e
com o café responsável por mais da metade disso. O Brasil era um fazendão
e nossos problemas, evidentemente, muito diversos daqueles que enfrentamos
nos dias de hoje.
Entrevistador
Como ele via o papel da América do Sul, do Mercosul, da integração
latino-americana, chegaram esses temas a fazer parte das prioridades do
Álvaro?
Embaixador Jorio Dauster
Não sei se ele chegou a trabalhar diretamente com tais questões porque,
quando voltei a encontrá-lo em Brasília mais recentemente, ele tinha vindo de
Cuba e estava trabalhando como Assessor Especial do Secretário-Geral.
Certamente preocupava-se com essas questões e era favorável ao Mercosul,
apesar de todos os seus defeitos. A América do Sul como espaço geopolítico
em que o Brasil tem de marcar seu destino histórico sempre esteve presente
no pensamento dele, mas talvez outros colegas possam trazer subsídios
concretos sobre o que fez nesse terreno.
Entrevistador
Muito obrigado; encerrado o depoimento do Embaixador Jorio Dauster.
23
Artigo do Embaixador Adhemar G. Bahadian
“Álvaro: pequenas lembranças de um longo
convívio”
para Beto e Clarinha
Nos vimos pela primeira vez em Niterói. Não a Niterói da baia de
Guanabara, mas a Niterói do lago dos cisnes do Itamaraty, onde se chegava
após atravessar a passarela do Bife de Zinco, restaurante que era de bom-
tom frequentar ás vezes, pois ali pousavam e posavam os chefes,alguns deles
com ar distante a mastigar contrafeitos uma remoção indesejada. Nós ,
rebeldes, íamos muito aoTupi ou ao Galo ou, mais tarde, em dias mais
redondos da semana, para a Confeitaria Colombo,na época,quem diria,um
point.Comia-se, mas sobretudo falava-se ou melhor sussurava-se, pois
naqueles tempos, as paredes, mais do que ouvidos, tinham chibatas.
Nossa primeira conversa, se bem me lembro, foi sobre o Catcher in
the Rye, do Salinger, que o Álvaro, juntamente com o Jório Dauster e o
Antonio de Campos havia traduzido. Na época, como aliás até hoje, O
Apanhador no Campo de Centeio era um dos livros da literatura norte-
americana que mais me haviam marcado, talvez só comparável, na infância,
às Aventuras de Tom Sayer, de Mark Twain, também numa primorosa
tradução do Monteiro Lobato. Álvaro me contou que os tradutores
brasileiros queriam dar ao livro o título de Sentinela do Abismo, o que ,
como sabemos os que lemos o livro, faria muito mais sentido. Mas, Jerome
(era a primeira vez que ouvia o seu nome) Salinger com a sua enraizada
personalidade obssessivo-compulsiva havia rejeitado toda e qualquer
sugestão em qualquer língua e em qualquer país de alterar o título de sua
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
24
obra, talvez a mais aguda, poética e sensível análise psicológica de um
adolescente em crise que jamais li.
Falamos sobre o livro enquanto ele me dava uma carona do Itamaraty
até a Tijuca num inesquecível, alquebrado Nash verde-musgo dos anos
50,com um volante grandioso imitando madrepérola e mudança na coluna de
direção.O carro pertencia a seu pai, em cuja casa, no Jacarepaguá, Álvaro
estava transitoriamente vivendo após chegar de seu posto em Hong Kong.
Ele, que nunca foi bom motorista, às vezes arranhava ao engatar a segunda e
resmungava sobre o carro, o trânsito, o calor, a cidade, o cosmos em geral,
entre expletivos de intensidade variável, que não chegavam a interromper o
fio da conversa, mas a levava a pequenos desvios e considerações diversas
sobre o desarranjo natural dos seres viventes e inanimados.
Era uma caracteristica dele o resmungar. Mas, era um resmungar a que a
gente se habituava como se habitua a um cacoete e parecia uma reação à
Salinger às coisas da vida sendo ele, Álvaro, senão um obssessivo-compulsivo,
um notório perfeccionista, exigentíssimo principalmente com ele mesmo para
ver as coisas bem feitas na forma e na substancia. Apesar dos resmungos era
uma pessoa afável e calorosa com os amigos e raramente, muito raramente,
se dirigia de forma crítica a quem quer que fosse. Criticava acerbamente
ideias e sobretudo a falta delas, mas nunca descambava para o popular
fofoquismo, que aliás detestava até ouvir.
A vida profissional nos aproximou muito. Comecei a trabalhar com ele
na velha DPC (Divisão de Política Comercial) de Niterói, lugar que reunia os
craques do multilateral econômico do Itamaraty daqueles tempos em que
nos dedicávamos todos a transformar em atos e fatos as lições, os diagnósticos
e sobretudo a visão do mundo inspiradora que nos chegava de Celso Furtado
e de Raul Prebisch. Nem sempre era uma vida sem sobresaltos, pois embora
os tempos do alinhamento automático já estivessem recebendo um traço de
arquivo, de vez em quando ainda ressoava pelas paredes uma famosa frase
que comparava o Brasil à General Motors, que não ouso sequer repetir. O
clima era portanto meio sujeito a trovoadas e a arte de escrever textos de
posições negociadoras, textos que eram escrutinados até mesmo fora do
Itamaraty, beneficiava-se muito de um certo colorido barroco.
Álvaro desempenhou um papel importantíssimo na formulação de
posições seminais na defesa de nossos interesses nos foros econômicos
internacionais sobretudo na UNCTAD dos anos 70, quando ela reuniu ossatura
internacional suficiente para mostrar as dissimetrias, assimetrias e arritmias
ARTIGO DO EMBAIXADOR ADHEMAR G. BAHADIAN
25
que caracterizavam o sistema econômico internacional.Não cabe aqui tentar
analisar o que deu errado e que permitiu o sistema continuar sem grandes
mudanças até hoje. Menciono a crise do petróleo e o consequente
agravamento da dívida externa de nossos países como referências importantes
para os que se aventurarem nessas trilhas nebulosas que desembocam no
consenso de Washington e no neo-liberalismo que deu ás forças do mercado
poderes encantatórios, Álvaro era admirável, na arte de escrever discursos.
Foi um ghost-writer dos mais brilhantes que o Itamaraty já teve e deve ter
escrito ao longo de sua vida algumas centenas de textos que foram lidos por
embaixadores do porte de Antonio Francisco Azeredo da Silveira. George
A. Maciel, Paulo Nogueira Batista, Miguel Osório de Almeida; políticos e
Ministros como Dilson Funaro,Tancredo Neves e até mesmo mais de um
Presidente da República atraves do encaminhamento encadeado desses textos
de sua mesa de trabalho no Itamaraty ao palácio presidencial, muitas vezes
sem serem modificados em uma só linha.
Suas qualidades de formulador eram complementadas de forma ainda
mais harmoniosa pelo seu talento negociador que fazia dele um brilhante
diplomata-parlamentar. Primeiro havia a clareza de sua intervenção. Álvaro
conseguia transmitir de forma objetiva, correta e escorreita o seu pensamento;
segundo, o domínio e a elegância com que o fazia, sobretudo em inglês,
idioma que falava e escrevia de forma invejáveis; terceiro, conhecia os
meandros das regras de procedimento dos organismos internacionais e sabia
usá-las magistralmente conduzindo reuniões internacionais no tempo e no
compasso que melhor lhe aprouvessem, seja como porta-voz dos países em
desenvolvimento seja como presidente de conferências internacionais.
Meticuloso e preciso, suas intervenções e propostas negociadoras eram
respeitadas e suscitavam sempre um debate de alto nível que faziam dele,
Álvaro, um negociador temido pelos adversários e invariavelmente ouvido
pelos aliados. Raramente, Álvaro deixava de ocupar a posição de negociador-
chefe de todas as reuniões em que estivessem envolvidos os países em
desenvolvimento.
Embora tenha trabalhado num arco complexo de negociações,
Álvaro teve ação destacada nos anos 70 nas formulações de Códigos
de Conduta para o disciplinamento internacional da transferência de
tecnologia, atividade que resultou pelo menos na compreensão de
mecanismos desequilibrados desfavoráveis ao Brasil e demais países
em desenvolvimento tanto na Organização Mundial da Propriedade
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
26
Intelectual (OMPI) e posteriormente na Organização Mundial do
Comércio (OMC). Muitas de suas propostas resultaram em marcos
essenciais de referência doutrinária para as negociações que até hoje
desenrolam-se naquelas organizações e em outras mais diretamente
ligadas a acordos internacionais bilaterais ou regionais como os acordos
de garantia de investimentos no primeiro caso e na ALCA no segundo.
Durante o período em que o Ministro Dilson Funaro ocupou a pasta
da Fazenda, Álvaro revelou-se um arguto e tenaz negociador da dívida
externa brasileira, numa época em que a declaração da moratória brasileira
tornava aquelas negociações ainda mais ácidas e sujeitas a pressões de
natureza diversa a que Álvaro sabia resistir e contornar sem nunca perder
a real dimensão do interesse nacional. Poucos anos depois, quando o
Brasil fez generosos pagamentos aos credores internacionais, ouvi várias
críticas de banqueiros internacionais à “dureza” e a intransigência do
Álvaro, críticas essas que às vezes eram acompanhadas de uma
cumplicidade de alguns negociadores brasileiros que se notabilizaram por
uma atitude de generosa compreensão com os reclamos da banca
internacional. Considero essas críticas os melhores elogios que poderiam
ser endereçados a ele, Álvaro.
A ascensão do collorismo neoliberal no Brasil levou, dentre outras mazelas,
à humilhação do embaixador Paulo Nogueira Batista, brilhante diplomata
que acabava de conduzir o Conselho de Segurança das Nações Unidas na
solução da guerra Irã-Iraque. Por iniciativa dele próprio, em solidariedade a
Nogueira Batista, Álvaro transferiu-se para um posto periférico de onde só
voltaria para as negociações multilaterais de forma episódica, mas de grande
eficiência, quando nas Nações Unidas conseguiu podar todas as tentativas
de fazer o Brasil aumentar sua contribuição orçamentária àquele organismo,
sempre por pressão de cálculos matemáticos descabidos que Álvaro sabia
desmontar com maestria. O dia em que se fizer a contabilidade do montante
de divisas que o Brasil economizou durante o período em que o Álvaro
negociou a dívida externa e em que atuou na comissão de contribuições da
ONU, talvez se reconheça o papel da diplomacia brasileira no equilíbrio das
contas nacionais.
Mas, não se pode transpor essa etapa da vida profissional do Álvaro
sem recordar que nesse período, ele com Paulo Nogueira Batista,então
representante permanente do Brasil na ONU, tiveram ambos uma
passagem de extrema felicidade na Presidência do Conselho de
ARTIGO DO EMBAIXADOR ADHEMAR G. BAHADIAN
27
Segurança das Nações Unidas, quando Nogueira Batista, como já se
recordou acima, levou toda a comunidade diplomática internacional a
vislumbrar o peso e a criatividade da diplomacia brasileira caso viesse
a ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das
Nações Unidas. O fato de que esses dois diplomatas de escola do Brasil
vejam-se colocados repentinamente na periferia da política externa
brasileira por razões nunca claramente explicadas, mereceria uma
atenção especial de nossos estudiosos, que talvez se surpreendam ao
constatarem que essas razões, se existem, apenas explicam-se pelo
autoritarismo soberbo que àquela época, instalava-se no poder.
***
Álvaro sentia-se feliz em ter amigos em casa. Em Genebra, quando
nossas famílias lá viveram no início da década de 80,Álvaro e Hannelore
alugaram uma bela casa em Versoix. Me lembro que a casa era de
madeira, o que lhe dava um ar aconchegante e tranquilizador. Havia
nela um jardim não exageradamente grande mas o suficiente para que
nossos filhos, então pequenos, se divertissem em torno de uma raquete
ou de uma bola.Quase todos os sábados, nos reuníamos. Hannelore
não se incomodava de ter a casa cheia e até insistia para que
chegássemos antes do almoço. Álvaro e eu passávamos os dias,como
se diz hoje, jogando conversa fora. Não nos metíamos em funduras
metafísicas. Ficávamos antes do almoço tomando uma cerveja belga
com um colarinho espesso e macio, comendo um aipinzinho frito e vendo
os aviões de carreira riscando um risco branco bem lá no alto do azul.
Era quase sempre tudo muito silencioso em Versoix e até o som do
latido de Yasmin, labrador cor de champagne, parecia amortecido como
os passos de um gato. Nossas crianças riam e curtiam-se. Brincavam o
dia todo e frequentemente ainda dormiam umas na casa das outras.
Ficavam horas na cama a contar histórias vividas ou inventadas até que
o cansaço, aos poucos, fosse -lhes espaçando a voz e o sono as cobrisse
como um manto. Aos domingos,como tínhamos inevitavelmente que
trocar os filhos, nos encontrávamos à noite numa pizzaria entre Genebra
e Versoix, à beira do Lago Leman. Nas noites de luar podia-se ver ao
longe, azulado como uma baleia, o dorso gelado do Mont-Blanc.
Éramos ainda jovens e nos julgávamos eternos.
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
28
***
Se não fosse o cigarro, Álvaro seria quase um atleta. Ele se cuidava,
fazia um pouco de ginástica e jogava regularmente um tênis. Havia recebido
uma grande influência do embaixador Miguel Osório de Almeida que
defendia o uso cotidiano de megadoses de vitaminas. Miguel Osório era
sem dúvida uma figura humana excepcional e com grande poder de
persuasão. Álvaro havia servido com ele em Hong Kong e tornaram-se
amigos para o resto da vida. Miguel Osório nos surpreendeu a todos quando
foi vitimado por um acidente vascular cerebral de que jamais se recuperou.
A surpresa deriva do fato de Miguel Osório ate então ter sido uma pessoa
de grande energia física e mental sem qualquer indício de doença. Mas, o
fato é que desde os tempos de Hong Kong, ou até mesmo antes disso,
Álvaro e Hannelore, que em solteira havia sido enfermeira especializada,
não só se dedicavam a ler toda a literatura disponível sobre os alegados
poderes das diferentes vitaminas, como consumiam diariamente, junto com
o café da manhã, todo o abecedário vitamínico. Aliás, o café da manhã do
Álvaro merece uma breve digressão.
Nos tempos áureos da UNCTAD, era muito comum participarmos de
reuniões nos mais diversos lugares do mundo, chamado em
desenvolvimento, e como essas reuniões geralmente, entre delegações
governamentais, pessoal da ONU e de ONGs, atraía algumas centenas de
pessoas e estendiam-se quase sempre por algumas semanas,a capacidade
hoteleira de cidades como Arusha, na Tanzânia, ou mesmo Nairóbi e Manila,
revelava-se insuficiente. Em muitos casos, portanto era comum que os
diplomatas sobretudo os de nível mais baixo na hierarquia, dividissem
quartos. Álvaro e eu, algumas vezes dividimos quarto o que me permitiu
admirar o espantoso ritual do café da manhã. Muitos anos depois, quando
já éramos mais graduados e não dividíamos quartos de hotel eu me permitia
“gozá-lo” sobre o café da manhã. De fato, o café do Álvaro incluía
invariavelmente panquecas, cobertas de mel, iogurte, sucos, cereal, pão
queijo e frutas diversas. No iogurte e no suco de frutas, Álvaro adicionava
pós nutritivos diversos como levedo de cerveja (parece que era bom para
a memória) e outros que já nem me lembro, talvez porque não tenha tomado
levedo de cerveja, pelo menos em pó. A este regime já em si capaz de
transformar qualquer um no bebê johnson do dia, Álvaro ainda acrescentava
um rosário de vitaminas em pílulas: a, b, b12, c (toneladas) k, e. Admirável.
ARTIGO DO EMBAIXADOR ADHEMAR G. BAHADIAN
29
Agora me lembro (vejam a falta do levedo) que havia também sempre dois
ovos quentes cozidos religiosamente por três minutos e meio, acompanhados
de duas torradas de pão branco ligeiramente bronzeadas generosamente
cobertas de geleia. Havia finalmente o café preto, único item que eu compartia
com ele, fazendo grande cerimônia para não abusar.
Entre nós havia um acordo tácito. Café da manhã não era despesa
que dividíamos. Cada um pagava o seu. Mas, apesar de todo esse
regime, que me teria levado a uma obesidade galopante, Álvaro nunca
foi gordo e a rigor conservou o mesmo físico e o mesmo alfaiate durante
os quase quarenta anos em que convivemos. Uma vez engordou um
pouco quando tentou parar de fumar, mas logo perdeu os quilos quando
voltou a fumar.
Não tenho dúvidas que o cigarro foi o grande responsável pelo
debilitamento de seus pulmões, o que certamente está na raiz dos problemas
que acabaram por levá-lo. Álvaro tentou inúmeras vezes deixar de fumar e
usou todos os tratamentos disponíveis cientifica e popularmente. Não houve
jeito. O cigarro realmente mata. Quando a Dra. Gro Brutland à frente da
Organização Mundial da Saúde conseguiu promover a Convenção
Internacional contra o tabaco e fazer deste instrumento internacional uma
campanha contra a nicotina e ter talvez por essa razão sido posteriormente
desaconselhada a buscar reeleição, confesso que não acreditava que teria
sucesso. Mas, não há dúvida que Gro Brutland talvez tenha salvo mais
vidas com essa iniciativa do que se imagina. Infelizmente, me informava
outro dia um amigo que conhece bem o mercado do fumo, nos últimos
anos o consumo de cigarro no Brasil vem aumentando significativamente
entre os jovens.
Além do tênis, Álvaro gostava de esquiar e havia comprado um chalé,
em Samoens, pequeno vilarejo na França a poucos quilômetros de Genebra.
Na última vez que conversamos, ele me disse que estava indo de férias com
seu filho Álvaro Alberto (Beto) para esquiar uns quinze dias e vender o chalé.
Não chegou sequer a esquiar. Ainda enquanto alugava o material para a
temporada, sentiu-se mal e foi transportado para o Hospital cantonal de
Genebra onde começou um calvário de operações e internações de que nunca
se recuperaria. Vi-o ainda umas duas ou três vezes quando já estava no Rio
e numa delas achei até que ele se recuperaria, mas infelizmente, pouco depois,
seu estado o impedia de sair das salas de tratamento intensivo, onde veio a
falecer.
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
30
Nos seus últimos meses de vida, antes de adoecer, estivemos muito tempo
juntos. Quando o Ministro Celso Amorim teve a generosidade de me convidar
a ocupar o cargo de co-presidente brasileiro da ALCA, fiz várias viagens a
Brasília e em todas elas ficava hospedado na casa do Álvaro. As negociações
da ALCA, principalmente nos primeiros momentos em que tentávamos
reequilibrar algumas distorções obviamente nocivas ao interesse
Brasileiro contrariava alguns setores nacionais e estrangeiros, o que suscitou
uma forte e nem sempre justa campanha na imprensa que atacava o Itamaraty
e frequentemente a mim próprio identificado ora como incompetente, ora como
sabotador de um processo negociador de grande valia para o desenvolvimento
nacional. Acho hoje que ao conseguirmos neutralizar as principais faces negativas
da ALCA, evitamos na verdade que se celebrasse um acordo leonino só
comparável ao acordo de Methuen. Um dia, pretendo escrever mais detidamente
sobre isso. Não necessariamente sobre as propostas redacionais, que hoje já
não tem interesse,mas em especial sobre o pano de fundo político. Não fossem
a capacidade do Presidente Lula de desencorajar pressões e lutas intestinas, a
determinação e patriotismo do Ministro de Estado e a perseverança do
Secretário-Geral talvez hoje tivéssemos regredido absurdamente em políticas
de forte conteúdo social, como, por exemplo, a relacionada com a produção e
distribuição de medicamentos genéricos.
Mas o que quero recordar agora é a solidariedade que naquela época
recebia do Álvaro, que me ouvia pacientemente, me fazia rir das críticas
exageradas nos jornais e me estimulava sempre a perseverar no caminho
traçado. Era quase como um irmão mais velho, que me esperava chegar à
noite, me oferecia um copo e nunca me perguntava a não ser o que eu lhe
quisesse contar. Ao nos despedimos pela última vez, quando eu voltava ao
posto, e a ALCA havia sido afastada de nossa agenda, sem brigas nem
ressentimentos entre os Estados Unidos e o Brasil, Álvaro me deu um longo
abraço e só então percebi, que ao longo de tantos anos de convivência
profissional, nós dois continuávamos a acreditar e a lutar pelas mesmas coisas
que nos haviam inspirado ainda muito jovens na velha DPC. Éramos dois
“dinossauros” que a presepada do neoliberalismo não havia destruído.
***
À medida que os anos passam e que a contabilidade dos que nos deixam
parece cada vez mais dramaticamente aproximar-se de um perigoso sinal de
ARTIGO DO EMBAIXADOR ADHEMAR G. BAHADIAN
31
alarme, o desaparecimento do Álvaro ressoa e reverbera nas mais fundas e
recônditas camadas de nossos medos. A escritora norte-americana Joan Didion
em seu tristíssimo livro The year of magical thinking, em que descreve o
doloroso processo de luto pela perda de seu marido John Dunne, fulminado
por um enfarte quando se sentava para jantar, sem que houvesse sequer
tempo de evitar que sua testa se ferisse na aresta marmórea da mesa, nos
adverte logo nas primeiras linhas,
“Life changes fast
Life changes in the instant
You sit down to dinner and life as you know it ends”
Um médico me explicou que um ramo minúsculo de nossas coronárias é
responsável pelo controle elétrico de nossos batimentos cardíacos. Uma súbita
interrupção dessa corrente elétrica e ingressa-se na noite como quem desliga
um interruptor. “Life changes in the instant”...
É comum dizer-se, nesses casos, que a morte terá sido quase uma bênção.
Pode ser. Mas, o problema central não é a morte, mas a vida. Nossas vidas
definitivamente decepadas, invariavelmente amputadas por essas perdas por
esses adeuses sem propósito, por esses traumas que nos fazem mergulhar
nas lembranças de nosso convívio tangidos por um sentimento de culpa difuso,
a alfinetar-nos a alma. “Life changes in the instant”.
Se eu tivesse que identificar um traço marcante da personalidade de
Álvaro, talvez mais do que me deter na sua honestidade, mais do recordar
sua imensa solidariedade aos amigos, eu assinalaria sua dignidade. E o longo
período de sua doença não conseguiu quebrar-lhe essa dignidade que ele
impôs-se até seus últimos momentos entre nós. Marguerite Yourcenar em
Memórias de Adriano nos adverte sobre essas traições que nos atingirão a
todos :
Ce matin l‘idée m´est venue pour la premiére fois que mon corps, ce
fidéle compagnon,cet ami plus sûr,mieux connu de moi que mon
âme,n ´est qu´un monstre surnois qui finira pour devorer son maître.
Roma, outubro de 2007.
33
Artigo do Embaixador Salvador Arriola
“Homenagem ao Negociador Exemplar”
Em maio de 1973, o Sr. Olivier Long, Diretor-Geral do Acordo Geral
sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, GATT, antecedente imediato da
Organização Mundial de Comércio, OMC, convocou a primeira reunião do
Comitê Preparatório, mecanismo que definiria as bases da Declaração
Ministerial, que daria início no mês de setembro deste mesmo ano, a chamada
Rodada de Tokio de negociações comerciais multilaterais.
Meu país, México, não era membro do GATT, mas em razão da Resolução
82 (111) da UNCTAD, de 1972, os países em desenvolvimento não membros
do GATT, poderiam participar na nova Rodada de Negociações e dependendo
do resultado decidiram se tomariam parte junto ao GATT ou não.
Na cafeteria do antigo e belo edifício da OIT, em Genebra, (hoje sede
da OMC) junto ao majestoso Lago Leman, conheci os membros da delegação
brasileira, que encabeçada pelo famoso Embaixador Alvares Maciel assistiam
à primeira reunião do Comitê Preparatório.
O vício do cigarro, permitiu rapidamente travar uma amizade com Álvaro
Gurgel de Alencar, quem inclusive, falava perfeitamente o único idioma que
eu dominava: o espanhol.
Álvaro formava parte da equipe principal do Embaixador Alvares Maciel
e demonstrava um enorme conhecimento dos detalhes e características do
ambiente, muito especial, que se vivia no principal organismo reitor do comércio
mundial.
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
34
O vício do cigarro nos levou, por causas desconhecidas, a confirmar
outra coincidência: o interesse pelo esporte e especialmente pelo futebol.
Aos poucos dias de minha chegada, Álvaro me levou ao melhor “estádio
brasileiro fora e dentro do Brasil”, nem Maracanã, nem o Pacaembú, nem o
Mineirão: os maravilhosos espaços do jardim da Embaixada do Brasil em
Genebra.
Nossa habilidade futebolística, não estava à altura das facilidades que
outorgava o recinto, sem embargo, nos permitiu durante as três reuniões que
levaram a cabo o Comitê Preparatório, ampliar nossa agenda de conversas.
O México iniciava, com sua participação na Rodada de Tóquio do GATT,
um novo caminho na definição de sua política comercial. Os funcionários
responsáveis pelo tema na Secretaria de Fazenda e Crédito Público
consideravam importante a adesão do México ao GATT, entre outros, com
o objetivo de reduzir os efeitos da política de substituição de importações e
exigir em troca um melhor acesso ao mercado dos países industrializados,
em particular, o dos Estados Unidos.
Por outro lado, na Secretaria de Indústria e Comércio, entidade na qual
me desempenhava como Chefe de Negociações Comerciais Internacionais,
tinha-se uma visão diferente, caracterizada por: gradualmente e de forma
unilateral, eliminar as barreiras não tarifárias (licenças prévias e quotas
principalmente) que permitira definir uma reestruturação industrial, mais de
acordo com o desenvolvimento integral do país.
O chefe da delegação mexicana nas reuniões do Comitê Preparatório,
era Abel Garrido Ruíz, da Secretaria de Fazenda e Crédito Público, grande
conhecedor do GATT e excelente negociador. Graças a seu interesse por
melhorar meus conhecimentos do organismo, praticamente me obrigou a
aprender de cor todos os artigos do Acordo Geral e a entusiasmar-me por
reconhecer os atrativos e benefícios que a Rodada de Tóquio e o GATT
brindariam ao meu país.
A Rodada de Tokio, havia sido convocada e decidida, pelos três parceiros
de sempre: Estados Unidos, a Comunidade Econômica Europeia e Japão.
Assim aconteceu nas Rodadas anteriores, desde a criação do GATT em
1947 e assim também decidiriam sobre o pacote final da Rodada de Tóquio
e sobre as concessões ao mundo em desenvolvimento.
Álvaro me alertava a não confiar demasiadamente no que pudera obter-
se da Rodada e da adesão ao GATT. Todavia, as repetidas mensagens que
os países industrializados enviavam para minha delegação, me permitiam
ARTIGO DO EMBAIXADOR SALVADOR ARRIOLA
35
desconhecer os comentários de meu amigo brasileiro, primeiro colega de
outro país que teve, nos anos que levo atendendo temas internacionais no
Governo do México.
Depois de diversas reuniões e contratempos se avançou naquilo que
constituiria o texto base da Declaração Ministerial, que ao dia 12 de setembro
desse ano de 1973 daria início à Rodada.
O maior avanço que registrava o rascunho da Declaração para os dois
países em desenvolvimento, era o reconhecimento de que em todas as áreas
objeto da negociação, se estabeleceria o compromisso de adotar o trato não
recíproco, especial e diferenciado a favor de ditos países.
A última reunião do Comitê Preparatório ocorreu no belo Salão Plenário
da OIT, que como comentei, é hoje a sede da OMC e que encontra-se à
beira do Lago Leman.
A “troika”: Estados Unidos, a Comunidade Econômica Européia e Japão
tinham já prontas suas “valises” para Tóquio, assim como o resto do mundo
desenvolvido que aspirava, uma vez mais, ampliar e melhorar o acesso ao
mercado internacional das manufaturas e manter devidamente protegido o
setor agrícola, através de diversos waivers e mecanismos sob medida que o
GATT proporcionava.
O Diretor-Geral Olivier Long e seus dois principais assessores estavam
situados em um lugar estratégico dentro do Salão Plenário, onde se realizaria
a última reunião do Comitê Preparatório. Localizavam-se às costas do enorme
vitral que permitiria admirar a beleza do jardim da OIT e o extenso lago
genebrês e a uma altura superior ao nível em que se encontrava os lugares
que ocupavam as delegações participantes.
Dada a amplitude do cenário, era obrigatório utilizar fones de ouvido.
Os nórdicos e seu porta-voz, foram os primeiros em intervir, precisando
alguns ajustes a vários das seções do Projeto de Declaração. Olivier Long
apontava junto com seus colegas Patterson e Mathur os comentários do porta-
voz. Assim também aconteceu quando continuaram com a palavra os
delegados da Austrália e Canadá.
O silêncio foi total ao escutar-se as intervenções da Comunidade Econômica
Europeia e Japão. A velocidade que imprimiam os funcionários do GATT, para
registrar os argumentos e posições dessas delegações era notável.
O momento culminante foi quando o Representante dos Estados Unidos
solicitou o uso da palavra. Na Mesa Principal e em todo o Salão, ajustaram-
se os fones de ouvido e o silêncio passou a ser sepulcral.
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
36
A atenção de Long e seus colegas permitiram “capturar” no papel até o
último suspiro da intervenção do delegado deste país.
Posteriormente, o delegado da Nigéria iniciou sua participação. Para
surpresa de todos e em particular para minha, o Diretor Geral do GATT,
retirou seus fones de ouvido, levantou-se de seu lugar, deu as costas às
delegações e dirigiu-se ao formoso vitral do Salão para contemplar
provavelmente não só o arborizado jardim da OIT e o Lago Leman, se não
talvez porque nessa hora, podia apreciar a majestuosidade do Mont Blanc.
Essa dramática passagem, impactou-me para o resto de minha vida
profissional. Entendi no ato, o que Álvaro me havia advertido. O confirmei
ao finalizar a Rodada de Tóquio em 1979 e hoje, 34 anos depois nos labirintos
burocráticos da Rodada de Doha.
Tudo parece indicar que os parágrafos que faziam referência na
Declaração de Tóquio, a não reciprocidade e ao trato especial e diferenciado,
têm sido aplicados e aplicam-se sem restrições em benefício, entre outros,
do setor agropecuário dos países desenvolvidos.
O conselho de Álvaro segue sendo válido.
Desde o início de minha carreira profissional, na CEPAL em 1971, tenho
conhecido um grande número de personalidades e delegados. Assisti a
inumeráveis reuniões no âmbito econômico e tive a satisfação de ver em ação
os mais conotados negociadores de países em desenvolvimento e
desenvolvidos. Posso recordar a alguns dos chamados negociadores
legendários que participaram no ECOSOC, na UNCTAD, no GATT, na
OMC, no FMI, o Banco Mundial e os foros econômicos regionais. Sem
embargo, nenhum com as características de Álvaro.
Revisando a memória pessoal e o histórico de Álvaro, confirma-se meu
comentário anterior.
Álvaro não só participava, sobressaía-se. Normalmente, nas reuniões
multilaterais assumia rapidamente a liderança. Não se conformava em defender
unicamente os interesses do Brasil. O encontrei como porta-voz do Grupo
Latino-Americano e do Grupo dos 77 em diversas oportunidades. Era tão
hábil, que apesar da estreiteza de suas instruções, pela condição política
que vivia o Brasil entre 1973, ano que o conheci e 1985 driblava as pressões
e consolidava as posições de nossos países.
Ao percorrer seu Curriculum Vitae, sua personalidade agiganta-se. Na
condição de negociador e na maioria das vezes como porta-voz latino-
americano e/ou do mundo em desenvolvimento, participou nas negociações
ARTIGO DO EMBAIXADOR SALVADOR ARRIOLA
37
dos mais variados temas. É impressionante a diversidade temática: comércio
internacional, indústria, agricultura e alimentação, inovação tecnológica e
patentes, questões monetárias e financeiras, propriedade intelectual,
transferência de tecnologia, investimentos estrangeiros, transporte intermodal,
serviços, emprego e questões trabalhistas e cooperação técnica.
Cada tema da lista anterior, era conhecido em profundidade por Álvaro.
Era sem dúvida o principal ativo que tinham nossos países nas negociações
de cada um deles. É inútil realizar qualquer comparação do talento de Álvaro
e daqueles que foram seus contemporâneos em cada uma dessas matérias.
Muitos têm sido reconhecidos como negociadores de excelência em algum
ou alguns dos temas mencionados, mas nenhum teve a versatilidade de Álvaro
e sobretudo a paixão e compromisso por contribuir em modificar as
características e funcionamento da cooperação internacional para o
desenvolvimento.
39
O Apanhador no Campo de Centeio
Livro traduzido pelos Embaixadores Álvaro Alencar, Jório Dauster e o
Senhor Antonio Rocha cujo título original era " Catcher in the Rye".
Caderno de Fotos
40
Cuba, 1998.
41
Ministério do Trabalho, 1999.
50 anos em Brasília, 9 de julho de 1986.
42
Cuba, 1998.
43
Ano Novo 1982-1983 com Embaixador Jório Dauster - França.
Batizado do neto Victor, 2001.
44
Com a mãe Zuleika Magioli Gurgel de Alencar, Rio de Janeiro, 1967.
45
Casamento da filha com amigos de infância: Francisco Dornelles, Sérgio
Camargo e Paulo Cezar Gifoni, 1996.
Com Adhemar Bahadian em Berlim, 1991.
46
Com o Embaixador Miguel Osório.
Com o Ministro Dilson Funaro, Brasília, 1986.
47
Com o pai Álvaro Gurgel de Alencar Filho e o avô - Rio de Janeiro, 1967.
Com os filhos, Álvaro Alberto e Maria Clara, 1997.
48
Condecorado com a Ordem de Rio Branco.
Cuba, 1998.
49
Hong Kong, 1968.Cuba, 1998.
Menino, com sete anos, Rio de Janeiro.
50
Ministério do Trabalho, 1999.
Reunião do Conselho de Segurança da ONU, 1988.
51
Nascimento do filho em Hong Kong, 1968.
52
Recepção Oficial em Berlim, 1991.
53
Viagem ao Kenya.
Viagem ao Kenya.
54
Visita ao Vaticano durante viagem com Tancredo Neves, 1985.
55
Encontro com Fidel Castro durante estadia em Cuba com o Embaixador
do Brasil.
Maio 1978 - cerimônia de assinatura de contrato com o BID / da esq.
para direita: José Carlos Fonseca, João Baptista Pinheiro, Reuben
Sternfeld, Elcio Costa Couto e Álvaro Alencar (na época Sub-Secretário
de Planejamento da Presidência da República).
56
Discurso em reunião da OMPI.
57
Reunião do Conselho de Segurança da ONU em Nova Iorque, 1988/
1989.
Reunião na FAO.
59
Discurso do Senador Eduardo Suplicy e voto de
pesar do Senado
O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pela ordem. Sem revisão
do orador.) - Sr. Presidente, encaminho à Mesa, juntamente com o Presidente
da Comissão de Relações Exteriores, um requerimento de pesar pelo
falecimento, nesta terça-feira, do Embaixador Álvaro Alencar, bem como de
apresentação de condolências à sua família.
O Embaixador Álvaro Alencar, um dos diplomatas mais importantes da
sua geração, contribuiu para a defesa dos interesses nacionais, no campo
comercial e no campo financeiro, ao longo de várias décadas de dedicação
ao serviço público, não só no Itamaraty, mas em outras áreas do Governo,
notadamente no Ministério da Fazenda. Foi Secretário de Assuntos
Internacionais na gestão dos Ministros Francisco Dornelles e Dílson Funaro,
que sempre manifestaram grande respeito e consideração por ele.
Nascido no Rio de Janeiro, em 1936, formou-se em Ciências Jurídicas e
Sociais pela UFRJ. Em 1956, concluiu o curso de pós-graduação pela
Faculdade de Economia na Universidade de Ottawa. Trabalhou em nossas
representações diplomáticas no Canadá, em Hong Kong – à época colônia
britânica, na Suíça, na Alemanha, na Itália, em Cuba e nos Estados Unidos.
Foi uma pessoa que se destacou também como negociador do Brasil
junto ao Clube de Paris. O Embaixador veio a exercer essa função importante
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
60
nos anos 80, inclusive, em plena crise da dívida externa, época em que as
negociações foram muito penosas.
Considerado por todos uma pessoa de excepcional coragem e seriedade,
inclusive por seu colega de trabalho Paulo Nogueira Batista Júnior.
Álvaro Alencar foi embaixador do Brasil nas Nações Unidas e
recentemente assessorou o Ministro Celso Amorim na defesa e definição das
posições brasileiras nas negociações comerciais, inclusive tendo colaborado
muito para o Projeto de Lei que apresentei, já aprovado nesta Casa,
estabelecendo um mandato negociador para o Governo brasileiro em
negociações comerciais de âmbito multilateral, hemisférico ou bilateral.
Portanto, o Brasil acaba de perder um de seus grandes diplomatas, um
excelente negociador e exemplar homem público.
Agradeço ao Senador Ramez Tebet pela compreensão, cedendo-me
espaço para a manifestação de pesar que registro.
O SR. PRESIDENTE (Álvaro Dias. PSDB-PR.)
– Sobre a mesa requerimento que passo a ler.
É lido o seguinte:
REQUERIMENTO Nº 590, DE 2006
Requeiro nos termos dos artigos 218, inciso VII e 221 do Regimento
Interno do Senado Federal inserção em alta de voto de pesar pelo falecimento,
nessa terça-feira, do embaixador Álvaro Alencar, bem como apresentação
de condolências à sua família.
Justificação
Faleceu anteontem no Rio de Janeiro o embaixador Álvaro Alencar, um
dos diplomatas mais importantes da sua geração. O embaixador Alencar
contribuiu para a defesa dos interesses nacionais, no campo comercial e no
campo financeiro, ao longo de várias décadas de dedicação ao serviço
público, não só no Itamaraty, mas em outras áreas do governo, notadamente
no Ministério da Fazenda: Foi Secretário de Assuntos Internacionais na gestão
do ministro Francisco Dornelles e ocupou o mesmo cargo na gestão de Dílson
Funaro no Ministério da Fazenda. Tanto o ministro Dornelles como o ministro
Funaro tinham por ele grande respeito e consideração.
DISCURSO DO SENADOR EDUARDO SUPLICY E VOTO DE PESAR DO SENADO
61
Álvaro Alencar nasceu no Rio de Janeiro em 1936 e formou-se em
Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRJ. Em 1956, concluiu o Curso de Pós-
Graduação pela Faculdade de Economia da Universidade de Ottawa.
Trabalhou em nossas representações diplomáticas no Canadá, em Hong Kong
à época colônia britânica, na Suíça, na Alemanha, Itália, Cuba e Estados
Unidos.
As pessoas que interagiram com ele nessa época são testemunhas da
sua capacidade de trabalho, da sua inteligência e da habilidade com que
desempenhava as funções que lhe eram atribuídas. Foi, por exemplo,
negociador do Brasil junto ao Clube de Paris, foro onde se discutem as
reestruturações de dívidas junto a credores governamentais. O embaixador
Alencar exerceu essa função nos anos 80, em plena crise da dívida externa,
época em que as negociações eram sempre muito penosas. O seu desempenho
foi excepcional, marcado pela coragem e seriedade na defesa dos interesses
brasileiros numa fase de conflitos graves, por vezes agudos, com os credores
estrangeiros.
Depois disso, Álvaro Alencar foi embaixador do Brasil nas Nações Unidas
e em Cuba. Mais recentemente, assessorou o ministro Celso Amorim na
definição e defesa das posições brasileiras em matéria de negociações
comerciais, valendo-se para tal da sua experiência como integrante da missão
brasileira junto ao GATT, instituição antecessora da OMC. Poucos brasileiros
conheciam tão profundamente, não apenas teoricamente, mas também do
ponto de vista prático das negociações, os diversos temas envolvidos nas
complexas negociações comerciais multilaterais, regionais e bilaterais. O seu
auxílio foi inestimável na discussão do projeto de lei que apresentei, já aprovado
nesta Casa, estabelecendo um mandato negociador para o governo brasileiro
em negociações comerciais de âmbito multilateral, hemisférico ou bilateral e
que está tramitando atualmente na Câmara dos Deputados.
O Brasil acaba de perder um de seus grandes diplomatas, um excelente
negociador e um exemplar homem público.
Sala das sessões, 18 de maio de 2006. – Senador Eduardo Matarazzo
Suplicy – Senador Roberto Saturnino.
63
Entrevista com o Senador Francisco Dornelles
Brasília, 03 de fevereiro de 2009
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: Senador
Dornelles, por favor.
Senador Francisco Dornelles: Eu fui companheiro do Álvaro no Colégio
Militar, depois entramos juntos na Faculdade de Direito e sempre tivemos
um relacionamento muito estreito. O Álvaro sempre foi uma pessoa
extremamente inteligente, com uma capacidade de trabalho fantástica; poucas
pessoas redigiam tão bem quanto o Álvaro; estava sempre com uma
preocupação enorme em estudar, em se aperfeiçoar, em se atualizar. Isso foi
assim desde o Colégio Militar. Fomos para a Faculdade de Direito juntos e lá
ele sempre teve muita facilidade de pegar as coisas, de se enfronhar com
tudo o que existia. Nós nos formamos juntos e ele foi para a diplomacia. Eu
me lembro que o Álvaro estava em Genebra no dia 31 de março de 1964 e
eu estava estudando em Nancy e passei lá também. Ele estava uma inquietação
muito grande porque a delegação brasileira, que era comandada pelo Dias
Leite foi toda destituída. Em 24 horas chegou lá uma outra delegação, mudando
completamente de posição. O Álvaro estava indignado e eu lhe disse: “Você
tenha calma e serenidade porque, como Segundo-Secretário, não adianta
você ir protestar!”. Mas ele era muito fiel ao Jaime de Azevedo Rodrigues e
estava indignado com tudo aquilo que aconteceu. Eu também estive com o
Álvaro, depois, quando estudei em Harvard e acompanhei o trabalho que ele
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
64
desenvolveu na Embaixada do Brasil no Canadá. Durante esse período em
que ele esteve no exterior, em Genebra, estivemos muito juntos. Quando eu
estava na Procuradoria da Fazenda, ele chefiou a área internacional do Reis
Veloso e fez um trabalho muito grande de organizar toda a área internacional.
Ele foi o responsável pela organização da área internacional do Reis Veloso.
Posteriormente, quando assumiu o Rieschbieter, ele também foi para a área
internacional. Eu estava como Secretário da Receita. Ele participou ativamente
da discussão de alguns problemas da dívida externa e recebeu um convite
para ir para Genebra. Ele foi para Genebra e deixou a Assessoria Internacional.
Quando o Tancredo assumiu a Presidência da República, ele queria alguns
representantes da área externa junto com ele. Eu dei o nome do Paulo de
Tarso, que o Tancredo já conhecida, o nome do Ricupero e do Álvaro Alencar.
O Álvaro veio de Genebra, fez a viagem com o Tancredo em torno do mundo
e o Tancredo voltou dessa viagem encantado com o Álvaro. Logicamente,
durante aquele período, ele conquistou o Tancredo, por ser discreto e eficiente.
Ele não era uma pessoa de querer se meter a íntimo, de querer entrar onde
não era chamado e em todas as missões que lhe davam, ele falava com a
maior eficiência possível. O Tancredo faleceu, eu assumi o Ministério da
Fazenda e ele ficou chefiando a área internacional, coordenando todo o
relacionamento da Fazenda com o BID, com o Banco Mundial, com o FMI,
com o Clube de Paris. Ele participou de todas as negociações. Quando eu
saí, ele continuou com o Funaro e, num período muito curto de tempo, ele
era o braço direito do Funaro, era uma pessoa de grande confiança do Funaro.
O Dilson me dizia sempre: “Você me deixou uma herança fantástica!”. Era o
Embaixador Álvaro Alencar. Ele participou de toda a reformulação que houve
no tempo do Funaro, dos problemas na área externa, do Clube de Paris.
Posteriormente, ele não ficou com o Bresser e, quando o Funaro saiu, ele
largou o Ministério também e foi para o exterior. Foi para as Nações Unidas,
onde ficou até o Collor assumir. Depois, ele esteve em Hong Kong e na
FAO. Quando eu assumi o Ministério do Trabalho, eu convidei o Álvaro
para chefiar todo o relacionamento internacional do Ministério do Trabalho e
ele fez um trabalho fantástico. Nós conseguimos criar um Conselho do Trabalho
das Américas e o trabalho dele foi tão importante que, na reunião que houve
em Washington, eu fiquei como presidente desse Conselho, indicado por
todos os países, por unanimidade, em decorrência do trabalho que ele
desenvolveu. Foi um trabalho extremamente positivo e importante.
Posteriormente ao Ministério do Trabalho, acho que ele ficou no Brasil.
ENTREVISTA COM O SENADOR FRANCISCO DORNELLES
65
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: Ele ficou no
Itamaraty, trabalhando diretamente com o Ministro de Estado, numa
Assessoria de Negociações Internacionais e colaborou com a negociação da
ALCA. O senhor teria algum episódio interessante, de cunho pessoal? O
senhor falou do estilo dele, discreto e competente, nas palavras do Presidente
Tancredo. Teria algum traço que lhe chamasse a atenção na amizade dele, ou
dele como pessoa?
Senador Francisco Dornelles: Eu acho que o Álvaro era uma pessoa
extremamente inteligente, uma pessoa amiga, uma pessoa confiável. Acho
que era uma pessoa a quem você entregaria a chave do cofre, pela credibilidade
que ele inspirava.
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: Em termos
de gosto de lugares, de viagens, do gosto dele pelo esporte.
Senador Francisco Dornelles: O Álvaro praticava muito o esporte. Na
época do Colégio Militar, nós tínhamos um time de futebol, chamado
“Esperança”. Ele jogava razoavelmente. Depois, nós fomos nadar no Tijuca,
participamos da equipe do Tijuca nos anos 52 e 53. Ele nadava crawl e eu
nadava peito clássico. Na época, ele também foi jogar water polo no
Fluminense. Mais tarde, ele entrou no tênis. Não posso dizer se era bom ou
mau jogador de tênis porque não sei. Na época do Colégio Militar, ele também
participou do nosso time de basquete.
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: Seria
apropriado dizer que, além das convicções, havia um sentido de pragmatismo
no Álvaro Alencar? O senhor destacou a parte operacional dele, o trabalho
que ele desenvolveu.
Senador Francisco Dornelles: Eu não sei se ele era pragmático porque,
quando ele se apaixonava por uma causa, ele entrava lutando por aquilo e
não tinha nenhum pragmatismo de flexibilizar a posição não. Ele tinha posições
muito rígidas e muito conhecidas.
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: E valores
também. Ele era um nacionalista.
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
66
Senador Francisco Dornelles: Ele não disputava a ponta, mas também
não conciliava em relação a princípios.
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: Ele tinha uma
preocupação também com o desenvolvimento do país, valorizando a ciência.
Senador Francisco Dornelles: Todo o trabalho dele era nesse sentido. Ele
era muito ligado com esse campo da ciência e tecnologia. Houve uma época
em que ele teve uma ligação muito grande com o INPI, com o Presidente do
INPI.
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: E
também com a área de patentes. Ele dava muito valor à ciência e
tecnologia. O senhor se lembra se tinha algum autor ou alguma figura da
política brasileira que ele achasse importante na História do Brasil, como
Getúlio, ou Rui Barbosa, ou Rio Branco, enfim, uma personalidade da
História do Brasil?
Senador Francisco Dornelles: Eu me lembro que na época do Jânio ele
entrou na campanha do Jânio. E eu também. Ele dizia que nunca foi Janista,
mas eu dizia: “Você votou no Jânio sim. Assuma a responsabilidade pelo que
aconteceu”.
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: Ele e milhões
de pessoas. E da cultura universal, o senhor se lembra de algum nome que ele
citasse?
Senador Francisco Dornelles: Nós frequentávamos muito a Academia
Brasileira de Letras e eu tenho a impressão que ele gostava muito do Machado
de Assis.
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: O Jorge
destacou que eles fizeram a tradução do livro do Salinger e ele tinha um
grande domínio da língua inglesa. Ele dominava muito bem o inglês.
Senador Francisco Dornelles: Ele era fantástico. Ele lia inglês como o
português.
ENTREVISTA COM O SENADOR FRANCISCO DORNELLES
67
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: E depois
teve a atuação dele na UNCTAD. Foi justamente na preparação da
UNCTAD, lá em Genebra, em 1964, que coincidiu com toda a situação aqui
no Brasil. Nós vemos que ele teve praticamente duas carreiras: uma carreira
diplomática, especificamente no Itamaraty, e uma carreira em outros
Ministérios. Seria possível se dizer isso? Ele também se destacou no serviço
público em duas carreiras. Uma delas no Ministério da Fazenda, praticamente.
Senador Francisco Dornelles: No Ministério da Fazenda, do Trabalho e
do Planejamento.
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: Nos três
Ministérios, fora o Itamaraty. Bom, Senador, o senhor teria mais algo a
acrescentar sobre ele, sobre o convívio familiar, por exemplo?
Senador Francisco Dornelles: Não, era isso.
Embaixador Carlos Henrique Cardim
Diretor do IPRI: Então, eu
gostaria de agradecer-lhe muito. Estamos encerrando a entrevista com o
Senador Dornelles.
69
Entrevista com o Professor Paulo Nogueira
Batista
O embaixador Álvaro Alencar, um dos diplomatas mais importantes da
sua geração, não recebeu em vida o reconhecimento que merecia. Ele
contribuiu muito para a defesa dos interesses nacionais, no campo comercial
e no campo financeiro, ao longo de várias décadas de dedicação ao serviço
público, não só no Itamaraty, mas em outras áreas do governo, notadamente
no Ministério da Fazenda. Ele foi Secretário de Assuntos Internacionais na
gestão do ministro Francisco Dornelles e ocupou o mesmo cargo na gestão
de Dílson Funaro no Ministério da Fazenda. Tanto o ministro Dornelles como
o ministro Funaro tinham por ele grande respeito e consideração. Trabalhei
com ele durante a gestão Funaro e sou testemunha da grande influência que
ele teve naquela época. Foi um período controvertido, marcado por decisões
difíceis, particularmente a moratória unilateral de fevereiro de 1987. Álvaro
era um dos principais negociadores na área da dívida. Combinava habilidade,
firmeza e humor. Ele costumava dizer que os nossos negociadores
internacionais sofriam frequentemente do “medo atávicos dos olhos azuis”.
As pessoas que trabalharam com ele em diferentes períodos sabem da
sua capacidade de trabalho, da sua inteligência e da competência com que
desempenhava as funções que lhe eram atribuídas. Na gestão Funaro foi
negociador do Brasil junto ao Clube de Paris, foro onde se discutem as
reestruturações de dívidas junto a credores governamentais. Álvaro exerceu
essa função nos anos 80, em plena crise da dívida externa, época em que as
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
70
negociações eram sempre muito penosas. O seu desempenho foi excepcional,
marcado pela coragem e seriedade na defesa dos interesses brasileiros numa
fase de conflitos graves, por vezes agudos, com os credores estrangeiros.
Conseguiu, com grande dificuldade, obter algo inédito: uma reestruturação
das dívidas junto ao Clube de Paris sem um acordo com o FMI. Isso foi em
janeiro de 1987.
Depois disso, Álvaro foi embaixador do Brasil nas Nações Unidas e em
Cuba. Mais recentemente, assessorou o ministro Celso Amorim na definição
e defesa das posições brasileiras em matéria de negociações comerciais,
valendo-se para tal da sua grande experiência como integrante da missão
brasileira junto ao GATT, instituição antecessora da OMC. Poucos brasileiros
conheciam tão profundamente, não apenas teoricamente mas também do
ponto de vista prático, os diversos temas envolvidos nas complexas
negociações comerciais multilaterais, regionais e bilaterais.
71
A crise da dívida: até quando?
Álvaro Alencar
Ex-Subsecretário de Assuntos Técnicos e Econômicos Internacionais
do Ministério do Planejamento e Ex-Subsecretário de Assuntos Internacionais
do Ministério da Fazenda do Brasil. Atual vice-representante permanente de
seu país perante as Nações Unidas.
I. Introdução
A crise da dívida internacional que assola a maioria dos países em
desenvolvimento chega ao seu sétimo ano ainda sem solução. O fato de tais
países agora terem uma dívida com seus credores estrangeiros superior a um
trilhão de dólares só é menos preocupante do que a sua patente incapacidade
para pagar os juros correntes anuais sobre essa imensa quantia. Os “índices
da dívida”, após uma pequena melhora em 1984, voltaram a piorar; suas
economias não apresentam qualquer crescimento importante, e suas
exportações estão em baixa. Na verdade, para a maioria dos países devedores
do terceiro mundo, os anos 80 foram, até aqui, um período de estagnação ou
recessão.
Em termos per capita, a maioria deles encontra-se agora em situação
pior do que se encontrava no início da década. O total de suas importações
caiu vertiginosamente, prejudicando ainda mais a sua capacidade de
crescimento e afetando negativamente os níveis de emprego nos países
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
72
credores, seus principais fornecedores de bens de capital, equipamentos e
tecnologia. E por que isto acontece? Por que tão pouco foi feito? Até quando
os países devedores do terceiro mundo terão de carregar esse fardo, e como
será possível resolver esse problema?
II. Fluxo positivo de recursos externos
Antes que essa crise aparentemente sem fim se instalasse, por volta de
1981, muitos países em desenvolvimento contavam com um fluxo líquido
positivo de recursos externos que os ajudava a manter sua luta pelo
desenvolvimento econômico e social. Sem dúvida, os fluxos financeiros dos
países desenvolvidos para os países em desenvolvimento ficaram
sistematicamente abaixo dos valores necessários para financiar
adequadamente o desenvolvimento. E alguns tomadores tiveram mais sorte
que outros, pelo fato de terem acesso a mercados de capitais, e até mesmo a
mercados de ações mais sofisticados. Para um bom número de países em
desenvolvimento, contudo, inclusive na maior parte da América Latina, os
empréstimos em dinheiro e investimentos diretos estrangeiros combinaram-
se às suas poupanças internas para garantir um substancial crescimento
econômico. Na verdade, os países da América Latina atingiram, nos anos
setenta, suas mais altas taxas de crescimento agregado do pós-guerra. Nem
mesmo os impactos do petróleo interferiram de modo perceptível com o
afluxo líquido de recursos financeiros. Embora a elevação nos preços do
petróleo funcionasse como um pesado imposto gravando as economias dos
países em desenvolvimento importadores de petróleo. O sistema bancário
internacional rapidamente estabeleceu sistemas de reciclagem, e continuou a
oferecer o dinheiro necessário, pelo menos para os tomadores “qualificados”.
Em um determinado ponto em meados da década, havia tanta liquidez
que quase todos os riscos soberanos valiam, desde que o alto preço do
dinheiro não fosse um problema. Como as taxas de juros reais em 1974 e
1975 ficaram negativas, não se considerava exagero a criação de novos tipos
de comissões, taxas e spreads bancários. O que, evidentemente, era feito
com grande criatividade. Os petrodólares eram então reciclados “com
eficiência” para países em desenvolvimento com déficit através dos bancos
internacionais. Houve, no caso dos países em desenvolvimento importadores
de petróleo, uma mudança perversa neste novo fluxo circular de recursos
financeiros: suas importações de petróleo mais caras aumentavam o déficit
A CRISE DA DÍVIDA: AT É QUANDO?
73
da sua balança de pagamentos, de modo que eles precisavam pedir novos
empréstimos pelos quais pagavam mais caro. Mas pelo menos eles
conseguiam os recursos necessários para financiar o que se tornou, para
muitos países em desenvolvimento, um grande ajuste estrutural para a economia
mundial pós-choque do petróleo. É importante notar que, além dos recursos
então disponíveis para financiar o desenvolvimento, os bancos comerciais
também ofereciam recursos, como era necessário, para assegurar o rolamento
das dívidas vencidas, e para que os pagamentos de juros não fossem
interrompidos. O sistema financeiro internacional parecia capaz de continuar
a desempenhar a sua função de canalizar recursos de países com superávit
para países com déficit, embora com custos mais altos e em montantes mais
do que insuficientes.
III. A crise instala-se
A crise foi instalando-se aos poucos. As taxas básicas de juros (taxas
sobre instrumentos de mercado monetário com 90 dias de prazo) na maior
parte dos países industrializados começaram a subir vertiginosamente em 1979,
permanecendo altas durante quase todo o ano de 1980 até atingir inéditos
18% no terceiro trimestre de 1981. As taxas reais, que historicamente nunca
haviam ultrapassado a média de 2-3%, atingiram cerca de 8% nos Estados
Unidos naquele ano, e aumentaram ainda mais em 1982, permanecendo em
torno desse nível até 1984. O impacto sobre a situação financeira dos
devedores foi enorme, uma vez que os juros na maioria dos contratos de
empréstimo eram então, como agora, calculados com base nas taxas flutuantes
(geralmente a taxa interbancária de Londres – LIBOR – ou a prime rate dos
Estados Unidos). Durante um período de mais de dois anos os países
devedores ainda conseguiram manter o controle, já que os bancos comerciais
continuavam a emprestar dinheiro para impedir que os empréstimos se
transformassem em dívidas podres. No entanto, a receita de exportação dos
países devedores estava ao mesmo tempo sofrendo uma forte retração, devido
à queda na demanda – ou a preços mais baixos – dos seus produtos nas
economias então estagnadas dos países desenvolvidos. (Somente em 1984
o comércio e a economia recuperaram-se, impulsionados por robustos 6%
de crescimento da atividade econômica nos Estados Unidos). Como resultado
de um movimento de tenaz representado pelo aumento de pagamentos de
juros e a redução das receitas com exportações, até países produtores de
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
74
petróleo, como o México, viram suas reservas em moeda estrangeira
encolherem a um ritmo assustador.
Na segunda metade de 1982, os países mais endividados do terceiro
mundo começaram a cambalear, um após o outro. Quando a crise se
generalizou, os bancos internacionais desferiram o golpe de misericórdia na
capacidade de recuperação desses devedores, cortando qualquer afluxo de
dinheiro novo. A tábua de salvação que mantinha esses devedores na superfície
foi então retirada. Eles estavam prestes a naufragar, levando com eles um
sem-número de grandes bancos com excesso de exposição a risco, e também
dúzias de bancos de médio e pequeno porte. Os bancos americanos, cujas
carteiras estavam abarrotadas de riscos provenientes dos países
desenvolvidos, pareciam especialmente vulneráveis. Era hora de os governos
intervirem e, com eles, as instituições financeiras internacionais (e antes de
qualquer outra, o Fundo Monetário Internacional). Seguiu-se uma intensa
atividade, descrita pomposamente como “gerenciamento da crise”.
IV. As reações à crise
O plano idealizado pelos governos de alguns dos principais países credores
e pelo FMI para contornar a situação foi primeiramente projetado para deter
o que era visto como uma ameaça ao sistema financeiro internacional. Seu
objetivo principal, embora não declarado abertamente, era manter o fluxo de
pagamento de juros aos bancos comerciais, enquanto o principal seria rolado
através da reprogramação de acordos multianuais que envolviam spreads
elevados, que foram maximizados pelo que ficou conhecido como “serial
pick-up system”. (Aqui, mais uma vez, foi necessária uma certa criatividade).
Até que esses acordos fossem assinados, após longas e desgastantes
negociações com as comissões consultivas dos bancos, a situação dos países
devedores com os bancos comerciais – e, portanto, o valor contábil dos seus
empréstimos – foi garantida com a utilização de empréstimos-ponte, obtidos
pelos governos dos países credores e, numa fase posterior, por acordos de
stand-by negociados com o FMI como condição prévia para o
reescalonamento tanto com os credores privados como os oficiais. Nesse
aspecto, esse novo método não era muito diferente do que ocorria antes da
crise financeira, a não ser pelo fato de que os custos para os tomadores
aumentavam ainda mais. Os empréstimos-ponte aparentemente eram uma
ponte para a mesma coisa. Mas havia uma diferença extremamente importante,
A CRISE DA DÍVIDA: AT É QUANDO?
75
que residia no fato de que não havia mais dinheiro novo, seja para suportar a
balança de pagamentos (financiamento do déficit), seja para financiar o
desenvolvimento econômico. Se, como sugeriu o Professor Galbraith, tivesse
havido tolos, tanto do lado dos credores quanto dos tomadores, os primeiros,
pelo menos agora, haviam decidido claramente abandonar esse papel e
compensar seus erros passados. A principal preocupação dos bancos era,
agora, reduzir o mais rapidamente possível sua exposição aos países em
desenvolvimento. Não foi de surpreender, portanto, que os problemas dos
países em desenvolvimento devedores não tivessem sido resolvidos, mas na
maioria dos casos tivessem até se tornado mais graves. O plano, segundo
alguns críticos, havia sido concebido principalmente para “salvar os bancos”.
V. Os programas de “ajustes”
Já que não havia mais dinheiro novo à disposição, pois os empréstimos-
ponte e stand-by haviam esgotado a sua capacidade limitada, era preciso
cumprir as obrigações do pagamento de juros com recursos provenientes
dos próprios países devedores. Só havia uma maneira de se obterem tais
recursos, e esta consistia em garantir que os países devedores gerassem
superávits comerciais suficientes. Nesse ponto, o papel dos programas
patrocinados pelo FMI foram decisivos. Os países em desenvolvimento
devedores deviam adotar medidas de ajuste rigorosas para dinamizar a sua
economia, principalmente através de drásticas reduções nas necessidades de
empréstimos do seu setor público, ou seja, no déficit do setor público. E isto
devia ser obtido principalmente através de salários reais mais baixos,
tributação mais rígida, tarifas mais remuneradoras para os serviços públicos,
eliminação de subsídios para programas de cunho social e cortes nas despesas
do setor público, inclusive nos seus investimentos. A queda resultante no
consumo interno, juntamente com as taxas de câmbio “realistas”, aumentaria
os superávits comerciais e, assim, assegurariam a capacidade de reembolso.
O fato de que países devedores muitas vezes não conseguiam atingir
as metas de desempenho interno negociadas com o FMI, não era motivo
para grandes preocupações naquela época nem para os bancos, nem para
a própria instituição multilateral. O que era realmente importante era fazer
com que as exportações de um país devedor ultrapassassem as importações
numa margem mais ampla possível. A geração de grandes superávits
comerciais em numa época em que as economias dos países industrializados
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
76
produziam pouco ou nenhum crescimento, e o comércio internacional
estagnado ou retraído não era uma pequena façanha. Mesmo assim, muitos
países em desenvolvimento devedores conseguiram fazê-lo. Isso era
inevitavelmente, obtido à custa de uma forte redução no nível das
importações. O maior devedor entre todos os países do terceiro mundo –
o Brasil – precisava cortar suas importações quase pela metade, e até hoje
ele importa cerca de 40% menos do que importava no período 1979-1980.
Assim fazendo, o Brasil conseguiu gerar um superávit comercial acumulado
da ordem de US$ 41,5 bilhões, no período de 1983 a 1986, o que permitiu
que fizesse pagamentos totais no exterior de US$ 45,4 bilhões no mesmo
período de 4 anos. Durante todo o período, o volume de exportações do
Brasil permaneceu praticamente o mesmo. Os esforços para vender um
maior volume de bens e serviços no exterior, embora parcialmente bem
sucedidos, não foram suficientes para compensar uma forte deterioração
no seu comércio (de 100,0 em 1977 para 53,0 em 1983, melhorando
ligeiramente para 56,0 em 1986). Em toda a América Latina, o modelo de
reestruturação da dívida – imposto na maioria das vezes – aos países
devedores exercia efeitos semelhantes, sufocando a atividade econômica,
com exceção daquele segmento relativamente reduzido das suas economias
(em geral, não mais de 10) que se dedicava ao comércio de exportação. A
região de modo geral transferiu para o exterior US$ 145 bilhões de 1983 a
1987. Desta forma, através de grandes transferências de recursos financeiros
dos devedores para o credores, o sistema bancário internacional foi salvo
daquilo que parecia ser uma catástrofe iminente, enquanto os países
devedores por sua vez, mergulhavam em uma grave recessão.
VI – Por que os programas não deram certo
Enquanto esses modelos de reestruturação da dívida geralmente
conseguiam fazer com que os pagamentos de juros fossem efetuados de forma
corrente, que era o seu principal objetivo, acredita-se hoje, os credores
inclusive, que os programas de “ajuste” em que se baseavam esses modelos
eram em geral grandemente ineficazes para promover o ajuste econômico e,
na verdade, provocavam um desajuste ainda maior. Para ajudar a encontrar
soluções para o problema dos países em desenvolvimento devedores, é preciso
antes de qualquer coisa buscar entender, de forma clara, quais foram os motivos
para o fracasso desses programas nos cinquenta e poucos países em
A CRISE DA DÍVIDA: AT É QUANDO?
77
desenvolvimento (28 dos quais se encontram na América Latina e no Caribe)
onde eles foram aplicados de forma quase indiscriminadamente desde 1983.
Os motivos podem ser encontrados, em primeiro lugar, em três requisitos
básicos dos programas, todos eles pouco compatíveis entre si, e além disso,
fundamentalmente incompatíveis com a realização da meta de crescimento
econômico: o desempenho distorcido do setor do comércio exterior, as
políticas econômicas internas recessivas que afetam o setor público e o setor
privado e a inversão do fluxo de recursos financeiros entre devedores e
credores. Em segundo lugar, existia, e ainda existe, um grave desequilíbrio
nos fluxos globais dos recursos financeiros, principalmente entre as maiores
economias industrializadas.
Sob o ponto de vista do comércio exterior, o principal problema surgiu
da incapacidade dos países devedores de apresentar grandes superávits
comerciais através da expansão das exportações, ao invés da retração das
importações. Além de um ambiente de estagnação internacional, a expansão
das exportações enfrentava graves limitações, como:
a) a aguda e persistente deterioração em termos de comércio nos países
devedores; b) a dificuldade cada vez maior em manter a competitividade no
exterior, devido à grande redução na capacidade de importar novos
equipamentos e tecnologias; c) os pesados custos sociais e o risco político
de buscar níveis competitivos de preços através de maior achatamento salarial;
d)as barreiras protecionistas nos mercados dos países desenvolvidos; e)
níveis excessivamente altos de subsídio às exportações por parte dos países
desenvolvidos, afastando as exportações dos países em desenvolvimento dos
mercados do terceiro mundo.
Sendo forçados a reduzir suas importações apenas aos produtos
essenciais, como petróleo (no caso dos países sem autosuficiência), alimentos
e insumos industriais básicos, os países em desenvolvimento devedores não
conseguiam mais adquirir os bens de capital necessários à modernização de
suas estruturas produtivas. Sem dúvida, na medida em que as políticas internas
deles exigidas eram recessivas por natureza, não havia geralmente incentivo
ao investimento, e portanto, não havia uma grande demanda pela importação
de bens de capital.
Quanto às políticas internas, o foco principal do programa de ajustes
consistia em conter o déficit do setor público (que, por sinal, não era maior
em alguns casos do que o déficit de alguns países da OECD). Em um típico
país em desenvolvimento em que o setor público é responsável por uma
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
78
grande parte dos gastos com investimentos e compras isso pode ter profundas
repercussões, como de fato ocorreu em praticamente todos os países
submetidos ao programa de ajuste. A depressão que esses países
experimentaram seria hoje uma questão de história, se não fosse pelo fato de
ainda sofrerem os seus efeitos. De qualquer forma, até mesmo tentativas
heroicas de cortar os gastos do governo eram, em geral, mais do que
contrabalançadas pela necessidade de fornecer a contrapartida em moeda
local para o enorme volume de divisas obtidas com abundantes superávits
comerciais. Seguiu-se necessariamente uma expansão acelerada das reservas
monetárias, resultando em uma rápida taxa de crescimento da dívida pública
interna e na sobrecarga do seu financiamento. Desvalorizações excessivas da
taxa de câmbio só vinham agravar o impacto inflacionário desse plano. É
evidente que o programa não trouxe qualquer ajuste interno esperado nas
economias dos países devedores, e nem o mais empedernido otimista acharia
que isso poderia acontecer.
Entretanto, a mais adversa consequência imposta aos países devedores
não resultou das falhas no programa de ajuste aplicado ao gerenciamento
econômico interno, mas da única área em que foi bem sucedido, ou seja, a
transferência de recursos no exterior. De uma situação em que podiam contar
com as poupanças externas para complementar as suas próprias, os países
em desenvolvimento devedores se viram na posição de exportadores de capital
líquido. No período de 1976 a 1986, a balança dos recursos reais dos países
em desenvolvimento sem petróleo apresentou uma variação negativa da ordem
de 8% de seu PIB. Calculou-se que no período compreendido entre 1983 e
1986 a variação foi responsável por uma queda comparável da sua taxa de
investimento. A transferência líquida negativa de recursos reais dos países
devedores aos credores constitui a verdadeira encarnação da crise da dívida,
pois ela mina a capacidade de crescimento do país devedor. Para os maiores
devedores da América Latina, a transferência de recursos líquidos para o
exterior chegou a 20 a 25% da sua poupança interna bruta nos quatro anos
que se seguiram ao reescalonamento de suas dívidas em 1983. Como mostram
recentes estudos realizados nas Nações Unidas, existe uma íntima ligação
entre essa saída líquida de recursos financeiros e a forte queda na taxa de
formação de capital bruto durante o referido período.
Sob tais circunstâncias, não seria plausível conceber, a curto e médio
prazo, uma recuperação das atividades econômicas desses países que
trouxesse o reestabelecimento de suas capacidade de reembolso. A inédita
A CRISE DA DÍVIDA: AT É QUANDO?
79
drenagem de suas economias é a melhor explicação para o fracasso de
sucessivos acordos de reescalonamento de suas dívidas. Explica o motivo de
ter sido sugerido (World Economic Survey, 1987) que talvez fosse a hora
de certos bancos reconhecerem formalmente que uma parte significativa de
seus ativos estava supervalorizada e aceitarem algumas perdas nesse sentido.
É também o motivo pelo qual o Grupo dos 24, no seu comunicado de 26 de
setembro de 1987, observou: “De fato, existe um sentimento crescente no
mercado de que parte da dívida é incobrável”.
VII. Superpagamento e subfinanciamento
A crise enfrentada pela maioria dos países em desenvolvimento pode ser
resumida a uma questão de superpagamento e subfinanciamento. Sua
representação composta é a transferência líquida negativa de recursos reais.
Este conceito é hoje amplamente usado nos estudos conduzidos pelas Nações
Unidas, pelo Banco Mundial e pelo FMI. Como definida por esses órgãos, a
transferência líquida é igual à balança de mercadorias e serviços não fatores
com sinal inverso, o que leva em conta também as variações nas reservas de
divisas. Não é possível tratar de superpagamento ou de subfinanciamento
apenas nas negociações entre os países devedores e seus vários credores.
Não se pode tratar do endividamento dos países em desenvolvimento sem
considerar os desequilíbrios totais da economia mundial. O problema de sua
dívida só pode ser resolvido em compasso com o ajuste de outros fluxos
financeiros e a obtenção de níveis mais altos de atividade na economia mundial
como um todo. O problema, portanto, deve ser discutido nesse contexto
mais amplo.
A maioria dos analistas concorda que os países industrializados, com
superávit, precisam estimular um crescimento mais rápido de suas economias.
Quase todos acham que o país com o maior déficit do mundo – agora também,
de longe, o maior devedor – deve adotar uma disciplina fiscal mais rígida e
reduzir a incrível taxa com que absorve as poupanças externas. Esses países
mais ricos têm buscado uma coordenação maior de suas políticas monetárias
e financeiras. No entanto, seus esforços esbarraram em dois tipos de
dificuldades que, até o momento, mostraram-se intransponíveis. A primeira é
que, na falta de um sistema monetário e financeiro (o esquema de Bretton
Woods já se tornou há muito tempo um não sistema), os requisitos de uma
coordenação política eficaz impõem sobre cada um dos países mais
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
80
desenvolvidos, e por conseguinte sobre seus governos, uma carga que eles
não parecem dispostos a suportar além da adoção de medidas tópicas e
paliativas. A segunda dificuldade é que, embora esses mesmos governos
estejam perfeitamente cientes do crescente peso das economias dos países
em desenvolvimento em um mundo cada vez mais interdependente e da
ameaça que é representada por uma crise prolongada da dívida, eles não
parecem preparados para levar tal fato em consideração em sua argumentação
supostamente global. Enquanto isso, a crise continua a ter efeitos negativos
em termos de desemprego, pobreza e instabilidade social nos países
devedores. A renda per capita da América Latina, em 1987, ficou 5% abaixo
do resultado de 1980. Citado em recente entrevista, o professor Albert Fishlow
declarou que “Nas atuais circunstâncias, será impossível a América Latina
lançar mão de suas exportações ou financiamentos para solucionar a sua
crise da dívida”.
VIII. Elementos de estratégia da dívida
Existe, portanto, uma evidente necessidade de cooperação internacional
entre todos os interessados, no sentido de elaborar e implementar uma
estratégia global da dívida para resolver os dois aspectos da questão, isto é,
o superpagamento e o subfinanciamento. Essa estratégia deveria basear-se
nos seguintes pontos: i) redução imediata e substancial do déficit fiscal de
países com grandes déficits; ii) redução das taxas de juros das principais
economias, a fim de estimular o crescimento; iii) transferências substanciais
de países desenvolvidos com superávit para países em desenvolvimento com
déficit; iv) redução dos fluxos de saída dos países em desenvolvimento
devedores a níveis em que suas transferências líquidas de recursos reais se
tornem compatíveis com o financiamento do crescimento a índices significativos;
v) ajuste voltado para o crescimento nas economias dos países em
desenvolvimento devedores; vi) cancelamento da dívida oficial e privada dos
países menos desenvolvidos dentre os países em desenvolvimento. Além de
melhorar a sua capacidade de reembolso, os países em desenvolvimento
poderiam, através do aumento de sua capacidade de importação, assegurar
um crescimento sustentável e ao mesmo tempo contribuir para a recuperação
da economia mundial e do comércio internacional. De fato, houve uma
concordância unânime no UNCTAD VII realizado no ano passado, de que
estes deveriam ser os objetivos de uma estratégia de cooperação da dívida.
A CRISE DA DÍVIDA: AT É QUANDO?
81
Se é preciso evitar uma intensificação da crise da dívida, contudo, algo tem
de ser feito a curto prazo para reduzir o volume de pagamentos que serão
efetuados pelos países devedores, e também para aumentar os recursos
disponíveis para financiar o desenvolvimento. Na medida em que os
pagamentos externos são relevados, os recursos serão liberados para fazer
investimentos internos. À medida que as economias dos devedores recuperam
seu impulso anterior, o investimento exterior direto poderá mais facilmente
ser atraído para as poupanças domésticas.
A questão sobre como reduzir volume de pagamentos anuais gera grandes
discussões. O conceito de redução da dívida vem ganhando terreno
ultimamente, e uma ampla variedade de modalidades foi concebida e
apresentada por membros da comunidade acadêmica na política, no governo
e no setor bancário. As propostas vão de técnicas variadas para conversão
da dívida em ações com desconto, através de métodos de redução nos livros,
eliminação e oferta de garantia da dívida, até formas de reduzir, dar baixa, ou
securitizar a dívida até formas de reduzir, subsidiar, limitar ou financiar taxas
de juros e incluir ideias sobre como estimular o fluxo de financiamento para
os países em desenvolvimento devedores, seja através de investimento direto,
ou de outros métodos (como o co-financiamento ou financiamento paralelo
por instituições financeiras multilaterais e bancos privados). Sejam quais forem
as soluções preferidas – que não precisam ser mutuamente excludentes – seu
objetivo final consiste em atuar sobre o principal parâmetro agregado, ou
seja, a transferência líquida de recursos reais. O foco de uma estratégia de
dívida global seria mais preciso com o estabelecimento de uma meta para
reduzir a transferência líquida. Em discussões travadas nas Nações Unidas,
por exemplo, foi apresentada a proposta para que a transferência líquida
pudesse ser reduzida a um nível condizente com a realização das metas de
crescimento estabelecidas pela Estratégia de Desenvolvimento Internacional.
O importante é que a crise da dívida seja discutida a sério, e que os governos
dos principais países credores demonstrem a intenção de considerar o
problema de forma global, e de se dedicarem a fundo na busca de uma solução
global, não importando o local de sua preferência para realizar essa discussão.
Há muito mais coisas em jogo do que o bem-estar social e econômico e a
estabilidade dos países devedores, que por si próprias deveriam ser
importantes o suficiente para chamar a atenção da comunidade mundial.
Permitir que essa crise que já dura sete anos continue, sem tomar providências
importantes para detê-la, poderá significar uma ameaça não apenas à saúde
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
82
financeira do sistema bancário internacional, mas dos próprios países
industrializados. Em comparação com os altos riscos de deixar as coisas
como estão, o preço a ser pago hoje para finalmente colocar um ponto final
na crise parece bastante modesto.
83
Transferência de tecnologia
Álvaro Alencar
A necessidade de expandir a transferência de tecnologia adequada dos
países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, em condições mais
favoráveis a estes últimos, tem sido objeto de crescente interesse por parte
da comunidade internacional nos últimos anos. O Brasil, em particular, tem
sido um dos países mais atuantes na discussão do problema em vários foros
e talvez o principal responsável pela orientação dessa discussão em termos
de análise do mercado internacional. Uma vez caracterizado o conhecimento
tecnológico – especialmente o patenteado – como um bem econômico que é
transacionado como qualquer outro bem ou serviço no mercado internacional,
a cujas regras sua negociação está submetida, passou-se a encarar a questão
tanto na UNCTAD como em outros foros através da necessidade de eliminar
as imperfeições desse mercado. Até mesmo a Organização Mundial da
Propriedade Intelectual (OMPI), que tradicionalmente considerava o problema
das patentes apenas pelo lado jurídico, ou seja, da proteção à propriedade
industrial, vem-se preocupando seriamente com o aspecto comercial da
transferência de tecnologia, no propósito de estudar formas de acelerar essa
transferência à luz dos requisitos de desenvolvimento tecnológico dos países
em desenvolvimento.
Dados estatísticos sobre os gastos efetuados pelos países em
desenvolvimento com a importação de tecnologia revelam uma tendência
fortemente crescente. A curva que retrata esse crescimento é provavelmente
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
84
uma assíntota, tendendo para a estabilização no ramo superior. Mas, como
os países em desenvolvimento, movem-se atualmente ao longo do ramo inferior
da curva, esses gastos deverão crescer exponencialmente ainda por muito
tempo, na medida em que seu desenvolvimento econômico exija uma
importação de tecnologia estrangeira em volume crescente. A capacidade de
importar essa tecnologia é, portanto, um elemento estratégico para esses
países, cujo despreparo para gerar soluções tecnológicas próprias os mantém
numa condição de dependência de supridores internacionais. Daí a importância
da análise do mercado internacional de tecnologia, com vistas a permitir a
busca de soluções aceitáveis internacionalmente, que eliminem suas
características restritivas e o tornem um mercado competitivo.
Como assinalou o delegado do Brasil durante o debate geral na comissão
da III UNCTAD que examinou este tema, “o mercado internacional de
tecnologia, tal como funciona atualmente, não passaria o teste de qualquer
das legislações antitruste existentes nos países desenvolvidos de economia
de mercado”. Isso porque o mercado internacional se caracteriza por uma
forma de competição altamente imperfeita. Pela própria natureza dos “bens”
transacionados, isto é, tecnologia patenteada e as várias formas de know-
how a ela associadas, os vendedores tendem a usufruir de uma situação de
monopólio legal, como decorrência natural do fato de a patente conferir a
seu detentor direitos exclusivos de utilização. É sabido que um vendedor
monopolista dispõe de plena capacidade de impor as condições do negócio,
com evidente desvantagem para o comprador, no caso situado em país em
desenvolvimento.
Naturalmente, na medida em que determinado equipamento, desenho
ou processo tecnológico seja perfeitamente substituível por outro dentro da
mesma equação de produção, o comprador no país em desenvolvimento
pode, em teoria, recorrer a supridores alternativos e, desta forma, escapar
de um confronto desfavorável com um vendedor monopolista. Entretanto, o
mercado contém imperfeições também do lado da demanda, causadas
principalmente por um desconhecimento, pelo potencial comprador, das
alternativas disponíveis do lado da oferta. O comprador potencial num país
em desenvolvimento pode ser uma empresa privada nacional, ou a subsidiária
de uma empresa privada estrangeira, ou uma empresa governamental ou de
economia mista. Com exceção dessas duas últimas, o comprador geralmente
não dispõe de alternativas para comparar. A empresa privada nacional é quase
sempre incapaz de fazê-lo por falta de informação completa sobre a oferta
TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA
85
mundial no seu ramo. Quanto à subsidiária de empresa estrangeira, suas
operações de importação de tecnologia são em geral efetuadas com a matriz,
e, de qualquer forma, são sempre determinadas pela política empresarial desta.
Alguns feitos dessa situação de mercado, já plenamente identificados em
levantamentos realizados por organizações internacionais e por centros de
estudo localizados em países em desenvolvimento, ( Documentos TD/B/AC.11/
5, TD/B/310, TD/106 e TD/107, entre outros), são os seguintes: (a) a
tecnologia patenteada e o know-how adquiridos pelos países em
desenvolvimento nem sempre são os mais adequados, quer do ponto-de-
vista da empresa quer do ponto-de-vista macroeconômico do país recipiente;
(b) seus custos são necessariamente mais elevados do que os que resultariam
de transações realizadas num mercado livremente competitivo; (c) em
decorrência dos dois primeiros itens, deixa o país recipiente de explorar
plenamente sua capacidade de importação e seu potencial de desenvolvimento
tecnológico; (d) as práticas comerciais restritivas frequentemente impostas
ao adquirente reduzem sua eficiência microeconômica e cerceiam sua
capacidade de atuação no mercado internacional. Tais práticas restritivas
são variadas, e as mais frequentes são: a obrigatoriedade de o adquirente de
tecnologia adquirir também, do mesmo supridor, matéria-prima ou
componentes para seu produto final; o sobre faturamento nessas importações
vinculadas; a proibição de exportação do produto final para determinados
países onde o vendedor já penetra com seu produto (alocação de mercados);
a obrigatoriedade de ceder ao vendedor qualquer melhoramento ou adaptação
introduzidas na tecnologia originalmente negociadas e a proibição de o
comprador seguir utilizando a tecnologia depois de terminada a validade da
licença ou da patente.
Finalmente, a falta de competitividade do mercado permite outro tipo
de imposição ao adquirente: a dilatação dos prazos de prestação de
“assistência técnica”. Como a patente cedida através do contrato de licença
não contém em si mesma os elementos suficientes para assegurar sua
utilização, torna-se frequentemente necessária a prestação de assistência,
pela qual o vendedor transmite ao comprador o know-how que lhe falta. A
prestação dessa assistência além do tempo necessário à assimilação da
técnica é mais uma forma de tornar excessivo o custo da tecnologia
importada; e a assistência permanente de técnicos estrangeiros é ainda mais
prejudicial, por inibir a formação de técnicos nacionais do país em
desenvolvimento. Esta última forma, na verdade, frustra inteiramente um
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
86
dos principais objetivos da “transferência”, que é o desenvolvimento
tecnológico do adquirente. Aliada às demais restrições mencionadas, faz
com que a chamada transferência de tecnologia seja, na realidade, um
“empréstimo” de tecnologia por prazo determinado, a custos excessivos,
com inúmeras limitações a sua utilização por parte do recipiente, e com
uma taxa bastante reduzida de absorção efetiva.
A compreensão dessa realidade levou os países em desenvolvimento e
as organizações internacionais competentes a buscarem formas de atuar sobre
o mercado, a fim de eliminar ou reduzir a incidência de suas imperfeições nas
transações efetuadas. Ao mesmo tempo, a análise de suas próprias deficiências
está impelindo um número já considerável de países em desenvolvimento,
entre os quais o Brasil, a montar uma infra-estrutura interna que os permita
aumentar sua capacidade de importação e de absorção efetiva de tecnologia
estrangeira, como meio de acelerarem seu desenvolvimento econômico e
como passo indispensável para chegarem à etapa de adaptação dessa
tecnologia a seus requisitos e interesses específicos e, eventualmente, criarem
equipes e condições materiais para um desenvolvimento tecnológico baseado
também em soluções próprias.
A evolução no tratamento internacional do assunto, tal como acima
descrita, permitiu que a III UNCTAD aprovasse por unanimidade uma
resolução que cobre tanto os aspectos externos quanto os internos, e que
aponta soluções precisamente para aqueles problemas com que se defrontam
os países em desenvolvimento.
A resolução em apreço, contida no documento TD/L.69 da Conferência,
apresenta além da parte preambular, três partes resolutivas. A primeira delas
refere-se aos arranjos institucionais dentro da UNCTAD, aprovando o
programa de trabalho do Grupo Intergovernamental de Transferência de
Tecnologia e instruindo a Junta de Comércio e Desenvolvimento a “assegurar
que a natureza contínua das funções da UNCTAD nesse campo seja refletida
nos arranjos institucionais dentro da UNCTAD”. As partes II e III, de natureza
substantiva, contêm recomendações e decisões referentes aos aspectos de
acesso (mercado) e criação de uma infra-estrutura adequada nos países em
desenvolvimento.
No que se refere às transações internacionais para transferência de
tecnologia, um dos pontos mais importantes dessa resolução é o que diz
respeito à criação de instituições nos países em desenvolvimento para o
desempenho, entre outras, das seguintes atribuições:
TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA
87
(i) proceder do registro, depósito, revisão e aprovação de contratos de
transferência de tecnologia nos setores público e privado;
(ii) efetuar ou promover a avaliação, negociação ou renegociação de
contratos de transferência de tecnologia;
(iii) assistir as empresas nacionais na busca de potenciais supridores
alternativos de tecnologia, de acordo com as prioridades do planejamento
do desenvolvimento nacional;
(iv) promover o treinamento de pessoal destinado às instituições que
lidam com transferência de tecnologia.
É importante observar que as autoridades competentes no Brasil já
desempenham as duas primeiras funções acima, e já iniciaram a execução de
um projeto de modernização que permitirá a realização eficiente também das
duas últimas. Nos termos do parágrafo 7 da mesma resolução, a UNCTAD
deverá também prestar assistência aos países em desenvolvimento para esses
fins, especialmente os mencionados nos itens (ii), (iii) e (iv) acima para o que
poderá contar, em sua qualidade de agência executora do PNUD, com a
contribuição financeira daquele programa das Nações Unidas.
O subitem (iii) acima está também relacionado com o parágrafo 8 (iv) da
resolução, que recomenda a cooperação da UNCTAD com a OMPI no
estudo de mecanismos que promovam a transferência para os países em
desenvolvimento. O estudo está sendo efetuado atualmente no âmbito da
OMPI por proposta do Brasil, e tem como objetivo a divulgação de
oportunidades e de licenciamento e a realização de rodadas de negociações
para a conclusão de contratos entre partes interessadas em, respectivamente,
ceder e adquirir know-how em determinados setores de produção. Caso
venha a ser aprovado, o mecanismo de negociações abrangeria também a
possibilidade de que alguns países em desenvolvimento que dispusessem de
know-how próprio se beneficiassem do sistema para divulgá-lo a potenciais
compradores, criando assim oportunidades de exportá-lo. Do ponto-de-vista
de um país como o Brasil, representaria, portanto, um instrumento para
melhorar sua posição no mercado como comprador, ao mesmo tempo em
que permitiria um aumento gradual de sua participação como vendedor.
Outro instrumento de atuação sobre o mercado é o mencionado no
parágrafo 9 da resolução aprovada pela III UNCTAD. Trata-se da elaboração
das bases de legislação internacional que regule a transferência de tecnologia,
isto é, que discipline o quadro contratual dentro do qual se estabelecem as
ÁLVARO ALENCAR, UM DIPLOMATA NA LUTA CONTRA O SUBDESENVOLVIMENTO
88
condições para a cessão do know-how, patenteado ou não patenteado. Na
prática, isso significa eliminar boa parte das imperfeições mencionadas na
análise do mercado feita no início desta apreciação do problema,
particularmente as práticas comerciais restritivas ali indicadas. Tal legislação
internacional teria que ser negociada, em última análise, por uma conferência
de plenipotenciários e referendada pelo processo adotado em cada país, a
fim de constituir instrumento de caráter obrigatório, não sendo de excluir-se
a possibilidade de englobar-se numa mesma convenção internacional os dois
principais aspectos da questão: os mecanismos de negociação e a legislação
que regula as relações contratuais estabelecidas.
Com essas medidas, não se pretende restringir a liberdade de contratar
das partes, senão melhorar as condições do mercado, tornando-o livremente
competitivo. Além de beneficiar, naturalmente, os compradores nos países
em desenvolvimento, tal convenção atenderia aos interesses dos supridores
de tecnologia de médio porte, tanto das grandes potências industriais quanto
dos pequenos países desenvolvidos e, eventualmente, dos países em
desenvolvimento que tiverem condições de ofertar; todos esses supridores
“médios” têm atualmente grande dificuldade de penetrar num mercado
dominado pelas empresas internacionais de grande porte, as quais nem sempre
são possuidoras do know-how mais adequado à infra-estrutura, distribuição
de fatores e estrutura de custos e de rendas encontradas nos países em
desenvolvimento.
Dois outros aspectos da resolução aprovada em Santiago, embora de
natureza complementar à ação principal acima descrita, são relevantes como
forma de apoio ao esforço interno a ser despendido pelos países em
desenvolvimento no campo da tecnologia: a cooperação bilateral por parte
dos países industrializados e a cooperação entre os próprios países em
desenvolvimento. No primeiro caso, a III UNCTAD recomendou aos países
desenvolvidos que adotassem uma série de medidas destinadas a facilitar a
transferência e a adaptação de tecnologia, a saber: a divulgação de
informações e ampliação da assistência técnica e financeira para o
desenvolvimento tecnológico; programas de treinamento; incentivos a suas
empresas para que utilizem e treinem técnicos locais e transfiram informações
sobre especificações e processos; designação de instituições nos países
desenvolvidos que forneçam informações sobre tecnologias disponíveis;
orientação de seus programas de cooperação para a adaptação de tecnologia
às condições existentes nos países recipientes; e incentivos para a transmissão,
TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA
89
às instituições correspondentes nos países em desenvolvimento, dos resultados
de pesquisas realizadas por centros e universidades em países desenvolvidos.
Aos países em desenvolvimento, a Conferência recomendou igualmente
que seguissem o caminho, até agora praticamente inexplorado, da cooperação
destinada a promover a transferência de tecnologia entre si próprios, através
do intercâmbio de experiências nos campos da aquisição, adaptação,
melhoramento e aplicação de tecnologia importada, do estabelecimento de
centros de pesquisas regionais com intercâmbio intra-regional, do intercâmbio
de técnicos, e da realização de projetos conjuntos para atender a requisitos
tecnológicos comuns.
A resolução unanimemente aprovada pela III UNCTAD constitui, assim,
a mais completa e incisiva decisão até agora tomada pela comunidade
internacional nesse campo. Sem apontar todas as soluções, e muitas vezes
ressentindo-se da falta de um tom mais mandatório, representa, entretanto,
um amplo mandato para a UNCTAD, a OMPI, a UNIDO e os demais
organismos internacionais que lidam com o problema do desenvolvimento
tecnológico dos países em desenvolvimento, além de propiciar a esses países
um excelente plano de ação para ser implantado por sua própria iniciativa,
com o apoio do órgão financeiro do sistema das Nações Unidas e dos
programas bilaterais de assistência. Do esforço combinado de reformulação
das regras e características do mercado internacional e de capacitação interna
dos países em desenvolvimento, deverão resultar as condições para a
superação da dependência tecnológica absoluta desses países, permitindo
aos vanguardeiros, pelo menos, assumir uma posição de relativo equilíbrio
em suas trocas de tecnologia com o exterior, ou seja, lograr uma participação
ativa no intercâmbio internacional de tecnologia que será muito provavelmente,
o elemento mais dinâmico das relações econômicas internacionais.
Formato 15,5 x 22,5 cm
Mancha gráfica 12 x 18,3cm
Papel pólen soft 80g (miolo), duo design 250g (capa)
Fontes Times New Roman 17/20,4 (títulos),
12/14 (textos)
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo